Hélio FERVENZA - Considerações Da Arte Que Não Se Parece Com a Arte - Revista Da UERJ
Acervo PERFORMARE_ANPAP_Formas da Apresentação - documentação, práticas e processos artísticos...
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8/9/2019 Acervo PERFORMARE_ANPAP_Formas da Apresentao - documentao, prticas e processos artsticos por Helio Fer
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17 Encontro Nacional da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes PlsticasPanorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 Florianpolis
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Formas da Apresentao: documentao, prticas e processos artsticos.
Hlio Fervenza
Artista plstico, PPG em Artes Visuais do IA-UFRGS / CNPq.
Resumo: O texto trata das relaes entre documentao e processos artsticos na artecontempornea, a partir de uma prtica pessoal e de obras anteriores como, porexemplo, oMerzbau de Kurt Schwitters.Palavras-chaves: formas da apresentao; documentao; processos artsticos.
Title: Forms of Presentation: documentation, practices and artistic processes.Abstract: The text deals with the relationships between documentation and the artisticprocesses in contemporary art, from the view point of a personal practice and fromprevious works, such as exemplified by the Merzbau of Kurt Schwitters.Keywords: forms of presentation; documentation; artistic processes.
Como tudo isso comeou? Para mim, e do que me lembro, pode ter
comeado nas idas e vindas de um lado para o outro da fronteira diante da qual
vivia e que separava as cidades de SantAna do Livramento, no Brasil, e
Rivera, no Uruguai. Na adolescncia, atravessava uma vez por semana para o
outro lado, a fim de estudar pintura na Escuela Taller de Artes Plsticas.
Daquilo que me lembro, talvez tenha comeado mesmo quando de outras
vezes, na mesma poca, atravessava a fronteira para comprar publicaes emfascculos nas livrarias existentes. Reunidos e colecionados pacientemente um
a um, iriam posteriormente integrar volumes encadernados sobre a histria da
arte. Data dessa poca, o contato e a descoberta atravs de fotografias
reproduzidas e impressas das obras de artistas como Paul Klee, Kandinsky,
Mondrian, Mir ou Torres Garcia, e com as quais me confrontei face a face em
museus, uns dez anos depois. Tratava-se ento naquele momento, do comeo
de uma relao com as imagens e documentos de produes artsticas, e quechegaram at mim desde a minha formao, sob a forma da reproduo
impressa. Mas tambm junto com eles uma relao com minha prpria
produo, com o campo artstico, com sua histria, sua memria, seu
imaginrio. Nesse sentido, no falarei neste texto de nenhum trabalho meu em
particular, mas antes, de algo mais difuso, uma espcie de meio (um meiode
memria?) que colaborou com a possibilidade desses trabalhos e linguagens
existirem. Por outro lado, minha atual prtica artstica inclui instalaes e
propostas que se alteram a cada apresentao ou que so efmeras. Isto gera
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a necessidade de documentar atravs de imagens ou textos seus diferentes
estados ou montagens (documentao e registros sobre minhas instalaes e
propostas podem ser encontrados no site www.heliofervenza.net). Todos esses
aspectos me levaram a investigar a relao entre esses registros, as prticas e
os processos de criao artstica.
Mas ser que essa relao, de que falo acima, com as imagens, algo
que aconteceria somente comigo? No contexto brasileiro bastante improvvel
(e mesmo fora dele, como veremos mais adiante). Essa situao muito
possivelmente a regra, e no uma exceo. Assim, grande parte dos
estudantes de arte, e possivelmente grande parte dos artistas, tm uma relao
com a histria da arte que se estabeleceu atravs da imagem impressa,
sobretudo no que diz respeito a perodos anteriores. Entretanto, ao longo do
sculo 20, e tornando-se particularmente recorrente a partir dos anos de 1960,
ocorreu um fenmeno importante em relao ao registro e sua publicao e
que no se restringe ao Brasil, pois encontrado internacionalmente: produes
consideradas importantes no perodo s podem ser acessadas atualmente
atravs de seus registros, de sua publicao e circulao.
Para mim, e do que me lembro, foi mais tarde e depois de ter sado de
SantAna do Livramento que essa relao com as imagens e documentos de
produes artsticas tornou-se perceptvel e se acentuou. Foi quando, anos
depois, percorri livros e imagens de trabalhos que me fascinaram, mas que de
uma forma inevitvel e por diversos motivos j no existiam mais. A sensao
de que essas produes j no existiam, de que elas no poderiam ser
repetidas ou reconstrudas e de que eu no poderia encontr-las em museus,
ou mais diretamente experienci-las, no foi o que surgiu primeiro, nem o mais
decisivo em sua apreciao. Quando eu as vi, e depois voltei a v-las e a rev-las, algo estava ocorrendo, algo nelas fazia sinal. Apesar desses trabalhos no
existirem mais e de que no poderiam ser substitudos por essas imagens,
havia uma grande intensidade transmitida no conjunto dos registros que
restaram, quer dizer, nas fotografias, textos e depoimentos que apresentavam
essas produes. Esses registros funcionavam como uma alavanca, um
trampolim, uma mola para a imaginao: impulsionar a experincia, fazer viver
algo do que ali ocorria, em um outro momento e de uma outra forma. Essestrabalhos tambm possuam outras caractersticas diferentes das produes
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artsticas mais tradicionais. Eles incorporavam, por exemplo, a participao, a
relao, a transformao, a impermanncia, o acaso, o cotidiano, a
temporalidade, e possuam freqentemente uma existncia material efmera
ou circunstancial. A nfase se encontrava na realizao de uma experincia ou
situao e no de um posicionar-se diante de algo j dado, mesmo se aberto a
interpretaes. A liberdade do que ali fora em outros momentos vivenciado
poderia encontrar uma abertura no presente, poderia encontrar um olhar do
presente sobre ela: algum produziu intensidade, isso foi possvel, por que no
aqui? Por que no agora?
No campo das artes plsticas encontramos uma srie de procedimentos
que visam reunir e constituir algum tipo de informao ou conhecimento sobre
uma obra ou sobre um artista. Este conjunto de conhecimentos e tcnicas pode
ser inicialmente identificado como sendo a documentao sobreuma produo
artstica. Documentos podem ser usados tanto para atestar a autenticidade de
uma obra como tambm para nos auxiliar a compreender como ela foi
construda ou apresentada, quais foram os processos que entraram em sua
realizao e concepo, como ela foi pensada por seu autor, e tambm como
foi sua recepo. Documentos podem ser utilizados em discursos
interpretativos, que podem prescrever ou legitimar, comentar, nomear, analisar,
comparar... No uso recorrente dos tipos de documentos que mencionamos,
existe uma diferena bem delineada entre a produo artstica, considerada
geralmente como um tipo de objeto, e como um objeto artstico relativamente
autnomo, e a documentao, que com ele no se confunde e, que no na
maior parte das vezes, considerada como artstica.
Por outro lado, ao longo do sculo 20, e especialmente em parte
significativa da produo artstica das ltimas dcadas, a separao entre oque seja a obra e outros elementos relacionados como a documentao ou o
seu registro no necessariamente ou nitidamente delimitada. Assim,
podemos observar uma srie de produes artsticas que em sua realizao
iro incorporar, problematizar, questionar e misturar categorias a um certo
momento consideradas estanques, no campo da produo, exibio e
apresentao das obras de arte, no de seu registro e documentao. Ns
veremos seguidamente, uma alterao na natureza artstica dessas produes,
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no sentido em que elas ampliam a noo mesma do que seja arte, do que seja
seu registro e seu modo de apresentao.
Por conseguinte, podemos identificar produes que iro alterar sua
relao com os lugares, tanto fsicos quanto tericos, aos quais
tradicionalmente so destinados os objetos artsticos e os documentos. Esses
lugares tero suas fronteiras redesenhadas e sua importncia reavaliada a
partir de outros pontos de vista e correspondendo a outras necessidades. Por
vezes, essas fronteiras sero flutuantes, e seus limites indeterminados. Dessa
forma, constatamos que, para alm de certa inter-relao encontrada em
muitas produes artsticas entre os lugares de exposio, os arquivos e as
bibliotecas, seria mais precisamente nos deslocamentos e nas alteraes das
noes relativas a esses lugares, e no deslocamento do uso e das concepes
relativas a essas produes, que atuam e se situam com maior preciso
nossas interrogaes.
Assim, a partir dos anos de 1960 e 70, vimos a proliferao e o
desenvolvimento progressivo do uso de registros fotogrficos ou flmicos de
aes e intervenes efmeras, constituindo uma documentao, fictcia ou
no, desses trabalhos. O pesquisador Philippe Dubois, ao analisar esse tipo de
produo, dir que quase s chegaram a ns pela memria fotogrficaque faz
as imagens-traos circularem e multiplicarem-se. Entretanto, ocorrer tambm
uma alterao e um deslocamento nos usos desses registros e dessa memria
fotogrfica: De fato, depressa ficou claro que a fotografia, longe de se limitar a
ser apenas o instrumento de uma reproduo documentria do trabalho, que
intervinha depois, era de imediato pensamento, integrada prpria concepo
do projeto, a ponto de mais de uma realizao ambiental ter sido finalmente
elaborada em funo decertas caractersticas do procedimento fotogrfico....1
Nas mesmas dcadas mencionadas, vimos o desenvolvimento dos
museus pessoais e dos arquivos2 nas prticas artsticas. Robert Filliou, por
exemplo, fez diferentes verses de sua Galeria legtima, um museu pessoal e
porttil que comeou dentro de seu prprio chapu. Temos ainda, os museus
pessoais de Herbert Distel, Paul-Armand Gette ou Christian Boltanski, ou ainda
as diferentes sees do Museu de Arte Moderna - Departamento das guiasde
Marcel Broodthaers. Nesse perodo vimos tambm o uso de diagramas3
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instrues e enunciados, os quais funcionam como uma espcie de partitura,
permitindo sucessivas interpretaes e realizaes das propostas artsticas.
A problemtica entre a produo artstica e sua documentao,
mencionada mais no incio do texto, poderia ser enunciada tambm nos termos
da diferena existente entre a experincia direta, corpo-a-corpo com certa
produo artstica e uma imagem dessa mesma produo. Pessoalmente,
lembro do artista Daniel Buren ao apresentar seu trabalho durante um dos
encontros Interface, realizado no anfiteatro Bachelard, na Sorbonne, em
1993. No meio de sua fala e aps j ter mostrado uma longa e fascinante srie
de slidesde trabalhos realizados, repentinamente vemos surgir diante de ns a
foto de uma paisagem com rvores. Essa imagem interrompia a seqncia do
que vinha sendo mostrado at ento e criava uma descontinuidade, certa
interrupo no sentido da apresentao. Aps um silncio de expectativa,
Buren disse: Isto para lembrar que o que vocs esto vendo so imagens, e
no o trabalho.
A produo artstica de Buren se caracteriza por uma prtica do que ele
denomina como In situ, e a preocupao com o lugar onde ocorre a
apresentao do trabalho artstico central em sua produo realizada a partir
de 1965. compreensvel, ento, que Buren quisesse enfatizar a experincia
no interior de uma de suas intervenes, pois o olhar e o deslocar-se
corporalmente em situao dentro das especificidades arquitetnicas,
perceptivas e simblicas que a se encontram seriam por assim dizer, nicas e
insubstituveis. A imagem, para Buren, no poderia dar conta ento, da
especificidade dessa experincia. Entretanto, imagens so feitas, assim como
textos e apresentaes de sua parte, como naquele dia no anfiteatro
Bachelard. Mas, por que ento fazer imagens de seu trabalho? Por queapresent-las ou public-las? Que efeitos produzem a apresentao e as
imagens desses trabalhos?
Recolho este trecho no livro Artifcios de exposio, de Ren Vinon: O
princpio de base o seguinte: uma obra no visvel por ela mesma como
pela fora natural das coisas (que, como as coisas que se fazem sozinhas,
possuem um ar de magia), e ela no , sobretudo, jamais inteiramente visvel
no sentido em que ns no saberamos pretender tudo (fazer) ver ou perceberde uma obra, qualquer que seja a transparncia de seu modo de
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apresentao4. Seria importante sublinhar que a apresentao no se
restringe aos espaos de exposio e suas caractersticas fsicas:
necessrio esclarecer a esse respeito que, se toda exposio implica uma
apresentao (como ao artificial), toda apresentao no uma exposio
no sentido moderno do termo.5 Assim, exposio e apresentao possuem
diferenas em seus atributos e abrangncias semnticas. A apresentao
sendo uma noo mais ampla que a exposio, podendo, dessa forma,
englob-la.
No contexto desta pesquisa, o espao de apresentao aquele que
surge no entrecruzamento das diferentes operaes, gestos e sistemas de
indicao. Salientamos que nos modos de agir da arte contempornea, a
apresentao de uma produo como produo artstica no necessita mais
ficar restrita a sua exposio num lugar fsico determinado como um museu ou
galeria. Uma palestra, por exemplo, pode constituir-se numa apresentao e
agregar valor simblico ou agir sobre a visualidade. Embora possa no ser
designado explicitamente como um ato artstico, ou no querer s-lo, uma
palestra ou uma publicao pode agir sobre o sentido e sobre a concepo
artstica de uma produo, ser um desdobramento de fato anterior, mesmo que
o ocorrido no esteja mais visvel ou acessvel, a no ser talvez por sua
documentao.
Faamos uma viagem no tempo. Lembremos que Kurt Schwitters cria,
entre 1918 e 1919, a palavra Merz, uma noo designando seu agir e seu
pensar artstico, um mtodo, um programa de criao em aberto. A palavra
Merz provinha da segunda slaba de Kommerz (comrcio). Recortada do
anncio publicitrio Kommerz Und Privatbank, apareceu pela primeira vez no
trabalho de Schwitters colada no quadro intitulado Merzbild (quadroMerz).6 Apartir da, todas suas atividades sero relacionadas com essa noo:
construoMerz, quadroMerz, teatroMerz, poesiaMerz... Essa palavra ser
utilizada at mesmo como sua assinatura em textos e publicaes: Schwitters
torna-se Merz.
Ao longo de sua vida, o artista realizou quatro Merzbau
(construoMerz). A primeira e a mais importante foi a Merzbaude Hanover,
realizada entre 1923 e 1937. Podemos consider-la como uma das maisinstigantes produes artsticas do sculo 20. Construda no interior mesmo da
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casa onde morava e onde possua seu ateli, a Merzbauera uma obra que
integrava o ambiente no qual se encontrava, e que se misturava com ele. O
filho de Kurt Schwitters, Ernst, descreveu-a como uma gigantesca construo
abstrata, alta de trs andares e ocupando a superfcie de quatro peas 7. Era
uma espcie de enorme colagem ou assemblagemambiental, feita de resduos
e de todo tipo de material encontrado e reaproveitado.
O artista Jean Arp conta que podiam ser vistas fendas criadas
artificialmente atravs dos andares, por tneis em espiral religando o poro ao
teto. A influncia do estilo do Rei Sol no era evidentemente preponderante em
sua casa. Por esses vazios, reentrncias e cavidades cresciam as
monumentais colunas Merz, colunas artisticamente levantadas por meio de
tbuas, ferragens enferrujadas, espelhos, rodas, retratos de famlia, molas,
jornais, tijolos, cimento, cromos, gesso, cola, muita cola, muita cola.8
Segundo Dietmar Elger, no texto A obra de uma vida: as Merzbau,9
espelhos teriam sido integrados a certo momento na longa e progressiva
elaborao do Merzbau, o que, aliado a uma varivel e abundante iluminao,
provocaria uma percepo equivocada em alguns visitantes de que o piso entre
os andares estaria perfurado para deixar passar a construo. Entretanto, a
Merzbauno estava de fato limitada unicamente ao ateli, mas se expandido
para outras peas, conforme o prprio testemunho de Schwitters: A minha
Merzbauno se encontrava num nico quarto, mas praticamente em toda a
casa.[...] Vrias partes foram dispostas na pea vizinha, sobre a sacada, nas
duas peas do poro, no segundo andar, sobre o cho.10
A Merzbau nunca foi concluda, pois permanecia, por princpio,
inacabada. Era um work in progress, estava sempre em mudana,
transformao. Schwitters comparava o crescimento de sua obra a umametrpole, onde h sempre uma interdependncia, uma inter-relao no
conjunto. Camadas de objetos, materiais, formas e significaes eram
sobrepostas a outras camadas ao longo dos anos e em consonncia com o
desenvolvimento artstico, psquico, fsico e intelectual de Schwitters. As
alteraes na obra estavam intimamente ligadas s alteraes por que passava
Schwitters. A vida da Merzbau estava diretamente ligada vida de Schwitters,
e vice-versa. Segundo Arp, ele cotidianamente trabalhava ali, mas era aonde
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tambm gostava de descansar, guardar seus porquinhos da ndia e, por vezes,
lavar os ps.
O tambm artista e amigo de Schwitters, Friedel Vordemberge-
Gildewart, tendo convivido durante dez anos com ele em Hanover,
complementa dessa forma uma possvel relao com a Merzbau: Obra no
transportvel, ela no podia ento ser visitada ou mais exatamente, vivida
se no no lugar onde se encontrava. As fotografias comunicam apenas uma
impresso aproximativa, e mesmo um filme provavelmente no conseguiria.11
Entretanto a Merzbau, essa que uma das mais importantes obras do
sculo 20, citada como uma referncia inicial das instalaes e ambientes
tendo suas imagens reproduzidas em livros to diferentes como Arte moderna,
de Giulio Carlo Argan, No interior do cubo branco: a ideologia do espao da
arte, de Brian ODoherty ou Installation art a critical history, de Claire Bishop
, como se sabe, no existe mais. A Merzbau foi destruda em 1943, durante a
guerra, em conseqncia de um bombardeio, sendo que Schwitters j havia
deixado a Alemanha em 1937 fugindo dos nazistas. Grande parte dos estudos
posteriores foi feita por historiadores, crticos e artistas que, obviamente, nunca
estiveram na presena dessa obra. Grande parte do que se conhece dela
chegou at ns atravs de fotografias, depoimentos e textos de Schwitters, de
membros da famlia, de visitantes e de amigos.
Brian ODoherty, no livro j referido, faz uma abordagem da Merzbau
salientando a dificuldade que isso apresenta, tendo em vista que somos
transportados a um espao que s podemos ocupar por meio de relatos de
testemunhas, percorrendo com os olhos fotografias que mais tantalizam do que
confirmam a experincia....12 Entretanto, essas dificuldades no o impedem de
discorrer sobre a Merzbau, de atribuir-lhe qualidades e conceitos. Ele falatambm da Merzbaucomo sendo uma galeria, ou um lugar onde as pessoas
simplesmente olham para ela, ao contrrio de se sentirem dentro dela,13 o
que no corresponde com os depoimentos de Jean Arp ou de Vordemberge-
Gildewart, como vimos anteriormente. ODoherty retirou das imagens algumas
de suas concluses?
Para o autor, ter de lidar com fotografias de obras que j no esto mais
disponveis, um problema que retorna, da mesma maneira que retornamtambm suas interpretaes (outro problema): Os documentos e as fotografias
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desafiam a imaginao na histria ao apresentar-lhe uma arte j morta. O
processo histrico tanto tolhido quanto estimulado com a remoo do original,
que se torna cada vez mais fictcio medida que suas alm-vidas se tornam
mais concretas.14 Ento, o contato material com o original forneceria uma
abordagem direta, sem necessidade de interpretaes? Uma abordagem
correta dependeria unicamente do original? E, afinal, que original esse? No
seria possvel produzir narrativas diferentes a partir dos mesmos dados?
Estaramos para sempre isentos da fbula, do era uma vez...?
Mas supondo que a Merzbau existisse ainda como construo, isso
garantiria o qu exatamente? Alm do mais, o que era artsticona Merzbau? A
construo? O processo de Schwitters? Todas as variantes relacionadas ao
cotidiano dos que ali moravam e de suas visitas? Ou uma inter-relao disso
tudo? Schwitters, que estava conectado com ela num processo constante, j
teria morrido. Se as relaes cotidianas que ali se desenvolviam eram partes
integrantes da dimenso artstica, elas tambm j no existiriam mais. Onde
encontraramos a dimenso artstica?
Leio no segundo pargrafo do texto Bases fundamentais para uma
definio do Parangol, escrito por Helio Oiticica, em novembro de 1964: A
palavra [Parangol] aqui assume o mesmo carter que, para Schwitters, por
exemplo, assumiu a de Merze seus derivados (Merz-bauetc.), que para ele
eram a definio de uma posio experimental especfica, fundamental
compreenso teortica e vivencial de toda a sua obra.15 Ao longo do texto,
Oiticica ir se referir idia de arte ambiental, participao ambiental ou
ainda totalidades ambientais. claro que Oiticica relaciona Parangol e
Merzbauno que diz respeito ao uso de uma noo que define um agir e um
devir num processo experimental. No so, sobretudo, relaes formais. Mas,em ambos os casos, a partir de produes especficas, esse processo
experimental adquire uma dimenso ambiental: a de Schwitters com Merze na
seqncia a Merzbau, e a de Oiticica com Parangol, e depois den ou seu
apartamento em Nova Iorque, o qual transformou em recinto-obra. claro que
Oiticica tambm nunca esteve na Merzbau, nunca a viu ou a vivenciou
pessoalmente. Mas a lembrana da Merzbau aparece. Assim como ela
reaparece mais adiante no texto A obra, seu carter objetal, ocomportamento,16 relacionando esse trabalho com o que ele estava fazendo,
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com o que ele propunha e ao mesmo tempo estabelecendo diferenas ou
oposies. Para que Oiticica pudesse lembrar(ou imaginar) naquele momento
a Merzbau, ou perceber problemas em comum, para dar inteligibilidade ao que
estava relacionando e discutindo, e para que pudesse operar dentro de um
processo de criao, ele teve de encontrar-se com as concepes implicadas
nesse trabalho, tatear sua espessura temporal, incorpor-las a partir de seu
presente de alguma forma. Ele relaciona tambm algumas de suas atribuies
formais: processos de colagem, os ready-mades, de Duchamp, e a arquitetura,
de Gaud. Mas seria de fato e de todo improvvel que Oiticica tenha visto
imagens da Merzbau?
Com o passar dos anos, a importncia da Merzbau, de Schwitters,
cresceu acompanhada de uma proporcional publicao e circulao de suas
reprodues fotogrficas e dos diferentes textos e narrativas que as
acompanharam ou que surgiram tempos depois. Hoje temos uma idia, ou um
olhar sobre essa obra proveniente desses meios. Pessoalmente, foram os
textos de Oiticica, como os citados anteriormente, que num primeiro momento
me chamaram ateno sobre a Merzbau, sobre seus registros e sobre as
problemticas envolvidas. Tudo isso s voltas com processos de criao. Mas
estamos tambm, por que no, diante de certo fenmeno que alimenta nosso
imaginrio, e que vlido e parece se multiplicar para outras produes
(respeitados claro os diferentes processos), como as fotografias da
inaugurao na casa-ateli de Marcel Broodthaers, de seu Museu de Arte
Modernaou os ambientes An apple shrine, Wordsou Yard, de Allan Kaprow.
Esse fenmeno estaria inter-relacionado, ento, com a reprodutibilidade, com a
publicao, com a circulao de imagens e documentos.
Como tarefa futura, talvez, faltar-nos-ia pensar as caractersticas desseimaginrio na atualidade e seus diferentes usos. Afinal de contas, somos ns
que viajamos no tempo ou o tempo que viaja atravs de ns?
NOTAS
1 Dubois, Philippe. O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994. p.285.2 Ver por exemplo: Merewether, Charles (org.). The Archive, Col. Documents of Contemporary Art.Londres/Cambridge MA: Whitechapel / The MIT Press, 2006.3 Ver por exemplo os Wall Drawings de Sol LeWitt: 50 Espces dEspaces. Paris: Centre GeorgesPompidou, 1998. p.62.4
Vinon, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999. p.31.5 Vinon, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999. p.23.
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6 Dachy, Marc. Introduction. In: Schwitters, Kurt. MERZ crits choisis et presents par Marc Dachy.Paris: ditions Grard Lebovici, 1990. p.8.7 Schwitters, Ernst. One never knows. In: Schwitters, Kurt. MERZ crits choisis et presents par MarcDachy. Paris : ditions Grard Lebovici, 1990. p.351.8 Arp, Jean. Jours Effeuills pomes, essays, souvenirs 1920-1965. Paris : Gallimard, 1985. p.334.9 Elger, Dietmar. Loeuvre dune vie. In: Kurt Schwitters. Paris: ditions du Centre Georges Pompidou,Collection Classiques du XXe sicle, 1994. p.140-151.10
Kurt Schwitters. Paris: ditions du Centre Georges Pompidou, Collection Classiques du XXe sicle,1994, p. 142.11 Vordemberge-Gildewart, Friedel. Kurt Schwitters. In : MERZ crits choisis et presents par MarcDachy. Paris: ditions Grard Lebovici, 1990. p.349.12 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.41.13 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.43.14 ODoherty, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. So Paulo: MartinsFontes, 2002. p.77.15 Oiticica, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.65.16 Oiticica, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.118.
REFERNCIAS
DUBOIS, Philippe. O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.ELGER, Dietmar. Loeuvre dune vie. In: Kurt Schwitters. Paris: ditions du CentreGeorges Pompidou, Collection Classiques du XXe sicle, 1994.SCHWITTERS, Kurt. MERZ crits choisis et presents par Marc Dachy. Paris:ditions Grard Lebovici, 1990.ODOHERTY, Brian. No interior do cubo branco A ideologia do espao da arte. SoPaulo: Martins Fontes, 2002.OITICICA, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.VINON, Ren. Artifices dexposition. Paris : ditions LHarmattan, 1999.
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Brasil.
Hlio Fervenza - Artista plstico. Doutorado em Artes Plsticas na Universit de
Paris I, Panthon-Sorbonne. Professor no PPG em Artes Visuais do IA-UFRGS
e pesquisador do CNPq. Desenvolve atividades junto ao programa FPES -
Perdidos no Espao. Autor do livro O + deserto. Coordena o grupo de
pesquisa Veculos da Arte. membro da ANPAP.