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PN 1002.011; Ap: TC Guimarães;

Ape2: Rita Maria Gomes da Costa Andrade Almeida

S. Gião, Moreira de Cónegos, Guimarães;

Apo: MP.

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. A Ape recorre da decisão de 1ª instância pela qual foi indeferido pedido para

autorização judicial da venda de bens dos menores, filhos da requerente, viúva.

2. Concluiu:

(a) A sentença recorrida não tem suporte nos factos que resultaram provados,

nem nos critérios definidos na lei;

(b) Da matéria provada resulta pretender vender-se por 30 000c. um imóvel

que, em 97.06.16, foi adquirido por 15 000c., imóvel este onerado com um

direito de habitação;

(c) Do acto autorizando resultam vantagens e nenhuns prejuízos para os

menores, estando os interesses destes perfeitamente acautelados;

(d) E nem a necessidade urgente nem o proveito evidente são mencionados na

lei como condição sem a qual não é possível autorizar a alienação de imóveis de

menores;

1 Vistos: Des. Ferreira de Sousa (332), Des Paiva Gonçalves (1129). 2 Adv. Dr. Paulo Leal, Praça do Bom Sucesso, 127 Esc. 307, 4150 Porto.

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(e) Tais exigências resultavam do art. 150 Código de Seabra, mas foram

intencionalmente afastadas pelo legislador;

(f) Actualmente o critério consagrado na lei, e que se mostra cumprido no

caso vertente é o do art. 1897 CC: o legislador confia aqui no vínculo especial

que une pais e filhos, como se vê do facto de, em geral, não serem os pais

obrigados nem a prestar caução (art. 1898 CC), nem a prestar contas da sua

administração (art. 1899 id.);

(g) Ainda que não existisse o art. 1898 CC, a verdade é jamais poderem ser

usados os critérios invocados pelo tribunal a quo, pois, como se disse, foram

retirados intencionalmente pelo legislador;

(h) Aliás, no que diz respeito ao património de menor, tem sido esse o sentido

adoptado na evolução legislativa, com resulta claramente do DL 227/94, 08.09:

na verdade, a necessidade de manutenção da integração e coesão familiares

aponta iniludivelmente para que se adopte o princípio de que ninguém melhor

que os pais ou representantes legais do menor para definir, em cada caso, o que

de forma mais eficaz defende os interesses deste;

(i) O intuito do art. 1889 CC é aliás o de preservar o património do menor dos

actos que o possam alterar estrutural e irremediavelmente, que importem

redução patrimonial, ou ónus, ou compromisso;

(j) Assim não tendo sido entendido, a decisão recorrida violou, além do mais,

o disposto nos arts. 1889 e 1897 CC;

(k) Deve ser revogada e substituída por acórdão que autorize a venda do

imóvel em causa.

3. O MP contra-alegou, dizendo, no fundamental:

(a) Há fortes indícios de que [outrora] nem os vendedores pretenderam

vender, nem o comprador pretendeu comprar, mas apenas [tiveram por

objectivo] retirar temporariamente o imóvel da esfera patrimonial dos

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vendedores, para que não fosse penhorado e eventualmente vendido, a fim de

que os credores obtivessem pagamento das suas dívidas;

(b) Se assim é, trata-se de negócio simulado, nulo nos termos do art. 245/2

CC;

(c) Contudo, a requerente devia era pugnar pela nulidade do negócio, em vez

de envolver os filhos e o próprio tribunal, para dar uma aparência de

seriedade, eventualmente para que aqueles que sempre foram donos da casa, e

aparentemente a venderam, a voltem a comprar, aparecendo com terceiros na

veste de cândida boa fé;

(d) Em todo o caso, a requerente defende o projecto de uma venda por 30

000c. de um imóvel adquirido, em 97.06.16, por 15 000c., e ainda por cima

onerado com um direito de habitação [em favor daqueles que foram vendedores,

dos quais se apresenta agora um deles como comprador];

(e) Ora, se ainda não decorreram quatro anos após a compra, e o lucro é já de

100%, não obstante a oneração que no entanto se extingue em 02.06.16, porquê

vendê-lo agora? Porquê não esperar, ao menos, pela extinção do direito que o

onera?

(f) Não é, por certo, uma necessidade para os menores a venda do imóvel, isto

atendendo nomeadamente à comprovada fortuna deixada pelo pai, e diríamos

que, no mínimo, seria indiferente para eles que o imóvel fosse vendido;

(g) Mas, se não há interesse nem proveito para os menores, o pedido para

autorização para a venda só pode ser negado3 embora seja verdade que a

legislação vem aligeirando o controlo que é exercido sobre a administração dos

bens dos menores, nomeadamente face às alterações introduzidas pelo DL

227/94, 08.09;

(h) Deverá, por conseguinte manter-se a decisão recorrida.

4. Ficou provado:

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(1) Rita Maria Andrade Almeida Freitas nasceu em 84.01.26 e é filha de

Orlando Joaquim Machado de Almeida Freitas e de Rita Maria Gomes da Costa

Andrade Almeida;

(2) Orlando Miguel Andrade da Costa Almeida Freitas nasceu em 87.10.18 e

é filho de Orlando Joaquim Machado de Almeida Freitas e de Rita Maria Gomes

da Costa Andrade Almeida;

(3) Por escritura pública de habilitação notarial lavrado em 98.10.27, foram

habilitados herdeiros de Orlando Joaquim Machado de Almeida, à sua morte, o

seu cônjuge, Rita Maria Gomes da Costa Andrade Almeida e os dois filhos

referidos em (1) e (2);

(4) Por escritura pública lavrada em 97.06.16, Rosa Maria Ferreira da Costa,

Artur Jorge Ferreira da Costa, Sérgio Paulo Ferreira da Costa e Vitor Rui

Ferreira da Costa declararam vender a Orlando Joaquim Machado de Almeida

Freitas que, por sua vez, aceitou tal venda, o prédio urbano destinado a

habitação, composto de rés-do-chão, andar, sótão, com logradouro, com área

coberta de 223,60 m2 e a área descoberta de 174 m2, sito na Urbanização Padre

Serafim das Neves, Azurara, Vila do Conde, descrito na C. Reg. Predial de Vila

do Conde sob o nº 00290, inscrito na matriz sob o art. 425;

(5) Mais declararam que a venda era realizada pelo preço de 15 000 000$00 e

com reserva do direito de habitação pelo prazo de 5 anos, a favor dos

vendedores;

(6) Esta venda foi motivada pelas razões de amizade que o pai dos menores

mantinha com os vendedores;

(7) A situação económica destes havia sofrido significativas alterações em

virtude do falecimento de Bento Pereira da Costa, marido da vendedora Rosa e

pai dos restantes vendedores;

3 Citou neste sentido, Reis, Alberto, Processos Especiais II, p.490.

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(8) E é o anterior proprietário Artur Jorge Ferreira da Costa, residente no

imóvel, que está interessado no mesmo pelo preço de Pte 30 000 000$00;

(9) O imóvel foi avaliado em Pte 30 000 000$00;

(10) O imóvel em causa tem um valor diminuto no acervo de bens deixados na

herança do pai dos menores.

4.1 O tribunal fundou a convicção, (1) no teor das avaliações constantes dos autos; (2) no

depoimento de familiares dos menores: a herança deixada pelo pai é muito

significativa, não tendo estes qualquer interesse em manter o imóvel em causa; (2.1)

afirmaram ainda a existência de relações de amizade entre aquele e o marido e pai

dos vendedores; (3) no depoimento de Artur Jorge Ferreira da Costa, potencial

comprador, que referiu os factos tal como estes foram dados como provados e

afirmou: Pte 15 000 000$00 que o comprador pagou aos vendedores foram

utilizados para resolver um problema que tinham na Banca, e relativo a uma conta

caucionada; (3.1) a intenção dosa vendedores e do comprador sempre terá sido,

desde início, que os primeiros voltassem a comprar o imóvel logo que a situação

financeiro lho permitisse, e foram surpreendidos com a morte do comprador; (3.2)

sempre residiram na casa em questão, mantendo-se nela ainda hoje.

5. A decisão recorrida baseou-se nos seguintes passos:

(a) O juiz deve conceder autorização se adquirir convicção de que o acto visa

satisfazer uma necessidade urgente ou é de proveito evidente para o incapaz4;

(b) Dos factos alegados e provados não se retira contudo que a venda

projectada seja de alguma forma proveitosa para os menores: (1) a venda é

realizada para repor uma situação existente em data anterior àquela em que estes

se tornaram proprietários, com vantagens visíveis e únicas para a pessoa que se

encontra interessado na compra; (2) o preço da venda é o da avaliação do

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imóvel, pelo que nem sequer se poderá falar em vantagem na troca de um bem

de raiz (sempre mais valioso que a correspondente quantia em dinheiro) pelo

montante de Pte 30 000 000$00; (3) é a própria requerente quem alega que o

bem não tem qualquer significado no património herdado pelos menores, logo,

nenhuma necessidade têm estes de dispor dele; (4) se é certo que o imóvel se

encontra onerado com o direito de habitação concedido aos vendedores, a

verdade é que esse direito em breve se extinguirá, desaparecendo qualquer

limitação ao direito de propriedade;

(c) As razões de amizade que terão determinado a compra pelo pai dos

menores não são razões válidas para que o tribunal, a quem incumbe acautelar os

interesses dos incapazes, autorize agora a venda.

6. O recurso está pronto para julgamento.

7. A lide chama à memória uma citação de Álvaro Ribeiro: o jurista não pensa na carne

nem na alma, mas só no espírito de uma instituição e utopicamente constrói uma

doutrina da família sobre relações legais de parentesco, com seus direitos e

obrigações: a concretização opera-se nos bens materiais, económicos e financeiros5.

Contudo, como bem defende a Ape, e pelo menos a partir da entrada em vigor da

CRP6, o controlo jurisdicional das alienações de bens dos filhos menores está hoje

circunscrito à razão de evitar, no limiar provável do dolo, negócios ruinosos em

4 Vd. nota antecedente. 5 Ribeiro, Álvaro, Escola Formal, Guimarães Editores, Lisboa 1958, pp. 121/2. 6 Vd. arts 36 e 67ss CRP, nomeadamente art. 36/5: os pais têm o direito e o dever da educação…dos filhos; art. 67/1: a família como elemento fundamental da sociedade, tem direito… à efectivação de todas as

condições que permitam a realização pessoal dos seus membros; art. 67/2: incumbe designadamente ao Estado, para protecção da família, promover a independência social e económica dos agregados

familiares; art. 68/1: os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação…; art. 68/2: a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes; art. 69/1: as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade

na família e nas demais instituições.

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prejuízo manifesto e evidente do núcleo patrimonial que se constitui enfim na base do

projecto educativo, de formação e de futuro das crianças7… mas perseguido, sem

dúvida, no padrão familiar livremente escolhido pelos pais como titulares de

incontornável responsabilidade pela vida boa ou o acompanhamento solícito dos

descendentes. Enquanto não estão ainda habilitados nem de facto nem de direito a

tomar rumo autónomo, é soberana a patria potestas. Entretanto, a plena liberdade do

jovem e, depois, do adulto, está contida por inteiro na esperança legítima dos

progenitores, em bom aviso, saudade de um provir reconfigurado ao êxito de uma

certa rectidão, a do modelo rectificado inaugural (para aquele e só para aquele de

entre todos), aferido ao processo educativo.

E na viragem de um direito individualista mas patrimonial, correspondente à filosofia

dos códigos revolucionários, para o direito dos códigos da legalidade do Estado

Social, no século XX, como é caso do Código Civil Português, passou em frente a

pessoa8, substância individual de natureza racional (racionalidade significa aqui o

carácter do homem que sai de si mesmo, e que só saindo de si mesmo, i.é,

transcendendo a sua própria individualidade, é homem). Por conseguinte: essa pessoa

e o projecto de educação e de vida eleitos, sobrepostos ao lídimo valor da

conservação dos cabedais.

Ora, a preocupação manifestada na sentença recorrida, com apoio em Alberto dos

Reis, anterior a 1966/7, não é com efeito aquela que resulta da lei vigente: a

autorização judicial à venda de bens dos filhos menores não sofre condicionamento

da necessidade urgente ou do evidente proveito, mas pode muito bem ter de mobilizar

o valor educativo de cumprir-se a palavra dada pelo pai falecido. E contrariamente

ao último dos argumentos sentenciais9 entendemos que, numa situação claríssima de

7 Vd. art. 68/2 CRP, cit. nota anterior. 8 Vd. Castanheira Neves, J., Redução Política do Pensamento Metodológico-Jurídico, in Digesta II, Coimbra Editora, Coimbra 1995; Bronze, F. J., Apontamentos Sumários de Introdução ao Direito, Lição 13, policop. Coimbra, 1997, pp. 491ss; Kaufmann, Arthur, Vorüberlegungen… [trad. Port., Bronze, F.J., Prólegomenos a uma Lógica Jurídica e a uma Ontologia das Relações: Fundamento de uma Teoria do Direito Baseado na Pessoa, policop., Coimbra, 1991], in Rechtstheorie, Berlim, 1986, pp. 257/276. 9 Vd. 5.(c).

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neutralidade patrimonial (é a que se desenha, de menos, na matéria provada), este

desígnio honorável, aderente à memória da figura veneranda, e ao projecto educativo

que a família gizou para os infantes (e no cumprimento dele afinal de contas

apresenta-se-nos a requerente), nem é substimável, quanto deve mesmo orientar

decididamente a solução do caso pelo tribunal.

Também não nos impressiona o contra-argumento do MP quando avoca a suspeita de

ter havido uma manobra em prejuízo dos credores da família amiga10, reprovável pese

embora a atitude solidária do pai das crianças. Todavia é no imediato favor delas que

devem estar sobretudo as instituições e o tribunal: trata-se na realidade de assunto que

apenas diria respeito a quem, segundo o ordenamento, com legitimidade, tivesse

solicitado aos poderes públicos remédio para um concreto conflito, redesenhado

contudo aqui oficiosa e verdadeiramente sob mera hipótese ou pelo menos a partir de

uma espécie de modelo abstracto, fora dos poderes de cognição, com toda a

segurança.

Pelo contrário, a base solidarística de um tempo negocial prolongado em que decerto

se acorre em socorro de uma viuvez e orfandade sob compromisso de ser aceite, mais

tarde, qualquer reversão por via de melhor fortuna, não pode ser elidida e jogada na

falta de préstimo matricial das soluções jurídicas ditas de arquitectura do interesse

dos menores, e quando o exemplo da protecção e velar pelos outros se constituem

justamente em veículo indemne de uma melhoria da formação e da vida.

Tudo visto, sobretudo tendo presente a carne e a alma do caso, e a par da motivação

referida à sentença de facto, aceitamos sem mais os argumentos recursivos, porque

basta o enunciado à estreiteza da controvérsia.

8. Atento o exposto, vistos os arts. 1889 e 1897 CC, decidem revogar a sentença

recorrida que substituem por este acórdão através do qual concedem a autorização

para venda de imóvel solicitada ao tribunal pela recorrente.

10 Vd. 3.(a) (b) (c).