Ações Coletivas Indenizatórias de Consumidores · III RESUMO Esta monografia destina-se a...

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EDUARDO CARNEIRO VASQUES AÇÕES COLETIVAS INDENIZATÓRIAS DE CONSUMIDORES MOVIDAS POR ASSOCIAÇÕES CIVIS EM FACE DA INDÚSTRIA TABAGISTA: ASPECTOS GERAIS, DE DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL BACHARELADO EM DIREITO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Campus de Poços de Caldas Curso de Direito 2001

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EDUARDO CARNEIRO VASQUES

AÇÕES COLETIVAS INDENIZATÓRIAS DE CONSUMIDORES MOVIDAS POR ASSOCIAÇÕES

CIVIS EM FACE DA INDÚSTRIA TABAGISTA: ASPECTOS GERAIS, DE DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL

BACHARELADO EM DIREITO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Campus de Poços de Caldas

Curso de Direito 2001

II

EDUARDO CARNEIRO VASQUES

AÇÕES COLETIVAS INDENIZATÓRIAS DE CONSUMIDORES MOVIDAS POR ASSOCIAÇÕES

CIVIS EM FACE DA INDÚSTRIA TABAGISTA: ASPECTOS GERAIS, DE DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL

Monografia de conclusão de curso

apresentada ao curso de Direito da

Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, Campus Poços de Caldas,

Faculdade de Direito, como requisito

parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Direito, sob a orientação do

Prof. Dr. Júlio César Ballerini Silva.

Poços de Caldas 2001

III

RESUMO

Esta monografia destina-se a demonstrar a existência de responsabilidade

patrimonial da indústria tabagista e seu dever de indenizar os consumidores que

tenham adquirido moléstia à saúde em decorrência do consumo de cigarros. Para

tanto, são abordadas as principais teorias de responsabilidade civil, demonstrando-

se que a teoria da responsabilidade objetiva mitigada, adotada pelo Código de

Defesa do Consumidor, é aplicável até mesmo a grande parte das relações jurídicas

estabelecidas antes do início de vigência do mencionado diploma legal.

O produto cigarro foi enfocado sob a ótica do Direito do Consumidor,

comprovando-se a presença de defeitos de criação e de informação, tal como a

circunstância de a publicidade do produto ser enganosa e abusiva.

Além disso, verificou-se que a novel sistemática processual das ações

coletivas, pela qual coletivamente pode-se buscar indenização por danos

experimentados individualmente, é perfeitamente aplicável para se pleitear

indenização a consumidores de cigarros lesados em sua saúde pelo referido

produto.

Por derradeiro, evidenciou-se a adequação social e jurídica das associações

civis como autoras de ações dessa natureza.

IV

BANCA EXAMINADORA

A Banca Examinadora da apresentação da Monografia considerou o aluno

Eduardo Carneiro Vasques, com média final igual a 100 (cem).

Poços de Caldas, 22 de junho de 2001.

Examinadores:

_____________________________________

Prof. Dr. Júlio César Ballerini Silva (Orientador)

_____________________________________

Prof. Dr. Marco Antônio Geiger França Corrêa

_____________________________________

Prof. Dr. Sidnei Boccia Pinto de Oliveira Sá

V

Dedico este pequeno e despretensioso estudo à minha mãe, por seu esforço em tentar garantir minha formação profissional e por ser sempre um porto seguro, aos meus irmãos e à minha linda irmãzinha pela rara amizade que nos une, e a Érica pela compreensão, incentivo e afeto que me vem dando.

VI

Agradeço ao Prof. Dr. Júlio César Ballerini Silva, verdadeiro cultor do Direito, pela honra de haver me aceito como seu orientando, pela prestimosidade com que sempre me atendeu e pela confiança que em minha pessoa vem depositando. Agradeço ao Prof. Dr. Magno Federici Gomes pelos valiosos conselhos quando da escolha do tema desta pesquisa. Agradeço ao Dr. Alexandre Jorge Pimenta por me apresentar à seara da redação forense. O seu primoroso estilo redacional serviu-me de paradigma para a confecção desta monografia. Contudo, não tive a pretensão de igualá-lo. Agradeço, por derradeiro, a todos aqueles que se dispuseram a discutir o assunto comigo, possibilitando-me a revisão de antigos conceitos. Este breve trabalho seria inalcançável sem o auxílio dessas pessoas.

VII

“Novos grupos, novas categorias, novas classes de indivíduos, conscientes de sua comunhão de interesses, de suas necessidades e de sua fraqueza individual, unem-se contra as tiranias da nossa época, que não é mais exclusivamente a tirania dos governantes: a opressão das maiorias, os interesses dos grandes grupos econômicos, a indiferença dos poluidores, a inércia, a incompetência ou a corrupção dos burocratas.”

GRINOVER (1998, p. 431) “...a chamada crise do direito talvez apenas encobrisse a dificuldade de dominar com categorias jurídicas substancialmente pré-capitalistas a fenomenologia de uma sociedade industrial.‟” Túlio Ascarelli apud GRINOVER (1998, p. 111)

VIII

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 1

2. ASPECTOS GERAIS ............................................................................................ 4

2.1. Proteção Jurídica do Consumidor ................................................................... 4

2.2. Tutela Constitucional das Relações de Consumo ........................................... 5

2.3. Princípios que informam o Direito do Consumidor .......................................... 6

2.3.1. Princípio da vulnerabilidade ...................................................................... 6 2.3.2. Princípio do dever governamental ............................................................. 8 2.3.3. Princípio da garantia de adequação .......................................................... 8 2.3.4. Princípio da boa-fé nas relações de consumo ........................................... 8 2.3.5. Princípio da informação ............................................................................. 8 2.3.6. Princípio do acesso à justiça ..................................................................... 9

2.4. Relação de Consumo ...................................................................................... 9

2.5. Conceito de Consumidor ................................................................................. 9

2.6. Conceito de Fornecedor ................................................................................ 11

2.7. Conceito de Produto ...................................................................................... 13

2.8. Conceito de Defeito ....................................................................................... 13

2.8.1. Defeitos de criação .................................................................................. 14 2.8.2. Defeitos de fabricação ............................................................................. 15 2.8.3. Defeitos de informação ............................................................................ 15

2.9. Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos ............................. 16

3. ASPECTOS DE DIREITO MATERIAL ................................................................ 18

3.1. Direitos básicos do consumidor ..................................................................... 18

3.1.1. Direito básico à vida, à saúde e à segurança .......................................... 18 3.1.2. Direito básico à informação ..................................................................... 18 3.1.3. Direito básico à proteção contra publicidade enganosa e abusiva .......... 19 3.1.4. Direito básico à concreta reparação dos danos e facilitação da defesa judicial ................................................................................................................ 19

3.2. Natureza Jurídica do Direito à Saúde ............................................................ 19

IX

3.3. Teorias de Responsabilização Civil ............................................................... 22

3.3.1. A Teoria adotada pelo Código Civil ......................................................... 22 3.3.2. Teoria da Responsabilidade Objetiva ...................................................... 23 3.3.3. A teoria adotada pelo Código de Defesa do Consumidor: Responsabilidade Objetiva Mitigada ................................................................... 24

3.4. Direito Intertemporal e a aplicação da Responsabilidade Objetiva Mitigada às Relações de Consumo anteriores ao Código de Defesa do Consumidor .............. 25

3.5. Conceito de fato do produto .......................................................................... 27

3.6. Fundamentos para a responsabilização dos fabricantes de cigarro .............. 27

3.7. Elementos para valoração da defeituosidade do produto cigarro .................. 28

3.7.1. Produtos inerentemente perigosos e de periculosidade adquirida .......... 28 3.7.2. Falta de segurança legitimamente esperada ........................................... 31 3.7.3. Apresentação do produto ........................................................................ 34 3.7.4. Uso e riscos que naturalmente se espera ............................................... 34 3.7.5. Época em que o produto foi colocado em circulação .............................. 36 3.7.6. Riscos do desenvolvimento ..................................................................... 37

3.8. Análise do produto cigarro para fins de responsabilidade por acidentes de consumo. ................................................................................................................ 39

3.8.1. Defeito de criação .................................................................................... 39 3.8.2. Defeito de informação ............................................................................. 42

3.9. Não cabimento das hipóteses de exclusão da Responsabilidade ................. 44

3.9.1. Não colocação do produto no mercado ................................................... 44 3.9.2. Inexistência de defeito ............................................................................. 45 3.9.3. Culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro ........................................ 45 3.9.4. Caso fortuito e força maior ...................................................................... 46 3.9.5. Conformidade do produto com normas de controle administrativo.......... 46 3.9.6. A situação do comerciante ...................................................................... 47

3.10. Responsabilidade Solidária e Subsidiária ..................................................... 48

3.11. O dever de indenizar ..................................................................................... 48

3.12. Dano Moral e Material ................................................................................... 50

3.13. Contrapropaganda......................................................................................... 54

4. ASPECTOS DE DIREITO PROCESSUAL .......................................................... 55

X

4.1. O problema do Acesso à Justiça ................................................................... 55

4.2. Ação Coletiva e Ação Civil Pública ................................................................ 58

4.3. A Class action brasileira ................................................................................ 60

4.4. Condições de uma Ação Coletiva Contra os Fabricantes de Cigarro ............ 61

4.5. Prescrição ..................................................................................................... 63

4.6. Litisconsórcio, Assistência e Intervenção de Terceiros ................................ 63

4.7. Procedimento da Ação Coletiva .................................................................... 64

4.8. Petição Inicial ................................................................................................ 64

4.9. Competência ................................................................................................. 65

4.10. Conexão, Continência e Litispendência ........................................................ 65

4.11. Ministério Público .......................................................................................... 66

4.12. Ônus da Prova: inversão ............................................................................... 67

4.13. Transação ..................................................................................................... 69

4.14. Sentença ....................................................................................................... 69

4.15. Custas e despesas processuais e ônus sucumbenciais ................................ 70

4.16. Coisa Julgada ................................................................................................ 70

4.17. Liquidação de Sentença ................................................................................ 71

4.17.1. Liquidação Individual ............................................................................... 72 4.17.2. Liquidação Coletiva (Fluid Recovery) ...................................................... 72

4.18. Execução individual e coletiva ....................................................................... 74

5. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 75

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ......................................................................... 80

1

1. INTRODUÇÃO

As indústrias de produção de bens de consumo, não raramente, lançam

produtos que oferecem riscos à saúde de seus consumidores. Duas décadas atrás,

restava a essas pessoas lesadas, somente, buscarem, de modo individual, a tutela

jurisdicional. Como o interesse individual muitas vezes não se mostrava tão

significante, em termos patrimoniais, ao ponto de justificar o ingresso no Poder

Judiciário, via-de-regra, o fornecedor nenhuma reprimenda sofria.

Cerca de quinze anos atrás iniciou-se em nosso país uma produção

legislativa, que ganhou grande força com a Constituição de 1988, que visa,

justamente, oferecer proteção aos interesses difusos, coletivos e individuais

homogêneos e que gerou, de fato, uma mudança nos paradigmas processuais e

civis. A Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor,

especialmente, mostraram-se inovadores neste sentido.

Discute-se, hodiernamente, em boa parte do mundo, os malefícios trazidos

pelo uso do cigarro e dos demais produtos oriundos do tabaco. Com efeito, os

fumantes compõem um dos maiores grupos sociais existentes. Inúmeros são os

relatos de pessoas acometidas de graves doenças em virtude do hábito de fumar.

Além disso, já restou comprovado pela ciência, através de milhares de pesquisas, a

relação existente entre o consumo de cigarros e o surgimento de doenças como

câncer de pulmão, de laringe, enfisema pulmonar, moléstias cardíacas, etc. A

possibilidade de que consumidores, coletivamente, possam ajuizar ações buscando

indenizações contra a indústria tabagista é, certamente, um tema de relevo a

merecer estudo.

Esta monografia destina-se a demonstrar a existência de responsabilidade

patrimonial da indústria tabagista, pelos riscos e danos a que estão expostos os

consumidores em virtude do uso de produtos por ela fabricados, e seu conseqüente

dever de indenizar àqueles que contra ela demandarem. Analisa, também, as várias

2

teorias de responsabilidade extracontratual determinando aquela aplicável a essas

relações de consumo.

Por cuidar-se de disciplina autônoma, dotada de suas próprias definições,

redigiu-se um capítulo destinado, unicamente, a explanação dos conceitos básicos

do direito do consumidor.

Dentre as principais questões a redor das quais orbita este estudo, a

investigação da defeituosidade do produto e da publicidade praticada pelos

fornecedores, certamente, mostraram constituírem-se pontos cruciais.

A pesquisa aborda, ademais, o exame da novel sistemática processual pela

qual, coletivamente, os consumidores podem, judicialmente, pleitear indenização a

título de danos morais e patrimoniais contra a indústria tabagista. Neste tópico

consta a tentativa de responder à todas as questões atinentes ao procedimento das

ações coletivas de defesa de interesses individuais homogêneos, e especialmente,

na hipótese de ação coletiva indenizatória contra a indústria de cigarros.

O termo ação coletiva foi utilizado no sentido a ele conferido por parte da

doutrina, ou seja, de ação proposta por outro legitimado que não o Ministério

Público. Essa distinção é necessária, uma vez que as ações iniciadas pelo Parquet

apresentarão peculiaridades procedimentais.

Demais disso, esta monografia limitou-se a tratar daquelas ações propostas

por associações em virtude de serem, indubitavelmente, resultado da mais relevante

iniciativa legislativa. De fato, estas ações permitem e incentivam a mobilização da

sociedade na defesa de seus interesses.

Restringiu-se, também, à hipótese de ação indenizatória de consumidores,

abordando-se os acidente de consumo como fundamento para indenização de cada

indivíduo lesado.

Para o desenvolvimento do tema recorreu-se, basicamente, à doutrina

nacional, muito embora a doutrina italiana, notadamente a de Mauro Cappelletti,

tenha sido utilizada para a análise da questão do acesso à justiça. Por ser matéria

de discussão recente, existem poucos julgados relativos ao assunto, não havendo

qualquer decisão definitiva em termos de ação coletiva. Os poucos julgados

encontrados são do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Superior

Tribunal de Justiça tratando, exclusivamente, de matéria processual. Foram

consultados.

3

Não se aprofundou na discussão da questão médico-biológica da

prejudicialidade à saúde humana do hábito de fumar, uma vez que tal circunstância

é notória e pacífica ao ponto de os próprios produtos, atualmente, virem gravados de

mensagens de advertência, e de os próprios fabricantes a admitirem.

4

2. ASPECTOS GERAIS

2.1. Proteção Jurídica do Consumidor

Há estudiosos que apontam já no Código de Hammurabi os primeiros

esforços no sentido de se tutelar consumidores.1 De fato, inúmeros exemplos de

normas que conferiam garantias ao adquirente de um bem ou ao contratante de um

serviço podem ser arrolados2.

Todavia, o direito do consumidor, como ramo autônomo, e sua tutela efetiva

só começou a delinear-se recentemente, em virtude de uma nova realidade sócio-

econômica.

Na segunda metade do século XVIII, com o advento da Revolução Industrial,

surgiram diversas transformações nos processos de produção de bens de consumo.

A produção de bens em série e em massa rompeu a relação que havia entre o

artesão e o comprador do produto, o que levou a uma “crescente

desindividualiazação do produto e de forma paralela do consumidor ou usuário.”3

Comentando os efeitos desse fenômeno ROCHA (1992, p. 12/13) assinala:

“A cisão entre produção e comercialização foi realizada de modo definitivo. O comerciante perdeu o controle sobre a fabricação do produto e deixou de informar e aconselhar os seus clientes. Com a industrialização, o

1 FILOMENO, José Geraldo de Brito. Manual de direitos do consumidor. 4. ed. São Paulo:

Atlas, 2000. p. 22, traz a seguinte notícia histórica: “Assim, por exemplo, a Lei nº 233 rezava que o arquiteto que viesse a construir uma casa cujas paredes se revelassem deficientes teria a obrigação de reconstruí-las ou consolidá-las às suas próprias expensas. Extremas, outrossim, eram as conseqüências de desabamentos com vítimas fatais: o empreiteiro da obra, além de ser obrigado a reparar cabalmente os danos causados ao empreitador, sofria punição (morte), caso houvesse o mencionado desabamento vitimado o chefe de família; caso morresse o filho do dono da obra, pena de morte para o respectivo parente do empreiteiro, e assim por diante.”

2 Ibid, p. 23. O autor aponta dispositivos no sagrado Código de Manu, na Constituição de Atenas, na Europa medieval, etc.

3 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 13.

5

comerciante do produto não mais exerceu um adequado controle sobre a qualidade dos fornecedores, tornando-se totalmente alheio à elaboração e ao processo de fabricação do produto. (...)

Além disso, o número maior de produtos colocados em circulação significou um aumento dos riscos ao público consumidor em razão dos erros técnicos e falhas no processo produtivo. (...)

A experiência de todos os países industrializados demonstrou que a revolução industrial veio acompanhada pela aparição de novos danos, causados pelas condições defeituosas dos produtos, que devido à produção em série, podem configurar verdadeiras catástrofes.”

Outro fator que teve relevo na mudança para modos de produção em massa,

e na ampliação do comércio, foi a Segunda Guerra Mundial. O período que a

sucedeu foi marcado por um profundo desenvolvimento tecnológico. É a partir desse

momento que surgem, mais claramente, esforços nos Estados Unidos e na Europa

no sentido de melhor tutelar-se o consumidor. 4, 5

As preocupações se voltaram para a necessidade de se encontrar meios

pelos quais se garantisse ao consumidor de bens e serviços justa reparação pelo

danos que viesse a sofrer em decorrência de um defeito no produto ou na prestação

de um serviço.

No direito pátrio perdura até o ano de 1991 o sistema criado pelo Código Civil,

que, por seu art. 159, somente possibilita a reparação de um dano quando se

comprovar que aquele que o causou agiu com culpa ou dolo.

2.2. Tutela Constitucional das Relações de Consumo

A constituição brasileira de 1988, através de cinco dispositivos, deu novo

tratamento à matéria da proteção dos consumidores. Com efeito, em seu art. 5º,

XXXII, estabeleceu o dever do Estado em promover, na forma da lei, a defesa do

consumidor.

Quando disciplina a respeito das limitações no poder de tributar, dispõe, no §

5º do art. 150, que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam

esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.”

Ao tratar da ordem econômica, em seu art. 170, V, estabeleceu que um dos

4 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1998. p. 107/108. 5 É bastante conhecida a mensagem encaminhada por John Kennedy, então Presidente dos

Estados Unidos, ao Congresso americano tratando da necessidade de se reconhecer

6

princípios que lhe conferem supedâneo é justamente a defesa do consumidor.

No art. 175, II, quando trata da concessão ou permissão dos serviços públicos

ditou a Constituição que a lei deve tratar dos direitos dos usuários.

E, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 48, estipulou a

Carta Magna o dever de que o Congresso Nacional elaborasse dentro dos cento e

vinte dias posteriores à promulgação da Constituição um código de defesa do

consumidor.

Essa disposição constitucional não foi tempestivamente praticada, contudo,

em 11 de setembro de 1990, com publicação no dia posterior e cento e oitenta dias

de vacatio legis, era promulgado o Código de Proteção e Defesa do Consumidor6,

verdadeiro marco jurídico que imprimiu novas perspectivas ao ordenamento pátrio.

2.3. Princípios que informam o Direito do Consumidor

O art. 4º do Código de Defesa do Consumidor cuidou de estabelecer diretrizes

para o gerenciamento do mercado de consumo, o que denominou de Política

Nacional de Relações de Consumo. O mesmo dispositivo elencou uma série de

princípios que devem balizar essa política, os quais, nos dizeres de MARINS (1993,

p. 36/46) podem ser subdivididos em seis princípios gerais. São eles:

2.3.1. Princípio da vulnerabilidade

Este princípio está consubstanciado no inciso I do art. 4º do CDC, mas, em

verdade, inspira e se encontra em cada ponto do Código7.

É importante que se ressalte que a vulnerabilidade do consumidor não se

iguala com sua hipossuficiência. Vulnerabilidade é uma “qualidade intrínseca,

ingênita, peculiar, imanente e indissociável de todos que se colocam na posição de

consumidor, em face do conceito legal, pouco importando sua condição social,

cultural ou econômica, quer se trate de consumidor-pessoa jurídica ou consumidor-

certos direitos fundamentais ao consumidor, dentre eles o direito à segurança e o direito à informação. Cf. ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 20.

6 Muito embora haja distinção entre proteção e defesa do consumidor, referir-se-á, doravante, à Lei nº 8.078/90, tão-somente, como Código de Defesa do Consumidor, CDC, Codecon ou somente Código, eis que essas formas são consagradas e irrestritamente utilizadas pela doutrina e pela jurisprudência.

7 NUSDEO, Fábio et alli. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de janeiro: Forense, 1992. p. 27.

7

pessoa física.”8

MARINS (1993, p. 39) distancia os conceitos expondo que:

“A vulnerabilidade do consumidor não se confunde com a hipossuficiência que é característica restrita aos consumidores que além de presumivelmente vulneráveis, vêem-se agravados nessa situação por sua individual condição de carência cultural, material ou, como ocorre com freqüência, ambas.”

Vulneráveis são todos os consumidores pois, em face de seus fornecedores,

não dispõem, quantum satis, de informações sobre a concepção do produto, sua

composição, seu processo de produção, suas condições de armazenagem, etc.

De outra banda, hipossuficientes são aqueles consumidores que possuem

uma carência qualquer, como já mencionado, que potencialize sua preexistente

vulnerabilidade.

Ignorando essa diferença conceitual há julgados no sentido de que somente

são vulneráveis aqueles consumidores de pequeno poder econômico, o que constitui

entendimento equivocado.

NUSDEO (1992, p. 27) traz o seguinte exemplo elucidativo:

“...um consumidor milionário pode ser visto como vulnerável frente a uma pequena confeitaria, onde vai adquirir um doce, por lhe faltarem as informações relevantes quanto à composição da guloseima”.

GRINOVER (1998, p. 116/117), sem, contudo, diferenciar hipossuficiência de

vulnerabilidade, situa o surgimento desse desequilíbrio como fenômeno próprio das

sociedades modernas. Eis seu entendimento:

“Mais recentemente, porém, fala-se em uma nova categoria de hipossuficientes, surgida em razão da própria estruturação da sociedade de massa: são os carentes organizacionais, a que se refere Mauro Cappelletti.

São carentes organizacionais as pessoas que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea. Assim, por exemplo, o consumidor no plano das relações de consumo... (...)

Todos aqueles, enfim, que no intenso quadro de complexas interações sociais hoje reinante, são isoladamente frágeis perante adversários poderosos do ponto de vista econômico, social, cultural ou organizativo, merecendo, por isso mesmo, maior atenção com relação a seu acesso à ordem jurídica e à participação por intermédio do processo.”

8 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1993. p. 38/39.

8

2.3.2. Princípio do dever governamental

Trata-se de princípio insculpido no art. 4º, incisos II, VI e VII. MARINS (1993,

p. 39) atribui a ele dois diferentes objetivos que devem nortear a atuação estatal no

âmbito da defesa do consumidor, são eles: o objetivo de conferir ao consumidor

meios bastantes para sua efetiva tutela, o qual resultaria de seu poder de polícia; o

objetivo de que o próprio Estado, constantemente, aperfeiçoe a prestação dos

serviços públicos buscando sua racionalização e sua melhoria.

2.3.3. Princípio da garantia de adequação

Busca-se a adequação dos produtos e serviços colocados à disposição do

consumidor de modo a que, cada vez mais, tornem-se seguros e ofereçam melhor

qualidade. É o princípio, como indica MARINS (1993, p. 41), que se encontra

consubstanciado no próprio caput do art. 4º do Código, e que resume o próprio ideal

de tutela do consumidor, pois almeja o atendimento de suas necessidades,

respeitando-se sua dignidade, saúde e segurança, protegendo-se seus interesses

econômicos e melhorando-se sua qualidade de vida.

2.3.4. Princípio da boa-fé nas relações de consumo

A obrigação de agir com boa-fé, além de ser um princípio geral de direito,

também é um princípio específico a informar as relações de consumo. Nas palavras

de MARINS (1993, p. 41) “encontra-se permeado em boa parte dos dispositivos do

Código de Proteção e Defesa do Consumidor, desde o elenco de seus direitos

básicos (art. 6º), passando pelo capítulo referente à reparação dos danos pelo fato

do produto e, especialmente informando os capítulos que tratam das práticas

comerciais, a publicidade e a proteção contratual...”.

Outro não é o desiderato trazido por este princípio senão o de se obter como

resultado de uma conduta geral de boa-fé a transparência e a harmonia das

relações de consumo.9

2.3.5. Princípio da informação

MARINS (1993, p. 43) crê que a informação é um dos principais enfoques do

Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, o CDC dispensou ao tema boa parte

de seus artigos, demonstrando a relevância do assunto para a tutela dos

9

consumidores. E é nesse afã que o Código consagrou o princípio da veracidade, que

deve servir de norte ao fornecedor sempre que prestar informações sobre seus

produtos.10

2.3.6. Princípio do acesso à justiça

MARINS (1993, p. 45) esclarece que, muito embora não se encontre no rol

dos princípios trazidos pelo art. 4º, o princípio do acesso à justiça se encontra

espalhado por diversos dos dispositivos do Código.

Não se pode olvidar as inúmeras inovações processuais operadas por este

diploma legal. Em verdade, a maioria delas com o intuito de se instrumentalizar

direitos materiais conferindo-lhes real efetividade.11 O acesso à justiça foi ampliado

com o surgimento de ações coletivas reparatórias nos moldes das class actions

americanas, e com outros incentivos de ordem processual, como a possibilidade de

inversão do ônus da prova.

2.4. Relação de Consumo

Tem-se por relação de consumo toda relação jurídica de compra e venda,

locação de produtos ou prestação de serviços, em que de um lado tem-se um

consumidor ou outra pessoa a ele equiparada, e no outro um fornecedor.

2.5. Conceito de Consumidor

Tantas definições do que venha a ser consumidor são possíveis quantas

forem as perspectivas enfocadas. Nesse sentido, é possível que se defina o que é

consumidor numa perspectiva sociológica, psicológica, econômica, política, etc.12

9 Ibid, p. 42. 10 Ibid, p. 43. 11 Ibid, p. 46. 12 FILOMENO, José Geraldo de Brito. ob. cit. p. 31/32. “E, com efeito, sob o ponto de vista

econômico, consumidor é considerado todo indivíduo que se faz destinatário da produção de bens, seja ele ou não adquirente, e seja ou não, a seu turno, também produtor de outros bens. (...)

Do ponto de vista psicológico, considera-se consumidor o sujeito sobre o qual se estudam as reações a fim de se individualizar os critérios para a produção e as motivações internas que levam ao consumo. (...)

Já do ponto de vista sociológico é considerado consumidor qualquer indivíduo que frui ou se utiliza de bens e serviços, mas pertencente a uma determinada categoria ou classe social. (...)

10

Contudo, interessa-nos mais de perto o conceito jurídico de consumidor. Todavia,

este não e unívoco.

Como comenta ROCHA (1992, p. 66) o termo consumidor possui três distintas

acepções no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. O art. 2º define

consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou

um serviço como destinatário final. E é justamente essa última circunstância que o

diferencia dos demais adquirentes de produtos e utendes de serviços.

Em contrapartida, o art. 17 do CDC estende a conceituação de consumidor a

todas as pessoas que sejam vitimadas por evento causado pelo produto ou serviço

defeituoso. Essa disposição possibilita que até mesmo o intermediário, e mesmo

terceiros estranhos à relação de consumo, possam demandar contra o fornecedor

buscando reparação pelos danos sofridos à sua saúde ou segurança. É a figura do

bystander, importada da doutrina e jurisprudência americana, dos quais não se exige

a qualidade de adquirentes, usuários, ou mesmo a circunstância de serem

destinatários finais.13

A terceira acepção vem prevista no art. 29 do Código de Defesa do

Consumidor que equiparou, em se tratando de práticas comerciais e contratuais, aos

consumidores a coletividade de pessoas que haja intervindo nas relações de

consumo.

ROCHA (1992, p. 70) explica que:

“Em outros termos, aqueles que são potencialmente consumidores em um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, mas que podem vir a ser, estão sujeitos à mesma proteção que a lei reconhece aos consumidores no tocante às práticas comerciais e contratuais. O legislador considera que a tutela, nestas áreas específicas, não se pode restringir ao momento posterior ao acordo entre o consumidor e o fornecedor, mas, ao contrário, deve antecedê-lo, para que tenha um caráter preventivo e mais amplo.”

Ponderando a respeito da extensão do conceito de consumidor trazida pelos

arts. 17 e 29 do CDC. MARINS (1993, p. 71) expôs que:

Nas considerações de ordem literária e filosófica, o vocábulo consumidor é saturado de valores ideológicos mais evidentes. E, com efeito, o termo é quase sempre associado à denominada „sociedade de consumo‟ ou „consumismo‟, ou ao próprio „consumerismo‟. (...)

Consumir, pois, nesse aspecto, conforme sustentam Horkheimer e Adorno, apud Guido Alpa (1977), significa ceder sempre às sugestões veiculadas pela publicidade. Significa, em última análise, estar sempre de acordo, a fim de que não se rompa o próprio consenso imposto, bem como alienar-se ante a apologia da sociedade de consumo.”

13 MARINS, James. ob. cit. p. 70/71.

11

“...a exceção consubstanciada no art. 17 explica-se em virtude de significar o fato do produto, normalmente, dano de natureza mais grave, inclusive podendo contemplar lesões corporais à pessoa do consumidor, ou até mesmo sua morte. Por outro lado, a exceção do art. 29 está relacionada com oferta, informação, publicidade enganosa ou abusiva (esta, conforme o art. 37, englobando situações que envolvam discriminação, violência, superstição, inexperiência da criança, valores ambientais e segurança); práticas comerciais e contratuais abusivas; cobrança de dívidas e contratos de adesão, ou seja, valores que, à vista do sistema protetivo do Código, merecem tratamento mais cuidadoso, no sentido de aumentar o âmbito da proteção legislativa, em virtude de sua maior valoração e relevância em termos sociais.”14

2.6. Conceito de Fornecedor

O art. 3º do Código de Defesa do Consumidor deu ampla definição ao

conceito de fornecedor ao dizer que :

“Fornecedor é toda pessoas física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”

Da análise do texto legal ROCHA (1992, p. 72) distinguiu três espécies de

fornecedor: o fornecedor ou produtor real; o fornecedor ou produtor aparente e o

fornecedor ou produtor presumido.

Para esse doutrinador o fornecedor ou produtor real é o que realiza o produto,

ou seja, a pessoa física ou jurídica que, sob sua responsabilidade, coordena o

processo de fabricação ou produção do produto acabado, de uma de suas partes

componentes ou mesmo da matéria-prima.15

De outra banda, o fornecedor ou produtor aparente seria aquele que coloca

seu nome, marca ou outro sinal distintivo em produto de cuja produção não

participou.16

E, por derradeiro, o fornecedor ou produtor presumido é aquele que importou

o produto ou vendeu produto no qual não conste claramente quem seja o fabricante,

o produtor, o importador ou o construtor.17

MARINS (1993, p. 76) acrescenta um requisito para que se tenha a figura do

fornecedor, a habitualidade no exercício do comércio. Enfatiza, entretanto, que:

14 Apud SOUZA, James J. Marins de, et alli. Código do consumidor comentado. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1991. p. 16. 15 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 72. 16 Idem.

12

“Tal profissionalidade pode existir, todavia, ainda que de forma irregular, como ocorre, p. ex., com os vendedores ambulantes que praticam, em sua maioria atividade ilegal, mas sujeita às normas de consumo.”

Pode-se diferenciar, ainda, fabricante, produtor, construtor, importador e

comerciante. ROCHA (1992, p. 73) expõe sobre essas diversas figuras dizendo que:

“Por fabricante devemos entender a pessoa física ou jurídica que coloca no mercado produtos industrializados, manipulados ou processados, acabados ou semi-acabados.”

De acordo com esse doutrinador há dois tipos de fabricante, o parcial ou de

fase, ou seja, aquele que produz matéria-prima, componentes e peças para serem

incorporados em outros produtos, e o fabricante final, conhecido por assembler, que

é quem detém o controle do processo produtivo integrado.18 Ressalta que, tratando-

se de produtos compostos, o assembler é quem será civilmente responsável, em

virtude de possuir o controle sobre o processo de produção integrado. Não há como

escusar-se ao dever de indenizar tão-somente comprovando que o defeito era do

produto incorporado e não do produto final.19 Com fulcro no art. 25, § 2º, porém,

poderá o consumidor acionar o fabricante parcial ou de fase, pois este é

solidariamente responsável, não importando se este forneceu um produto

incorporado ou se somente efetuou um serviço ou operação dentro do processo

produtivo.20

Por produtor entende-se aquele que introduz no mercado produtos naturais e

aqueloutros produtos que não foram submetidos a processos de industrialização.21

O construtor é o fornecedor que introduz no mercado produtos imobiliários.22

O importador é aquele fornecedor que não participa do processo de

fabricação dos produtos, mas os importa introduzindo-os no mercado de seu país.23

É o exemplo perfeito de fornecedor ou produtor presumido.

Todos esses fornecedores, como será abordado adiante, são solidariamente

responsáveis, vale dizer, havendo mais de um responsável pelo dano, todos

responderão solidariamente.24

17 Ibid, p. 73. 18 Ibid, p. 74. 19 Idem. 20 Ibid, p. 76/77. 21 Ibid, p. 80. 22 Idem. 23 Ibid, p. 81. 24 Ibid, p. 85/86.

13

E, por último, tem-se a figura do comerciante, que também é civilmente

responsável pelos produtos que comercializa. Trata-se, entretanto, de mera

responsabilidade subsidiária, uma vez que se verificará somente nas hipóteses

estipuladas no art. 13 do CDC, quais sejam: a) o produto ser anônimo; b) o produto

não estar bem identificado; c) o produto ser perecível e estar mal conservado.25

ROCHA (1993, p.82) comenta as hipóteses explicando que:

“As duas primeiras circunstâncias mencionadas – inexistência ou insuficiência de identificação do fabricante – conduzem ao mesmo resultado, isto é, a impossibilidade do consumidor prejudicado exercer o seu direito de ação diretamente contra o fabricante, produtor ou importador. A terceira circunstância decorre de ato do próprio comerciante que, agindo com negligência, deixa de conservar adequadamente produtos perecíveis. Neste caso, o consumidor poderá acionar além do fabricante, produtor ou importador o comerciante responsável pela conservação do produto.”

2.7. Conceito de Produto

A definição legal do que vem a ser produto encontra-se no art. 3º, § 1º do

Código de Defesa do Consumidor, que diz:

§ 1º. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

MARINS (1993, p.79) sustenta que produto é um bem, elaborado por alguém

com a finalidade de comercializá-lo, voltando-se à satisfação de uma necessidade

humana.

Em verdade, qualquer bem pode ser um produto, desde que seja objeto de

uma relação de consumo.26

2.8. Conceito de Defeito

O CDC, em ser art. 12, § 1º, diz que um produto é defeituoso quando não

oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em conta sua

apresentação, o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam, e a época em

que o produto foi colocado no mercado.

Os defeitos são aquelas imperfeições do produto que possuem potencial

lesivo à saúde ou à segurança do consumidor.

MARINS (1992, p. 110) divide os defeitos em juridicamente relevantes e

25 Ibid, p. 81/82. 26 Cf. SOUZA, James J. Marins de. Código do Consumidor Comentado. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1991. p. 18. Apud MARINS, James. op. cit. p. 81.

14

juridicamente irrelevantes para efeito de responsabilidade civil do fornecedor pelo

fato do produto. Para esse autor são juridicamente irrelevantes, para aquela

finalidade, todos os defeitos que não estão previstos no caput do art. 12 do CDC. Ou

seja, todos os defeitos que não decorram de projeto, fabricação, construção

montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento do produto,

tal como os que não derivem de informações insuficientes ou inadequadas a

respeito de sua utilização e riscos. Acrescenta a eles, ainda, os defeitos oriundos de

riscos de desenvolvimento.

No entendimento do mencionado doutrinador somente são juridicamente

relevantes para efeito de responsabilização civil os defeitos taxativamente previstos

no caput do art. 12, os quais chama de defeitos propriamente ditos.27

Esses defeitos subdividem-se em: a) defeitos de criação (projeto e fórmula);

b) defeitos de produção (fabricação, construção, montagem, manipulação,

acondicionamento); e c) defeitos de informação (publicidade, apresentação,

informação insuficiente ou inadequada).28

2.8.1. Defeitos de criação

São também conhecidos como defeitos de projeção ou construção. Nos

dizeres de ROCHA (1993 p. 99) são aqueles defeitos que tem origem em erro de

projeção, na inadequada escolha de materiais ou de técnica de fabricação. São

erros de concepção. Frisa, ademais, que esses defeitos tem como características a

evitabilidade e a extensão do defeito a totalidade da produção.

MARINS (1992, p. 113) afirma que:

“Os defeitos de criação afetam as características gerais da produção em conseqüência de erro havido no momento da elaboração de seu projeto ou de sua fórmula, entendidos em sentido lato, como p. ex., a escolha de um material inadequado, ou de um componente químico nocivo porque não suficientemente testado. Ou seja, o fabricante responde pela concepção ou idealização de seu produto que não tenha a virtude de evitar os riscos à saúde e segurança, não aceitáveis pelos consumidores dentro de determinados standards, (...) figurando essa espécie de defeito em „todos os produtos da série ou séries fabricadas, provocando, por isso, danos em série.”

27 op. cit. p. 111. 28 Idem.

15

2.8.2. Defeitos de fabricação

São defeitos de fabricação aqueles originados em falha, humana ou

mecânica, ocorrida dentro do processo de fabricação do produto, e que atingem

apenas uma parcela, ou série, da produção total. 29

Os defeitos dessa espécie apresentam duas peculiaridades, quais sejam, sua

previsibilidade, pois pode-se determinar estatisticamente sua freqüência, e sua

inevitabilidade, uma vez que mesmo os mais eficientes e rigorosos sistemas de

controle de produção e qualidade não os conseguem evitar.30 Esta é a única espécie

de defeito que não será utilizada como fundamento para responsabilização da

indústria tabagista no presente estudo, em virtude de sua não ocorrência

sistemática.

2.8.3. Defeitos de informação

Ter-se-á um defeito de informação ou de instrução toda vez que um produto

tornar-se ilegitimamente inseguro em decorrência de falta, insuficiência ou

inadequação das informações, advertências ou instruções sobre o seu uso e perigos

conexos.31

Esta espécie de defeito diferencia-se das duas outras que a precederam em

virtude de que naquelas há um defeito material ou intrínseco ao produto, enquanto

que nos defeitos de informação a falha se dá no aspecto formal, de como o produto

é colocado no mercado.32

É mister ressaltar-se que nesta espécie de defeito o produto não possui

qualquer defeito em si, entretanto a falta de informação indicando a correta maneira

de utilizá-lo torna-o perigoso ou nocivo. Cuida-se de vício extrínseco ao produto.33, 34

Entretanto, também se pode falar em defeito de informação quando o

fornecedor, após inserir o produto no mercado, descobre a existência de um defeito

de fabricação ou criação e não o comunica imediatamente ao público consumidor.35

29 Ibid, p. 113/114. 30 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 100. 31 Idem. 32 MARINS, James. op. cit. p. 114/115. 33 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 101. 34 MARINS fala de uma “falta ou deficiência de informações necessárias à correta

utilização dos produtos colocados no mercado de consumo.” (grifos próprios). op. cit. p. 115.

35 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 101.

16

2.9. Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos

O próprio Código de Defesa do Consumidor tratou de conceituar, em seu art.

81, incisos I, II e III, o que sejam interesses difusos, coletivos e individuais

homogêneos. Diz o Código:

“I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeito deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”

Da conceituação legal pode-se dessumir que os direitos ou interesses difusos

e coletivos (strictu sensu) apresentam em comum os traços de serem

transindividuais e possuem objeto indivisível. Na prática isto implica no fato de que a

fruição de um bem por um dos membros da coletividade acarretará a fruição por

todos os demais. O mesmo pode-se dizer quanto à hipótese contrária, vale dizer, da

negação do bem.36

GRINOVER (1998, p. 140), ao diferenciar os interesses coletivos dos difusos

afirma que:

“Ciò che distingue gli interessi diffusi dai collettivi, nel sistema brasiliano, è l`elemento soggetivo, poiché nei primi non esiste un vincolo giuridico che colleghi le persone tra di loro o com la contraparte, di modo che i titolari degli interessi diffusi sono indeterminati ed indeterminabili, uniti appena da circostanze di fatto...”37

Por outro lado, os interesses individuais homogêneos são tratados

coletivamente, tão-somente, em virtude de sua comum origem, uma vez que são

meros direitos individuais, que, a rigor, podem ser conduzidos separadamente a

juízo. Ademais, não há necessidade de que as decisões sejam uniformes.38

Contudo, ao se analisar casos práticos se perceberá que em muitos deles

pode parecer haver mais de uma espécie de interesse envolvido. E de fato pode

36 GRINOVER, Ada Pellegrini. op. cit. p. 139. 37 “O que distingue os interesses difusos dos coletivos, no sistema brasileiro, é o elemento

subjetivo, porquanto nos primeiros não existe um vínculo jurídico a ligar as pessoas entre si ou com a parte contrária, de modo que os titulares dos interesses difusos são indeterminados e indetermináveis, unidos apenas por circunstâncias de fato...” (tradução livre).

17

haver. Ocorre que um mesmo evento pode ocasionar danos a objetos jurídicos

distintos.

É o que se verifica no caso específico do cigarro que ofende, a um só tempo,

o objeto jurídico saúde pública, que é por si só um objeto indivisível e de titularidade

indeterminada (interesse difuso), e o objeto jurídico saúde sob o prisma individual na

esfera de cada um dos consumidores, que é um objeto divisível – pois cada

consumidor poderia reclamá-lo de per si – e de titularidade determinável (interesse

individual homogêneo).

Dessarte, somente se poderá determinar com precisão de que tipo de

interesse está tratando uma dada ação judicial detendo-se no pedido mediato. Este,

via-de-regra, apontará qual o objeto que se tomou por ofendido, e da análise de sua

divisibilidade se verá qual o tipo de interesse transindividual esta se defendendo. A

presente monografia aborda, somente, as hipóteses em que os consumidores

possam ser individualmente indenizados (interesses individuais homogêneos),

excluindo-se a tutela difusa.

38 Ibid, p. 140.

18

3. ASPECTOS DE DIREITO MATERIAL

3.1. Direitos básicos do consumidor

O CDC, logo em seu art. 6º, trouxe um rol de direitos os quais atribuiu aos

consumidores na qualidade de direitos básicos. Nem todos interessam ao âmbito

desta pesquisa, de modo que serão abordados aqueles que maior relação

apresentam para com a matéria sob exame.

3.1.1. Direito básico à vida, à saúde e à segurança

Dentre os direitos mencionados, é assegurado no inciso I o direito básico à

vida, à saúde e à segurança contra os riscos oriundos do fornecimento de produtos

e serviços considerados perigosos ou nocivos.

O direito à saúde deve ser tomado por corolário do próprio direito à vida, que,

frise-se, tem significado amplo, abrangendo o direito à qualidade de vida.39

Já o direito à segurança, além de também ser aplicável ao resguardo da

saúde, tem, além disso, efeito patrimonial, no sentido de que deve-se tutelar o

patrimônio do consumidor.40

3.1.2. Direito básico à informação

O inciso III do art. 6º do Código estabelece como direito básico dos

consumidores o direito à informação adequada e clara a respeito dos diferentes

produtos e serviços, indicando-se, de modo suficiente, sua quantidade,

características, composição, qualidade e preço, e conclui dizendo que também

devem ser apontados os riscos que o produto apresente.

MARINS (1993, p. 51) entende que:

39 MARINS, James. op. cit. p. 50. 40 Ibid, p. 51.

19

“Há uma proporção direta entre o nível de informação franqueada ao consumidor e o grau de segurança que este terá em relação ao produto ou serviço, isto é, quanto melhor, mais completa e eficiente for a informação sobre as características do produto e sua forma de correta utilização e possíveis perigos, mais seguro, na acepção jurídica do termo, estará o usuário.”

3.1.3. Direito básico à proteção contra publicidade enganosa e abusiva

Este direito encontra-se consubstanciado no inc. IV, do art. 6º, surgindo como

manifestação do princípio da boa-fé, mas, também, guardando relação com o

princípio da informação.41 Trata-se do direito básico que possui o consumidor de

“receber educação, informação e divulgação adequadas sobre produtos e

serviços.”42

3.1.4. Direito básico à concreta reparação dos danos e facilitação da defesa judicial

O inc. VI, do art. 6º, garantiu aos consumidores, individual, difusa ou

coletivamente considerados, a efetiva prevenção e reparação aos danos

patrimoniais e morais. Não poderia ser de outra forma, uma vez que a própria Lei

Maior, em seu art. 5º, consagrou a indenizabilidade de ambas as espécies de dano.

A matéria relativa à reparação dos danos morais e patrimoniais, e a

processualística que envolvem, será abordada adiante.

3.2. Natureza Jurídica do Direito à Saúde

Os estudiosos do Direito, no afã de compreenderem as estruturas internas

dessa ciência, trataram de dissecá-la em diversas classificações e subdivisões.

Assim é que desmembra-se o Direito em natural e positivo, codificado e

consuetudinário, objetivo e subjetivo, público e privado, interno e externo,

constitucional, civil, penal, tributário, dentre outras classes e ramos.

Este capítulo tem como finalidade determinar qual vem a ser a natureza

jurídica do direito à saúde, o que, em outras palavras, corresponde a analisar em

quais destas divisões ele se encaixa.

Para esse desiderato deve-se tomar como ponto de partida o texto

constitucional. Afinal, é a norma suprema que organiza toda organização político-

jurídica do país, cabendo-lhe disciplinar, também, sobre o funcionamento do sistema

41 Ibid, p. 52/53.

20

de seguridade social.

A Constituição Federal de 1988, em dois de seus dispositivos assegurou o

direito à saúde. Em seu Título II, que cuida dos direitos e garantias fundamentais,

especificamente em seu Capítulo II, o art. 6º vem elencando entre os direitos sociais

o direito à saúde. Outrossim, no Título VIII, Capítulo II, Seção II, o art. 196 diz ser a

saúde um direito de todos e um dever do Estado. Do que se dessume ter o direito à

saúde sido elevado ao status de direito fundamental, social e, claro, constitucional.

Frise-se que na tentativa de realizar esta norma foi editada a Lei nº 8.080/90.

De outra banda, a mera previsão de um direito em uma norma confere-lhe a

característica de ser um direito positivo, vale dizer, um direito positivado no

ordenamento jurídico. Desta circunstância decorre, também, sua inserção no direito

objetivo, pois, como diria DINIZ (1995, p.224), o direito objetivo “é o complexo de

normas jurídicas que regem o comportamento humano, prescrevendo uma sanção

no caso de sua violação (jus est norma agendi).” Ora, é cediço que o sistema jurídico

pátrio é de índole notadamente positiva e, não se adotando a tradição

consuetudinária, de modelo codificado.

Demais disso, buscando-se um outro prisma, pode-se afirmar, em acordo com

COSTA (1997, p. 138), que o direito à saúde é um direito absoluto, ou seja, é

irrenunciável, intransmissível, indisponível e extrapatrimonial. Para esse autor, o fato

de ser um direito absoluto impõe a todos o dever de respeitar a saúde do outro.

Entretanto, a mais importante das questões é definir se o direito à saúde é um

direito subjetivo ou não, eis que daqui decorrem as maiores implicações práticas.

Como explica DINIZ (1995, p. 228) o direito subjetivo “é sempre a permissão

que tem o ser humano de agir conforme o direito objetivo. Um não pode existir sem o

outro. O direito objetivo existe em razão do subjetivo, para revelar a permissão de

praticar atos. O direito subjetivo, por sua vez, constitui-se de permissões dadas por

meio do direito objetivo.”

Já foi abordado que o direito à saúde é um direito contido pelo ordenamento

jurídico. Em havendo um direito objetivo, o que, in casu, há, deve também haver um

direito subjetivo que lhe permita a realização, sob pena de o direito objetivo tornar-se

letra morta. É o que afirma DINIZ (1995, p. 228) ao dizer que “é inconcebível o

direito subjetivo desligado do objetivo”. O fato de ser a norma insculpida no art. 196

42 Ibid, p. 53.

21

um princípio programático não impossibilita, salvo melhor juízo, que lhe corresponda

um direito subjetivo.

Para COSTA (1997, p. 139) ao enfocar-se o direito à saúde estar-se-á

“perante um verdadeiro direito subjetivo, ou seja, face a um autêntico poder de exigir

de outras pessoas um comportamento positivo ou negativo, normativamente

determinado, com a possibilidade de recursos aos tribunais para a instauração de

providências coactivas, caso tal comportamento não se verifique.”

Os direitos subjetivos, por sua vez se subdividem, segundo DINIZ (1995, p.

224), em direitos subjetivos comuns de existência e direitos subjetivos de defender

direitos. Os primeiros são as permissões de fazer ou não fazer, de ter ou não ter

alguma coisa, desde que não sejam violadas normas legais. Os segundos são os de

proteger o direito comum de existência, isto é, aqueles que conferem “a autorização

de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela violação da

norma está autorizado, por ela, a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato

ilícito, a reclamar reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes

pena.”

COSTA (1997, p. 139) acrescenta a esse direito subjetivo a característica de

ser público. Essa afirmação tem confirmação ao se vislumbrar que, via-de-regra, o

Estado estará em um dos pólos da relação jurídica sempre que se estiver pleiteando

a efetivação do direito à saúde.

Sustenta, ainda, o mencionado doutrinador ser um direito subjetivo

metaindividual, em virtude de tratar-se de direito que se estende para além de um

indivíduo. Há, contudo, que se fazer uma ressalva pois, muito embora possa ser

considerado um direito difuso, não se pode esquecer que o direito à saúde também

se manifesta no âmbito individual e coletivo, dependendo somente do enfoque que

lhe seja dado.

Derradeiramente, como salienta o art. 1º do Código de Defesa do Consumidor

todas as normas contidas nesse diploma legal são de ordem pública e interesse

social. Como já se comentou, dentre outros direitos que chamou de básicos, o CDC

elencou o direito à vida, à saúde e à segurança do consumidor

Assim, pode-se concluir que o direito à saúde tem natureza de direito

fundamental, social, constitucional, absoluto, positivado, inserto no direito objetivo e

subjetivo público de defesa de direitos, de ordem pública e interesse social, podendo

22

exsurgir de modo individual, coletivo ou difuso.

3.3. Teorias de Responsabilização Civil

3.3.1. A Teoria adotada pelo Código Civil

Neste tópico será enfocada tão-somente a responsabilidade extracontratutal,

uma vez que somente esta teria aplicabilidade em relações de consumo firmadas

entre fumantes e os fabricantes de cigarro, de cuja responsabilização cuida esta

monografia.43

Dentre os anos de 1916 a 1990 o ordenamento jurídico pátrio adotava como

regra de responsabilização de fornecedores, desde que norma específica não

previsse tratamento diverso, o sistema de responsabilidade por culpa, constante do

Código Civil.

A corrente doutrinária que defendia que só poderia haver responsabilidade

em havendo culpa ficou conhecida como subjetivista, pois transferia o centro da

questão para a análise do comportamento subjetivo do indivíduo, o qual deveria

caracterizar negligência, imperícia, imprudência ou dolo.44

Trata-se de concepção surgida dentro de um ideal racionalista e individualista

de direito, inspirado no sistema do laissez faire, e que buscava mais punir-se aquele

que causou um prejuízo, por sua atitude reprovável, do que reparar-se o dano

experimentado pela vítima do evento.45

No sistema instituído pelo Código Civil poderia ocorrer a responsabilidade

aquiliana, ou extracontratual, nas hipóteses de fato próprio do fornecedor, fato de

outrem ou fato da coisa.46

Na primeira das hipóteses, vale dizer, fato próprio do fornecedor, não havia

43 Os vícios redibitórios, por exemplo, exigem que haja um contrato comutativo, ou seja, um

contrato que ligue diretamente consumidor e fornecedor. É ressabido que as companhias produtoras de cigarros fazem uso de uma ampla rede de distribuidores para alcançar seus consumidores, de modo que raramente contratariam diretamente com o destinatário final do produto. ROCHA (1992, p. 59) diz: “A proteção só será alcançada quando o consumidor tiver celebrado um contrato comutativo com o fornecedor, isto é, o consumidor deverá revestir a qualidade jurídica de comprador e só poderá voltar-se contra o fornecedor quando ele ocupar a posição de vendedor...”

44 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 15. 45 Ibid, p. 16. 46 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 55.

23

qualquer possibilidade de responsabilização sem que se comprovasse a culpa do

fornecedor, como anota ROCHA (1992, p. 56).

“Para o surgimento do dever de indenizar impunha-se que a conduta do causador do dano, no caso o fornecedor, fosse culposa, isto é, contrária ao direito e que por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia violasse direito ou causasse prejuízo a outrem.

Ocorrendo um dano causado por um produto defeituoso a vítima, para obter o ressarcimento, deveria provar: o ato ilícito; o dano e o nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano.”

Demais disso, para que se responsabilizasse o fornecedor por fato de outrem,

v.g. um seu empregado ou preposto, dever-se-ia demonstrar ter o fornecedor agido

com culpa in eligendo ou in vigilando.47

Já a responsabilidade pelo fato da coisa sequer tinha previsão legal, tratando-

se de construção doutrinária, defendida por parte dos juristas e importada da

jurisprudência francesa.48 Constituía, todavia, um embrião das teorias que a

sucederiam, e que confeririam disciplina diversa à responsabilidade civil do

fornecedor de produtos, como se vislumbrará adiante.

3.3.2. Teoria da Responsabilidade Objetiva

Comentando as ocorrências que levaram a uma guinada nos padrões de

responsabilização de fornecedores ROCHA (1992, p. 16) aduz que:

“O surgimento do fenômeno da industrialização gerou profundas transformações em toda a estrutura social. Começou-se a questionar os fundamentos teóricos e práticos da concepção individualista e subjetivista. Foi percebido que esse sistema se mostrava notoriamente insuficiente quando o dano era causado por uma atividade lícita ou por fato de uma coisa.”

Naquele contexto, começaram a ser ouvidas vozes que pediam por um novo

regime legal para que se alcançasse maior efetividade na tutela da vítima do evento.

Para tanto, havia mister desvinculasse-se a responsabilidade extracontratual de seu

elemento moral, afastando-se do subjetivismo de se investigar o animus do agente

como anotava LIMA (1963, p. 87) no seguinte trecho:

“...não era possível resolver um sem-número de casos que a civilização moderna criava ou agravava; imprescindível se tornava, para a solução do problema da responsabilidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa psicológica do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência para colocar a questão sob um ângulo até então não

47 Ibid, p. 57. 48 Ibid, p. 58.

24

encarado devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação, e não interior, subjetivo, como na imposição da pena. Os problemas da responsabilidade são tão-somente os da reparação de perdas. Os danos e a reparação não devem ser aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem emergir do fato causador da lesão de um bem jurídico, a fim de se manterem incólumes os interesses em jogo, cujo desequilíbrio é manifesto, se ficarmos dentro dos estreitos limites de uma responsabilidade subjetiva.”49

No campo doutrinário ganhava relevo a teoria do risco formulada por

PIZARRO nos seguintes termos:

“Quien se sirve de cosas que por su naturaleza o modo de empleo generan riscos potenciales a terceros debe responder por los daños que ellas originam.”50

Todavia, o excessivo rigor desta corrente levou à adoção em vários

ordenamentos jurídicos de uma modalidade mais branda de responsabilidade, que,

ao contrário daqueloutra, admite provas liberatórias.51

3.3.3. A teoria adotada pelo Código de Defesa do Consumidor: Responsabilidade Objetiva Mitigada

O advento do Código de Defesa do Consumidor veio atribuir novas regras e

critérios para a responsabilização de fornecedores por defeitos de seus produtos.

Com efeito, ao estabelecer, em seu art. 12, a responsabilidade do fabricante,

produtor, construtor e do importador, independente da existência de culpa, o Código

deu importante passo no intuito de corrigir o que ROCHA (1992, p. 14) chamou de

“descompasso entre a lei e o fato social”.

Ditou o Código de Defesa do Consumidor, como disciplina a ser aplicada a

todas as relações de consumo, em havendo acidente de consumo, a teoria da

responsabilidade objetiva.

Todavia, como ponderam os doutrinadores, a existência de eximentes de

responsabilidade, como ocorre no CDC, leva a concluir-se que o legislador optou por

um sistema de responsabilidade objetiva mitigada. Com o efeito o art. 12, § 3º traçou

três hipóteses em que o fornecedor não responderá pelos danos experimentados

pelo consumidor. Essas eximentes serão abordadas adiante.

49 Apud ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 16/17. 50 Apud ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 17. “Quem se serve de coisas que por

sua natureza ou modo de emprego geram riscos potenciais a terceiros deve responder pelos danos que elas originam.” (tradução livre).

25

3.4. Direito Intertemporal e a aplicação da Responsabilidade Objetiva Mitigada às Relações de Consumo anteriores ao Código de Defesa do Consumidor

Uma das principais questões a ser respondida por este estudo consiste na

discussão quanto à possibilidade de serem aplicadas as normas de direito material

existentes no Código de Defesa do Consumidor àquelas relações jurídicas que,

tendo início anteriormente à entrada em vigor deste diploma legal, geraram efeitos a

partir da data de 12 de março de 1991.

Não há dúvidas no que pertine às normas de direito processual, eis que há

uma regra de direito intertemporal que ordena a aplicação das normas de natureza

processual a partir da data de sua entrada em vigor, incidindo mesmo, sobre os

processos já ajuizados. Com efeito, desta regra já decorrem importantes

conseqüências, tais como a possibilidade de inversão do ônus da prova mesmo nos

processos que orbitem em torno de relação jurídica consumada em data anterior à

entrada em vigor do CDC.

Reside, porém, maior dúvida quando se trata de regras de direito material.

No caso em tela, interessa descobrir se os efeitos oriundos de atos jurídicos

praticados em data anterior à da edição da Portaria nº 490 pelo Ministério da

Saúde, que foi baixada em 25 de agosto de 1988, poderiam receber o tratamento

conferido pelo Código de Defesa do Consumidor no que tange aos critérios de

responsabilização civil. A referida portaria será comentada em outro tópico.

A regra geral é que não se aplicam normas de direito material supervenientes

aos atos jurídicos praticados sob outra ordem legal. O mesmo se diz quanto aos

seus efeitos. Entretanto, as relações de consumo, pela importância social que

possuem, merecem tratamento diverso.

Em verdade, tão relevante é o tema que o próprio legislador, no art. 1º, tratou

de expressamente conferir às normas que compõem o Código caráter de ordem

pública e interesse social.

Como saliente RÁO (1999, p. 382,392/393), as normas de ordem pública e

relevância social, quando supervenientes, aplicam-se quanto aos efeitos dos atos

jurídicos aperfeiçoados sob comando de norma anterior. Eis o que diz esse autor:

“As novas normas objetivas, em relação às anteriores, podem revelar, segundo sua natureza, maior ou menor intensidade de força obrigatória.

51 MARINS, James. op. cit. p. 95.

26

Revelam maior intensidade quando alcançam os efeitos, que sob sua vigência se produzirem, dos fatos, atos e direitos verificados sob o império da norma anterior; revelam menor intensidade e cedem ante a persistência da norma anterior, quando esta continua, apesar de revogada, a disciplinar os efeitos de certos atos, fatos ou direitos, verificados ou constituídos sob a sua vigência.

Incluem-se na primeira categoria as normas de direito público e as de direito privado imperativas, ou de ordem pública, as quais traduzem, ou necessariamente se pressupõe que traduzam, um interesse comum ou contêm alterações produzidas pela própria evolução da vida social. (...)

...se uma lei posterior passa a atribuir a uma obrigação o caráter, que dantes não possuía, de matéria de interesse social predominante, como, por exemplo, sucedeu com os contratos de trabalho na generalidade das legislações, a nova norma jurídica passa a disciplinar os efeitos mesmos dos contratos anteriormente constituídos, sem atingir, entretanto, nem a existência dos direitos, nem a sua extinção, nem os efeitos já praticados sob o império da lei antiga.”

FILOMENO (2000, p. 300) apóia esse entendimento, afirmando que:

“Pôr fim, e ainda no aspecto da defesa de cidadania, cuida-se de uma lei de ordem pública e de interesse social, o que equivale a dizer que seus preceitos são inderrogáveis pelos interessados em dada relação de consumo, e seus preceitos são aplicáveis às relações verificadas no mundo fático, ainda que estabelecidas antes de sua vigência.”

Reiterando a posição supratranscrita, em julgamento da apelação cível nº

31.902/94-DF, em 16-05-94, a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Distrito Federal,

tendo como relatora a então Desembargadora Nancy Andrigui, decidiu pela

aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor a contrato formulado

antes da vigência do CDC. 52Eis a ementa do acórdão:

“Direito das Obrigações. Contrato celebrado antes da vigência do CDC. Suas normas. Aplicação. Apelação desprovida.

Aplicam-se as normas do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de execução diferida, não obstante ter sido pactuado antes da vigência deste diploma legal.”

Destarte, pode-se concluir que as normas de responsabilidade civil do

fornecedor, dentre outras, do Código de Defesa do Consumidor são aplicáveis a

todos os feitos judiciais propostos por fumantes que tenham adquirido dependência

52 FILOMENO, José Geraldo de Brito. op. cit. p. 30. O autor transcreve o seguinte trecho do

voto da relatora: ”Muito embora o contrato existente entre as partes tenha sido pactuado antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor, de acordo com seu art. 1º, contém norma de ordem pública e esta é de aplicação imediata; duas, porque, embora o contrato tenha sido pactuado antes da vigência do supracitado código, a situação jurídica posta foi atingida porque não integralmente consolidada no tempo, bem como os efeitos da relação ainda em execução.”

27

em data anterior à edição da Portaria nº 490 do Ministério da Saúde, desde que

somente tenham tomado ciência dos danos à suas saúdes a partir da data de 11 de

março de 1991, em que entrou em vigor o CDC.

3.5. Conceito de fato do produto

Fato do produto é, segundo MARINS (1993, p. 140):

“...a manifestação danosa dos defeitos juridicamente relevantes, que podem ser de criação, produção ou informação (defeito), atingindo (nexo causal) a incolumidade patrimonial, física ou psíquica do consumidor (dano), ensejando a responsabilização delitual, extracontratual, do fornecedor, independentemente da apuração da culpa (responsabilidade objetiva).”

Desse modo, não se pode confundir fato do produto, ou acidente de consumo,

com o dano ou o defeito, eis que estes podem ocorrer isoladamente sem que se

tenham verificado todos os elementos que compõem aquele, vale dizer, defeito,

nexo causal e dano. Assim, o mero defeito que não gera dano não é fato do produto,

tal como também não haverá acidente de consumo, mesmo que haja um dano, se o

produto não apresentar algum defeito.53

3.6. Fundamentos para a responsabilização dos fabricantes de cigarro

Este estudo trabalha com duas hipóteses básicas como fundamentos para a

responsabilização da indústria tabagista: a existência de defeitos de criação e de

informação no produto cigarro; e a prática de propaganda enganosa e abusiva do

referido produto.

Demonstrar-se-á que o cigarro é um produto que possui um defeito de

concepção, o qual vem sendo há décadas escamoteado por uma prática que

consiste na omissão de informações, gerando-se um defeito de informação.

Nesse sentido, entende-se que o produto cigarro possui um defeito de

informação, pois sabe-se que há longa data a indústria tabagista tem ciência dos

riscos que este produto proporciona. Inclusos os fabricantes nacionais, essa

indústria tem, ou deveria ter, ciência dos perigos aos quais o seu produto expõe os

consumidores, e jamais informou-os aos seus clientes. Desse modo, até a data de

25 de agosto de 1988, quando foi baixada a Portaria nº 490 do Ministério da Saúde,

nenhum aviso oficial havia sido dado aos consumidores de cigarro.

53 MARINS, James. op. cit. p. 101/141.

28

Por esse fundamento, sustentar-se-á o dever da indústria tabagista em

indenizar todos os indivíduos que tenham adquirido dependência para com o

produto em data anterior à da edição da portaria, e que hajam descoberto, após a

data de 11 de março do ano de 1991, terem desenvolvido alguma doença em virtude

do fumo.

Defender-se-á, ademais, que a mera veiculação de advertências nas

propagandas e nos maços de cigarro não constituem meios eficazes, quantum satis,

a garantir que o consumidor esteja podendo formular um correto juízo a respeito da

segurança que se pode esperar do produto, em virtude da existência de gigantescas

campanhas publicitárias que apontam para outra conclusão, sempre veiculando o

cigarro a aspectos positivos – como o esporte, a sensualidade, o glamour, o

refinamento, a virilidade, etc. – e do alto percentual de adolescentes dentre as

pessoas apontadas pelas pesquisas como os novos fumantes. Desse modo seria

possível mesmo aos fumantes que hajam adquirido dependência após ter sido

baixada a Portaria nº 490 do Ministério da Saúde, e as demais medidas que a

sucederam, que tenham descoberto haverem desenvolvido enfermidade relacionada

com o consumo de cigarro que pleiteiem, judicialmente, indenizações a título de

danos morais e materiais.

3.7. Elementos para valoração da defeituosidade do produto cigarro

A primeira questão consiste em se responder à indagação: o cigarro é um

produto defeituoso? Contudo, a pergunta parte do pressuposto de que se tem por

estabelecidos os critérios a serem utilizados para balizar a verificação da

defeituosidade do produto. Insta analisar, prima facie, quais sejam esses critérios

para que, posteriormente, se proceda a análise dos defeitos.

O próprio Código, em seu art. 12, § 1º, determinou parâmetros para a

valoração da defeituosidade de um produto, os quais serão analisados doravante.

3.7.1. Produtos inerentemente perigosos e de periculosidade adquirida

Não há que se discutir quanto à existência ou não de riscos à saúde no

consumo de cigarros. Ocorre que as próprias companhias fabricantes, através de

seus sites na internet, já assumiram a existência dos riscos.54 É cediço que há uma

54 A maior empresa fabricante de cigarros do país, a Souza Cruz, em seu site afirma que

“fumar envolve riscos importantes relacionados a sérias doenças como câncer de pulmão,

29

regra geral, insculpida no inciso II do art. 334 do Código de Processo Civil, que

dispõe no sentido de ser despicienda a prova de fatos admitidos pela parte contrária,

e este estudo se propõe a analisar as possibilidades de sucesso de ações judiciais

reparatórias.

Mesmo não sendo, necessariamente, um dos critérios trazidos pelo Código

para se determinar a existência de um defeito, importa que se faça a distinção entre

produtos inerentemente perigosos e produtos de periculosidade adquirida. Em

verdade, esse exame atua como precedente lógico para a realização dos

posteriores.

São produtos inerentemente perigosos aqueles que possuem riscos

intrínsecos à sua qualidade ou modo de funcionamento.55

O art. 8º do CDC impõe aos fornecedores o dever de não introduzirem no

mercado de consumo produtos e serviços que acarretem riscos à saúde ou

segurança dos consumidores, excetuados os casos em que este risco é normal e

previsível em virtude de sua própria natureza e fruição.

Explica BENJAMIN (1991, p. 50) que “a periculosidade só é inerente quando

dotada de normalidade (isto em relação ao produto ou serviço) e de previsibilidade

(isto em relação ao consumidor). Se assim não ocorre, cabe ao fornecedor a

obrigação de advertir os consumidores (dever de informar) dos riscos inevitáveis”.56

Desse modo, a mera circunstância de o produto possuir um defeito de

doenças respiratórias e cardíacas.” em http://www.souzacruz.com.br/saude_visao.htm e que “A Souza cruz tem consciência de que lida com um produto, que, embora proporcione prazer, está estatisticamente associado à riscos para a saúde.” Em:

http://www.souzacruz.com.br/responsabilidade.htm. A Philip Morris, segunda maior empresa da área no país, no site de sua matriz americana

afirma que “We agree with the overwhelming medical and scientific consensus that cigarette smoking causes lung cancer, heart disease, emphysema and other serious diseases in smokers. Smokers are far more likely to develop serious diseases, like lung cancer, than non-smokers. There is no „safe‟ cigarette. These are and have been the messages of public health authorities worldwide. Smokers and potential smokers should rely on these messages in making all smoking-related decisions.” Em tradução livre o texto diz: “Nós concordamos com os consensos médicos e científicos que afirmam que fumar cigarros causa câncer de pulmão, doença de coração, enfisema e outras doenças sérias em fumantes. Fumantes tem maiores probabilidades de contrair doenças sérias, como câncer de pulmão, que os não fumantes. Não há cigarro „seguro‟. Estas são e foram as mensagens de autoridades de saúde pública mundial. Os fumantes e fumantes em potencial deveriam considerar estas mensagens fazendo decisões relacionadas sobre fumar.” Em:

http://www.philipmorrisusa.com/DisplayPageWithTopic.asp?ID=60. 55 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 93.

30

concepção, por exemplo, não o torna um produto de periculosidade inerente,

também sendo necessário, para tanto, que esta característica seja do conhecimento

de seu público consumidor, possibilitando sua previsibilidade. O que deve-se aferir é

se o produto corresponde à expectativa de segurança legitimamente criada por

seus consumidores. Essa análise será realizada no próximo item.

De outro lado, os produtos de periculosidade adquirida são os que se tornam

perigosos em decorrência de um defeito qualquer, dês seja desconhecido dos

consumidores. ROCHA (1992, p. 94) explana sobre a questão nos seguintes

termos:

“A característica dos produtos de periculosidade adquirida é justamente a sua imprevisibilidade para o consumidor. Portanto, a natureza objetiva do defeito é irrelevante; pode derivar de sua composição; do processo dedutivo ou de outras causas"

Em não possuindo o consumidor informações que apontem com clareza a

existência de uma periculosidade no produto, essa será adquirida, e não inerente,

ainda que o risco derive da própria natureza do produto ou de uma matéria-prima

que o compõe, ou seja, ainda que lhe seja normal.

ROCHA (1992, p. 94), expondo seu entendimento reforça que:

“Exceção a essa regra [da periculosidade inerente] pode ocorrer quando o fornecedor de produtos potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança (periculosidade inerente) deixa de informar de maneira ostensiva e adequada a respeito da nocividade ou periculosidade do produto (art. 9º), tornando-o perigoso em razão de um defeito de instrução ou informação.”

Assim, um produto que por sua natureza ofereça risco potencial aos seus

consumidores e que não os alerte da existência desses, tratando-se de riscos que o

consumidor não possa prever, possuirá uma periculosidade adquirida que exsurgirá

de um defeito de informação.

Essa diferenciação é necessária uma vez que parte da doutrina entende não

haver dever de indenizar os consumidores que sejam vítimas de acidentes de

consumo provocados por produtos de periculosidade inerente, pois o produto estaria

de acordo com suas legítimas expectativas de segurança. Parte-se da premissa de

que a segurança absoluta é inatingível. 57

56 Apud ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 94. 57 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 94.

31

3.7.2. Falta de segurança legitimamente esperada

Já foi abordado que os bens considerados de periculosidade adquirida são

tidos como os únicos cujos acidentes de consumo levariam a uma responsabilização

civil. Comentou-se, ademais, que somente são bens de periculosidade adquirida

aqueles cujos riscos sejam imprevisíveis para os consumidores.

Essa previsibilidade de que se falou resulta diretamente da expectativa de

segurança que o consumidor tem sobre o produto. Ou seja, a maior ou menor crença

por parte do consumidor sobre o potencial que um dado produto oferece de lhe

causar dano. Quanto maior a desconfiança quanto à possibilidade de ocorrer um

dano, menor, é óbvio, a segurança legitimamente esperada pelo consumidor ao

utilizá-lo, e vice-versa.

Daí decorre a própria noção de defeituosidade, como aduz ROCHA (1992, p.

92) dizendo que:

“A noção de defeituosidade está essencialmente ligada a expectativa do consumidor. Afirma-se, portanto, que um produto é defeituoso quando ele é mais perigoso do que legitimamente se podia esperar. (art. 12, § 1º).”

Uma norma deve ser tida por marco para que se examine se o cigarro oferece

a segurança legitimamente esperada por seus consumidores, e com isso se

determine se este produto possui uma periculosidade adquirida ou inerente: a

Portaria nº 490 do Ministério da Saúde, de 25 de agosto de 1988, que impunha aos

fabricantes de cigarro a veiculação de mensagens de advertência sobre o males

provocados à saúde pelo cigarro. Até aquela data nenhuma advertência pode ser

considerada como tendo chegado ao público consumidor, até mesmo porque os

fornecedores negavam veementemente a existência de qualquer risco. Outras

normas a sucederam, sempre buscando-se garantir a conscientização dos

consumidores, utilizando-se, nesse afã, de uma maior agressividade nas

mensagens. Contudo, somente a nova Lei nº 10.167 de 27 de dezembro do ano de

2000 possuirá o condão de eliminar, a contento, a indução que a publicidade do

cigarro opera sobre seus consumidores.58

Para que se possa determinar se o cigarro atende e atendia – pois não se

pode esquecer que os efeitos dos atos jurídicos anteriores ao CDC são por ele

58 Entretanto, essa lei que alterou dispositivos da Lei nº 9.294 de 15 de julho do ano de

1996, para alguns casos específicos, como por exemplo a publicidade de cigarros em

32

regidos, como já se comentou – às legítimas expectativas de segurança formuladas

por seus consumidores deve-se analisar quem são e quem eram esses

consumidores, e quais as informações que se veiculavam e que atualmente se

propagam sobre este produto.

Primeiramente, em se considerando que o uso do cigarro gera dependência

física e psíquica, dificílimas de serem superadas59, é importante para efeito de

determinação do consumidor médio a ser atingido pela publicidade, não a idade

média do fumantes, mas sim a idade média com que as pessoas começam a fumar.

Busca-se determinar como é a média das pessoas que começam a fumar, pois são

as expectativas desses consumidores que devem ser consideradas, e não a

daqueles que já são viciados no produto, pois estes tem sua liberdade de escolha

sensivelmente alterada pela dependência.

Recente estudo realizado pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro

mostra que em média o brasileiro começa a fumar com 13 anos de idade.60

Relevante frisar-se que a mencionada pesquisa tomou como critério a regularidade

no consumo.

As estatísticas adquirem matizes mais preocupantes quando se analisam

dados como os da Organização Mundial de Saúde que, através de estudos,

comprovou que 99% (noventa e nove por cento) dos adolescentes que

experimentam o cigarro tornam-se fumantes.61 Para efeito de comparação, somente

12% (doze por cento) dos jovens que experimentam álcool se tornam alcoólatras, e

50% (cinqüenta por cento) dos que experimentam maconha se tornam viciados.62

E, muito embora possa se imaginar o contrário, a veiculação de mensagens

de advertência nos maços de cigarro e na publicidade dos produtos não serviu como

fator inibidor deste público. Ao contrário, estudo realizado entre os anos de 1993 a

atividades culturais e esportivas internacionais, permanecerá em vacatio legis até a data de 1º de janeiro do ano de 2003.

59 http://www2.uol.com.br/veja/1602200/p_072.html. A reportagem aponta dados de pesquisa realizada pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro que afirmando que somente 3% (três por cento) dos fumantes conseguem abandonar o vício, muito embora 60% (sessenta por cento) deles tenha tentado por três ou quatro vezes. Para a Souza Cruz, entretanto, “...não há nada de poderoso no prazer de fumar que impeça as pessoas de parar, uma vez que elas tenham motivação.”, em:

http://www.souzacruz.com.br/saude_visao.htm. 60 Idem. 61 Idem. 62 Idem.

33

1997 pela Universidade Federal de São Paulo, através de seu Centro Brasileiro de

Informações sobre Drogas, demonstrou que o número de jovens entre 13 e 15 anos

que já haviam experimentado cigarros aumentou de 24% (vinte e quatro por cento)

para 32% (trinta e dois por cento).

Por mais incrível do que possa parecer o aumento do consumo nessa faixa

etária se deu exatamente no período em que foram implantadas medidas mais

severas de advertência e restrição à publicidade do cigarro, através da Portaria nº

477/95 do Ministério da Saúde e da Lei nº 9.294/96.

Não há como se evitar a conclusão de que esses mecanismos de aviso não

atingem o público nesta idade, que é, frise-se, a idade média com que o fumante

brasileiro começa a fumar. Em verdade, boa parte dos adolescentes que se iniciam

no consumo de cigarro sequer acredita que o cigarro possa causar tanto mal à

saúde como se afirma.63

Muito mais eficientes que as mensagens de aviso e as campanhas anti-

tabagismo do Ministério da Saúde64, as propagandas de cigarro atingem o jovem

com maior impacto. Com efeito, toda essa publicidade é feita no intuito de se atribuir

conteúdos ao produto, associando-o a imagens que atraem, dentre outros públicos,

os adolescentes.

Idéias como as de rebeldia, virilidade, independência, e até mesmo saúde

através dos esportes, alcançam o adolescente em um momento em que ele está

formando sua identidade, e que portanto, é mais suscetível aos efeitos deletérios

dessa publicidade.65

Por essas razões, indubitavelmente, pode-se alcançar a conclusão de que a

média dos consumidores, no momento em que adquirem o vício de fumar, não

possuem discernimento suficiente para entenderem os riscos aos quais esta opção

lhes exporá, apesar da existência de inócuas advertências, formulando uma imagem

de segurança sobre o produto que não coaduna com a realidade, ou seja,

63 Idem, Cf. conclusão do toxicologista Igor Vassilieff da Universidade Estadual Paulista. 64 De acordo com http://www2.uol.com.br/veja/idade/exclusivo/050700/p_106.htm, o

Ministério da Saúde dispunha no ano passado de uma deixa orçamentária de 4,5 milhões de reais, enquanto estima-se que as indústrias fabricantes de cigarro gastem cerca de dez vezes esse valor, ou seja, cerca de 45 milhões de reais. CENEVIVA, Walter. Publicidade e direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 112.: Traz a informação de que somente a companhia Philip Morris, produtora internacional de cigarros, gastou no ano de 1988 mais de 2 bilhões de dólares com publicidade de seus produtos.

65 Idem.

34

legitimamente esperando uma segurança do produto que não existe de fato. Essa

circunstância se dá em decorrência de um defeito de informação que somente será

sanado com as severas restrições à publicidade desse produto trazidas pela Lei nº

10.167/00, que alterou a Lei nº 9.294/96.

Em não encontrando os consumidores no cigarro a segurança que

legitimamente esperam, ter-se-á ser este produto classificável como de

periculosidade adquirida.

3.7.3. Apresentação do produto

Em tópicos anteriores afirmou-se que o cigarro é um produto que

normalmente traz um risco à saúde de quem o consome, mas que este risco é

imprevisível para a maior parte de seus consumidores.

O art. 8º do Codecon, em seu parágrafo único, estabelece o dever do

fornecedor em dar as informações necessárias e adequadas sobre o produto, o que,

em se tratando de produto industrial, deve-se fazer por meio de impresso que o

acompanhe.

O art. 9º do Código, por sua vez, estatui a obrigação do fornecedor de

produtos ou serviços potencialmente nocivos ou perigosos em informar a respeito de

nocividade e periculosidade do produto de maneira ostensiva e adequada.

SILVA, explicando qual a abrangência da análise que deve ser feita, pelo Juiz,

a respeito da apresentação do produto, diz que este:

“...deverá atender a todo o processo de comercialização e marketing, às campanhas de publicidade e promoção, à existência ou inexistência, adequação ou inadequação das eventuais advertência sobre eventuais perigos do produto e às instruções quanto ao seu uso – aspecto crucial nos produtos complexos – enfim, a toda a vasta gama de estímulos que tende a criar no público a imagem e a expectativa que se trata de um produto devidamente seguro.”66

No entendimento de MARINS (1993, p.120) é um ato unilateral do fornecedor

em que “apresenta ao conhecimento do consumidor os elementos característicos

conexos ao produto, seja com relação às virtudes, seja com relação ao potencial de

risco que apresente.”

3.7.4. Uso e riscos que naturalmente se espera

O fornecedor, ao introduzir um produto no mercado deve tentar antever todos

35

os possíveis usos que o consumidor possa vir a dar a seu produto, de modo a tentar

minimizar os riscos que estas práticas trariam, o que pode ser feito através de

mudanças no projeto do produto, em seu processo de fabricação, ou mesmo através

de advertências que indiquem o seu uso correto, adequado e seguro. É ele

responsável por todos os acidentes de consumo ocorridos por usos naturalmente

esperados.

É nesse sentido que as indústrias fabricantes de cigarro, atualmente,

defendem a moderação na quantidade de cigarros a serem consumidos, e também o

uso de cigarros com menores teores de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono.

Entretanto, não se pode dizer que haja um modo correto, seguro ou adequado

para o consumo de cigarros, com o que, contraditoriamente, concordam os próprios

fabricantes.67 Com efeito, não há qualquer evidência no sentido de que cigarros

“light” ou mesmo o menor consumo de cigarros excluam os riscos de surgimento de

doenças.68

Além disso, não se pode desconsiderar que o uso do produto leva à

dependência física e psíquica, o que impossibilita falar-se em moderação, pois esta

deriva de um agir voluntarioso, consciente e não condicionado.

66 SILVA, João Calvão da. Apud, ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 95. 67 Em seus já mencionados sites. Souza Cruz afirma que “até hoje, não existe comprovação

de que cigarros com baixos teores oferecem menor risco”, que “estudos relatam um aumento do risco para aqueles que fumam relativamente pouco comparado com aqueles que nunca fumaram, e que a única forma segura de evitar os riscos relacionados ao consumo de cigarros é não fumar.” e, por último, que “Fumar menos reduz os riscos associados a este comportamento, mas não há um nível de consumo definido como „livre de risco‟.” Em:

http://souzacruz.com.br/sumario.htm e, http://www.souzacruz.com.br/saude_visao.htm. Philip Morris apontando que “There is no „safe‟ cigarette.” Em tradução livre: “Não há

cigarro „seguro‟.” Em: http://www.philipmorrisusa.com/DisplayPageWithTopic.asp?ID=60. 68 Além disso, recente pesquisa realizada pelo Massachussets Department of Public Health

leva a conclusão de que não se pode confiar nos índices apontados pelos cigarros. Essa pesquisa analisou a dose de nicotina existente nos cigarros vendidos no mercado norte-americano e comparou-a com a dose anunciada nos maços de cigarro. Em nenhuma das 85 marcas analisadas os dados correspondiam. Eis os resultados: os cigarros com níveis mais altos de nicotina apresentavam um total 89% (oitenta e nove por cento) mais alto do que suas embalagens afirmavam; os cigarros denominados “light”, que possuem nível de nicotina inferior aos normais, apresentaram um nível 105% (cento e cinco por cento) mais alto do que o mencionado nas embalagens; e nos cigarros chamados “ultra-light”, que seriam os com menor quantidade de nicotina, foi encontrado um nível de nicotina 152% mais alto do que o informado nas embalagens dos produtos. Cf. RAMOS, Miguel Antonio Silveira. La responsabilidad civil de las empresas tabaqueras y deber de información. Em:

http://www.ambito-juridico.com.br/aj/dconsu0016.html.

36

Dessarte, em não havendo uso seguro, adequado ou correto atribuível ao

cigarro, tem-se que toda modalidade de consumo deste produto enquadra-se no

perfil de uso naturalmente esperado, o que, em tese, leva à responsabilização dos

fornecedores qualquer que seja o uso dado ao produto.

Demais disso, ainda que se possa considerar que o uso comum do produto é

o uso moderado, não há como se evitar a responsabilidade dos fornecedores.

Ocorre que o fornecedor é também responsável pelo uso razoavelmente previsível

que de seu produto possa ser feito, desde que esse seja socialmente aceito.69

Calcula-se que um terço da população mundial seja fumante,70 o que denota

claramente a aceitabilidade social do uso do cigarro. Essa aceitabilidade não varia

em decorrência do número de cigarros consumidos.

3.7.5. Época em que o produto foi colocado em circulação

O art. 10 do CDC impede a inserção no mercado de consumo de qualquer

produto ou serviço cujo fornecedor saiba ou deva saber possuir alto grau de

periculosidade ou nocividade.

A época em que o produto foi colocado em circulação é mais um elemento

cuja valoração é considerada para que se determine a existência de defeito no

produto. Impõe que se analise o momento histórico no qual o produto foi lançado, de

modo a que se verifique se este produto correspondia às legítimas expectativas de

segurança de seus consumidores, como ressalta ROCHA (1992, p. 97):

“O critério decisivo é o de que o produto satisfaça as legítimas expectativas de segurança do público consumidor no momento da sua emissão no comércio, sem que do seu aperfeiçoamento ulterior possa inferir-se a existência de defeito naquele momento. A apreciação do caráter defeituoso de um produto não será feita, pelo exposto, à luz de aperfeiçoamento científicos e tecnológicos ulteriores introduzidos pelo fornecedor em modelos sucessivos, mas de acordo com as legítimas expectativas e segurança existentes na sua época, na época do seu lançamento no mercado.”

Contudo, esta verificação não fica adstrita àqueles primeiro momento em que

o produto foi lançado, mas acompanha-o durante sua vida comercial, pois há um

dever de vigilância pós-comercialização.71 Ou seja, o fornecedor pode ser

69 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 96. 70 Cf. entrevista de Flávio Andrade, Presidente da Souza Cruz à revista Isto É, em: http://www.terra.com.br/istoe/1612/1612vermelhas3.htm. 71 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 98.

37

responsabilizado pela violação desse dever.

Muito embora os índios brasileiros, antes mesmo da chegada dos

portugueses ao continente, já aspirassem a fumaça exalada pela queima de folhas

de tabaco,72 tem-se que a comercialização de cigarros no Brasil somente foi

implementada no século passado, com o surgimento de uma indústria própria.73

Até meados da década de 1950 não se tem notícia de estudos que

apontassem os malefícios do consumo de tabaco, de modo que a imagem do cigarro

ainda não havia sido vinculada a riscos à saúde. Em verdade, por muitos séculos

acreditou-se que o tabaco era dotado de extraordinárias propriedades curativas,

sendo recomendado como tratamento para cefaléias, nevralgias e outras

moléstias.74

Assim sendo, pode-se dessumir que os consumidores, em não tendo motivos

para desconfiar do produto, sobre ele formulavam expectativas de segurança que

não correspondiam aos riscos a que este as expunha, levando-se à conclusão de

que o produto possui um defeito desde sua colocação no mercado.

3.7.6. Riscos do desenvolvimento

Ter-se-á um risco do desenvolvimento sempre que um produto possua um

defeito que à sua época não se poderia detectar, em função do estado de avanço

tecnológico da ciência.

MARINS (1993, p. 128) conceitua risco de desenvolvimento da seguinte

forma:

“O risco de desenvolvimento consiste na possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível à época de sua introdução, ocorrendo todavia, que, posteriormente, decorrido determinado período do início de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito, somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar danos aos consumidores.”

A doutrina se divide quanto à circunstância de ser o risco de desenvolvimento

uma eximente de responsabilidade do fornecedor. A discussão é meta-jurídica,

alcançando também a questão da distribuição desse risco.

Para o supramencionado autor o risco de desenvolvimento “é espécie de

72 Cf. http://www.souzacruz.com.brempresa_historia_asorigens.htm. 73 Cf. http://www.souzacruz.com.brempresa_historia_enfim.htm

38

defeito juridicamente irrelevante, insuscetível, portanto de levar à responsabilização

do fornecedor pelo fato do produto...”.75 Em seu raciocínio considera que não se

pode enquadrar o defeito existente no produto, que não se podia detectar, numa das

três categorias básicas, quais sejam, defeitos de criação, fabricação e informação.

Filiando-se à corrente contrária, ROCHA (1992, p. 111) defende que o risco

de desenvolvimento não pode ser tido por eximente de responsabilidade. Eis seu

entendimento:

“Com efeito, citada causa de exclusão, por ser controvertida, para ser aceita, deveria ter sido expressamente elencada no art. 12, § 3º do Código de Defesa do Consumidor. Na sua ausência, a hipótese presente será esta: o defeito existia no momento em que o produto foi colocado no mercado, apenas o conhecimento científico existente não o permitia detectar. Não ocorreu culpa exclusiva do consumidor e a ausência de culpa do fornecedor é irrelevante para o deslinde do problema (art. 12, caput). Logo, o fornecedor responderá pela reparação dos danos causados pelo produto defeituoso.”

Há doutrinadores, além disso, que defendem que não se deve impor ao

consumidor, que é a parte mais fraca e hipossuficiente – via de regra também sob o

aspecto econômico – da relação jurídica o ônus de suportar sozinho essa espécie de

riscos.76

Entretanto, visto sob o enfoque do caso em tela o debate adquire somenos

relevância, eis que comprovadamente se pode afirmar que desde meados da

década de 50 a indústria norte-americana de cigarros dispõe de dados que indicam

os riscos que o cigarro traz à saúde de quem o consome.77

Pouco importa, in casu, que não se tenha qualquer documento que comprove

74 Cf. http://www.souzacruz.com.brempresa_historia_fumoplanta.htm 75 MARINS, James. op. cit. p. 137. 76 ALMEIDA, Maria Cecília Ladeira de. (Faculdade Mineira de Direito, PUC-MG – Campus

de Poços de Caldas). Palestra, 2000. 77 O site dos Centers of Disease Control and Prevention na página do National Center for

Chronic Disease Prevention and Health traz mais de mil e trezentos documentos da indústria norte-americana do tabaco. Esses documentos foram utilizados em processo movido pelo Estado de Minnesota contra os fabricantes de cigarro e, em sua maior parte, consistem em comunicações internas que tratam, dentre outras coisas, da relação entre o consumo de cigarro e o aparecimento de doenças como câncer de pulmão, brônquite crônica, etc. Há documentos, vários deles da década de 50, da Philip Morris americana e da British American Tobacco, empresa da qual faz parte a Souza Cruz, que abordam o tema dos efeitos provocados pelo uso de cigarros na saúde humana. http://outside.cdc.gov:8080/BASIS/ncctld/web/mnselect/SDF. Além disso o Advisory Comittee to the Surgeon General of the Health Service elaborou um relatório no ano de 1964 em que já apontava como consequência do tabagismo o surgimento de várias doenças. Em http://www.philipmorrisusa.com/DisplayPageWithTopic.asp?ID=107.

39

que às empresas e filiais nacionais do ramo de cigarros tinham ciência dos riscos

trazidos pelo hábito de cigarros. Pouco importa, ademais, que esses fornecedores

desconhecessem os riscos – o que seria ingenuidade afirmar – pois se não os

conheciam deveriam conhecer, uma vez que exige-se do fornecedor que se

mantenha informado sobre os fatos que o grau máximo de tecnologia de sua época

disponibiliza. Com efeito, como coloca ROCHA (1992, p. 110/111) ao comentar obra

de SILVA:

“... a lei requer a impossibilidade absoluta e objetiva do fornecedor de descobrir a existência do defeito por falta ou insuficiência de meios técnicos e científicos idôneos e não a impossibilidade subjetiva do fornecedor em causa. Assim, o fornecedor tem de estar sempre atualizado, a par de experiências científicas e técnicas mundiais, e ser conhecedor da literatura nacional e internacional da especialidade, pois o critério determinante é o mais avançado estado da ciência e da técnica mundial, entendido objetivamente como a essência do conhecimento.”

Desse modo, a partir do momento em que a ciência passe a dispor de meios

que possibilitem a detecção de um defeito, passa a haver o dever do fornecedor de

descobri-lo, pois este tem a obrigação de manter-se atualizado sobre os riscos de

seus produtos, e informá-los às autoridades e aos consumidores (art. 10, § 1º, do

CDC). Do não diligenciamento neste sentido exsurge um defeito de informação.

3.8. Análise do produto cigarro para fins de responsabilidade por acidentes de consumo.

Superada a questão inicial de se descobrir quais os critérios para se

determinar a defeituosidade do produto, há que se verificar de que espécie de

defeito está se falando.

3.8.1. Defeito de criação

Como já foi pontuado alhures, são defeitos de criação aqueles que ocorrem

em decorrência de uma concepção equivocada do produto ou uma escolha

inadequada dos seus componentes. Tratam-se de produtos que são inseguros a

partir de sua projeção.

Abordou-se, também, que o Codecon não exige uma segurança absoluta dos

produtos, mas somente que esses correspondam às legítimas expectativas de

segurança dos consumidores.

Entretanto, essas colocações podem levar à errônea interpretação de que,

40

independentemente do fato de um produto possuir um defeito de criação, bastaria

que se informasse aos consumidores sobre os riscos que o consumo do produto

oferece e não mais se falaria em defeito. Esta não parece a melhor análise. Ora, por

esse entendimento não haveriam defeitos de criação.

Destarte há que haver alguma segurança no produto, e os fornecedores

possuem o dever de procurar, de modo constante, eliminar os riscos que seus

produtos oferecem. É o que se pode dessumir em uma interpretação sistemática do

CDC. Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor, muito embora não haja

formulado exigências absolutas no que tange à segurança dos produtos, elencou

como direitos básicos do consumidor a proteção à sua saúde e à sua segurança.

Harmonizando-se os dispositivos do Código há que se concluir não ser razoável que

um dado produto ocasione danos absurdos ao consumidor, mormente quando estes

danos se estendem a um grupo de consumidores quantitativamente significante,

como se dá no caso do cigarro.78 Do contrário, malferido restaria o sistema protetivo

do CDC.

Colocou-se também que os defeitos de criação tem como características a

evitabilidade e a extensão do defeito à totalidade da produção. No caso específico

do cigarro essa evitabilidade não surgiu juntamente com o produto.

Em verdade, como já se anotou, a princípio acreditava-se que o tabaco teria

propriedades terapêuticas. Contudo, pode-se afirmar que pelo menos a partir da

década de 1950 a indústria tabagista já havia tomado conhecimento de que o cigarro

expunha a saúde dos fumantes a riscos. Ou seja, a partir da década de 1950 os

fabricantes de cigarro já possuíam informações de que este produto possuía algo em

sua concepção que poderia lesar os consumidores. O problema não foi resolvido até

hoje, muito embora os fornecedores hajam começado a pesquisar e testar novos

produtos que tragam riscos menores, em patamares mais aceitáveis.79

Assim, os cigarros lançados até hoje no mercado vêm causando, em níveis

78 Estima-se que oitenta mil pessoas morram anualmente em virtude de doenças

provocadas pelo consumo de cigarro. Cf. divulgado em Istoé, na página: http://www.terra.com.br/isto/politica.145531.htm. 79 Veja on-line em http://www2.uol.com.br/veja/210201/p_122.html. A reportagem mostra que

os fabricantes têm estudado várias opções. Dentre os projetos há um de lançar cigarros feitos a partir de tabaco geneticamente modificado que não apresente nicotina, o que evitaria o problema da dependência. A Philip Morris vem testando um cigarro que emite até 90% (noventa por cento) menos fumaça. Um outro fabricante já conseguiu reduzir em

41

epidemiológicos, uma série de doenças que tornam clara a existência de uma falha

em sua composição. Inúmeras são as entidades de saúde a apontar os índices

absurdos de doenças e mortes relacionadas ao uso do cigarro. Apenas a título

exemplificativo, citar-se-á alguns dados que comprovam a assertiva.

De acordo com estudo realizado pelo Instituto Nacional do Câncer eram

fumantes: 25% (vinte e cinco por cento) das vítimas fatais de doença coronariana e

cerebrovascular; 85% (oitenta e cinco por cento) das pessoas que morreram em

decorrência de doenças pulmonares, como bronquite e enfisema; e 90% (noventa

por cento) dos mortos por câncer no pulmão. 80

Há mais de 60.000 (sessenta mil) pesquisas registradas na Organização

Mundial de Saúde relativas aos efeitos do consumo de tabaco no organismo

humano. Todas indicam o consumo de cigarros como fator responsável pelo

aparecimento de câncer em vários órgãos, como o pulmão, a bexiga, o estômago e

a boca, e, ainda, pelo surgimento de doenças graves como derrames e infartos.81

O norte-americano Physician‟s Health Study concluiu, através de estudo que

realizou com 60 mil mulheres e 21 mil homens que o cigarro pode causar uma

degeneração na estrutura central da retina que leva à cegueira.82

Uma pesquisa italiana, divulgada pela revista australiana Health Reader,

concluiu que fumantes e ex-fumantes têm duas vezes mais risco de contrair

psoríase.83

Sabe-se já que:

“el humo producido por la quema del tabaco esta compuesto por más de 4.700 componentes químicos. De estos, 43 son conocidos cancerígenos, tros tantos tóxicos, o de efectos farmacológicos, o provocadores de mutaciones genéticas.”84

70% (setenta por cento) as substâncias cancerígenas em um cigarro que pretende lançar ainda neste ano de 2001.

80 Cf. divulgado em Veja, na página http://www2.uol.com.br/veja/160200/p_072.html. O pesquisador Alphonse Kelecon, da Universidade Federal Fluminense, afirma que 4% (quatro por cento) dos cânceres pulmonares causados pelo fumo se devem à radiodatividade do tabaco que é contaminado por polônio através dos pesticidas usados na lavoura. Cf. divulgado no Jornal Nacional em:

http://redeglobo.globo.com/jornalnacional/20010309/mat04.htm. 81 Cf. divulgado em Veja, na página http://www2.uol.com.br/veja/201099/p_152.html. 82 Cf. divulgado em Istoé, na página http://www.terra.com.br/istoe/semana/141123k.htm. 83 Cf. divulgado em CONSUMIDOR S.A. Cigarro e álcool prejudicam a pele. São Paulo: Idec,

2000. p. 6. 84 RAMOS, Miguel Antonio Silveira. op. cit. “...a fumaça produzida pela queima do tabaco é

composta por mais de 4.700 componentes químicos. Destes, 43 são conhecidos

42

Dos dados supramencionados, indubitavelmente, conclui-se que o cigarro, de

tão desmedidos que são os riscos que o seu consumo proporciona, possui um

defeito de concepção decorrente da escolha de seus componentes.

3.8.2. Defeito de informação

Em verdade há dois tipos de defeitos de informação. Em um deles a

veiculação da informação necessária isentaria o consumidor de qualquer risco e o

fornecedor de qualquer responsabilidade, pois há um modo correto de se usar o

produto o qual, uma vez informado, permitirá ao consumidor o uso totalmente seguro

do produto. O outro tipo de defeito de informação é aquele que se dá quando o

fornecedor oculta informações importantes para o consumidor, mas que não seriam

capazes de resguardá-lo dos riscos. São os casos dos produtos que não possuem

um modo seguro de utilização, ou seja, de produtos que possuem um defeito de

criação que é potencializado por um defeito de informação. Nesta segunda hipótese,

o que o defeito de informação faz é possibilitar um agravamento da situação, pela

mantença das expectativas de segurança dos consumidores. É o caso dos cigarros.

Foi demonstrado em outro tópico deste estudo que não há um modo correto e

seguro de se fumar.

Esse defeito de informação existe, pelo menos, desde a década de 1950,

como foi comentado em outros pontos desta monografia, e se configurou pela

omissão, e mesmo negativa, da informação de que o cigarro poderia causar danos

aos seus consumidores.

Além de provirem de uma escassez, ou omissão, de informações referentes

ao produto, esses defeitos se aperfeiçoam-se através de práticas publicitárias que

ferem o dever de informar do fornecedor e os princípios da boa-fé e veracidade que

devem orientar as relações de consumo. O Código, em seu art. 37, §§ 1º, 2º e 3º,

tratou de dar uma definição legal a essas espécies de publicidade, denominando-as

publicidade enganosa e abusiva. Para CENEVIVA (1991, p. 116):

“A enganosidade se contém no falso da mensagem, inteiro ou parcial. Caracteriza-se, por qualquer outro modo, mesmo por omissão. O elemento objetivo do engano estará presente quando a publicidade se mostrar capaz de induzir em erro o consumidor, pessoa física ou jurídica, a respeito da

cancerígenos outros tantos tóxicos, ou de efeitos farmacológicos, ou provocadores de mutações genéticas.” (tradução livre).

43

natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem e preço do produto e do serviço.”

De outro lado, para o mesmo autor, é abusiva a publicidade que “a) contenha

divulgação discriminatória de qualquer natureza; b) incite à violência, explore o medo

ou a superstição; c) se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da

criança; d) desrespeita valores ambientais; e) seja capaz de induzir o consumidor a

se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.”85

As práticas publicitárias dos fabricantes de cigarro amoldam-se a ambos os

conceitos, pois tanto omitem informações – enganosidade por omissão –

importantes a respeito do produto induzindo o consumidor a erro, quanto se

aproveitam da deficiência de julgamento e experiência de adolescentes –

interpretação analógica – e induzem o consumidor a fazer uso de produto prejudicial

à sua saúde.

Explicando qual vem a ser o público atingido por essas espécies de

publicidade, e que por elas pode ser influenciado CENEVIVA (1991, p. 131) afirma:

“Os destinatários cujo comportamento é, em tese alterável pela propaganda, são os participantes da coletividade não formados profissionalmente para conhecerem as eventuais deficiências do anúncio.”

E o referido doutrinador defende, ainda, que na “publicidade de cigarros será

sempre necessário indicar os perigos do consumo...”86

Demais disso, é importante ressaltar-se, à inserção das mensagens de

advertência na publicidade e no próprio produto não pode ser atribuída uma

prevalência sobre a própria mensagem publicitária. Ou seja, as cláusulas de

advertência veiculadas nos maços de cigarro e na sua publicidade não têm o condão

de anular a própria mensagem que a publicidade traz. É o que defende MARINS

(1993, p. 123), ao afirmar que:

“...para efeitos da qualificação do produto como defeituoso, segundo a segurança que deveria apresentar confrontada com o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam, deve ser considerado como normal o uso indicado no material publicitário que cerca o produto, mesmo que nas recomendações técnicas que o acompanham outra seja a orientação. Justifica-se esta assertiva em virtude de ser a publicidade elaborada de forma a influir diretamente no convencimento do consumidor, podendo se valer este dos erros da publicidade, os quais, por isto, anulam ou inutilizam o valor das recomendações técnicas corretas, que estejam em desacordo com a publicidade.”

85 CENEVIVA, Walter. op. cit. p. 116. 86 Ibid, p. 118.

44

Assim, pode-se compreender que de muito pouco adianta que se coloque

frases de aviso nos maços de cigarro e em suas campanhas publicitárias, se estas

últimas estiverem diretamente voltadas a demonstrar uma suposta relação existente

entre o consumo de cigarros e um estilo de vida saudável.

3.9. Não cabimento das hipóteses de exclusão da Responsabilidade

O Codecon, em seu art. 12, § 3º, estipulou em seus três incisos hipóteses nas

quais se isenta o fornecedor de responsabilidade. É em face dessa possibilidade

que se afirma haver o Código adotado um sistema de responsabilidade objetiva

mitigada. Para MARINS (1993, p. 145) essas eximentes de responsabilidade

possuem a “função de proporcionar maior equilíbrio e equanimidade à divisão da

responsabilidade pelos acidentes de consumo...”.

ROCHA (1992, p. 102) esclarece que essas causas de exclusão de

responsabilidade, “provadas pelo fornecedor, elidem o nexo de causalidade entre o

produto e o dano.”

A doutrina se questiona a respeito de ser ou não taxativo o rol de excludentes

de responsabilidade traçado no art. 12, motivo pelo qual abordaremos algumas

outras causas às quais parte dos doutrinadores atribuem função de eximentes de

responsabilidade. Não se tratará dos riscos do desenvolvimento, uma das causas

sobre a qual se discute, uma vez que este tema já foi comentado.

Nenhuma das hipóteses, previstas ou não na lei, se aplicam ao caso sobre

estudo, vale dizer, nenhuma delas exclui a responsabilidade dos fabricantes de

cigarro.

3.9.1. Não colocação do produto no mercado

É a hipótese prevista no art. 12, § 3º, I. Segundo ela o fornecedor não será

responsabilizado civilmente quando puder comprovar que não foi ele quem

introduziu o produto no mercado.

Será, contudo, responsável até mesmo pelos produtos que distribuir a título

gratuito.

MARINS (1993, p. 147/148) explica que:

“...somente se deve entender como introduzido no mercado de consumo, o produto em trânsito do fornecedor para o consumidor, ainda que se tenha em consideração que dificilmente o consumidor recebe o produto

45

diretamente do fabricante, e mesmo quando o trânsito se dá entre espécies diversas de fornecedores...”

Obviamente essa eximente não se aplica aos fornecedores de cigarro. O

defeito existe em todos os produtos que eles vem comercializando há décadas, e

essa excludente tem a finalidade de resguardar o fornecedor que, embora haja

produzido o bem, ou este leve sua marca, não o disponibilizou à comercialização.

Trata-se de uma garantia dos fornecedores com relação aos produtos furtados,

roubados, falsificados. 87, 88

3.9.2. Inexistência de defeito

O fornecedor também não poderá ser alvo de condenação quando

demonstrar que não existe um defeito no produto. É o que estatui o Código em seu

art. 12, § 3º, II.

Essa prova deverá ser no sentido de evidenciar que quando da colocação do

produto no mercado ele não apresentava nenhum defeito juridicamente relevante ou

seja, que não possuía defeitos de criação, fabricação e informação.89

Como já se demonstrou neste capítulo o cigarro possui defeitos de criação e

informação, os quais, necessariamente, existem antes da introdução do produto no

mercado.

3.9.3. Culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro

O Código possibilita, ainda, ao fornecedor que se isente de responsabilidade

comprovando que o utente ou terceiro é que foram, exclusivamente, responsáveis

pela ocorrência do evento danoso.

Forçoso é concluir-se com MARINS (1993, p. 152) que a excludente do art.

12, § 3º, III, do CDC “a rigor vai nos remeter ao inciso anterior – inexistência de

defeito – uma vez que, havendo culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, por

óbvio, não há defeito juridicamente relevante no produto.”

Em se tratando do consumo de cigarros não há que se falar em culpa

exclusiva da vítima, eis que já se comprovou que o cigarro é um produto defeituoso.

De outro lado, como é óbvio, não há qualquer possibilidade de se atribuir a terceiro a

culpa pelos danos que o consumo de cigarros pode gerar.

87 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 103. 88 MARINS, James. op. cit. p. 149. 89 Ibid, p. 150.

46

3.9.4. Caso fortuito e força maior

O caso fortuito e a força maior são apontados por parte da doutrina como uma

das causas de exclusão de responsabilidade que não estaria prevista no Código de

Defesa do Consumidor, mas que seria aplicável às relações de consumo. Todavia, a

ocorrência de um caso fortuito ou um evento decorrente de força maior, não tem

condão de alterar a sistemática prevista no Código.

Ora, se essa espécie de evento se dá antes de o fornecedor ter colocado o

produto no mercado, e dele resulta um defeito, persistirá o dever de indenizar o

consumidor pois cabe ao fornecedor zelar pelo produto enquanto este esteja em sua

posse. 90, 91

De outra banda, operando-se o caso fortuito ou a força maior após a

colocação do produto no mercado, o fornecedor poderá se eximir da

responsabilidade tão somente com fundamento no art. 12, § 3º, II, não necessitando

de se socorrer desses institutos do direito civil.92

Ademais, essas hipóteses, ainda que realmente fossem eximentes de

responsabilidade, não se amoldam ao caso em tela.

3.9.5. Conformidade do produto com normas de controle administrativo

Uma outra circunstância que atuaria como excludente de responsabilidade

seria a comprovação pelo fornecedor de que não descumpriu nenhuma norma que

discipline sua atividade produtiva.

Entretanto, “a adoção de padrões impostos pelo Poder Público no processo

de produção de bens não pode ser alegada pelo fornecedor como prova de

inexistência de defeito no produto. Com efeito, tais padrões objetivam estabelecer

requisitos mínimos de procedibilidade e segurança, deixando ao fornecedor ampla

liberdade para escolher o modo de fabricação dos produtos.”93

Poderia o fornecedor, contudo, fazer uso dessa causa de exclusão de

responsabilidade naqueles casos em que existissem normas imperativas que

determinassem regras para todo o processo produtivo, de modo a que não lhe fosse

90 Ibid, p. 153. 91 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. op. cit. p. 112. 92 Idem. 93 Ibid, p. 108.

47

deixado margem para qualquer alternativa.94 Sobre o assunto anotou MARINS

(1993, p. 156/157):

“Todavia, ante a ausência de norma liberadora expressa em nosso sistema, parece que somente poderá alegar o fornecedor, como eximente de sua responsabilidade, o cumprimento de norma imperativa, nas hipóteses em que realmente não lhe tenha restado qualquer margem de ação que lhe possibilitasse evitar defeito em cumprimento ao seu dever de diligência. Esta hipótese será, de fato, muito incomum, pois as regras emanadas do Poder Público costumam ser de natureza orientativa, vinculantes somente com relação a padrões mínimos que devem ser seguidos por determinados produtos, sendo sempre possível ao fabricante utilizar-se de qualquer outro padrão, desde que respeitado o patamar mínimo legal que não terá, contudo, virtude de eximi-lo de responsabilidade pois „um produto ou serviço pode, com efeito, ser considerado perigoso, não obstante esteja absolutamente em conformidade com a regulamentação em vigor.”

No que pertine aos cigarros, não há normas imperativas que disciplinem seu

processo de produção, mas tão somente normas que estabelecem níveis máximos

em que podem ser encontradas algumas substâncias.95 Desse modo, essa

excludente também é inaplicável ao caso em exame.

3.9.6. A situação do comerciante

O comerciante, além dessas eximentes de responsabilidade ainda dispõe de

mais três argumentos que lhe evitam a responsabilização. É o que se pode entender

em interpretação a contrario sensu do art. 13, incisos I a III, do CDC. Ocorre que sua

responsabilidade é subsidiária, ou supletiva, somente se verificando em alguns

casos específicos.

Desse modo, o comerciante não será responsável quando comprovar que: a)

não foi ele quem vendeu o produto; b) o produto não possui defeito algum; c) a culpa

foi exclusiva do consumidor ou de terceiro; d) pode-se identificar o fabricante, o

construtor, o produtor ou o importador; e) o produto identificava claramente quem era

seu fabricante, produtor, construtor ou importado; f) conservou adequadamente os

produtos perecíveis.

Como a grande maioria dos cigarros possibilitam claramente a identificação

94 Ibid, p. 109. 95 Recentemente foi editada pelo Ministério da Saúde uma resolução determinando quais

são esses níveis, e que foi anunciada com relativo alvoroço pois estipularia a redução dos níveis atuais. Contudo, das marcas mais vendidas no país somente o Marlboro não se enquadrava nos novos patamares. Cf. reportagem em Veja, na página:

http://www2.uol.com.br/veja/170101/p_063.html.

48

de seus fabricantes, e essas empresas são bastante conhecidas – até mesmo pelo

fato de que somente duas empresas no Brasil detêm quase todo o mercado -

dificilmente, um comerciante chegará a responder por um dano causado a um

consumidor. Ademais, o cigarro não é produto que pereça com facilidade.

3.10. Responsabilidade Solidária e Subsidiária

O CDC, no parágrafo único do art. 7º, tratou de prever, já que esta não se

presume, a solidariedade passiva dos autores da ofensa para a reparação dos

danos causados a um consumidor. Como observa MARINS (1993 p. 108):

“Isto significa que cada responsável solidário responde pela totalidade dos danos, estando obrigado cada um individualmente a responder pela completa indenização, na forma prevista pelo Código, resultando no direito do consumidor ofendido „exigir e receber de um ou alguns dos devedores, parcial, ou totalmente, a dívida comum‟ (CC, art. 904), resguardando-se, entretanto, ao devedor que saldou por inteiro a dívida, o direito de receber dos outros devedores solidários o resultado da diferença entre a quota que efetivamente lhe cumpriria pagar e o que desembolsou (CC, arts. 896, 897 e 904 a 915).”

São solidários, como já se teve oportunidade de comentar, o fabricante final

(assembler) para com o fabricante de fase (art. 25, § 2º, do CDC), tal como para com

o fabricante aparente; o construtor para com o fabricante do produto incorporado; e

o importador, também chamado de fornecedor presumido, para com o fabricante.

O comerciante também responderá solidariamente, muito embora de forma

subsidiária, como anota ROCHA (1992, p. 83):

“Configurada uma das hipóteses de responsabilização subsidiária do comerciante, ele responderá solidariamente, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos prejuízos causados a vítima, aplicando-se as regras da solidariedade previstas no art. 896 e ss. Do Código Civil.”

3.11. O dever de indenizar

De acordo com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor para que haja

um acidente de consumo, e para que este seja indenizável, deve haver um produto

defeituoso, um dano ao consumidor (entendida a expressão em lato sensu) e um

nexo causal entre o dano e o defeito, ou seja, o dano tem que advir do consumo do

produto. Esta a teoria da responsabilidade objetiva mitigada.

Qualquer consumidor que tenha tomado consciência de possuir uma doença

originada no consumo de cigarros a partir da data de 11 de março de 1991 –

49

observado o prazo prescricional – terá direito, por esta sistemática, a uma

indenização pelos danos morais e materiais que haja sofrido em face da indústria

tabagista.

Numa visão mais restritiva, entendendo-se que o defeito de informação tenha

sido sanado com a inserção de mensagens de advertência nos maços e na

publicidade, têm direito à indenização todos os consumidores que tenham adquirido

dependência para com o cigarro em data anterior à de 25 de agosto de 1988, e que

tenham descoberto a partir de 11 de março de 1991 serem portadores de doença

relacionada ao consumo de cigarros.

Sustenta-se aqui, porém, que esta última concepção desconsidera o fato de

que a maioria dos consumidores, quando começa a fumar, não consegue absorver,

razoavelmente, o conteúdo das advertências, o que em grande parte é

conseqüência das práticas publicitárias utilizadas pelos fornecedores.

Em tópicos anteriores já restou demonstrado que o produto é defeituoso, em

verdade padecendo de defeito de criação e de informação. A existência do dano e a

sua correlação com o defeito deverão ser examinados em sede de liquidação

individual de sentença, como se comentará adiante. Contudo, cabe à ação coletiva

estabelecer de modo genérico não só a defeituosidade do produto, mas a sua

relação com o surgimento de um certo rol de enfermidades, possibilitando-se

verificar com maior facilidade, nas liquidações individuais, o nexo de causalidade.

Assim, as liquidações individuais resumir-se-ão, quase que totalmente, à

demonstração do dano e a sua quantificação.

Quanto àqueles consumidores que tenham descoberto sofrerem de moléstia

ligada ao tabagismo em data anterior à 11 de março de 1991, entende-se que

deverão fazer uso da sistemática do Código Civil, ou seja, responsabilização

baseada na culpa. Ocorre que estas relações jurídicas se consumaram e produziram

seus efeitos durante o período de vigência do diploma que anteriormente tratava do

assunto.

Entretanto, esta culpa, no caso em tela, não é tão difícil de ser demonstrada e

se configura em decorrência da omissão das informações a respeito dos riscos que

o cigarro oferece, e pelo uso inadequado de publicidade.

Ademais, não há obstáculos a que se busque essa indenização através de

ação coletiva nos moldes delineados pelo CDC, pois as normas de natureza

50

processual, reitere-se, possuem aplicabilidade imediata até mesmo aos processos já

em curso.

Todavia, esses casos não constituem objeto deste estudo, que limita-se

àqueles totalmente abordáveis pelo Codecon, motivo pelo qual não se aprofundará

na questão.

3.12. Dano Moral e Material

A acumulabilidade de danos materiais e morais é ponto pacífico na doutrina e

jurisprudência, sendo consagrados por súmula do Superior Tribunal de Justiça

(súmula nº 37), pela Constituição Federal (art. 5º, X), e pelo próprio Código de

Defesa do Consumidor (art. 6º, VI).

Ao se tratar de indenização uma ressalva, necessariamente, deve ser feita:

uma ação coletiva que busque indenização por danos individualmente

experimentados, obviamente, é uma ação em que se representam interesses

individuais homogêneos. Esses interesses, como já foi sustentado, possuem de

comum entre si somente a origem, sendo, na realidade, interesses que poderiam ser

pleiteados a título individual, e que, invariavelmente, possuirão expressão financeira

distinta.

Desse modo não se pode pretender determinar-se, na ação coletiva, um valor

a ser conferido a cada consumidor lesado, eis que esses valores deverão ser

mensurados em virtude dos danos sofridos.96 Indubitável que o dano experimentado

por cada consumidor terá proporções próprias, e deverá ser individualmente

analisado.

No que tange aos danos materiais, não parece haver maiores dificuldades em

se estabelecer o dever de repará-los e qual seja o quantum a ser pago, eis que se

pode demonstrar com relativa facilidade os lucros cessantes e os prejuízos sofridos.

Estes, via-de-regra, estarão consubstanciados, por um lado, na cessação de

atividade laborativa como conseqüência de incapacidade trazida pela doença e, por

outro lado, nos gastos médico-hospitalares com o tratamento das moléstias

adquiridas.

96 A única ação coletiva proposta contra a indústria tabagista no Brasil busca uma

condenação com um valor fixo por fumante, o qual seria calculado considerando-se o número de anos que a pessoa fumou. Cf. http://www.adesf.com.br. O pedido, contudo, não

51

As discussões, porém, fervilham quando se cuida de determinar os critérios

para a fixação do quantum devido a título de danos morais. Ademais, há que se

investigar se há danos morais que se originam dessas relações de consumo. Para

tanto, há mister que, primus, se defina dano moral. BITTAR (1997, p.26/27) assim

conceitua dano moral:

“Dizem-se, então, morais os danos experimentados por algum titular de direito, seja em sua esfera de consideração pessoal (intimidade, honra, afeição, segredo), seja na social (reputação, conceito, consideração, identificação), por força de ações ou omissões injustas de outrem...(...)

São, pois, lesões sofridas por alguém, em componentes básicos de sua personalidade, por fato antijurídico de outrem, que devem ser reparadas sem qualquer balizamento temporal... (...)

Levando-se em conta que há elementos ideais e patrimoniais na concepção do ser, produzem-se, genericamente, danos morais, quando atingidos elementos de sua subjetividade (consideração íntima ou pessoal) e de sua valoração (reputação ou consideração social), podendo ser puros ou derivados...”

Assim, pode-se entender o dano moral como aquele que é extrapatrimonial e

que agride a subjetividade do indivíduo ou a sua pessoa perante as demais. A

possibilidade de estes danos serem indenizados “sinaliza a repulsa que ao Direito

causa a violação a elementos essenciais da personalidade humana, que se

constituem, no fundo, nos verdadeiros fatores individualizadores do ser no mundo

das relações.”97

Dentre as doenças que o consumo de cigarro pode originar, inúmeras

causarão danos morais. Na maioria dos casos são doenças crônicas e que, portanto,

podem levar anos até ocasionarem a morte do consumidor. Nesse ínterim o fumante

vai tendo sua saúde debilitada de modo gradual e constante. Moléstias como câncer

de pulmão, garganta, laringe, tromboses, etc., expõem o consumidor a sofrimentos

físicos incomensuráveis e a uma série de tratamentos médicos penosos – cirurgias

para retirada de tumores, tecidos, amputações, quimioterapia, radioterapia.

Ademais, não se pode olvidar que o sofrimento dos familiares pela perda do

ente próximo também constitui um dano moral e, como tal, deve ser indenizado.

Na sociedade de consumo de massa, em que os danos por produtos

é tecnicamente correto, eis que os valores somente serão conhecidos em ações autônomas de liquidação de sentença.

97 BITTAR, Carlos Alberto. Defesa do consumidor: reparação de danos morais em relações de consumo. Revista de Direito do Consumidor, v.22, p. 26, 1997.

52

defeituosos podem alcançar proporções assustadoras, uma novel corrente

doutrinária vem defendendo um entendimento segundo o qual a indenização a título

de danos morais, muito mais do que buscar um ressarcimento, tem uma finalidade

educativa-prevencionista.98 Nesse sentido afirmam os doutrinadores:

“Neste ponto, também não poderia a responsabilidade civil conter-se nos restritos propósitos de outrora, de contentar-se com a reparação do dano, fundada ou não na culpa.”99

“Não basta tão só reparar, mas, para a segurança e tranqüilidade almejadas, importa mais prevenir. Sua função vai-se deslocando, deste modo, da exclusiva função ressarcitória, em que o princípio da equivalência, o mais das vezes predomina, para a de evitar o dano, atuando como verdadeiro fator de precaução.” 100

“A indenização obedece, igualmente, ao princípio de preveni-lo, impondo receio aos agentes que possam causá-lo e, por via de conseqüência, restabelecendo o primado de condutas e comportamentos fundados em valores consentâneos com salutar convivência social.” 101

Este novo enfoque vem sendo chamado de teoria do valor desestímulo, pois

advoga a necessidade de que o valor da condenação por danos morais configure

um desestímulo eficiente à condutas inadequadas, e mesmo à reincidência. Outros

excertos demonstram a teoria:

“Assim, em hipótese de dano, resta ao agente suportar as conseqüências de seus atos, atribuindo-se severas indenizações, para desestimular a prática de atos ilícitos tendentes a afetar aspectos da personalidade humana.” 102

“Havido o fato, deve a vítima receber a compensação devida, a fim de que se não proliferem ações danosas. Nesse sentido é que impõe-se a fixação de valor de desestímulo como fator de inibição a novas práticas lesivas. Constitui-se de valor que, sentido no patrimônio do lesante, o possa fazer

98 Atribuindo um duplo caráter à indenização por danos morais ADIERS (1999, p. 31/32)

sustenta: “Ao aplicar regra de arbitramento, o órgão judiciário deverá levar em conta, portanto, que a indenização pelo dano moral não visa a um ressarcimento, mas a uma compensação, consoante afirmou YUSSEF SAID CAHALI. Para CAIO MÁRIO PEREIRA, quando se cuida de reparar o dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: „caráter punitivo‟ para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o „caráter ressarcitório‟ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.”

99 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Em: http://cf6.uol.com.br/consultor/view.cfm?numero-2251&ad-c. 100 Idem. 101 Idem. 102 ADIERS, Leandro. Responsabilidade civil do fabricante de cigarros. Revista Jurídica,

v.257, p. 31, 1999.

53

conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida, ou então deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida.”103

“A aplicação da teoria do valor desestímulo consiste na atuação preponderante do juiz que, na determinação do quantum compensatório deverá avaliar e considerar o potencial e a força econômica do lesante, elevando, artificialmente, o valor da indenização a fim de que o lesante sinta o reflexo da punição. Tal mecânica no estabelecimento do valor indenizatório tem um sentido pedagógico e prático, pois o juiz ao decidir, elevando o valor da indenização está reprovando efetivamente a conduta faltosa do lesante, desestimulando-o da prática faltosa.”104

De fato, a condenação a pagamento de danos morais deve ser de tal monta

que se consubstancie em uma sanção àquele que ofendeu outrem, sob risco de

constituir-se medida inócua. Não raramente os tribunais vem aplicando condenações

substanciosas a atos que causem danos morais. É o que comenta BITTAR (1997, p.

31):

“Interessante é assinalar que têm os tribunais compreendido o alcance de orientação que temos propugnado, e imposto a reparação de danos em níveis satisfatórios, a fim de elidir-se eventuais comportamentos futuros indevidos.”

De se esperar, e até mesmo desejável, portanto, que se verifique uma certa

desproporção entre a lesão e o montante da condenação pelo dano moral. A

doutrina aponta essa necessidade:

“Às indenizações, que não devem ultrapassar o nível de suportabilidade de toda uma economia, sob pena de comprometer as bases da evolução social ( concepção dos riscos e benefícios, presente na Análise Econômica do Direito), não é suficiente que sejam prestadas, ocorrido o dano, em sua medida.”105

Tratando-se de doenças que invariavelmente conduzem à morte, como se dá

com aquelas que advêm do consumo de cigarros, há mister que as condenações

imponham valores elevados, não somente pela gravidade dos danos morais

experimentados, mas para que estas decisões alcancem sua finalidade como

manifestação de reprimenda, e que possam ser sentidas como punição pela

opulenta indústria tabagista. O valor deve ser tal que funcione como fator de

desestímulo à reincidência, o que, neste caso, implica na necessidade de se projetar

produtos mais seguros e informar melhor os consumidores.

Por derradeiro, resta esclarecer não haver qualquer restrição legal em que se

103 Idem. 104 KADRI, Adnan El. Dano moral e material. Na página: http://cf6.uol.com.br/consultor/viem.cfm?numero-974&ad-c. 105 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. op. cit.

54

pleiteie coletivamente a indenização por danos morais. Com efeito, o próprio Código,

em seu art. 6º, VI, expressamente o possibilitou. A esse respeito BITTAR (1997, p.

28) assegura:

“Atingindo, de início, individualidades, ou sejam, pessoas isoladas e identificadas, podem, no entanto, esses danos alcançar coletividades, definidas ou não, dentro da órbita recentemente detectada, entre nós, dos interesses denominados metaindividuais. São interesses de grupos, de classe ou de conjunto de pessoas, indeterminadas ou determinadas, ligadas entre si por elementos de direito ou de fato, a que se nominam interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos (CDC, art. 81, par. ún.).”

Todavia, tratando-se de direitos individuais homogêneos, a pretensão deve

resultar em um pedido de condenação genérica, o qual apontará para a

circunstância de que as enfermidades que derivam do consumo de cigarros podem

ocasionar danos morais.

3.13. Contrapropaganda

CENEVIVA (1991, p. 133) conceituando contrapropaganda afirmou:

“Define-se, pois contrapropaganda, na relação de consumo, como a punição imponível ao fornecedor de bens ou serviços, consistente na divulgação publicitária esclarecedora do engano ou de abuso cometidos em publicidade precedente do mesmo fornecedor.”

Como se pode perceber, essa medida de natureza administrativa será

cominável sempre que o fornecedor divulgar um seu produto ou serviço através de

publicidade enganosa ou abusiva.

Muito embora, a rigor, seja medida derivada do poder de polícia do Estado, e

portanto mais afeta à Administração Pública, pode derivar, também, de ordem

judicial obtida em ação cominatória.

Trata-se de medida perfeitamente aplicável à indústria tabagista, que sempre

fez uso de publicidade enganosa e abusiva, e pela qual se pode exigir desses

fornecedores que, de modo, ostensivo indiquem os riscos que o cigarro oferece.

Todavia, por ter como escopo a defesa de um interesse difuso, que se verifica

no combate à publicidade enganosa e abusiva, e, dentre outras possibilidades, a

veiculação de avisos ao consumidor, é matéria que foge ao âmbito desta

monografia, pois esta cinge-se aos interesses individuais homogêneos dos

consumidores de cigarro.

55

4. ASPECTOS DE DIREITO PROCESSUAL

4.1. O problema do Acesso à Justiça

Durante séculos o objetivo principal de um sem número de movimentos

filosóficos e jurídicos foi o de conseguir o reconhecimento de um certo conjunto

básico de direitos que seriam inerentes a todos os seres humanos.

A dialética das relações sociais legou aos dias atuais a declaração de alguns

desses direitos. Uns tratariam de resguardar o homem da violência estatal. Outros

lhe protegeriam enquanto trabalhador, sem que contudo fosse esquecida sua

dimensão política. Um terceiro grupo de direitos se caracterizaria por tutelar

coletividades.

Entretanto, juristas de diversas nacionalidades constataram que a mera

declaração desses direitos não bastaria para que se realizassem. Perceberam que

os ordenamentos jurídicos não eram adequados à materialização daqueles

postulados, precipuamente no que tange à tutela de interesses e direitos próprios a

grupos de indivíduos, ou indivíduos coletivamente considerados.

Certos da imprestabilidade dos instrumentos jurídicos existentes, estudiosos

começaram a pugnar por uma série de reformas cujo intuito não era outro, senão, o

de conferir efetividade àqueles direitos já reconhecidos.

Inobstante saiba-se depender a realização desses direitos, necessariamente,

da formulação e da adoção de inúmeras políticas sociais – via-de-regra, atividades

próprias do Poder Executivo – não se pode desconsiderar a importância dos

poderes Legislativo e Judiciário para a tarefa.

Com efeito, o problema passa pela questão do acesso à justiça, para cuja

resolução havia mister não somente fossem repensados os valores das custas

processuais (situação ainda não resolvida a contento) e a instituição de soluções

mais céleres e informais, mas regulamentasse-se a tutela de cidadãos coletivamente

56

agrupados. Ora, é conhecida a máxima segundo a qual não há direito sem uma

ação que o defenda.

Ocorre que não existiam em nosso país, antes de 1965, instrumentos

processuais aptos a defenderem interesses além-indivíduo. Obviamente, um

resquício da mentalidade privatista liberal que vem dominando o pensamento

jurídico durante séculos, como observou CAPPELLETTI (1988, p. 9):

“Nos estados liberais „burgueses‟ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante.”

Contudo, as mudanças próprias à dinâmica social acentuaram a necessidade

de se buscar um novo enfoque que não o individualista. O mesmo doutrinador

(1988, p. 10, 11/12) comenta que:

“A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas „declarações de direitos‟, típicas dos séculos dezoito e dezenove. (...)

De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.”

No Brasil, como resultado desta mentalidade, a primeira iniciativa legislativa

eficaz no sentido de defender interesses transindividuais foi a edição da Lei da Ação

Popular (Lei nº 4.717/65). Todavia, este diploma legal restringia-se à defesa do

patrimônio público.

Trazendo um amplo conjunto de objetos jurídicos tuteláveis, a Lei nº 7.347/85

criou a Ação Civil Pública, instrumento que revelou-se de excelente aplicabilidade.

Porém, o manuseio desta ação foi concedido a um pequeno grupo de legitimados,

dentre os quais não se incluíam os agrupamentos civis de indivíduos. Em verdade,

essa limitação era, até certo ponto, decorrente que tinha esta lei aplicação restrita à

defesa de interesses difusos e coletivos, que são objetos jurídicos indivisíveis. Não

se protegiam os interesses individuais homogêneos.

Foi somente com a edição da Lei nº. 8.078/90 que o ordenamento jurídico

pátrio recebeu alterações mais significativas. Além de criar um conjunto de normas

protetivas ao consumidor e de regular as relações de consumo, o Código de Defesa

57

do Consumidor disciplinou a tutela de uma outra categoria de interesses, de

sistemática até então inexistente, os interesses individuais homogêneos. Ademais,

previu legitimação processual a um vasto grupo de pessoas, arrastando a sociedade

civil para o centro da luta pela efetivação dos direitos coletivos. Além disso,

possibilitou o ajuizamento da ação civil pública em defesa de qualquer direito meta-

individual, refletindo uma nova mentalidade que se imprimiria à legislação nacional.

“...o legislador claramente percebeu que, na solução dos conflitos que nascem das relações geradas pela economia de massa, quando essencialmente de natureza coletiva, o processo deve operar também como instrumento de mediação dos conflitos sociais neles envolvidos e não apenas como instrumento de solução de lides. A estratégia tradicional de tratamento das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente coletiva em demandas-átomo. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, evitará a sua banalização pela técnica da fragmentação e conferirá peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos” 106

Realmente, com a promulgação do Codecon o ordenamento jurídico brasileiro

ganhou novas feições e o problema do acesso à justiça foi em boa parte sanado.

Entretanto, não se pode imaginar que se tenha solucionado a pendência.

“Em conclusão, observa-se que, após a Constituição de 1988, está havendo crescente conscientização das pessoas a respeito de sua cidadania e dos direitos que daí derivam, muito especialmente pela utilização das ações coletivas, através de instituições intermediárias, e dos juizados especiais, que têm sido motivo de significativos êxitos nos lugares onde instalados, seja pela aceitação do povo, satisfeito com a possibilidade de acesso imediato, sem custos, seja pela celeridade que através dele se consegue imprimir ao processo, vencendo o formalismo que nos vem do Direito Romano. É preciso porém, não esquecer que a organização judiciária como um todo apresenta-se deficiente, contando com apenas 7.000 juízes em todo o país, além do fato que não têm acesso à Justiça os excluídos dos benefícios da sociedade de consumo, que constituem um grande contingente. A legislação sobre as relações de consumo não eliminará os defeitos do sistema econômico-social do país e a desigualdade que se encontra não apenas entre fornecedor-consumidor, mas entre os próprios consumidores, nem a criação dos juizados especiais resolverá os sérios problemas que angustiam a Justiça, mas as duas iniciativas constituem a mais eficaz providência adotada para diminuir a perda de justiça nas relações contratuais.”107

De outro lado, espera-se do Poder Judiciário uma sensibilidade para conferir

um novo enfoque “ao processo, que deve ser encarado, preponderantemente, em

106 WATANABE, Kazuo. Apud GRINOVER, Ada Pellegrini. op. cit. p. 429. 107 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Em: http://www.cartamaior.com.br/exibe_artigo.asp?cd_artigo=42

58

sua função garantidora da acessibilidade à justiça, mormente no atual ordenamento

jurídico, no qual se percebe com nitidez a preocupação com o chamado garantismo

coletivo.”108

4.2. Ação Coletiva e Ação Civil Pública

A doutrina diverge quando, no cotejamento da ação coletiva criada pelo CDC

com a ação civil pública, se propõe a analisar suas semelhanças e diferenças. Há

que se esclarecer, primeiramente, qual o significado conferido ao termo ação

coletiva. Neste trabalho o termo ação coletiva foi adotado na acepção dada por

MAZZILLI (2000, p. 59/60) que a define como toda ação que verse sobre interesses

coletivos (lato sensu) proposta por qualquer outro legitimado que não o Ministério

Público. Por exclusão são ações civil públicas somente aqueles ajuizadas por

representante do Parquet.

Entretanto, estas definições, por não se vincularem a qualquer dos diplomas

legais mencionados, mas somente à iniciativa da ação, não permitem um exame

mais apurada das ações criadas por estas leis. Destarte, também se encontra na

doutrina ação civil coletiva conceituada como qualquer ação com fundamento no

Codecon, e ação civil pública como aquela que se finca na LACP. Com efeito,

tratam-se de instrumentos jurídicos processuais distintos.

Uma corrente doutrinária entende que a ação criada pelo Código de Defesa

do Consumidor é meio hábil para se promover, somente, a defesa dos interesses e

direitos dos consumidores, ao passo que a ação criada pela Lei nº 7.347 é meio apto

a tutelar qualquer interesse coletivo.

Esposando este entendimento ALMEIDA (2000, p. 89) indica diferenciações

entre essas ações:

“Convém destacar que a ação civil coletiva e a ação civil pública não se confundem. Embora sejam, por vezes, utilizadas indistintamente, uma em lugar da outra, na verdade, são ações típicas, distintas, com perfil e procedimento próprios e destinadas à proteção de bens diversos, embora possuindo algumas afinidades e muitas distinções. Por ora, é importante ressaltar que a ação civil pública foi criada em 1985, por meio da Lei 7.347. para a defesa coletiva do consumidor e de outros bens tutelados, enquadrados na categoria de direitos ou interesses difusos ou coletivos – estes, por definição, de natureza transindividual e indivisíveis –, bem como dos direitos individuais homogêneos de caráter social, consoante têm

108 VENTURI, Elton. Apontamentos sobre o processo coletivo, o acesso à justiça e o devido

processo social. Revista de Direito Processual Civil, v. 4, p. 31, 1997.

59

admitido o STF e o STJ. E também ressalta que a ação civil coletiva, criada em 199, pelo Código de Defesa do Consumidor, destina-se à defesa coletiva unicamente do consumidor, vítimas ou sucessores (e não de outros bens tutelados), e é adequada para a defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos de origem comum, divisíveis por natureza, apresentando, desse modo, campo de utilização bem mais restrito do que o da ação civil pública.”

Para esse doutrinador (2000, p. 89) o que diferencia a ação civil coletiva de

interesses individuais homogêneos – que é a espécie de ação que mais de perto

interessa a esta pesquisa – da ação civil pública é a destinação do produto da

indenização, que naquelas vai para as vítimas, e nessas iria para o Fundo de Defesa

dos Direitos Difusos, previsto no art. 13 da Lei 7.347/85.

Com um outro entendimento e sustentando a total interação entre ação

coletiva e ação civil pública GRINOVER (1998, p. 427) comenta que:

“As disposições processuais do Código [de Defesa do Consumidor] – e, entre elas, as atinentes à defesa coletiva dos interesses (ou direitos) individuais homogêneos – aplicam-se integralmente à LACP, ampliada pelo CDC. (...)

Em virtude disso, surge uma perfeita interação entre os sistemas do CDC e da LACP, que se completam e podem ser aplicados indistintamente às ações que versem sobre direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Esse interagir recíproco de ambos os sistemas (CDC e LACP) tornou-se possível em razão da adequada e perfeita compatibilidade que existe entre eles por força do CDC e, principalmente, de suas disposições finais, alterando e acrescentando artigos ao texto da Lei nº 7.347/85.”

Desse modo, para a referida autora (1998, p. 428) não há que se falar,

tratando-se de ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos,

em, destinação do valor da condenação para o fundo instituído pelo art. 13 da LACP.

A rigor, sequer existe, a priori, a definição desse montante, que somente será

conhecido em momento posterior na relação com cada um dos liquidantes. Essa

ocorreria, somente, naquela hipótese de não haver habilitação de consumidores em

número compatível com o da gravidade do dano. É o seu posicionamento:

“Decorre daí a primeira conclusão deste trabalho: a LACP destina-se hoje à tutela processual dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Fica, assim, respondida a afirmação da r. sentença de fls., quanto à possibilidade jurídica de se buscar, pela via da ação civil pública, a reparação dos danos sofridos por particulares, muito embora não se tratem de interesses coletivos (indivisíveis): tratam-se de interesses (ou direitos) individuais homogêneos, tratados coletivamente, igualmente protegidos pela LACP.”

Este estudo não objetiva solucionar a presente discussão. Basta a

60

informação, incontestada, de que a ação coletiva, em suas duas acepções, é meio

próprio à representação de direitos individuais homogêneos, e que os valores

obtidos a título de indenizações se destinarão aos consumidores que deles fizerem

prova em ação de liquidação de sentença.

4.3. A Class action brasileira

A ação de indenização coletiva, por interesses individuais homogêneos,

chegou ao direito pátrio por influência direta da chamada class action do sistema

norte-americano. Porém, dela distingue-se em virtude de possuir regras próprias de

representação e legitimação processual, numa tentativa de melhor adequar-se a

realidade nacional.109 A esse respeito anotou ALMEIDA (2000, p. 88):

“Na class action americana qualquer interessado pode ingressar com a ação coletiva (de classe), representando os demais, obrigando a todos a decisão. Na ação coletiva brasileira tal não acontece, porquanto os legitimados estão definidos em lei e dentre eles não se inclui o lesado individualmente considerado. Além disso, na class action o juiz aprecia o requisito da representatividade, para avaliar se o representante do grupo está técnica e adequadamente instrumentado para a defesa dos interesses do grupo, o que inocorre no direito brasileiro, em que só as entidades legitimadas podem ajuizar a ação coletiva.”

Trata-se de ação cujo objeto é a “defesa em juízo dos interesses ou direitos

individuais homogêneos, assim entendidos os vinculados a uma pessoa, de

natureza divisível e de titularidade plúrima, decorrentes de origem comum.”110

A relevância deste instrumento processual é a possibilidade que cria de se

proteger interesses que, via-de-regra, na esfera individual não seriam reivindicados

por força de uma série de fatores que atuam como desestimulantes ao litígio. Dentre

esses fatores, que são característicos ao problema do acesso à justiça, destacam-se

a morosidade da justiça, a insignificância da lesão individualmente sofrida, despesas

judiciais, hipossuficiências e vulnerabilidade do demandante. É a isto que se refere

GRINOVER (1998, p. 117, 118) ao afirmar que:

“E ainda, como uma espécie de direitos ou interesses que podem ser tratados coletivamente, facilitando o agrupamento de pretensões homogêneas por sua origem comum, surgem os conflitos que envolvem as pretensões de centenas ou milhares de pessoas, que em muitos casos não buscariam a justiça e não teriam condições de fazer valer seus direitos individuais pelo processo. (...)

109 ALMEIDA, João Batista. A ação civil coletiva para a defesa dos interesses ou direitos

individuais homogêneos. Revista de Direito do Consumidor, v. 34, p. 88, 2000. 110 Ibid, p. 89.

61

Desse modo, o portador em juízo dos interesses da coletividade, com sua organização, supre às deficiências organizacionais dos titulares, individualmente considerados, permitindo o acesso à ordem jurídica justa de vastas parcelas da população e a solução judicial de seus conflitos individuais coletivos.”

Para a supramencionada doutrinadora (1998, p. 110/111), que coordenou o

grupo que redigiu o anteprojeto da lei, a introdução no direito brasileiro de um

sistema de class action, e as alterações formuladas sobre o modelo americano

resultaram em um “Código que apresenta estrutura e conteúdo modernos, em

sintonia com a realidade brasileira.”

4.4. Condições de uma Ação Coletiva Contra os Fabricantes de Cigarro

Primeiramente, é preciso esclarecer que todos os aspectos processuais

analisados neste capítulo se referem àquelas hipóteses de ação formuladas quando

tratou-se da responsabilidade da indústria tabagista.

Três são as condições de qualquer ação: a legitimidade das partes, a

possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir do demandante. Delas somente

a possibilidade jurídica do pedido não merece maiores comentários, eis que não há

dúvidas de que fornecedores de produtos defeituosos possam ser condenados a

indenizarem consumidores individualmente considerados, em uma ação coletiva. Em

verdade, esta parece ser a hipótese mais usual de pedido formulado em ação

coletiva de defesa de consumidores. O próprio CDC tem dispositivos que se

relacionam somente a esta possibilidade – por exemplo ao tratar das ações

individuais de liquidação de sentença.

Quanto à legitimidade processual ALMEIDA (2000, p. 90) afirma que o Código

criou um sistema de substituições processuais. Eis seus dizeres:

“Trata-se, como se vê, de substituição processual (CPC, art. 6º), porquanto os legitimados concorrentes pleiteiam, em nome próprio, direitos e interesses das vítimas ou seus sucessores (CPC, art. 91), mediante autorização legal.”

O art. 82 do CDC atribui legitimidade ativa concorrente ao Ministério Público,

à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal, às entidades e órgãos da

administração direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, e às

associações legalmente constituídas há no mínimo um ano e que incluam, dentre

seus fins institucionais, a defesa dos interesses e direitos dos consumidores.

Contudo, o § 1º do mesmo dispositivo possibilitou a dispensa do requisito da

62

pré-constituição dês “haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou

característica do dano, ou pela relevância do objeto jurídico a ser protegido.”

Importante frisar que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se posicionou

no sentido de que uma ação coletiva de responsabilização de fabricantes de cigarros

é dotada do manifesto interesse social a ponto de dispensar a associação autora do

requisito da pré-constituição.111

Muito embora o requisito da pertinência temática seja tratado como matéria

relativa a legitimação, há que se considerar que ela, indubitavelmente, também se

relaciona à análise do interesse em agir.

Não se conferiu legitimidade às vítimas do acidente de consumo para fins de

ação coletiva. Como salienta ALMEIDA (2000, p. 91):

“As vítimas, isoladamente, não estão legitimadas para a fase inicial – processo de conhecimento – da ação coletiva, mas podem intervir como litisconsortes ativos (art. 94) e atuam com grande desenvoltura na fase de liquidação e no processo de execução (arts. 97, 98 e § 3º do 103).”

Neste novo cenário, traçado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código

de Defesa do Consumidor, que almeja uma maior participação da sociedade civil nos

assuntos coletivos, as associações civis ganham enorme relevância. Surgem elas

como as principais destinatárias desses novos mecanismos processuais.

GRINOVER já o acentuou (1998, p. 432):

“Conclui-se essa parte do parecer, salientando-se a relevância da legitimação ativa das associações em defesa de interesses (ou direitos) individuais homogêneos, de que são elas as titulares naturais e originárias, de acordo com o perfil traçado pela Constituição Federal.”

A ação coletiva de que aqui se trata terá no outro pólo da relação processual,

ou seja, como legitimados passivos, normalmente, os dois principais fornecedores

no mercado brasileiro: a Souza Cruz e a Philip Morris.112

No que pertine ao interesse em agir, é importante que se entenda que este

deve ser o do legitimado processual, e não de cada um dos consumidores. Em

verdade, em alguns casos, a expressão econômica do dano sofrido pelo indivíduo é

tão insignificante que não lhe haveria interesse em agir. Todavia, não há como se

evitar a forçosa conclusão de que uma associação, verbi gratia, que atue

111 Cf. Acórdão da 4ª Câmara no Agravo de Instrumento nº 14.305-5/8, em que foi relator o

Desembargador José Geraldo de Jacobina Rabello, julgado em 05.09.1996.

63

representando milhares dessas pessoas teria um interesse em agir evidente.

A questão fica um pouco mais complexa em virtude de que, em ações

coletivas de tutela de direitos individuais homogêneos, não se conhece, em um

primeiro momento, a extensão do dano, pois este será considerado posteriormente e

em seus limites individuais. Este interesse será mais claro quando se pleiteie um

objeto jurídico indivisível. Neste caso o dano será considerado coletivamente.

Uma ação coletiva movida contra os fabricantes de cigarro, buscando

indenização aos consumidores, tem seu interesse de agir consubstanciado na

intenção de se obter a indenização mencionada pelos danos materiais e morais

experimentados e na possibilidade de haverem ocorrido os referidos danos.

O interesse de agir se mostrará, também, na medida em que o legitimado

processual, em se tratando de associação civil, tenha como objetivo a tutela daquela

modalidade de interesse. Assim, na hipótese de que cuida este estudo, a associação

deve ter como finalidade a defesa dos consumidores, da saúde pública, da saúde

dos fumantes113, ou mesmo, a defesa de interesses coletivos lato sensu.

4.5. Prescrição

O Código de Defesa do Consumidor estipulou, em seu art. 27, ser de cinco

anos o prazo prescricional para ações de responsabilidade civil por fato do produto.

O dies a quo desse prazo, contudo, não é o do fornecimento do produto, mas o da

tomada de conhecimento pelo consumidor do dano sofrido e de sua autoria.

Assim, uma ação coletiva abrangeria todos os consumidores que no período

de até cinco anos antes da data da propositura da ação tiverem ciência de haver

desenvolvido doença relacionada ao consumo de cigarros.

Não basta, desse modo, que se conheça a existência da doença, sendo

necessário, para que comece a transcorrer o prazo prescricional, que se saiba ser

esta doença originada no hábito de fumar.

4.6. Litisconsórcio, Assistência e Intervenção de Terceiros

Diz o art. 94 do Codecon que proposta ação coletiva deve se publicar edital

112 A Philip Morris tem sede na cidade de São Paulo, SP, na Rua Prof. Manoelito de Ornelas,

303, 4º andar, CEP: 04719-910. A Souza Cruz tem sua sede na cidade do Rio de Janeiro, RJ, e recebe correspondências na Rua Candelária, 66, Centro, Caixa postal 160.

113 Tem-se notícia da existência de uma associação cujo objetivo é exatamente este. Em: http://www.adesf.com.br

64

no órgão oficial de modo a que se possibilite a intervenção como litisconsortes de

todos os interessados. Dispõe, ainda, que deve se dar à demanda a divulgação mais

ampla possível.

No que pertine à possibilidade de o indivíduo atuar como assistente em ação

coletiva, pontuou MAZZILLI (2000, p. 213/214):

“O pedido nessas ações também diz respeito ao interesse direto do indivíduo (que compartilha do interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo), mas sua intervenção a título de assistência não se parece adequar perfeitamente à assistência simples nem à assistência litisconsorcial em sentido estrito. Também em tese, seria problemática a assistência litisconsorcial qualificada, pois o indivíduo não poderia ter participado de um litisconsórcio ativo unitário facultativo.

Repugnaria ao sentimento jurídico dizer que se afasta o lesado da ação em que se discute a lesão que ele também compartilha. Aceitá-lo como litisconsorte simples não é a melhor solução, pois que o direito em litígio é do substituído, não do substituto. Assim, a forma de intervenção que, a nosso ver, se expõe a menos defeitos é a assistência litisconsorcial qualificada, conquanto peculiar, porque o indivíduo não é co-legitimado para a ação civil pública ou coletiva.”

Em matéria de intervenção de terceiros, com o intuito de garantir uma maior

celeridade a esses processos o CDC (art. 88) vedou a denunciação à lide, e

estabeleceu que a ação de regresso se dará em processo autônomo. Não são

cabíveis, outrossim, as demais espécies de intervenção, à exceção do chamamento

ao processo previsto em restrita hipótese.

4.7. Procedimento da Ação Coletiva

Para a ação de que cogita esta monografia, não há quaisquer novidades no

tocante ao procedimento a ser observado. As maiores peculiaridades trazidas pelo

Codecon reservam-se às ações que visam cumprimento de obrigação de fazer e de

não fazer. Também não se tratará do inquérito civil, uma vez que o presente trabalho

limita-se às ações promovidas por associações de defesa de consumidores.

Dessarte, para ação coletiva, promovida por uma associação, que busque

indenização a indivíduos por violação a direitos individuais homogêneos o

procedimento que será utilizado é o ordinário.114

4.8. Petição Inicial

A petição inicial deve seguir os requisitos do art. 282 do Código de Processo

114 ALMEIDA, João Batista de. op. cit. p. 89.

65

Civil. Ademais, é importante que mencione a circunstância de ser uma ação de

defesa de interesses individuais homogêneos.

Deve, também, fazer referência àqueles elementos que, necessariamente,

serão objeto de prova: o defeito do produto, o dano causado e o nexo causal. É

importante que mencione qual a esfera de abrangência desse dano, se nacional,

regional ou local.

Além disso, o pedido mediato limitar-se-á à condenação genérica do

fornecedor.

4.9. Competência

O Codecon estipulou, em seu art. 93, regras de competência para a

proposição de ação coletiva. Para traçar essas regras relacionou a jurisdição do

órgão com a extensão territorial do dano provocado pelo produto.

Desse modo, ressalvada a competência da Justiça Federal, tem-se no inciso I

que será competente para julgar ação coletiva de responsabilidade o juiz do local

onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando este tiver âmbito, estritamente local.

Por outro lado, quando o dano tiver repercussão regional ou nacional poderá

a ação ser ação ser proposta tanto na capital do Estado quanto no Distrito Federal.

É o que comenta ALMEIDA (2000, p. 91):

“Determina-se o foro competente pela abrangência territorial dos danos, conforme sejam de âmbito nacional (produzidos em mais de um Estado ou em municípios de diferentes Estados), regional (alcançam vários municípios de um mesmo Estado) ou local (circunscritos a um Município). Assim, quando o dano for de âmbito local, competente será o foro do lugar onde ocorreu ou deve ocorrer (inc. I). Sendo de âmbito nacional ou regional, a competência será do foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal (inc. II).”

4.10. Conexão, Continência e Litispendência

Várias são as possibilidades de haver semelhanças entre os elementos da

causa de processos diferentes. Essas semelhanças podem levar à continência,

conexão, ou até mesmo, litispendência entre as ações, podendo ocorrer “entre: a)

uma ação civil pública e outra ação civil pública; b) uma ação coletiva e outra ação

coletiva; c) entre uma ação civil pública e uma ação coletiva.”115

115 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2000. p. 164.

66

Quanto à conexão e à continência, podem ser facilmente verificáveis nos

exemplos elaborados por MAZZILLI (2000, p. 165)

“É possível que consumidores lesados estejam acionando individualmente o responsável pelo dano, quando sobrevém o ajuizamento de ação coletiva em defesa de interesses coletivos ou de interesses individuais homogêneos. (...)

Também pode ocorrer que estejam em andamento ações individuais (não ações coletivas para defesa de interesses individuais homogêneos), quando se ajuíza ação civil pública para defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, conexos com os interesses individuais. (...)

Pode, ainda, ocorrer a hipótese contrária: já em andamento a ação civil pública ou coletiva, nada impede o subsequente ajuizamento de ações individuais conexas.”

O art. 104 do Código de Defesa do Consumidor esclarece que não há

litispendência entre ação coletiva de defesa de interesses difusos e coletivos e ação

individual. Todavia, da análise do mesmo dispositivo poderia-se supor haver

litispendência entre ação individual e ação coletiva de defesa de interesses

individuais homogêneos. Novamente recorremos à doutrina de MAZZILLI (2000, p.

167) que examinou a questão e a colocou nos seguintes termos:

“Mas em decorrência dessa mesma norma, dever-se-ia concluir, a contrario sensu, que o CDC admite a existência de litispendência entre ação individual e ação civil pública ou coletiva destinada à defesa de interesses individuais homogêneos. Ora, a rigor, nem nesse caso teríamos vera e própria litispendência, pois que não coincidem o objeto da ação individual e o da ação coletiva: o caso seria antes de continência, pois a ação coletiva tem objeto mais abrangente.”

Esse mesmo doutrinador defende que nestas hipóteses de conexão,

continência e litispendência quando cabível e, a critério do juiz, oportuno, deve-se

admitir a unidade de processos e de julgamento.116

4.11. Ministério Público

Como já foi delimitado em outros momentos, este texto restringe-se à análise

das ações coletivas propostas por associações de consumidores. Não será portanto,

examinada a atuação do representante do Ministério Público na qualidade de autor,

mas sim de interveniente.

O art. 92 do Código diz que o Ministério Público, sempre que não for autor da

ação coletiva, deverá intervir, obrigatoriamente, no processo. Nestas hipóteses

67

atuará na qualidade de fiscal da lei.

A não participação do Parquet no processo redundará em nulidade, como

expôs ALMEIDA (2000, p. 90):

“Não sendo autor, o Ministério Público atuará obrigatoriamente como fiscal da lei (CDC, art. 92), sob pena de nulidade processual (CPC, art. 246).”

Mesmo nas ações coletivas não propostas pelo Ministério Público, há uma

possibilidade de intervenção, que não a de fiscal da lei. Cuida-se do caso de haver

desistência da ação pela associação autora.

“Ocorrendo desistência imotivada ou abandono da ação por associação, o Ministério Público passa a atuar como autor, o que também poderá ser feito por outros legitimados (aplicação analógica do § 3º do art. 5º da Lei 7.347, de 24.07.1985, com a nova redação do CDC, art. 112 c/c art. 90).” 117

4.12. Ônus da Prova: inversão

É bastante conhecida a regra geral segundo a qual cabe a cada um provar o

que alega. Em conformidade com esta máxima o Código de Processo Civil dispôs

que cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito e ao réu fazer a prova dos

fatos impeditivos, extintivos e modificativos daquele direito pleiteado.

Essa regra vem sendo utilizada a longa data e, no campo da defesa do

consumidor, sempre trouxe como resultado uma enorme dificuldade para que

qualquer consumidor fizesse prova de seu direito.

Normalmente, a comprovação da existência de um defeito em um produto

exige uma série de informações técnicas das quais não dispõe o consumidor. A

composição e o processo de fabricação são exemplos de informações necessárias

para esse fim e que, via-de-regra, não são do conhecimento do consumidor. Essa

circunstância, além de facilitar sobremaneira a defesa do réu culpado, constituiu

verdadeiro entrave ao reconhecimento de direitos da parte vulnerável da relação de

consumo.

Como meio para solucionar o problema, o CDC criou a possibilidade de o juiz,

a seu critério, e em algumas condições, inverter o ônus da prova, determinando

caber ao réu a prova da improcedência da alegação do autor. É por esta disposição

que o fornecedor pode ser obrigado a fazer prova de que o seu produto não é

116 op. cit. p. 169. 117 ALMEIDA, João Batista de. op. cit. p. 90.

68

defeituoso. Em geral, o ônus desta prova seria do consumidor.

O assunto tem algumas particularidades. Uma das primeiras questões que

surge é se a inversão pode ser determinada pelo juiz ex officio ou se depende,

obrigatoriamente, de requerimento da parte. MOREIRA (1999, p. 128/129) entende

que:

“A inversão poderá ser determinada tanto a requerimento da parte, como ex officio: tratando-se de um dos „direito básicos do consumidor‟, e sendo o diploma composto de normas de ordem pública (art. 1º), deve-se entender que a medida independe da iniciativa do interessado em requerê-la. Aliás, a interpretação em sentido oposto levaria ao absurdo de fazer crer que o Código, inovador em tantos passos, pela outorga de novos e expressivos poderes ao juiz, teria, no particular, andado em marcha a ré, condicionando a inversão ao pedido da parte, em intempestiva – quase escrevi „póstuma‟ – homenagem ao „princípio dispositivo”

Essa inversão será possível sempre que, a seu critério, o juiz considere

verossímil a alegação formulada pelo consumidor, ou quando entender que o

consumidor é hipossuficiente. Nestes casos, “deverá ele, de forma obrigatória, aludir

aos elementos de convicção que o levaram a enxergar verossimilhança na versão

apresentada pelo consumidor, ou dos quais extraiu a sua hipossuficiência.”118

Para FILOMENO (2000, p. 299), a hipossuficiência somente ocorrerá quando

o magistrado verificar que o consumidor não dispõe de “meios para custear perícias

e outros elementos que visem demonstrar a viabilidade de seu interesse ou direito.”

Todavia, deve-se destacar que a sistemática é distinta quando a ação for

movida em virtude de publicidade enganosa ou abusiva. Neste caso, estatui o art. 38

do Código que o ônus da prova cabe a quem patrocina a publicidade, cabendo-lhe a

comprovação da veracidade da informação veiculada.

Outra questão tormentosa e que divide a doutrina é a de precisar qual é o

momento correto para o magistrado determinar a inversão do ônus da prova, se

antes ou após a fase da instrução.

Razão assiste à corrente que defende que o momento propício para a

inversão do ônus da prova é o anterior à fase instrutória. A este entendimento

também se filia MOREIRA (1999, p. 137) pelo seguinte motivo:

118 MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova em

benefício do consumidor. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Estudos em memória de Luiz Machado Guimarães: no 25º aniversário de seu falecimento. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 130.

69

“Portanto, cabendo ao consumidor o encargo de provar o fato constitutivo de seu direito, a defesa do fornecedor pode perfeitamente resumir-se à negativa desse fato. A inversão, alterando radicalmente esse panorama, se, de um lado, tornará menos árdua a tarefa do consumidor, de outro, há de possibilitar a realização de atividade probatória que lhe seja útil.”

Nas ações de responsabilidade por fato do produto, a matéria probatória

girará em torno: a) da existência de um defeito no produto; b) da ocorrência de um

dano; e c) do nexo etiológico ligando defeito e dano.

Por derradeiro, convém afirmar que o Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo confirmou a inversão do ônus da prova determinada pelo juízo a quo em ação

coletiva movida por uma associação contra a Souza Cruz e a Philip Morris.119

4.13. Transação

Não cabe transação em ação coletiva de interesses individuais homogêneos

movida por associação civil, como sustenta MAZZILLI (200, p. 247, 250).

Primeiramente, porque não se concebe transação em ação que vise

responsabilização por danos a direitos individuais homogêneos. E em segundo

lugar, porque as sociedades civis não estão autorizadas a transacionarem tratando-

se de qualquer espécie de interesse coletivo.

4.14. Sentença

Já se comentou em outros trechos desta monografia que a sentença em ação

de responsabilidade de fornecedor por danos individuais homogêneos trará somente

uma condenação genérica.120 Assim o é não despropositadamente, como salienta

ALMEIDA (2000, p. 91/92) ao explicar que:

“Pela estrutura da ação coletiva – em que as vítimas não são identificadas desde o início do processo, nem que figuram necessariamente como litisconsortes ativos –, concebe-se que a condenação seja genérica, ou seja, com o único objetivo de estabelecer a responsabilidade de indenizar, para que, nas fases seguintes, conhecidas as vítimas, possam elas acompanhar a liquidação e a execução e obter a parcela da condenação que lhes cabe. Assinale-se que uma condenação em quantia certa, em procedimento dessa natureza, tornaria inviável a discussão da extensão dos danos causados às vítimas que se apresentassem em momento posterior, mas dentro do prazo de um ano.”

119 No Acórdão da 4ª Câmara de Direito Público, no agravo de instrumento 014.305-5/8,

tendo com relator o Desembargado José Geraldo de Jacobina Rabello, julgado em 05.09.1996.

120 ALMEIDA, João Batista de. op. cit. p. 91.

70

4.15. Custas e despesas processuais e ônus sucumbenciais

O art. 87 do Código diz que nas ações coletiva em defesa do consumidor não

haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais ou quaisquer

outras despesas.

De outro lado, o mesmo dispositivo, garante à associação autora, ressalvada

a hipótese de restar comprovada sua má-fé, a não condenação em honorários

advocatícios custas e despesas processuais.

Comprovando-se, todavia, ter havido má-fé, condenar-se-á a associação

autora e os seus diretores responsáveis pelo ajuizamento da ação, de modo

solidário, ao pagamento de honorários advocatícios e ao décuplo das custas.

4.16. Coisa Julgada

O Código do Consumidor ao criar no direito pátrio um sistema de ações

coletivas de defesa de direitos individuais homogêneos baseado nas class actions

americanas tentou adaptar esse mecanismo processual à realidade brasileira. Por

esse motivo não foi adotado o critério do exame de representatividade do autor da

demanda. Contudo, o referido diploma legal estabeleceu uma série de garantias no

afã de evitar que ações mal conduzidas prejudicassem milhares de indivíduos.

Assim, criou um sistema de coisa julgada secundum eventum litis, ou seja, que

depende do resultado do julgamento da lide. 121

Explicando a abrangência dessa opção GRINOVER (1998, p. 119) afirma que

o CDC:

“...ao regular os processos em defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos, coletivamente tratados, adotou igualmente a coisa julgada erga omnes, mas agora secundum eventum litis, no significado mais completo: ou seja, a sentença de improcedência, nas demandas coletivas em defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos, impede outras ações coletivas de objeto e fundamento iguais, mas não obsta às ações individuais que, a título pessoal, cada titular do direito queira ajuizar.”

E é secundum eventus litis pois na hipótese de procedência do pedido os

seus efeitos serão outros. Neste caso a coisa julgada:

“...produz efeitos erga omnes, ou seja, contra todos, beneficiando todas as vítimas do mesmo evento e seus sucessores, tenham ou não ingressado como litisconsortes, e incidindo sobre o réu, não se permitindo a

121 ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de direito processual civil. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1999. v. 1. p. 687/688.

71

propositura de nova ação sobre o mesmo tema por quem quer que seja, inclusive legitimados concorrentes e vítimas (art. 103, III).”122

Deve-se esclarecer, que os indivíduos que estejam litigando em ação

semelhante contra o mesmo fornecedor, individualmente, contudo, somente serão

abrangidos pelos efeitos erga omnes da coisa julgada obtida em ação coletiva se

pedirem a suspensão de seu processo em até trinta dias após ter lhe sido

cientificado nos autos a existência daqueloutra ação.123

Uma última ponderação deve ser traçada a respeito da sistemática da coisa

julgada no Código de Defesa do Consumidor. Discute-se a respeito da possibilidade

de uma ordem exarada por um magistrado de um Estado-membro produzir efeitos

em outro. Razão assiste a GRINOVER (1998, 122) que comentando a celeuma

assim expôs seu entendimento:

“Outras dificuldades têm surgido quanto à abrangência da coisa julgada erga omnes nas ações coletivas. Argumentando com a competência dos tribunais, aderente ao território correspondente à jurisdição exercida por cada órgão, os tribunais têm recusado, com poucas exceções, eficácia geral às liminares concedidas em demandas coletivas, obrigando os autores a ajuizarem demandas idênticas nos diversos Estados da federação, seja perante a justiça federal seja perante a justiça estadual. A questão está mal posta, não interferindo com as regras constitucionais e legais da competência, mas limitando-se exclusivamente à extensão dos efeitos das liminares e das sentenças. Cada juiz e cada tribunal exerce a jurisdição no âmbito da sua competência, processando e julgando a causa nos limites da mesma. Mas a decisão, proferida pelo juiz competente, estende seus efeitos erga omnes, nos termos do art. 103 do CDC (aplicável à LACP), colhendo todos os membros da coletividade que se encontrem na mesma situação, onde quer que eles se encontrem. A coisa julgada erga omnes não se compatibiliza com limitações de qualquer natureza; nem se podem intentar – e julgar – demandas verdadeiramente coletivas que excluam parcelas consideráveis da população. (...)

O norte, nessa questão, é dado pela própria lei, que se preocupa em disciplinar a competência para a ação coletiva de responsabilidade civil reparatória de danos de âmbito nacional (art. 93, II, CDC, aplicável à LACP).”

4.17. Liquidação de Sentença

É cediço que toda liquidação de sentença é uma ação de conhecimento, ou

seja, uma ação de cognição exauriente, e que como tal está sujeita a um

procedimento composto de várias etapas.

No ordenamento jurídico brasileiro, atualmente, há duas espécies de

122 ALMEIDA, João Batista de. op. cit. p. 92.

72

liquidação, a liquidação por arbitramento e a liquidação por artigos. O ponto nodal a

diferencia-las consiste na necessidade ou não de se fazer prova de fato novo nesta

via processual. Quando esta atividade se fizer necessária utilizar-se-á a liquidação

por artigos.

O CDC previu, conforme quem a propõe, duas modalidades de liquidação de

sentença, a individual e a coletiva.

4.17.1. Liquidação Individual

Como a sentença da ação coletiva de defesa de direitos individuais

homogêneos se limita a condenar genericamente o réu, há mister que cada

consumidor lesado faça comprovação dos danos que sofreu relacionando-os com o

defeito do produto (nexo causal).

Na hipótese de a ação coletiva haver sido proposta contra mais de um

fornecedor a liquidação deverá ser proposta somente contra aquele réu que fornecia

o cigarro que o consumidor fumava.

Quanto à competência para processar e julgar a ação de liquidação de

sentença tem-se que esta deverá ser proposta no “foro da ação de conhecimento

(condenatória) ou no domicílio do autor – liquidante (art. 97 c/c art. 101, I, aplicado

analogicamente).”124

Como se pode notar, as liquidações de sentença previstas no CDC

apresentam diferenças quanto às demais. A esse respeito GRINOVER (1998, p.

433) esclareceu:

“E não há dúvida de que o processo de liquidação da sentença condenatória, que reconheceu o dever de indenizar e nesses termos condenou o réu, oferece peculiaridades com relação ao que normalmente ocorre nas liquidações de sentença. Nestas, não mais se perquire a respeito do an debeatur, mas somente sobre o quantum debeatur. Aqui, cada liquidante, no processo de liquidação, deverá provar, em o contraditório pleno e com cognição exauriente, a existência do seu dano pessoal e o nexo etiológico com o dano globalmente causado (ou seja, o an), além de quantificá-lo (ou seja, o quantum)”

4.17.2. Liquidação Coletiva (Fluid Recovery)

Já se falou em outro tópico deste trabalho que muitas vezes o dano

individualmente sofrido pelo consumidor é pequeno demais a ponto de motivá-lo

123 Idem. 124 Ibid, p. 91.

73

para o ajuizamento de qualquer ação. O mesmo se pode falar quanto às liquidações

de sentença.

Assim, pode ocorrer de o fornecedor de um produto que lese milhares de

pessoas ser condenado, sendo, contudo, irrisório o montante que acabe por pagar a

título de indenizações em virtude de que muito poucas vítimas venham a promover

ação de liquidação.

Temendo que esse fato se constituísse em uma brecha que furasse todo o

sistema protetivo do Código, o legislador cuidou de importar mais uma solução do

direito alienígena: a Fluid Recovery.

O art. 100 do Código estatui que decorrido um ano sem que tenha havido

habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano os

legitimados do art. 82 poderão promover a liquidação e a execução coletiva.

“Soltanto nel caso in cui la sentenza di condanna non fosse oggeto di liquidazione per iniziativa dei pregiudicati, o qualora coloro che giustifichino il loro diritto alle riparazioni non siano in numero compatible com la gravità del danno, la legge brasiliana prevede la fluid recovery, calcolata dal giudice in base ai danni causati e destinada ad un fondo che applicherà la somma fissata a titolo di risarcimento globale per finalità connesse agli interessi dei consumatori (art. 100 c.d.c.).”125

Nesse caso, ALMEIDA (2000, p. 91) aponta que o foro competente para o

processamento da liquidação, e também da execução coletiva, será o da ação

condenatória.

Somente nesta hipótese é que o valor obtido a título de indenização será

destinado ao fundo previsto no art. 13 da Lei da Ação Civil Pública. Comentando o

assunto afirma ALMEIDA (2000, p. 93) que:

“A grande novidade nessa matéria – aliás o que constitui a nota diferenciadora da ação coletiva em relação à ação civil pública – é que o produto da condenação, como regra, vai para o patrimônio das vítimas, em ressarcimento da lesão sofrida e só excepcionalmente reverterá para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, quando insignificante o número de vítimas habilitadas ao fim de um ano (art. 100 e par. un.).”

Resumindo num só parágrafo a matéria atinente à liquidação da sentença,

ALMEIDA (2000, p. 93) colocou:

125 GRINOVER, Ada Pellegrini. op. cit. p. 144/145. Tradução livre: “Somente no caso em que

a sentença de condenação não foi objeto de liquidação por iniciativa dos prejudicados, ou no caso de que os que justifiquem seu direito às reparações não estejam em número compatível com a gravidade do dano, a lei brasileira prevê a fluid recovery, calculada pelo juiz com base nos danos causados e destinada a um fundo que aplicará a soma obtida a título de reembolso global para finalidades conexas a dos interesses dos consumidores.”

74

“A execução terá curso no mesmo juízo da liquidação. Se a título individual, o exequente deverá extrair cópia das peças principais do processo (petição inicial, contestação, perícias, sentença e trânsito em julgado) para iniciar a fase de liquidação, que necessariamente deverá ser por artigos (CPC, art. 608), pois o liquidante deverá alegar e provar fatos novos: o nexo causal entre o evento e a lesão sofrida, o dano e seu montante. Se a título coletivo, correrá no mesmo juízo da ação de conhecimento, nos mesmo autos se definitiva, ou em autos apartados se provisória, i.e., antes do trânsito em julgado da sentença (§ 1º do art. 98 do CDC c/c art. 587 do CPC).”

4.18. Execução individual e coletiva

Encerrada a ação de liquidação ter-se-á obtido título executivo judicial. Para a

promoção da execução destas sentenças a lei previu dois meios, a execução

coletiva e a individual.

Não há novidades no que toca à execução individual. Como já se comentou,

esta será proposta no juízo em que se processou a liquidação de sentença ou da

ação condenatória.

Interessante, contudo, a solução trazida pelo Código denominada execução

coletiva. Diz o art. 98 do CDC que os legitimados à proposição da ação coletiva

poderão promover, a um só turno, a execução de todas as sentenças das ações de

liquidação que já tiverem sido prolatadas. Ou seja, uma só execução para todos

aqueles títulos.

Não é necessário, contudo, que esses legitimados aguardem que se

encerrem todas as ações de liquidação para, posteriormente, executarem as

sentenças. Até mesmo porque nestes tipos de demanda não se pode mensurar qual

seja o número de pessoas abrangido. Desse modo, os legitimados executam

coletivamente os títulos já obtidos sem prejuízo de posteriores execuções.

O § 1º daquele mesmo artigo diz que a execução será aparelhada por

certidão das sentenças de liquidação, na qual constará a ocorrência ou não do

trânsito em julgado. Não há vedação à execução provisória.

E, por fim, o § 2º, II, dispõe que será competente para processar a execução

coletiva o juízo onde tramitou a ação condenatória. A esse respeito escreveu

ALMEIDA (2000, p. 92/93):

“Já a liquidação e a execução a título coletivos poderão ser promovidas pelos legitimados concorrentes, no juízo da ação condenatória, exclusivamente (art. 98, § 2º, II), pois se estará cuidando de providências complementares no mesmo juízo.”

75

5. CONCLUSÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988 a proteção do consumidor

ganhou relevo, e esse novo quadro se completou com a edição do Código de

Proteção e Defesa do Consumidor.

Esse diploma legal tratou de positivar vários princípios que informam as

relações de consumo, e de prever um núcleo básico de direitos do consumidor, no

qual se incluem os direitos básicos à: a) vida, saúde e segurança; b) informação; c)

proteção contra publicidade enganosa e abusiva; d) concreta reparação dos danos e

facilitação da defesa.

Da análise do direito à saúde concluiu-se ter ele natureza de direito

fundamental, social, constitucional, absoluto, positivado, inserto no direito objetivo e

subjetivo público de defesa de direitos, de ordem pública e interesse social, podendo

tomado em sua esfera individual, coletiva, ou difusa.

E é em decorrência desse seu status de direito fundamental, absoluto, que as

lesões à saúde do consumidor merecem maior repúdio dos tribunais. A ofensa ao

objeto jurídico é, particularmente, potencializada quando se faz mediante a

distribuição, para o consumo em massa, de produtos ilegitimamente perigosos, o

que certamente ocorre com o produto cigarro.

O debate a cerca da responsabilidade da indústria tabagista nunca foi tão

profícuo quanto o é hodiernamente. Em inúmeros países surgem julgados

condenando a indústria de cigarros a indenizarem consumidores lesados. Nos

Estados Unidos da América a situação revestiu-se de novas cores e os tribunais,

mudando de orientação, começaram a condenar as grandes fabricantes nas class

actions contra elas movidas.

Em nosso país, até recentemente, não haviam meios razoáveis para que se

buscasse condenações semelhantes. A necessidade de que se comprovasse culpa

76

ou dolo dos fornecedores praticamente inviabilizava os pleitos.

Mas um novel cenário exsurgiu, e um conjunto de circunstâncias contribuíram

para tanto. Os maiores fabricantes de cigarro, ao verem suas documentações

internas serem escarafunchadas, foram obrigados a mudar de estratégia e passaram

a admitir a prejudicialidade do consumo de cigarros à saúde humana, fato até então

negado univocamente e com veemência. Os tribunais pátrios começaram a

interpretar o Código de Defesa do Consumidor e, com isso, suas disposições vêm

tomando um sentido que reflete, com fidelidade, o pensamento hoje existente de se

garantir o efetivo acesso das coletividades à justiça. Não restam dúvidas, outrossim,

de que a teoria da responsabilidade objetiva mitigada, adotada pelo Código de

Defesa do Consumidor, constitui-se em inegável avanço para a mudança das

condições existentes.

Outro fator importante foi o tratamento dispensado pela Constituição Federal

e pelo Código de Defesa do Consumidor às associações civis que passaram a ser

enfocadas como instrumento para uma maior participação da sociedade civil nos

assuntos coletivos. Surgem elas como as principais destinatárias dos novos

mecanismos processuais de defesa de coletividades.

E é neste prisma quem se formam as condições necessárias para que se

responsabilize os fornecedores de cigarro pelos danos que o consumo deste produto

vem causando em um enorme grupo de consumidores.

Todavia, as normas jurídicas tem sua validade ligada a um determinado

contexto temporal. Assim, há limitações quanto à aplicabilidade das normas de

responsabilidade civil trazidas pelo Codecon às relações de consumo. Não serão

todas que poderão ser abordadas pela atual sistemática. Excluir-se-ão as relações

de consumo que tenham se iniciado e esgotado seus efeitos em data anterior ao do

início de vigência do CDC.

Em contrapartida, poderão buscar indenizações a título de danos morais e

materiais, pelas normas de responsabilidade do Código de Defesa do Consumidor,

que dispensam a comprovação da culpa, tanto aqueles que tenham adquirido

dependência para com o produto cigarro após ter se iniciada a vigência do supra

referido diploma legal quanto os que já fumavam a mais tempo, mas somente vieram

a descobrir serem portadores de doença relacionada ao tabaco a partir de 11 de

março de 1991.

77

Normalmente não se aplicam normas jurídicas supervenientes a atos jurídicos

praticados antes do início de sua vigência. Também não se costuma aplicar a norma

superveniente aos efeitos daquele ato jurídico.

Entretanto, o Codecon criou normas de ordem pública, as quais, em

decorrência de seu caráter de relevância social, podem ser aplicadas aos efeitos dos

atos jurídicos praticados sob a vigência de outra lei.

Juridicamente, a responsabilidade dos fornecedores de cigarro decorre da

existência de defeitos de criação e de informação no produto. Sua defeituosidade é

formada por um conjunto de características. Trata-se de produto de periculosidade

adquirida em virtude da imprevisibilidade do risco para os consumidores quando

começam a consumir o produto, vez que, em regra, o brasileiro começa a fumar aos

13 anos, e nesta idade não tem condições de entender os perigos nos quais o

consumo de cigarros implica. Consumidores de 13 anos de idade formulam

expectativas de segurança que não coadunam com os reais efeitos produzidos pelo

produto. As mensagens de advertência inseridas nos maços e na publicidade dos

cigarros não tem o condão de apontar para o jovem fumante as conseqüências à

saúde trazidas pelo fumo, pois a apresentação que é feita do produto é por demais

persuasiva para esse público. Além disso, não há um modo seguro de fumar, e os

riscos desse consumo são de conhecimento dos fornecedores desde a década de

1950.

A extraordinária lesividade do cigarro, produto dirigido exclusivamente para o

consumo humano, impõe a conclusão de que há um defeito de concepção, que se

evidencia na equivocada escolha de componentes químicos.

Ademais, o cigarro possui um defeito de informação que se consubstancia na

omissão em informar os consumidores e as autoridades públicas dos reais riscos

que o seu consumo acarreta. Também se manifesta o defeito de informação na

publicidade da indústria tabagista, que é enganosa e abusiva na medida em que

engana o consumidor por esconder-lhe informações relevantes e por conduzi-lo à

prática de comportamentos perigosos. Essa publicidade aproveita-se da deficiência

de julgamento do adolescente.

Todos os consumidores que se enquandrem nas condições acima

estabelecidas – que tenham tomado conhecimento após a data de 11 de março de

1991, observado o prazo prescricional, de possuir uma doença originada no

78

consumo de cigarros – terão direito a uma indenização pelos danos morais e

materiais que hajam sofrido em face da indústria tabagista. O Código de Defesa do

Consumidor estipulou, em seu art. 27, ser de cinco anos o prazo prescricional para

ações de responsabilidade civil por fato do produto. O dies a quo desse prazo,

contudo, não é o do fornecimento do produto, mas o da tomada de conhecimento

pelo consumidor do dano sofrido e de sua autoria.

Esses consumidores podem conseguir, coletivamente, a condenação dos

fornecedores, entretanto, a ação coletiva cingir-se-á a estabelecer de modo genérico

a defeituosidade do produto e a sua relação com o surgimento de um certo rol de

enfermidades. O valor, contudo, que será pago a cada consumidor deverá ser

mensurado em virtude dos danos sofridos, devendo ser individualmente analisado.

A condenação a título de danos morais deve ser de montante considerável

para que funcione como fator de desestímulo à reincidência, o que, neste caso,

implica na necessidade de se projetar produtos mais seguros e informar melhor os

consumidores.

A ação coletiva seguirá o rito ordinário, mas a preocupação com a efetividade

do acesso à justiça fez com que o legislador lhe conferisse peculiaridades, ao ponto

de não serem admissíveis a denunciação à lide e as demais espécies de intervenção

de terceiros. Também será possível a inversão do ônus da prova pelo juiz,

determinando caber ao réu a prova da improcedência da alegação do autor.

Foi para esse objetivo que se previu que não haverá adiantamento de custas,

emolumentos, honorários advocatícios ou quaisquer outras despesas, e a coisa

julgada será secundum eventum litis, ou seja, dependerá do resultado do

julgamento.

Para garantir que a desinformação e a inércia dos consumidores não

resultarão na inocuidade da sentença condenatória, tornou-se possível que,

decorrido um ano sem que tenha havido habilitação de interessados em número

compatível com a gravidade do dano, os legitimados do art. 82 promovam a

liquidação e a execução coletiva, é a Fluid Recovery.

Todas essas novas circunstâncias fáticas e o novo regime jurídico criado pelo

Código de Defesa do Consumidor possibilitam, hoje, a condenação dos

fornecedores de cigarro pelo descaso com que vêm tratando a saúde e a vida dos

consumidores a muitos anos, e demonstram, com alguma força, que um novo

79

enfoque surgiu, e que novas possibilidades de se examinar os conflitos da

sociedade moderna estão colocadas. Os resultados destas novas perspectivas

somente serão conhecidos futuramente, mas há que se reconhecer que são

bastante promissores.

80

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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