Achile Mbembe - Franz Fanon

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  • 8/12/2019 Achile Mbembe - Franz Fanon

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    A universalidade de Frantz Fanon

    Achille Mbembe1

    1. Esquecemo-nos com demasiada frequncia que Frantz Fanon pertence a umagerao que passou, por duas ou trs vezes, pela provao do desastre e, atravs daexperincia de fim do mundo que toda a catstrofe consigo acarreta,indivisamente, pela provao do mundo. Poderia ter facilmente podido contar-seentre as inmeras vtimas da segunda guerra mundial em que participou comdezanove anos de idade; e nunca teria sido questo de Pele negra, mscaras brancas,nem dOs Condenados da terra. Conheceu a colonizao, a sua atmosfera sangrenta,

    a sua estrutura de asilo, o seu quinho de feridas, os seus modos de arruinar arelao com o corpo, a linguagem e a lei, os seus estados inauditos, a guerra daArglia.

    Estas duas provaes o nazismo e o colonialismo , a que haveria queacrescentar o encontro amargo com a Frana metropolitana e os primeiros claresdas independncias africanas, no constituem apenas experincias fundadoras,chaves de leitura de toda a sua vida, do seu trabalho e da sua linguagem. Fanonsurge, inteiro, no molde desses acontecimentos e mantm-se erguido, firme, nointervalo que, a um tempo, os separa e os une. 2 a, nessas trs clnicas do real, que

    nasce, cresce e se esgota o nome de Fanon. a essas trs cenas e, face a elas, obrigao de cuidar que todas atravessa que se deve o essencial da sua palavra,semelhante, na sua beleza dramtica, na sua fulgurncia e no seu brilho luminoso,ao verbo em cruz do homem-deus ameaado de loucura e de morte.3

    Verbo em cruz e, assim, levado ao sopro e disseminao, uma vez que, doprincpio ao fim, to s questo de gnese, de nascimento de novas formas, deencaminhamento, de criao interminvel. to s questo do que iminente,em germe; do que comea, do que nasce, se abre, se cria, surge sob os nossos

    passos, neste aqui e neste agora, mesmo para alm das esperanas humanas, naurgncia, o todo da vida e o grande largo do prprio mundo revelado como tal,carne aberta e prometida ao imprevisto do encontro.

    1 Professor de histria e de cincia poltica na Universidade de Witwatersand em Joanesburgo (fricado Sul). Investigador no Witwatersrand Institute for Social and Economics Research (WISER), ensinaigualmente no Departamento de Francs na Duke University(EUA).2Ver as duas biografias de referncia : David Macey, Frantz Fanon, une vie, La Dcouverte, Paris, 2011;

    Alice Cherki, Frantz Fanon. Portrait, Seuil, Paris, 2000.

    3

    Yelles Mourad, Frantz Fanon et la cration potique, Portulan, n 3, 2000.

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    Trata-se to s, h que precisar, da luta e do futuro que h que sulcar custe o quecustar. Essa luta tem como finalidade produzir a vida, derrubar as hierarquiasinstitudas por aqueles que se acostumaram a vencer sem ter razo, tendo a

    violncia absoluta, nesse labor, uma funo desintoxicadora e instituinte. Essaluta tem uma dimenso tripla. Visa antes de mais destruir o que destri, amputa,desmembra, cega e provoca medo e clera o tornar-se-coisa. Depois, tem porfuno acolher o lamento e o grito do homem mutilado, daqueles e daquelas que,destitudos, foram condenados abjeco; cuidar, e eventualmente, curar aquelese aquelas que o poder feriu, violou ou torturou ou, simplesmente, enlouqueceu.Tem como finalidade fazer irromper um sujeito humano indito, capaz de habitaro mundo e de o partilhar de modo a que as possibilidades de comunicao e dereciprocidade, sem as quais no poderiam existir nem a dialctica do

    reconhecimento, nem a linguagem humana, sejam restauradas.A este gigantesco labor chamava Fanon a sada da grande noite, a libertao, orenascimento, a restituio, a substituio, o surgimento, a emergncia,a desordem absoluta ou ainda caminhar todo tempo, dia e noite, erguer ohomem novo, encontrar uma outra coisa, forjar um sujeito humano novoemergindo inteiro da argamassa do sangue e da clera, livre do fardo da raa edesembaraado dos atributos de coisa. Um sujeito quase-indefinvel, sempre emremanescente porque nunca acabado, tal desvio que resiste lei, mesmo aqualquer limite.

    Quanto ao resto, e bem melhor que outros escritos da poca, os textos de Fanondesvendam a extenso dos sofrimentos psquicos causados pelo racismo e pelapresena viva da loucura no sistema colonial4. Com efeito, em situao colonial, otrabalho do racismo visa, em primeira lugar, abolir toda a separao entre o euinterior e o olhar exterior. Trata-se de anestesiar os sentidos e de transformar ocorpo do colonizado em coisa, cuja rigidez lembra a do cadver. anestesia dossentidos junta-se a reduo da vida em si mesma ao desprovimento extremo dacarncia. As relaes do homem com a matria, com o mundo, com a histria

    transformam-se em simples relaes com o alimento, afirmava Fanon. Para umcolonizado, acrescentava, viver no incarnar valores, inserir-se nodesenvolvimento coerente e fecundo de um mundo. Viver simplesmente nomorrer, manter a vida. E conclua: A nica perspectiva este estmago cadavez mais encolhido, cada vez menos exigente, certo, mas que h que, mesmoassim, satisfazer.

    4 Bulhan Hussein Abdilahi, Frantz Fanon and the Psychology of Oppression, Plenum, New York, 1985;Youssef Hanafy et Salah A. Fadl, Frantz Fanon and political psychiatry, History of Psychiatry, n 7, 1996,

    p. 525-532

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    Esta anexao do homem pela fora quase fisiolgica da carncia e pela matriado estmago constitui o tempo antes da vida, a grande noite de onde h quesair. Reconhece-se o tempo antes da vida no facto de, sob a sua influncia, no se

    tratar, para o colonizado, de dar um sentido sua existncia e ao seu mundo,mas antes de dar um sua morte. E foi ao esclarecimento das expectativas destediferendo e ao seu derrube em favor das reservas de vida que Fanon se dedicou.

    2. Mas mais do que uma obra acabada, Fanon legar-nos-ia uma telaque ele mesmose esforou por tecer no decurso de uma existncia, breve, arriscada e, finalmente,inaudita. Porque, tela em cru, o texto fanoniano apresentaria crtica uma sriede dificuldades que seriam ao mesmo tempo uma oportunidade a de o poderreescrever e reinterpretar incessantemente, sem nunca dele se poder na verdadeapropriar e menos ainda esgotar.5No decurso do meio sculo que decorreu sobrea sua morte, foram, contudo, numerosas as tentativas de o associar a projectos denatureza poltica ou terica.6No existe hoje nenhuma regio do mundo que notenha acolhido, de um modo ou outro, o nome de Fanon. Uma verdadeirabiblioteca Fanon nasceu e permitiu, por sua vez, a constituio de um campo deestudos florescente, rizomtico e, hoje em dia, de alcance planetrio.

    Este campo desenvolveu-se em trs tempos, o perodo do esquecimento ou dapresena espectral alternando com os perodos de retorno, a disseminao

    efectuando-se sempre a partir de um centro irradiante.7

    O primeiro desses centros a frica na era da praxis revolucionria, das grandes lutas de emancipao queabalaram os trs primeiro quartis dos sculo XX as lutas anticoloniaispropriamente ditas, as lutas anti-imperialistas e a luta contra o apartheid.

    Insistiu-se muito na dvida de Fanon para com o existencialismo, a psicanlise e omarxismo e no modo como negociou as difceis relaes com estas correntes deideias to poderosas na sua poca. Mas ainda no se considerou suficientemente o

    5

    V. Nigel Gibson (dir.),Living Fanon. Global Perspectives

    , Palgrave Macmillan, Londres, 2011.6 V. em particular o prefcio de Jean-Paul Sartre edio original de Os condenados da terra. Lerigualmente a de Homi K. Bhabha para a edio inglesa de Pela negra, mscaras brancas, RememberingFanon, New Formations, n 1, primavera 1987, p. 118-135. E a, mais recente, que acompanha a novatraduo de Richard Philcox. Ler ainda a crtica da leitura sartriana de Fanon por Judith Butler,Violence, non-violence : Sartre on Fanon, Graduate Faculty Philosophy Journal, vol. 27, n 1, p. 2000

    7No campo acadmico em particular ver os nmeros especiais: Remembering Fanon, New Formations,n 1, 1987; After Fanon, New Formations, Outubro 2002; Pour Fanon, Les Temps modernes, n 635-636, 006. Ver igualmente Elo Dacy (org.), LActualit de Frantz Fanon, Karthala, Paris, 1986; MaximSilverman (org.), Frantz Fanons Black Skin, White Masks. New Interdisciplinary Essays, Manchester

    University Press, Manchester, 2006.

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    alcance do que representou ento, para o pensamento em geral, a emergncia deuma praxis anticolonial, cujo significado foi verdadeiramente universal e de que africa foi um dos centros irradiantes no decurso do sculo XX. A obra de Frantz

    Fanon faz parte integrante de uma rica tradio africana de reflexo crtica sobreos temas adjacentes do advento do sujeito humano, do renascimento da frica edo descerco do mundo. 8Esta tradio, que data pelo menos do sculo XIX, diasprica e os seus centros situam-se nos circuitos do Atlntico9. O movimentodas ideias segue a, em geral, um arco que vai das Carabas aos Estados Unidos,antes de regressar a frica10. A Europa mais no , aqui, que lugar de passagem oude trnsito.

    Com Fanon, contudo, o deslocamento opera-se das Carabas para a frica. Asideias produzidas no cadinho africano so posteriormente veiculadas na Amrica

    onde so objecto de reapropriao pelos movimentos cvicos negros e pelosmilitantes radicais. Este , nomeadamente, o caso, quando, no decurso dasegunda metade do sculo XX, no apoio s lutas dos povos colonizados contra aspotncias coloniais europeias, a frica se torna um dos laboratrios privilegiadosda reflexo sobre a libertao nacional e os problemas da guerra revolucionria11,sobre as relaes entre racismo e conscincia de classe, colonialismo e capitalismoou ainda entre o nacionalismo, o pan-africanismo e o socialismo. Durante esseperodo, ganha corpo um pensamento revolucionrio africano em torno da ideiade uma frica totalmente libertada, gozando sem entraves de todas as suas

    capacidades de auto-determinao e livre de todo o lao de vassalagem. umafrica, cujo projecto o de se constituir, enquanto fora prpria, enquanto o seuprprio centro.

    8Cedric J. Robinson, Black Marxism. The Making of the Black Radical Tradition, Zed Press, London,1983; William E.B. Du Bois, The World and Africa. An Inquiry into the Part that Africa Has Played in

    World History, Viking Press, New York, 1947.

    9 Paul Gilroy, The Black Atlantic. Modernity and Double Consciousness, Harvard University Press,Cambridge, 1993 (trad. port. : LAtlantique noire. Modernit et double conscience, Amsterdam, Paris,2010).

    10Voir Peter J. Yearwood, Undergoing untold hardships ? : the native shippers of Lagos and theorigins of West African nationalism, 1914-1920, Australasian Review of African Studies, vol. 27, n 1,2005, p. 9-25; Edward W. Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race, Londres, 1880; Paul Gilroy, TheBlack Atlantic, op. cit.

    11 Ernesto Che Guevara, The African Dream. The Diaries of the Revolutionary War in the Congo,Harvil, Londres, 2000; William Galvez, Che in Africa. Che Guevaras Congo Diary, Ocean Press,

    Melbourne, 1999; Kwame Nkrumah, A Handbook of Revolutionary Warfare, 1968.

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    Mas foi aqui, sobretudo, que se defrontaram dois modelos de revoluoanticolonial, o modelo gandhiano e o modelo insurreccional argelino12. Naorigem das teses de Fanon sobre a violncia encontra-se a questo histrica de se

    saber como levar a termo o processo de descolonizao da frica. O discursofanoniano sobre a violncia desenrola-se num cenrio racial cujos lugaresprivilegiados de incarnao so a frica do Sul e a Arglia. As suas consideraessobre a burguesia nacional so forjadas no exame das experincias ento novas daGuin e do Gana. A tragdia do Congo serve-lhe directamente de lucerna a partirda qual d conta dessa poltica de potncias to caracterstica das relaesinternacionais na poca da guerra fria.13

    A frica no apenas o lugar a partir do qual Fanon pensa. o prprio temadesse pensamento, bem como a sua matria. E frica que ele se dirige em

    primeiro lugar. Foi essa africanidade do pensamento de Fanon que,infelizmente, se perdeu de vista, precisamente porque a frica ter sido o pontode partida da sua teoria revolucionria e da sua praxis anticolonial. Sem as suasreflexes sobre a natureza do campesinato, o poder das massas ou o potencialrevolucionrio das classes lumpen, a obra de Amlcar Cabral no teria, sem dvida,a forma que acabaria por assumir.14Nem as trajectrias da luta armada contra ocolonialismo portugus na Guin-Bissau, em Angola, no Zimbabu e emMoambique.15Em larga medida, as teses do tanzaniano Julius Nyerere sobre umsocialismo africano cujos atributos fundamentais seriam aldeos e comunalistas

    so uma resposta indirecta a Os condenados da terra.16Esta temtica campesina encontrar ecos mesmo na frica do Sul. 17Alimentarsecretamente os sonhos de reforma agrria numa parte da frica austral, onde,

    12Neelam Srivastava, Towards a critique of colonial violence : Fanon, Gandhi and the restoration ofagency, Journal of Postcolonial Writing, vol. 46, n 3-4, 2010, p. 303-319; Hira Singh, Confrontingcolonialism and racism : Fanon and Gandhi, Human Architecture Journal of the Sociology of Self-Knowledge,n 5, 2007, p. 341-352.

    13Um aspecto maior, mas geralmente silenciado, do captulo Da violncia de Os condenados da terra.14 Amilcar Cabral, Unit et Lutte, Maspero, Paris, 1975; Peter Worsley, Frantz Fanon and theLumpenproletariat, The Socialist Register, 1972, p. 193-230.

    15Samora Machel, Selected Speeches and Writings, Zed Press, Londres, 1985. V, no Zimbabu, David Lan,Guns and Rains. Guerillas and Spirit Mediums in Zimbabwe, Oxford: James Currey, , 1985; ainda TerenceRanger, Peasant Consciousness and Guerrilla War in Zimbabwe. A comparative Study, Oxford: James Currey,1985.

    16Julius Nyerere, Ujamaa. Essays on Socialism, Oxford University Press, Londres, 1977.

    17

    Govan Mbeki, The Peasants Revolt, Penguin, Londres, 1964.

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    em prol da colonizao de povoamento, os negros haviam sido desapossados doessencial das suas terras e enclausurados em reservas18. Imediatamente a seguir sindependncias, servir igualmente de ponto de ancoragem para uma tradio

    intelectual radical preocupada em encontrar, nas lgicas sociais endgenas, asalavancas de uma transformao revolucionria.19De resto, de Dar Es Salaam aJoanesburgo, passando por Maputo, essa tradio intelectual contribuir para umacrtica e reviso do marxismo empreendimento intelectual cuja histria estinfelizmente longe de estar escrita, mas que prefigura, em muitos aspectos, osdesenvolvimentos tericos registados mais tarde noutros continentes (caso dossubaltern studies na ndia ou dos movimentos indigenistas radicais na AmricaLatina)20. A universalidade da obra de Fanon assim inseparvel da suaafricanidade.

    Fora de frica, este livro motor ser recebido como um manual da organizao eda prtica revolucionria. Este nomeadamente o caso dos meios negros dosEstados Unidos, mais tarde, na frica do Sul onde, confrontados com asegregao racial, os movimentos pelos direitos cvicos dele se apropriaro comode uma bblia21. As suas ideias influenciaro no s aqueles que, na poca, tentamcompreender a dinmica da libertao anticolonial, mas tambm aqueles que seopem, ao mesmo tempo, ao imperialismo americano e ao totalitarismosovitico.22

    3. A segunda poca de Fanon corresponde ao surto dos estudos ps-coloniaisno mundo anglo-americano dos anos 1980. Se Os condenados da terraera o livro dapoca da praxis revolucionria, de Pele negra, mscaras brancaspode dizer-se que um dos livros de cabeceira da viragem ps-colonial no pensamento

    18 M. Percy More, Fanon and the land question in (post) Apartheid South-Africa, in Nigel Gibson(dir.), Living Fanon, op. cit.19 Osend Afa na, Lconomie de lOuest africain, Maspero, Paris, 1966; e, mais tarde, Jean-Marc la,

    LAfrique des villages, Karthala, Paris, 1982; Immanuel Wallerstein, The Capitalist World Economy,Cambridge University Press, New York, 1979; Goran Hyden, Beyond Ujamaa in Tanzania.Underdevelopment and anUncaptured Peasantry, California University Press, Berkeley, 1980.20 Dipesh Chakrabarty, Subaltern history as political thought, in VrajendraRaj Mehta et ThomasPantham (dir.), History of Science, Philosophy and Culture in Indian Civilization. Vol. X, Part 7. PoliticalIdeas in Modern India, Sage, Londres, 2006; Fausto Reinaga, La Revolucin india, Partido Indio deBolivia, La Paz, 1969. Ver igualmente Neelan Srivastava et Baidik Bhattacharya, The Postcolonial Gramsci,Routledge, New York, 2011.21V. Lou Turner e John Alan, Frantz Fanon, Soweto, and American Black Thought, Columbia UniversityPress, New York, 1986.22 Eric J. Hobsbawm, Passionate witness, New York Review of Books, 22 Fevereiro 1973, p. 6-10;

    Immanuel Wallerstein, Reading Fanon in the 21st Century, New Left Review, n 57, Maio-Junho2009.

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    contemporneo. O ltimo quartel do sculo XX caracteriza-se, com efeito, pelorefluxo de qualquer perspectiva revolucionria no mundo. A queda da UnioSovitica consagra a hegemonia do sistema capitalista, o triunfo aparente da

    democracia de mercado e uma asfixia do marxismo. A redescoberta da sociedadecivil demonstra a posteriori o carcter supostamente anacrnico das teorias daguerra revolucionria. As velhas lutas em torno da redistribuio concediam umlugar predominante aos factores de classe na transformao das relaes de podere na constituio de formas transversais de solidariedade. A nova questo socialtem, doravante, como questo central o reconhecimento das identidades lesadas.Este novo paradigma concede um lugar privilegiado s questes da diferena e daalteridade.

    O ltimo quartel do sculo XX foi igualmente marcado pela irrupo, em

    diferentes campos do saber da filosofia, das artes e da literatura em particular de novas correntes intelectuais que, ao atacarem os postulados eurocntricos nascincias humanas, inflectiriam a maneira de se pensar o mundo, a poltica, ahistria e a cultura.23 Surge um pensamento-mundo que testemunha, em largamedida, o processo de descentramento do mundo em curso. O texto fanonianotorna-se uma das passagens obrigatrias das novas viagens planetrias da crticacontempornea, o interlocutor privilegiado que se rel, se refuta ou se completa.Em campos to diversos como a crtica literria e artstica, a psicanlise e a crticapsiquitrica24, os estudos da raa e das disporas (critical race studies), da diferena

    sexuada (feminismo, queer), dos saberes subalternos (subaltern studies), mesmo dacirculao contempornea de todos os tipos de fluxos (public culture), redescobre-seFanon.25 Reexaminam-se os objectos prprios das suas investigaes, o tipo delxico que desenvolveu, os seus mtodos de anlise e a pertinncia das suasgrelhas de leitura nas condies contemporneas.

    O contexto presta-se a isso. A presena cada vez mais visvel de minorias raciais naEuropa relana a interrogao sobre a histria da presena europeia no mundo e ahistria da presena do mundo no seu seio, tanto durante, como depois do

    imprio.26

    Sob o impacto da globalizao das migraes e da circulao de todas as

    23Simon Gikandi, Poststructuralism and postcolonial discourse, in Neil Lazarus (org.), The CambridgeCompanion to Postcolonial Literary Studies, CambridgeUniversity Press, Cambridge, 2004.24 Ranjana Khanna, Dark Continents. Psychoanalysis and Colonialism, Duke University Press, Durham,2003; Franoise Vergs, xxx.25 Esta redescoberta de Fanon, assumiu, contudo, uma forma singular em Frana, onde, ao invs domundo anglo-americano, a sua obra foi marginalizada durante muito tempo nas instituies acadmicas,o mesmo sucedendo com os estudos ps-coloniais. Em contrapartida, os seus textos, tais como os denumerosos pensadores negros radicais da poca, foram objecto, desde meados dos anos 1980, de uma

    reapropriao autodidacta no seio das jovens geraes oriundas da imigrao.26Robert J. C. Young, Postcolonialism. An Historical Introduction, Blackwell, Oxford, 2001.

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    espcies de fluxos, as concepes essencialistas da identidade so postas emcausa.27Os processos de identificao so cada vez mais apreendidos no a partirde uma perspectiva ontolgica, mas de um ponto de vista de um sujeito face ao

    seu desejo. Manifesta-se por toda a parte um interesse renovado pela anlise dasrelaes do sujeito, da linguagem e da representao. O cepticismo face aospostulados da razo transcendental ganha em intensidade.28 concedida umaimportncia nova heterogeneidade das temporalidades e reflexo sobre anatureza da ordem democrtica, s condies ticas do viver-em-conjunto e aosmodos de relao com outrem e com o mundo.29

    Graas viragem ps-colonial nas cincias humanas, os debates mais controversossobre a herana e a actualidade de Fanon renem-se, assim, no ponto deinterseco entre a raa, a sexualidade e a psicanlise.30 Por um lado, as

    preocupaes de Fanon respeitantes s cises do eu so objecto de atenorenovada e de um prolongamento que visa demonstrar que toda a diferena ,

    finalmente, uma questo de relao, de desejo e de ambivalncia. Por outro lado,as suas teses sobre o poder dos homens e a lei da raa como estruturaselementares da formao do eu em situao colonial servem de ponto de partidapara uma crtica da tica do tratamento psiquitrico.31

    Mas este regresso de Fanon tambm d lugar a inmeros mal-entendidos. ocaso, nomeadamente, do ponto de encontro entre Fanon e as problemticasfeministas e queer.32Uma parte da crtica feminista e queerdenuncia, com efeito, a

    27Arjun Appadurai, Modernity at Large. Cultural Dimensions of Modernity, University of Minnesota Press,Minneapolis, 1997 (trad. fr. : Aprs le colonialisme. Les consquences culturelles de la globalisation, Payot,Paris, 2005).28 Lewis Gordon, Fanon and the Crisis of European Man. An Essay on Philosophy and the Human Sciences,Routledge, New York, 1995; Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe. Postcolonial Thought andHistorical Difference, Princeton University Press, Princeton, 2000.29 Paul Gilroy, Against Race. Imagining Political Culture Beyond the Color Line, The Belknap Press ofHarvard University Press, Harvard, 2000; depois After Empire. Multiculture or Postcolonial Melancholia,Routledge, New York, 2004.30

    Gwen Bergner, Who is that masked woman ? Or, the role of gender in Fanons Black Skin, WhiteMasks, PMLA, vol. 110, n 1, Janeiro 1995, pp. 75-88; Diana Fuss, Interior colonies : Frantz Fanonand the politics of identification, Diacritics, Vero-Outono 1994, pp. 20-42; Madhu Dubay, The truelie of the nation : Fanon and feminism, Differences, vol. 10, 1998, p. 1-29; T. Denean Sharpley-

    Whiting, Frantz Fanon, Conflicts and Feminisms, Rowman & Littlefield Publishers Inc., Lanham, 1998.31Cristiana Giordano, Translating Fanon in the Italian context : rethinking the ethics of treatment inpsychiatry, Transcultural Psychiatry, vol. 48, n 3, 2011, p. 228-256; Olivier Douville, Y a-t-il uneactualit clinique de Fanon ?, Lvolution psychiatrique, vol. 71, n 4, Out.-Dez. 2006.32Judith Butler, Bodies That Matter. On the Discursive Limits of Sex, Routledge, New York, 1993; Troubledans le genre. Le fminisme et la subversion de lidentit, La Dcouverte, Paris, 2005; Feminism and theSubversion of Identity, Routledge, New York, 1993; Leo Bersani, Homos. Repenser lidentit, Odile Jacob,

    Paris, 1998; et Lee Edelman Homographesis. Essays in Gay Literary and Cultural Theory , Routledge, NewYork, 1994.

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    homofobia e a misoginia que caracterizariam o estudo fanoniano da psico-sexualidade. Efectuados frequentemente a partir de perspectivas freudianas,mesmo lacanianas, tais questionamentos so cegos ao facto de que a relao

    orgnica entre sexualidade, desejo e raa nunca interrogada no prprio textofreudiano. Ora, para Fanon, essa relao no de ordem analgica. A raa no apenas um objecto plenamente constitudo semelhana da sexualidade ou dodesejo.

    4. Enquanto que a crtica ps-colonial est em vias de se exaurir no mundo anglo-americano, uma terceira poca de Fanon desponta no horizonte33. impulsionada pelas transformaes do mundo e pela sua re-balcanizao no inciodeste milnio. Sado da descolonizao e da guerra fria, o mundo entrou numanova era, a da contra-insurreio.O campo dessa contra-insurreio planetrio. Oseu objectivo no , porventura, reinstituir pura e simplesmente os velhos laoscoloniais. Mas vai buscar uma parte dos seus procedimentos s velhas tcnicas dasguerras coloniais.34 Tal como as guerras coloniais, a contra-insurreio justificada atravs do velho dever de civilizao. O mesmo se passa com astcnicas de ocupao militar de estados nominalmente independentes ou aindacom a distribuio da violncia sob a forma da priso ilegal e da tortura.

    O regresso da contra-insurreio anda de par com o regresso das lgicas de

    extraco na esfera econmica e das lgicas de racializao no campo social.35

    Historicamente, a raa foi sempre uma forma codificada de cesura e deorganizao das multiplicidades, da sua fixao, da sua distribuio ao longo deuma hierarquia e da sua repartio no seio de espaos mais ou menos fechados algica do cerco. Era o caso de todos os regimes coloniais de segregao. Na era dacontra-insurreio, pouco importa que ela seja voluntariamente declinada sob osigno da religio ou da cultura. A raa aquilo que permite identificar edefinir grupos de populaes, na medida em que elas seriam, todas elas,portadoras de riscos diferenciais e mais ou menos aleatrios.

    Neste contexto, os novos processos de racializao visam marcar esses grupos depopulaes, fixar do modo mais preciso possvel os limites no seio dos quais elas

    33Ver o prefcio de Homi K. Bhabha, Is Frantz Fanon still relevant ?, nova traduo inglesa de Pelenegra, mscaras brancas (Pluto Press, 1986). Ler tambm Nigel Gibson, Relative opacity: a newtranslation of Fanons Wretched of the Earth, mission betrayed or fulfilled ?, Social Identities, vol. 13,n 1,

    Janeiro 2007, p. 69-95 ; e Is Fanon relevant ? Toward an alternative foreword to The Damned of theEarth, Human Architecture Journal of the Sociology of Self-Knowledge, Vero 2007, p. 33-44.34Derek Gregory, The Colonial Present. Afghanistan, Palestine, Iraq, Blackwell, Oxford, 2004.35Simone Browne, Digital epidermalization: race, identity and biometrics, Critical Sociology, vol. 36, n

    1, 2010, p. 131-150 ; Anna M. Agathangelou, Bodies to the slaughter : global racial reconstructions,Fanons combat breath, and wrestling for life, Somatechnics, vol. 1, n 2, 2011

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    podem circular, determinar do modo mais exacto possvel os espaos que elaspodem ocupar, em suma, assegurar as circulaes num sentido que permitaafastar as ameaas e assegurar a segurana geral. Trata-se de seleccionar esses

    grupos de populaes, de os marcar a um tempo como espcies, sries e comocasos, no seio de um clculo generalizado do risco, do acaso e dasprobabilidades, de maneira a poder prevenir os perigos inerentes sua circulaoe, se possvel, neutraliz-los antecipadamente, frequentemente atravs doencarceramento ou da deportao. A raa, deste ponto de vista, funciona a umtempo como ideologia, dispositivo de segurana e tecnologia de governo dasmultiplicidades. o meio mais eficaz para abolir o direito, no prprio acto atravsdo qual se pretende erigir a lei.

    Ser de admirar que, nestas condies, o nome de Fanon continue a escrever-se

    no presente e no futuro? Ser de admirar, ainda, que esta nova escrita do nome deFanon comece, mais uma vez, pela crtica da violncia e que termine com a davida, enquanto provao de si e provao do mundo?36 Tomar a seu cargo osofrimento do homem que luta, descrever esse sofrimento e compreend-lo demaneira que desse saber e dessa luta brote um homem novo, tal foi, com efeito, oprojecto de Fanon. Para o realizar, tentou dizer, incessantemente, o tempo emque a experincia da vida se desenrolava, a sua diferena e a sua novidade. A suaconscincia histrica foi particularmente sensvel sua prpria inscrio notempo o tempo colonial, sem dvida, o tempo das guerras e dos sofrimentos

    que elas geram no plano psquico, mas, mais ainda, o tempo do mundo. Opreto era a figura epifnica desse tempo do mundo, uma vez que, no preto, aprpria ideia de raa encontrava o seu lugar de esgotamento.

    Cidade do Cabo (frica do Sul), 2 de Setembro de 2011.

    36 Achille Mbembe, Necropolitics, Public Culture, vol. 15, n 1, 2003, p. 11-40 ; et Sortir de la grandenuit, La Dcouverte, Paris, 2010. Ler igualmente : Paul Gilroy, Fanon and Amry. Theory, torture andthe prospect of humanism, Theory, Culture & Society, vol. 27, n 7-8, 2010, p. 16-32 ; Nelson

    Maldonado-Torres, Against War. Views From the Underside of Modernity,Duke University Press, Durham,2009.