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    17 Encontro Nacional da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes PlsticasPanorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 Florianpolis

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    Formas da Apresentao: documentao, prticas e processos artsticos.

    Hlio Fervenza

    Artista plstico, PPG em Artes Visuais do IA-UFRGS / CNPq.

    Resumo: O texto trata das relaes entre documentao e processos artsticos na artecontempornea, a partir de uma prtica pessoal e de obras anteriores como, porexemplo, oMerzbau de Kurt Schwitters.Palavras-chaves: formas da apresentao; documentao; processos artsticos.

    Title: Forms of Presentation: documentation, practices and artistic processes.Abstract: The text deals with the relationships between documentation and the artisticprocesses in contemporary art, from the view point of a personal practice and fromprevious works, such as exemplified by the Merzbau of Kurt Schwitters.Keywords: forms of presentation; documentation; artistic processes.

    Como tudo isso comeou? Para mim, e do que me lembro, pode ter

    comeado nas idas e vindas de um lado para o outro da fronteira diante da qual

    vivia e que separava as cidades de SantAna do Livramento, no Brasil, e

    Rivera, no Uruguai. Na adolescncia, atravessava uma vez por semana para o

    outro lado, a fim de estudar pintura na Escuela Taller de Artes Plsticas.

    Daquilo que me lembro, talvez tenha comeado mesmo quando de outras

    vezes, na mesma poca, atravessava a fronteira para comprar publicaes emfascculos nas livrarias existentes. Reunidos e colecionados pacientemente um

    a um, iriam posteriormente integrar volumes encadernados sobre a histria da

    arte. Data dessa poca, o contato e a descoberta atravs de fotografias

    reproduzidas e impressas das obras de artistas como Paul Klee, Kandinsky,

    Mondrian, Mir ou Torres Garcia, e com as quais me confrontei face a face em

    museus, uns dez anos depois. Tratava-se ento naquele momento, do comeo

    de uma relao com as imagens e documentos de produes artsticas, e quechegaram at mim desde a minha formao, sob a forma da reproduo

    impressa. Mas tambm junto com eles uma relao com minha prpria

    produo, com o campo artstico, com sua histria, sua memria, seu

    imaginrio. Nesse sentido, no falarei neste texto de nenhum trabalho meu em

    particular, mas antes, de algo mais difuso, uma espcie de meio (um meiode

    memria?) que colaborou com a possibilidade desses trabalhos e linguagens

    existirem. Por outro lado, minha atual prtica artstica inclui instalaes e

    propostas que se alteram a cada apresentao ou que so efmeras. Isto gera

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    a necessidade de documentar atravs de imagens ou textos seus diferentes

    estados ou montagens (documentao e registros sobre minhas instalaes e

    propostas podem ser encontrados no site www.heliofervenza.net). Todos esses

    aspectos me levaram a investigar a relao entre esses registros, as prticas e

    os processos de criao artstica.

    Mas ser que essa relao, de que falo acima, com as imagens, algo

    que aconteceria somente comigo? No contexto brasileiro bastante improvvel

    (e mesmo fora dele, como veremos mais adiante). Essa situao muito

    possivelmente a regra, e no uma exceo. Assim, grande parte dos

    estudantes de arte, e possivelmente grande parte dos artistas, tm uma relao

    com a histria da arte que se estabeleceu atravs da imagem impressa,

    sobretudo no que diz respeito a perodos anteriores. Entretanto, ao longo do

    sculo 20, e tornando-se particularmente recorrente a partir dos anos de 1960,

    ocorreu um fenmeno importante em relao ao registro e sua publicao e

    que no se restringe ao Brasil, pois encontrado internacionalmente: produes

    consideradas importantes no perodo s podem ser acessadas atualmente

    atravs de seus registros, de sua publicao e circulao.

    Para mim, e do que me lembro, foi mais tarde e depois de ter sado de

    SantAna do Livramento que essa relao com as imagens e documentos de

    produes artsticas tornou-se perceptvel e se acentuou. Foi quando, anos

    depois, percorri livros e imagens de trabalhos que me fascinaram, mas que de

    uma forma inevitvel e por diversos motivos j no existiam mais. A sensao

    de que essas produes j no existiam, de que elas no poderiam ser

    repetidas ou reconstrudas e de que eu no poderia encontr-las em museus,

    ou mais diretamente experienci-las, no foi o que surgiu primeiro, nem o mais

    decisivo em sua apreciao. Quando eu as vi, e depois voltei a v-las e a rev-las, algo estava ocorrendo, algo nelas fazia sinal. Apesar desses trabalhos no

    existirem mais e de que no poderiam ser substitudos por essas imagens,

    havia uma grande intensidade transmitida no conjunto dos registros que

    restaram, quer dizer, nas fotografias, textos e depoimentos que apresentavam

    essas produes. Esses registros funcionavam como uma alavanca, um

    trampolim, uma mola para a imaginao: impulsionar a experincia, fazer viver

    algo do que ali ocorria, em um outro momento e de uma outra forma. Essestrabalhos tambm possuam outras caractersticas diferentes das produes

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    artsticas mais tradicionais. Eles incorporavam, por exemplo, a participao, a

    relao, a transformao, a impermanncia, o acaso, o cotidiano, a

    temporalidade, e possuam freqentemente uma existncia material efmera

    ou circunstancial. A nfase se encontrava na realizao de uma experincia ou

    situao e no de um posicionar-se diante de algo j dado, mesmo se aberto a

    interpretaes. A liberdade do que ali fora em outros momentos vivenciado

    poderia encontrar uma abertura no presente, poderia encontrar um olhar do

    presente sobre ela: algum produziu intensidade, isso foi possvel, por que no

    aqui? Por que no agora?

    No campo das artes plsticas encontramos uma srie de procedimentos

    que visam reunir e constituir algum tipo de informao ou conhecimento sobre

    uma obra ou sobre um artista. Este conjunto de conhecimentos e tcnicas pode

    ser inicialmente identificado como sendo a documentao sobreuma produo

    artstica. Documentos podem ser usados tanto para atestar a autenticidade de

    uma obra como tambm para nos auxiliar a compreender como ela foi

    construda ou apresentada, quais foram os processos que entraram em sua

    realizao e concepo, como ela foi pensada por seu autor, e tambm como

    foi sua recepo. Documentos podem ser utilizados em discursos

    interpretativos, que podem prescrever ou legitimar, comentar, nomear, analisar,

    comparar... No uso recorrente dos tipos de documentos que mencionamos,

    existe uma diferena bem delineada entre a produo artstica, considerada

    geralmente como um tipo de objeto, e como um objeto artstico relativamente

    autnomo, e a documentao, que com ele no se confunde e, que no na

    maior parte das vezes, considerada como artstica.

    Por outro lado, ao longo do sculo 20, e especialmente em parte

    significativa da produo artstica das ltimas dcadas, a separao entre oque seja a obra e outros elementos relacionados como a documentao ou o

    seu registro no necessariamente ou nitidamente delimitada. Assim,

    podemos observar uma srie de produes artsticas que em sua realizao

    iro incorporar, problematizar, questionar e misturar categorias a um certo

    momento consideradas estanques, no campo da produo, exibio e

    apresentao das obras de arte, no de seu registro e documentao. Ns

    veremos seguidamente, uma alterao na natureza artstica dessas produes,

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    no sentido em que elas ampliam a noo mesma do que seja arte, do que seja

    seu registro e seu modo de apresentao.

    Por conseguinte, podemos identificar produes que iro alterar sua

    relao com os lugares, tanto fsicos quanto tericos, aos quais

    tradicionalmente so destinados os objetos artsticos e os documentos. Esses

    lugares tero suas fronteiras redesenhadas e sua importncia reavaliada a

    partir de outros pontos de vista e correspondendo a outras necessidades. Por

    vezes, essas fronteiras sero flutuantes, e seus limites indeterminados. Dessa

    forma, constatamos que, para alm de certa inter-relao encontrada em

    muitas produes artsticas entre os lugares de exposio, os arquivos e as

    bibliotecas, seria mais precisamente nos deslocamentos e nas alteraes das

    noes relativas a esses lugares, e no deslocamento do uso e das concepes

    relativas a essas produes, que atuam e se situam com maior preciso

    nossas interrogaes.

    Assim, a partir dos anos de 1960 e 70, vimos a proliferao e o

    desenvolvimento progressivo do uso de registros fotogrficos ou flmicos de

    aes e intervenes efmeras, constituindo uma documentao, fictcia ou

    no, desses trabalhos. O pesquisador Philippe Dubois, ao analisar esse tipo de

    produo, dir que quase s chegaram a ns pela memria fotogrficaque faz

    as imagens-traos circularem e multiplicarem-se. Entretanto, ocorrer tambm

    uma alterao e um deslocamento nos usos desses registros e dessa memria

    fotogrfica: De fato, depressa ficou claro que a fotografia, longe de se limitar a

    ser apenas o instrumento de uma reproduo documentria do trabalho, que

    intervinha depois, era de imediato pensamento, integrada prpria concepo

    do projeto, a ponto de mais de uma realizao ambiental ter sido finalmente

    elaborada em funo decertas caractersticas do procedimento fotogrfico....1

    Nas mesmas dcadas mencionadas, vimos o desenvolvimento dos

    museus pessoais e dos arquivos2 nas prticas artsticas. Robert Filliou, por

    exemplo, fez diferentes verses de sua Galeria legtima, um museu pessoal e

    porttil que comeou dentro de seu prprio chapu. Temos ainda, os museus

    pessoais de Herbert Distel, Paul-Armand Gette ou Christian Boltanski, ou ainda

    as diferentes sees do Museu de Arte Moderna - Departamento das guiasde

    Marcel Broodthaers. Nesse perodo vimos tambm o uso de diagramas3

    ,

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    instrues e enunciados, os quais funcionam como uma espcie de partitura,

    permitindo sucessivas interpretaes e realizaes das propostas artsticas.

    A problemtica entre a produo artstica e sua documentao,

    mencionada mais no incio do texto, poderia ser enunciada tambm nos termos

    da diferena existente entre a experincia direta, corpo-a-corpo com certa

    produo artstica e uma imagem dessa mesma produo. Pessoalmente,

    lembro do artista Daniel Buren ao apresentar seu trabalho durante um dos

    encontros Interface, realizado no anfiteatro Bachelard, na Sorbonne, em

    1993. No meio de sua fala e aps j ter mostrado uma longa e fascinante srie

    de slidesde trabalhos realizados, repentinamente vemos surgir diante de ns a

    foto de uma paisagem com rvores. Essa imagem interrompia a seqncia do

    que vinha sendo mostrado at ento e criava uma descontinuidade, certa

    interrupo no sentido da apresentao. Aps um silncio de expectativa,

    Buren disse: Isto para lembrar que o que vocs esto vendo so imagens, e

    no o trabalho.

    A produo artstica de Buren se caracteriza por uma prtica do que ele

    denomina como In situ, e a preocupao com o lugar onde ocorre a

    apresentao do trabalho artstico central em sua produo realizada a partir

    de 1965. compreensvel, ento, que Buren quisesse enfatizar a experincia

    no interior de uma de suas intervenes, pois o olhar e o deslocar-se

    corporalmente em situao dentro das especificidades arquitetnicas,

    perceptivas e simblicas que a se encontram seriam por assim dizer, nicas e

    insubstituveis. A imagem, para Buren, no poderia dar conta ento, da

    especificidade dessa experincia. Entretanto, imagens so feitas, assim como

    textos e apresentaes de sua parte, como naquele dia no anfiteatro

    Bachelard. Mas, por que ento fazer imagens de seu trabalho? Por queapresent-las ou public-las? Que efeitos produzem a apresentao e as

    imagens desses trabalhos?

    Recolho este trecho no livro Artifcios de exposio, de Ren Vinon: O

    princpio de base o seguinte: uma obra no visvel por ela mesma como

    pela fora natural das coisas (que, como as coisas que se fazem sozinhas,

    possuem um ar de magia), e ela no , sobretudo, jamais inteiramente visvel

    no sentido em que ns no saberamos pretender tudo (fazer) ver ou perceberde uma obra, qualquer que seja a transparncia de seu modo de

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    apresentao4. Seria importante sublinhar que a apresentao no se

    restringe aos espaos de exposio e suas caractersticas fsicas:

    necessrio esclarecer a esse respeito que, se toda exposio implica uma

    apresentao (como ao artificial), toda apresentao no uma exposio

    no sentido moderno do termo.5 Assim, exposio e apresentao possuem

    diferenas em seus atributos e abrangncias semnticas. A apresentao

    sendo uma noo mais ampla que a exposio, podendo, dessa forma,

    englob-la.

    No contexto desta pesquisa, o espao de apresentao aquele que

    surge no entrecruzamento das diferentes operaes, gestos e sistemas de

    indicao. Salientamos que nos modos de agir da arte contempornea, a

    apresentao de uma produo como produo artstica no necessita mais

    ficar restrita a sua exposio num lugar fsico determinado como um museu ou

    galeria. Uma palestra, por exemplo, pode constituir-se numa apresentao e

    agregar valor simblico ou agir sobre a visualidade. Embora possa no ser

    designado explicitamente como um ato artstico, ou no querer s-lo, uma

    palestra ou uma publicao pode agir sobre o sentido e sobre a concepo

    artstica de uma produo, ser um desdobramento de fato anterior, mesmo que

    o ocorrido no esteja mais visvel ou acessvel, a no ser talvez por sua

    documentao.

    Faamos uma viagem no tempo. Lembremos que Kurt Schwitters cria,

    entre 1918 e 1919, a palavra Merz, uma noo designando seu agir e seu

    pensar artstico, um mtodo, um programa de criao em aberto. A palavra

    Merz provinha da segunda slaba de Kommerz (comrcio). Recortada do

    anncio publicitrio Kommerz Und Privatbank, apareceu pela primeira vez no

    trabalho de Schwitters colada no quadro intitulado Merzbild (quadroMerz).6 Apartir da, todas suas atividades sero relacionadas com essa noo:

    construoMerz, quadroMerz, teatroMerz, poesiaMerz... Essa palavra ser

    utilizada at mesmo como sua assinatura em textos e publicaes: Schwitters

    torna-se Merz.

    Ao longo de sua vida, o artista realizou quatro Merzbau

    (construoMerz). A primeira e a mais importante foi a Merzbaude Hanover,

    realizada entre 1923 e 1937. Podemos consider-la como uma das maisinstigantes produes artsticas do sculo 20. Construda no interior mesmo da

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    casa onde morava e onde possua seu ateli, a Merzbauera uma obra que

    integrava o ambiente no qual se encontrava, e que se misturava com ele. O

    filho de Kurt Schwitters, Ernst, descreveu-a como uma gigantesca construo

    abstrata, alta de trs andares e ocupando a superfcie de quatro peas 7. Era

    uma espcie de enorme colagem ou assemblagemambiental, feita de resduos

    e de todo tipo de material encontrado e reaproveitado.

    O artista Jean Arp conta que podiam ser vistas fendas criadas

    artificialmente atravs dos andares, por tneis em espiral religando o poro ao

    teto. A influncia do estilo do Rei Sol no era evidentemente preponderante em

    sua casa. Por esses vazios, reentrncias e cavidades cresciam as

    monumentais colunas Merz, colunas artisticamente levantadas por meio de

    tbuas, ferragens enferrujadas, espelhos, rodas, retratos de famlia, molas,

    jornais, tijolos, cimento, cromos, gesso, cola, muita cola, muita cola.8

    Segundo Dietmar Elger, no texto A obra de uma vida: as Merzbau,9

    espelhos teriam sido integrados a certo momento na longa e progressiva

    elaborao do Merzbau, o que, aliado a uma varivel e abundante iluminao,

    provocaria uma percepo equivocada em alguns visitantes de que o piso entre

    os andares estaria perfurado para deixar passar a construo. Entretanto, a

    Merzbauno estava de fato limitada unicamente ao ateli, mas se expandido

    para outras peas, conforme o prprio testemunho de Schwitters: A minha

    Merzbauno se encontrava num nico quarto, mas praticamente em toda a

    casa.[...] Vrias partes foram dispostas na pea vizinha, sobre a sacada, nas

    duas peas do poro, no segundo andar, sobre o cho.10

    A Merzbau nunca foi concluda, pois permanecia, por princpio,

    inacabada. Era um work in progress, estava sempre em mudana,

    transformao. Schwitters comparava o crescimento de sua obra a umametrpole, onde h sempre uma interdependncia, uma inter-relao no

    conjunto. Camadas de objetos, materiais, formas e significaes eram

    sobrepostas a outras camadas ao longo dos anos e em consonncia com o

    desenvolvimento artstico, psquico, fsico e intelectual de Schwitters. As

    alteraes na obra estavam intimamente ligadas s alteraes por que passava

    Schwitters. A vida da Merzbau estava diretamente ligada vida de Schwitters,

    e vice-versa. Segundo Arp, ele cotidianamente trabalhava ali, mas era aonde

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    tambm gostava de descansar, guardar seus porquinhos da ndia e, por vezes,

    lavar os ps.

    O tambm artista e amigo de Schwitters, Friedel Vordemberge-

    Gildewart, tendo convivido durante dez anos com ele em Hanover,

    complementa dessa forma uma possvel relao com a Merzbau: Obra no

    transportvel, ela no podia ento ser visitada ou mais exatamente, vivida

    se no no lugar onde se encontrava. As fotografias comunicam apenas uma

    impresso aproximativa, e mesmo um filme provavelmente no conseguiria.11

    Entretanto a Merzbau, essa que uma das mais importantes obras do

    sculo 20, citada como uma referncia inicial das instalaes e ambientes

    tendo suas imagens reproduzidas em livros to diferentes como Arte moderna,

    de Giulio Carlo Argan, No interior do cubo branco: a ideologia do espao da

    arte, de Brian ODoherty ou Installation art a critical history, de Claire Bishop

    , como se sabe, no existe mais. A Merzbau foi destruda em 1943, durante a

    guerra, em conseqncia de um bombardeio, sendo que Schwitters j havia

    deixado a Alemanha em 1937 fugindo dos nazistas. Grande parte dos estudos

    posteriores foi feita por historiadores, crticos e artistas que, obviamente, nunca

    estiveram na presena dessa obra. Grande parte do que se conhece dela

    chegou at ns atravs de fotografias, depoimentos e textos de Schwitters, de

    membros da famlia, de visitantes e de amigos.

    Brian ODoherty, no livro j referido, faz uma abordagem da Merzbau

    salientando a dificuldade que isso apresenta, tendo em vista que somos

    transportados a um espao que s podemos ocupar por meio de relatos de

    testemunhas, percorrendo com os olhos fotografias que mais tantalizam do que

    confirmam a experincia....12 Entretanto, essas dificuldades no o impedem de

    discorrer sobre a Merzbau, de atribuir-lhe qualidades e conceitos. Ele falatambm da Merzbaucomo sendo uma galeria, ou um lugar onde as pessoas

    simplesmente olham para ela, ao contrrio de se sentirem dentro dela,13 o

    que no corresponde com os depoimentos de Jean Arp ou de Vordemberge-

    Gildewart, como vimos anteriormente. ODoherty retirou das imagens algumas

    de suas concluses?

    Para o autor, ter de lidar com fotografias de obras que j no esto mais

    disponveis, um problema que retorna, da mesma maneira que retornamtambm suas interpretaes (outro problema): Os documentos e as fotografias

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    desafiam a imaginao na histria ao apresentar-lhe uma arte j morta. O

    processo histrico tanto tolhido quanto estimulado com a remoo do original,

    que se torna cada vez mais fictcio medida que suas alm-vidas se tornam

    mais concretas.14 Ento, o contato material com o original forneceria uma

    abordagem direta, sem necessidade de interpretaes? Uma abordagem

    correta dependeria unicamente do original? E, afinal, que original esse? No

    seria possvel produzir narrativas diferentes a partir dos mesmos dados?

    Estaramos para sempre isentos da fbula, do era uma vez...?

    Mas supondo que a Merzbau existisse ainda como construo, isso

    garantiria o qu exatamente? Alm do mais, o que era artsticona Merzbau? A

    construo? O processo de Schwitters? Todas as variantes relacionadas ao

    cotidiano dos que ali moravam e de suas visitas? Ou uma inter-relao disso

    tudo? Schwitters, que estava conectado com ela num processo constante, j

    teria morrido. Se as relaes cotidianas que ali se desenvolviam eram partes

    integrantes da dimenso artstica, elas tambm j no existiriam mais. Onde

    encontraramos a dimenso artstica?

    Leio no segundo pargrafo do texto Bases fundamentais para uma

    definio do Parangol, escrito por Helio Oiticica, em novembro de 1964: A

    palavra [Parangol] aqui assume o mesmo carter que, para Schwitters, por

    exemplo, assumiu a de Merze seus derivados (Merz-bauetc.), que para ele

    eram a definio de uma posio experimental especfica, fundamental

    compreenso teortica e vivencial de toda a sua obra.15 Ao longo do texto,

    Oiticica ir se referir idia de arte ambiental, participao ambiental ou

    ainda totalidades ambientais. claro que Oiticica relaciona Parangol e

    Merzbauno que diz respeito ao uso de uma noo que define um agir e um

    devir num processo experimental. No so, sobretudo, relaes formais. Mas,em ambos os casos, a partir de produes especficas, esse processo

    experimental adquire uma dimenso ambiental: a de Schwitters com Merze na

    seqncia a Merzbau, e a de Oiticica com Parangol, e depois den ou seu

    apartamento em Nova Iorque, o qual transformou em recinto-obra. claro que

    Oiticica tambm nunca esteve na Merzbau, nunca a viu ou a vivenciou

    pessoalmente. Mas a lembrana da Merzbau aparece. Assim como ela

    reaparece mais adiante no texto A obra, seu carter objetal, ocomportamento,16 relacionando esse trabalho com o que ele estava fazendo,

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    com o que ele propunha e ao mesmo tempo estabelecendo diferenas ou

    oposies. Para que Oiticica pudesse lembrar(ou imaginar) naquele momento

    a Merzbau, ou perceber problemas em comum, para dar inteligibilidade ao que

    estava relacionando e discutindo, e para que pudesse operar dentro de um

    processo de criao, ele teve de encontrar-se com as concepes implicadas

    nesse trabalho, tatear sua espessura temporal, incorpor-las a partir de seu

    presente de alguma forma. Ele relaciona tambm algumas de suas atribuies

    formais: processos de colagem, os ready-mades, de Duchamp, e a arquitetura,

    de Gaud. Mas seria de fato e de todo improvvel que Oiticica tenha visto

    imagens da Merzbau?

    Com o passar dos anos, a importncia da Merzbau, de Schwitters,

    cresceu acompanhada de uma proporcional publicao e circulao de suas

    reprodues fotogrficas e dos diferentes textos e narrativas que as

    acompanharam ou que surgiram tempos depois. Hoje temos uma idia, ou um

    olhar sobre essa obra proveniente desses meios. Pessoalmente, foram os

    textos de Oiticica, como os citados anteriormente, que num primeiro momento

    me chamaram ateno sobre a Merzbau, sobre seus registros e sobre as

    problemticas envolvidas. Tudo isso s voltas com processos de criao. Mas

    estamos tambm, por que no, diante de certo fenmeno que alimenta nosso

    imaginrio, e que vlido e parece se multiplicar para outras produes

    (respeitados claro os diferentes processos), como as fotografias da

    inaugurao na casa-ateli de Marcel Broodthaers, de seu Museu de Arte

    Modernaou os ambientes An apple shrine, Wordsou Yard, de Allan Kaprow.

    Esse fenmeno estaria inter-relacionado, ento, com a reprodutibilidade, com a

    publicao, com a circulao de imagens e documentos.

    Como tarefa futura, talvez, faltar-nos-ia pensar as caractersticas desseimaginrio na atualidade e seus diferentes usos. Afinal de contas, somos ns

    que viajamos no tempo ou o tempo que viaja atravs de ns?

    NOTAS

    1 Dubois, Philippe. O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994. p.285.2 Ver por exemplo: Merewether, Charles (org.). The Archive, Col. Documents of Contemporary Art.Londres/Cambridge MA: Whitechapel / The MIT Press, 2006.3 Ver por exemplo os Wall Drawings de Sol LeWitt: 50 Espces dEspaces. Paris: Centre GeorgesPompidou, 1998. p.62.4

    Vinon, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999. p.31.5 Vinon, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999. p.23.

  • 8/9/2019 Acervo PERFORMARE_ANPAP_Formas da Apresentao - documentao, prticas e processos artsticos por Helio Fer

    11/11

    17 Encontro Nacional da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes PlsticasPanorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 Florianpolis

    1744

    6 Dachy, Marc. Introduction. In: Schwitters, Kurt. MERZ crits choisis et presents par Marc Dachy.Paris: ditions Grard Lebovici, 1990. p.8.7 Schwitters, Ernst. One never knows. In: Schwitters, Kurt. MERZ crits choisis et presents par MarcDachy. Paris : ditions Grard Lebovici, 1990. p.351.8 Arp, Jean. Jours Effeuills pomes, essays, souvenirs 1920-1965. Paris : Gallimard, 1985. p.334.9 Elger, Dietmar. Loeuvre dune vie. In: Kurt Schwitters. Paris: ditions du Centre Georges Pompidou,Collection Classiques du XXe sicle, 1994. p.140-151.10

    Kurt Schwitters. Paris: ditions du Centre Georges Pompidou, Collection Classiques du XXe sicle,1994, p. 142.11 Vordemberge-Gildewart, Friedel. Kurt Schwitters. In : MERZ crits choisis et presents par MarcDachy. Paris: ditions Grard Lebovici, 1990. p.349.12 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.41.13 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.43.14 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.77.15 Oiticica, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.65.16 Oiticica, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.118.

    REFERNCIAS

    DUBOIS, Philippe. O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.ELGER, Dietmar. Loeuvre dune vie. In: Kurt Schwitters. Paris: ditions du CentreGeorges Pompidou, Collection Classiques du XXe sicle, 1994.SCHWITTERS, Kurt. MERZ crits choisis et presents par Marc Dachy. Paris:ditions Grard Lebovici, 1990.ODOHERTY, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. SoPaulo: Martins Fontes, 2002.OITICICA, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.VINON, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999.

    O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Brasil.

    Hlio Fervenza - Artista plstico. Doutorado em Artes Plsticas na Universit de

    Paris I, Panthon-Sorbonne. Professor no PPG em Artes Visuais do IA-UFRGS

    e pesquisador do CNPq. Desenvolve atividades junto ao programa FPES -

    Perdidos no Espao. Autor do livro O + deserto. Coordena o grupo de

    pesquisa Veculos da Arte. membro da ANPAP.