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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018448 A Carta Guarani Kaiowá e o direito a uma literatura com terra e das gentes Marília Librandi-Rocha 1 Queremos que todos vejam Como a terra se abre como flor Canto guarani (trad. Douglas Diegues) Venham então. Venham. Retirem a terra, O barro do buraco. Ele está todo cavado. Eu o fiz fundo. Não podem ouvir talvez meu chamado? Popol Vuh (vv. 1.247-53) O herói Cipacna, do poema maya-quiché citado na epígrafe, que nos interpela do fundo do buraco, não está, como pensam seus adversários, cavando sua sepultura, mas “um abrigo para ele próprio” (v. 1.244). É para falar da terra, abrigo e sepultura, mas também barro e flor, que esse artigo versa sobre a Carta Guarani Kaiowá (2012), o texto de denúncia de violação dos direitos humanos que maior impacto causou na sociedade brasileira da primeira década do século XXI. 2 Assinada por cinquenta homens, cinquenta mulheres e setenta crianças da comunidade Pyelito Kue/Mbarakay, acampada à margem do rio Hovy (pronuncia-se “Jogui”), em Iguatemi, Mato Grosso do Sul, em 8 de outubro de 2012, a carta se espalhou pelas redes sociais e gerou um movimento de reação e solidariedade sem precedentes, pois ganhou não apenas defensores de uma causa em comum, mas milhares de coautores brasileiros e estrangeiros que adotaram o nome Guarani Kaiowá como parte de sua família extensa (Brum, 2012b). Este artigo relembra os passos principais do episódio e sugere avançarmos um passo a mais ao propormos a inclusão da Carta Guarani Kaiowá das comunidades Pyelito Kue/Mbarakay no âmbito da literatura contemporânea 1 Doutora em teoria literária e literatura comparada e professora de literatura e cultura brasileiras na Universidade de Stanford, Califórnia, Estados Unidos. E-mail : [email protected] 2 A carta foi divulgada primeiramente pelo site do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), no dia 10 de outubro de 2012, acompanhada de relatório da Assembleia Geral Guarani, Aty Guasu.

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  • DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018448

    A Carta Guarani Kaiow e o direito a uma literatura com terra e das gentes

    Marlia Librandi-Rocha1

    Queremos que todos vejam Como a terra se abre como flor

    Canto guarani (trad. Douglas Diegues)

    Venham ento. Venham. Retirem a terra, O barro do buraco. Ele est todo cavado. Eu o fiz fundo. No podem ouvir talvez meu chamado?

    Popol Vuh (vv. 1.247-53)

    O heri Cipacna, do poema maya-quich citado na epgrafe, que nos

    interpela do fundo do buraco, no est, como pensam seus adversrios, cavando sua sepultura, mas um abrigo para ele prprio (v. 1.244). para falar da terra, abrigo e sepultura, mas tambm barro e flor, que esse artigo versa sobre a Carta Guarani Kaiow (2012), o texto de denncia de violao dos direitos humanos que maior impacto causou na sociedade brasileira da primeira dcada do sculo XXI.2 Assinada por cinquenta homens, cinquenta mulheres e setenta crianas da comunidade Pyelito Kue/Mbarakay, acampada margem do rio Hovy (pronuncia-se Jogui), em Iguatemi, Mato Grosso do Sul, em 8 de outubro de 2012, a carta se espalhou pelas redes sociais e gerou um movimento de reao e solidariedade sem precedentes, pois ganhou no apenas defensores de uma causa em comum, mas milhares de coautores brasileiros e estrangeiros que adotaram o nome Guarani Kaiow como parte de sua famlia extensa (Brum, 2012b). Este artigo relembra os passos principais do episdio e sugere avanarmos um passo a mais ao propormos a incluso da Carta Guarani Kaiow das comunidades Pyelito Kue/Mbarakay no mbito da literatura contempornea

    1 Doutora em teoria literria e literatura comparada e professora de literatura e cultura brasileiras na

    Universidade de Stanford, Califrnia, Estados Unidos. E-mail : [email protected]

    2 A carta foi divulgada primeiramente pelo site do Conselho Missionrio Indigenista (Cimi), no dia

    10 de outubro de 2012, acompanhada de relatrio da Assembleia Geral Guarani, Aty Guasu.

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    produzida no Brasil. Comeo, assim, por retomar o incisivo texto escrito por Eliane Brum (2012a) no calor dos acontecimentos que envolveram a repercusso da Carta e que terminava com a indagao: para ns o que

    a palavra? Transpondo essa questo para o campo dos estudos

    literrios, indago: para ns o que e o que pode a palavra indgena no cerne da literatura escrita no Brasil? A primeira parte deste artigo discute a concepo de literatura que nos orienta, qual sua relao com os direitos humanos e de que modo uma carta indgena pode afetar a histria literria brasileira. A segunda parte contextualiza a histria dos Guarani, o processo de que foram vtimas, e termina com uma anlise que ressalta o impacto literrio da Carta e o vnculo entre direitos territoriais indgenas e direito autoria.

    Escrita como reivindicao territorial, solicitando o direito morte na terra dos antepassados, e destinada s autoridades do Governo e da Justia do Brasil, a Carta Guarani Kaiow se institui, de fato, como um dos textos mais poderosos da contraconquista. E para falar da fora potica e poltica da Carta que este texto caminha do direito de habitar a terra, solo em que se vive, ao direito de habitar as palavras, solo rduo/

    mas alado (Baptista, 2011, p. 119) em que se escreve. Para estabelecer o

    trnsito do papel da terra terra do papel, recorro ao testemunho de dois indgenas guarani (andeva) do Mato Grosso do Sul, Hiplito e Epitcio. Para eles, a palavra ritualizada dos guarani tem terra, ijyvva, ao passo que a dos cristos tem papel, ikuativa(Chamorro, 2008, p. 279). At o momento, as respostas governamentais continuam a ter papel, mas no terra,3 e este texto prope que o campo discursivo da literatura pode dar uma resposta com terra, altura do apelo guarani, que, no

    cerne da Amrica Meridional, tambm nos interpela do fundo do buraco, ecoando, de modo trgico, os versos do grande poema cosmopico dos povos quichs da Mesoamrica.4

    3 No momento em que escrevo, as terras Guarani Kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay foram

    reconhecidas por relatrio da Funai publicado no Dirio Oficial da Unio em janeiro de 2013, mas sua efetiva homologao no se efetivou. Notcia mais recente, de 1 de maro de 2014, veiculada

    pelo Cimi, denuncia novo ataque de pistoleiros contra a comunidade e especifica: O tekoha Pyelito Kue/Mbarakay parte de rea identificada com 41.571 hectares de extenso pelo Grupo de

    Trabalho (GT) da Bacia Iguatemipegu, localizada nas proximidades da Terra Indgena Sassor. A

    fazenda Cambar apenas uma das vrias propriedades incidentes sobre a rea identificada.

    4 O Popol Vuh, como explica Gordon Brotherston (2007), conhecido por muitos como a Bblia do continente [...] Escrito apenas trs dcadas apos a invaso do territrio quich liderada por Pedro de Alvarado em 1524, o Popol Vuh procura afirmar memria e direitos locais. [...] Chega tambm a

    iluminar e a ser iluminado por cosmogonias clssicas do Quarto Mundo para alm da Mesoamrica,

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    Parte I Uma literatura com terra O primeiro problema a ser enfrentado o de no considerar fico

    um documento do real e, sobretudo, um documento traumtico do real. A Carta Guarani Kaiow no pertence de modo algum ao campo do ficcional, mas pode pertencer ao campo do literrio, assim como a carta de Pero Vaz de Caminha, as Cartas Jesutas, os Sermes do Padre Vieira, os muitos tratados descritivos, relatos de viagem e outros documentos histrico-sociais que integram o acervo da literatura produzida no Brasil,5 pois alcanaram uma dimenso que ultrapassou seu territrio de inscrio inicial. Essa a concepo de literatura proposta por Luiz Costa Lima (2006), a de ser um campo discursivo heterogneo, que inclui o que ele chama de formas hbridas, como a carta, o ensaio, o livro de

    mximas, os dirios e a autobiografia, os quais, mesmo no tendo uma destinao potico-ficcional primeira, podem ser incorporados ao acervo literrio caso apresentem um elemento de destaque em relao a outros textos similares. Assim, se centenas de cartas escritas por grupos indgenas tm circulado atualmente pelas redes e so parte da histria presente de reivindicao social e territorial desses povos, por que a Carta Guarani Kaiow de Pyelito Kue, especificamente, causou tanta comoo popular, seno porque ela apresenta uma qualidade diferencial que precisa ser descrita?

    como o Watunna do Caribe, a Lenda do Jurupari do Rio Negro e o Ayvu Rapyta guarani, que

    compartilham a sua forte conscincia sobre a riqueza bitica e imaginativa da floresta tropical da

    Amrica (Brotherston, 2007, p. 11-12). E ainda: como tantos outros documentos nativos da Mesoamrica do sculo XVI, este foi composto por uma comunidade local ou, talvez, por uma

    parte dela, a faco kavek da cidade de Santa Cruz Quich, Guatemala, para reclamar, perante o

    governo colonial espanhol, um beneficio ou privilgio que datava de uma poca anterior invaso (Brotherston, 2007, p. 13). No Brasil, lembra Brotheston: Affonso Romano de SantAnna produziu [...] um moderno Popol Vuh, no qual a obra maia-quich dialoga com os textos guaranis do Brasil (A grande fala do ndio guarani perdido na histria, 1978).

    5 Classificada como literatura de informao, crnica histrica ou literatura de viagem, a Carta de

    Caminha, ganhou outro realce a partir da poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Para Jos

    Aderaldo Castello, desde que foi reconhecida pelos modernistas brasileiros, deixou de ser apenas um documento histrico. [] Transformou-se num foco de renovao afetiva, de permanente vibrao, ao mergulharmos no passado, em busca das emoes iniciais das nossas origens (1999, p. 55). Afirmao semelhante encontra-se em uma das mais recentes histrias literrias, a de Luiz Roncari: a Carta de Caminha, ainda que seja um texto de informao, tem um valor literrio que vai alm das qualidades de estilo (2002, p. 42). Para uma abordagem da recepo da Carta na historiografia literria brasileira, ver dissertao de Fabio William Lopes Braga (2009).

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    isso que constitui, na bela expresso de Costa Lima, o carter errtico do campo da literatura (Costa Lima, 2006, p. 336), ou seja, a

    possibilidade de uma certa obra mudar sua inscrio originria (Costa Lima, 2006, p. 348, grifos no original). Assim: Fora da ficcionalidade, a literatura abrange aquelas obras que, perdida sua destinao original, recebem outro abrigo, i.e., mantm seu interesse, mudando de funo

    (Costa Lima, 2006 p. 347). Retenho aqui a expresso receber outro

    abrigo, pois disso que se trata neste texto em relao Carta Kaiow: a

    de que, mesmo passado seu momento de atuao, essa carta continuar a manter seu interesse, mudando de funo como Carta da Literatura

    Indgena produzida no Brasil. Defendo, ento, a ideia de que a

    reivindicao da terra que lhes pertence no deve estar separada do territrio da literatura a que tambm tem direito.6 Com isso em mente, posso dizer que a destinao primeira da Carta Guarani no era e continua no sendo literria, mas, sim, um documento poltico e social de denncia e pedido de socorro. No entanto, a impresso que se tem que a alta receptividade que alcanou est vinculada fora da linguagem que a caracteriza: Pela espessura da linguagem, a literatura ento se tornar

    sua segunda morada. Tal mudana de lugar no ser um gesto caritativo. Para que se cumpra, ser preciso que a obra traga consigo um trao de destaque (Costa Lima, 2006, p. 350). Esse trao de destaque, como

    mostrarei na segunda parte deste texto, vincula-se ao modo como seus enunciadores apelam a morte. Como se ver, justamente esse apelo que opera a torso que transforma essa carta em carta da literatura.7

    Diria, ento, que este texto prope a incluso da Carta Guarani Kaiow nos domnios territoriais da literatura contempornea seguindo a mobilizao pela efetiva homologao de suas terras, tekoha, em Mato Grosso do Sul, pois considera que o direito ancestral a suas terras paralelo ao direito de incluso no terreno discursivo literrio. A posse de suas terras no deveria, pois, estar dissociada do abrigo do terreno literrio, sobretudo porque, na cosmoviso guarani, terra e palavra e alma no esto dissociadas, como mostraremos na leitura da Carta. possvel, inclusive, dizer que aquilo que chamamos qualidade literria

    6 O vnculo entre literatura indgena e questes territoriais defendido por Lucia S, autora do importante estudo Rain Forest literatures, 2004.

    7 No posso deixar de notar que, se alguns polticos se matam para entrar na histria, grupos como os

    Kaiow solicitam sua morte, e inclusive se matam, para sair da histria que tanto os oprime. Por isso

    tambm, literatura caso de vida e de morte, como a anlise da carta na segunda parte vai realar.

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    remete, em termos guaranis, como no depoimento citado anteriormente, a uma palavra com terra, e no apenas com papel. Sugiro, assim, o

    direito literatura como territrio discursivo acolhedor.

    Literatura e justia

    Essa sugesto, no entanto, esbarra em um questionamento a respeito

    dos limites do literrio em confronto com discursos minoritrios. Na crtica literria brasileira recente, tal debate foi proposto por Marco Piason Natali, no texto Alm da literatura (2006), o qual, por sua vez,

    dialoga criticamente com texto de Antonio Candido, publicado em 1988, O direito literatura (2004). Meu acesso a essa discusso deu-se atravs de Jaime Ginszburg, que em seu livro Crtica em tempos de violncia (2012), sintetiza a questo ao dizer que: A necessidade de pensar contemporaneamente nos direitos de sociedades e grupo excludos pela violncia histrica leva a colocar a pergunta primria o que entendemos por literatura no mbito do questionamento dos paradigmas civilizatrios (Ginszburg, 2012, p. 204).

    O texto de Candido entende literatura no sentido amplo como fabulao e termina por reivindicar a difuso da literatura cannica,

    seu valor educacional e de formao crtica como um direito constantemente negado em pases a exemplo do Brasil, no qual a maioria da populao no ensinada a ler e a escrever. A viso humanista socialmente engajada de seu texto (escrito antes da dcada de exploso dos estudos culturais), correta em defender a participao dos grupos excludos na cultura letrada, partilha, no entanto, da viso da literatura europeia como paradigma do universal, principal crtica que a ele faz Natali. Alm disso, complemento, sua viso est vinculada a uma concepo teleolgica e evolucionista, que considera expresses populares e/ou folclricas como estgios primitivos frente aos sistemas avanados eruditos europeus, como fica claro na frase: fru-la [refere-se criao ficcional] um direito das pessoas de qualquer sociedade, desde o ndio que canta suas proezas de caa ou evoca danando a lua cheia, at o mais requintado erudito [...] (Candido, 2004[1988], p. 180). Ou seja, seu texto no imagina que o ndio que canta possa tambm

    ser produtor de textos e erudito, pois a concepo de texto restringe-se ao modelo herdado.8 Aqui, seria preciso lembrar, como contraponto, a

    8 Para outros exemplos dessa abordagem em Candido, ver estudo de Anita de Moraes (2012).

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    proposta que o antroplogo Antonio Risrio defendera j em 1993, sobre a ampliao da noo de literatura como devendo tambm incluir poticas e prticas de competncia grafa extraocidentais no mesmo patamar de valorao.

    J o texto de Natali vincula-se aos debates mais recentes oriundos dos estudos culturais que surgiram com fora na academia norte-americana na dcada de 1990, junto com a reflexo marxista renovada pelos estudos ps-coloniais e que, de certo modo, estabeleceram uma ciso entre crtica literria voltada para o cnone ocidental e abordagens scio-polticas minoritrias.9 Seu texto entende literatura como um campo minado pela noo de um universal harmnico e termina por

    sugerir (de modo, como ele mesmo diz, perverso) que justia e

    literatura no estariam necessariamente vinculadas, pois a prpria noo universal do literrio produz uma violncia tradutria, que

    elimina as diferenas ao inclu-las. Assim:

    Chamar de literatura ou fico o que outra coisa seria, portanto, uma forma dessa violncia tradutora que abafa a diferena contida naqueles horizontes conceituais que incluem outras formas de entender a relao com os objetos verbais, a representao da realidade e o lugar do sujeito humano na criao e recepo de textos [...] (Natali, 2006, p. 42).

    Desse modo, se Antonio Candido defende o direito literatura, entendida segundo o paradigma do universal e suas adaptaes locais, Natali sugere o abandono do literrio em prol de discursos que resistiriam ao concerto de um universal bem particular. Apesar, porm, dessa distino, importante notar que ambos os textos, o de Candido e o de Natali, tm em comum a recusa em incluir o texto extraocidental, amerndio, no caso, como parte da literatura. Para

    Candido, a incluso no se coloca como problema, simplesmente porque no haveria texto indgena no mesmo patamar que o dos

    colonizadores e seus descendentes; para Natali, a incluso corresponderia a uma violncia tradutora. Isso significa que a

    concepo de literatura a mesma em ambos os autores. Tanto para um

    9 Os estudos culturais e ps-coloniais na academia norte-americana sofrem de vrias cises

    internas. O texto de Natali, por exemplo, se distingue, como ele mesmo aponta, da viso de literatura como passvel de escapar ao sistema, defendida por Gayatry C. Spivak (ver Natali, 2006, p. 32); ou das propostas de Gordon Brotherston e Lcia S, que analisam como literatura

    textos e materiais amerndios (Natali, 2006, p. 37), proposta similar assumida neste texto.

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    quanto para outro, a literatura concebida como campo das semelhanas, apenas, e, como tal, serve ou para ser emulada ou para ser descartada. Olvidam (Candido por valorar a hierarquia discursiva, e Natali por justamente criticar essa hierarquia), assim, que a literatura moderna que nasce no final do sculo XVIII prope-se como espao discursivo de resistncia, e campo em que diferenas em potencial emergem continuamente. Posso, ento, traduzir o questionamento que estaria implcito em ambos os textos como: se a literatura uma instituio europeia, que veio junto com a bagagem dos colonizadores das Amricas, incluir uma carta indgena (ou de outros grupos minoritrios) no mesmo barco, no seria uma contradio, ou, pior, um abuso?

    Uma literatura das gentes

    Entre essas duas vertentes, que afinal se unem, proponho seguir outra,

    uma terceira vereda: a de pensar o texto indgena dentro do campo literrio, entendido como espao discursivo de acolhimento e produo de diferenas, assim como venho buscando pensar uma teoria literria alterada pelo aporte do at ento no literrio (Librandi-Rocha, 2012).

    Por isso, no sigo a soluo de imaginar um espao alm das

    fronteiras da literatura (Natali, 2006, p. 42), primeiro porque o campo

    mesmo da literatura j vasto o suficiente para incluir textos e concepes diversas e heterogneas; segundo, por uma distinta concepo de poltica discursiva: considerar literatura apenas a de extrao e inspirao europeia impede o dilogo no mesmo patamar de igualdade com outras formas de dizer. Nesse aspecto, o mesmo argumento que diz que o pensamento dos indgenas no pode ser chamado filosofia porque no est escrito segundo o modelo da filosofia, que ocidental.10 Na perspectiva que advogo, incluir no quer dizer outorgar o direito, mas reconhecer a igualdade representativa.

    Assim, no se trata de modo algum de assimilao ou de integrao dos discursos indgenas, como se pensa a assimilao desses

    grupos na sociedade brasileira para que virem brancos; mas, ao

    inverso, trata-se de um retorno do indgena recalcado, como aqueles que assumiram o sobrenome Guarani Kaiow como parte de si prprios. Por

    10 Essa concepo tem informado o campo da antropologia de Eduardo Viveiros de Castro

    (2002; 2004), que prope uma operao tradutora; penso que crtica literria tambm cabe essa

    tarefa tradutora.

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    isso, volto a uma indagao bsica: se as vrias cartas dos europeus colonizadores so documentos de nossa literatura, por que a carta dos indgenas no poderia ser? Essa questo implica, sobretudo, um desafio para pensarmos outras possibilidades de histrias literrias.11 Vejamos.

    Outra histria

    O texto do Formao da literatura brasileira (Candido, 1981) claro: a

    nossa literatura nasce como a literatura dos senhores colonizadores, produzida em terra inculta para ns, seus descendentes.12 Como j apontou Paulo Franchetti (2002), a leitura desse ns tornou-se, com os debates desconstrucionistas e dos estudos culturais, de difcil seno impossvel digesto: quem no faz parte desse ns e no se inclui entre esses descendentes est hoje se multiplicando em polticas

    afirmativas de pertena escrita da literatura e outras, sempre rasuradas. Pode-se assim dizer que todo o problema (ou soluo) est em que ns, hoje, no coincidimos necessariamente com a narrativa do ns que aparece no Formao. Lemos, ainda, no Prefcio segunda edio, de 1962: Parece-me que o arcadismo foi importante porque plantou de vez a literatura do Ocidente no Brasil, graas aos padres universais por que se regia, e que permitiram articular a nossa atividade literria com o sistema expressivo da civilizao a que pertencemos, e dentro da qual fomos definindo lentamente a nossa originalidade (Candido, 1981, p. 17). Diria que incluir a Carta Guarani Kaiow (e outros textos indgenas) tambm significa articular a nossa

    atividade literria com o sistema expressivo da civilizao a que pertencemos, s que a civilizao, no caso, a aborgene e no apenas a

    europeia. Ou seja, trata-se de uma reivindicao de outra filiao. Pensar a Carta Guarani como parte do patrimnio da literatura contempornea , finalmente, estabelecer um matrimnio com outras

    11 O que Monteiro diz sobre a historiografia indgena vale para nossa histria literria: De modo geral, a historiografia sobretudo a brasileira tem reservado ao ndio o papel de figurante mudo ou de vtima passiva dos processos coloniais que o envolviam (Monteiro, 1992, p. 476).

    12 L-se no Prefcio Primeira edio, de 1957: tentativas muitas vezes dbeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimao penosa da cultura europeia, procuraram estilizar para ns, seus descendentes, os

    sentimentos que experimentavam, as observaes que faziam, dos quais se formaram os nossos (Candido, 1981, p. 10).

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    formas de pensar e ser na territorialidade do Brasil.13 O fato que civilizaes aborgenes sempre fizeram parte do programa da literatura brasileira; no entanto, os modos de sua insero sempre foram via delegao: salvo engano, no h nenhum discurso aborgine, assinado por ndios at o sculo XX, como parte da literatura brasileira, a no ser como citao, fonte ou inspirao. Trata-se, pois, de um lugar-comum desabitado, despovoado das gentes que intenta representar, situao que vem mudando radicalmente com a insero de escritores indgenas e a multiplicao de estudos sobre as poticas amerndias no sculo XXI.14

    Literatura e no pertena

    No texto Ainda brasileira?, Fernando Scheibe (2013) faz uma

    sugesto de longo alcance: abandonar o sistema e retornar s fontes

    das manifestaes literrias. A sugesto rica em desdobramentos,

    pois nos convida a sair da marca e dos marcos da formao de um sistema literrio nacional para repensar as produes contemporneas fora de escola e de sistema, como manifestaes de pluralidade, incompossveis com a unidade nacional que dominou o pensamento da histria literria no Brasil nos sculos XIX e XX. A incluso de uma carta indgena impede o atrelamento imediato com o termo literatura

    brasileira, pois ou necessria uma ampliao do brasileiro, de

    modo a incluir no mbito de uma literatura escrita em portugus os indgenas e suas lnguas; ou ser preciso a desconsiderao do termo, em prol de um mais amplo e genrico: textos literrios produzidos no Brasil. Mas de abolio que se trata, e tambm de reterritorializaes.

    13 A ascendncia guarani vincula-se s primeiras mes ndias dos primeiros brasileiros e dos

    primeiros hispano-americanos na regio Sul/Sudeste da Amrica do Sul (Monteiro, 1992). Alm

    disso, essa temtica pode vincular-se ao debate sobre matriarcado que aparece em Oswald de Andrade e que vem sendo retomado atualmente (ver Aguilar e Nodari, 2010).

    14 Chamo ateno para alguns dos trabalhos acadmicos que vm sendo desenvolvidos atualmente,

    como o ncleo Literaterras, da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenado por Maria Ins de Almeida e Cinara de Araujo, e o trabalho de Srgio Bairon, em parceria com comunidades de

    tradio oral indgenas e afro-brasileiras, no programa Produo Partilhada do Conhecimento (ECA/Instituto Diversitas na USP), alm dos trabalhos de antroplogos, tradutores e poetas, assim

    como a significativa produo literria indgena em geral, de difcil acesso no mercado. Entre os

    nomes conhecidos, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara e Davi Kopenawa. No site

    de Literaterras (http://literaterras.wordpress.com/publicacoes/autoria-indigena) possvel acessar uma lista mais completa. Lembro, ainda, o importante contradiscurso de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt em 2013, denunciando o genocdio e a falta de representatividade

    indgena e afro-brasileira na literatura do Brasil.

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 174

    No caso, falar sobre a Carta Guarani Kaiow significa alargar o horizonte para uma realidade regional, a da Amrica do Sul meridional, e que envolve, portanto, as antigas reas da colonizao ibrica e as atuais fronteiras do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, assim como envolve o plurilinguismo portugus, espanhol, portunhol e os vrios dialetos guaranis. dentro desse paradigma que proponho a incluso da Carta Guarani Kaiow como manifestao da literatura contempornea, entendendo literatura em um sentido ao mesmo tempo amplo e menor: aquele que nasce da no pertena. Fora, portanto, do mbito nacional, mas dentro do campo literrio.15 Assim, no seria mais uma literatura da gente, apenas, mas das gentes, expressando a

    pluralidade e singularidade das diferenas de viver e representar o mundo (Mota, 2011, p. 45).

    Retomo, por isso, o debate proposto por Abel Barros Baptista, quando diz que o nacionalismo literrio, que impe que a literatura que se faz no

    Brasil deve ser brasileira (Baptista, 2009, p. 24, grifos no original), em si mesmo um projeto romntico europeu de valorizao do nacional, do extico e da paisagem distante. No entanto, o que era para ser um projeto historicamente datado, tornou-se lei inalienvel, graas coincidncia histrica do romantismo com a independncia poltica do Brasil: o acontecimento que realmente faz com que a autoridade do projeto romntico no se esgote na sua poca histrica (Baptista, 2009, p. 25).

    Devido a essa coincidncia de destinos (Baptista, 2009, p. 28), no se

    consegue pensar a literatura fora da lei que vinculou o literrio representao da nao (segundo o modelo conciliador), que, por sua vez, est na base da dupla que tanta fortuna fez na crtica literria: o par local-universal, j que essa harmonia do local com o universal se institui igualmente por fora do projeto nacional (Baptista, p. 39). Hoje, porm,

    quando a viso harmnica da nao finalmente entra em crise, e o termo

    15 Quando esse texto j estava quase finalizado, caiu-me s mos texto de Abel Barros Baptista

    (2009), no qual o conceito sobre o cosmopolitismo da literatura moderna pensado como abertura dum espao de hospitalidade incondicional (p. 67). Sem poder coment-lo de modo mais detalhado, restrinjo-me a citar passagem fundamental para o argumento e o sentido do que busco

    expor ao falar do acolhimento da Carta no campo literrio, sendo esse: No um espao superior e restrito, para onde alguns poucos afortunados so cooptados, pela Unesco ou pelo sucesso

    comercial, formando alguma espcie de cnone supranacional ou literatura internacional; no um

    espao homogneo, universal, sem fronteiras nem conflitos, onde o esprito vagueia livre; no um espao essencial de onde derivem e se deduzam todos os espaos, mais restritos e nada essenciais mas o espao que se abstm de limitar e impor condies entrada e estada do estrangeiro (Baptista, 2009, p. 67).

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    175 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    literrio pode ser repensado em outras bases que ficaram abafadas, a lei ainda ameaa com a desagregao. A ameaa, mostra Baptista, a de que a prpria literatura [] desaparece se perde a referncia ao seu

    fundamento e garantia da sua existncia [], pois, a lei da harmonia

    entre a criao literria e a realidade brasileira torna ilegtima toda a tendncia para encarar a possibilidade de a literatura resistir ao Brasil

    (Baptista, 2009, p. 31). E ainda: [r]omper essa harmonia significaria lanar a indeterminao sobre o destino da literatura brasileira: da a fora da lei (Baptista, 2009, p. 31-32).

    Diria, ento, que o risco do gesto de incluso da Carta Guarani Kaiow s tem sentido e s tem valia se afrontar essa lei, lanando-nos voluntariamente na indeterminao: quando ento percebemos que o que desaparece no a literatura, mas uma ideia, uma proposta que virou lei. A Carta que leremos a seguir tambm uma questo de lei. Ela diz: a justia brasileira no nos representa e decreta a nossa morte; a literatura atrelada ao projeto romntico nacional tambm fazia isso: decretava a sobrevida literria dos ndios j exterminados e olvidava os vivos (dentre eles, sobretudo os Guarani, que se tornam inimigos por causa da Guerra do Paraguai). Incluir a Carta Guarani Kaiow incluir os vivos, no brasileiros, e assim afrontar duas vezes a lei de fundao da literatura brasileira. Uma vez libertos da lei, poderemos pensar o que ficou rasurado. Antes ainda da leitura da Carta, dois pontos precisam ser brevemente expostos.

    Educao e traduo

    Em seu livro, Jaime Ginszburg sugere repensar a questo da

    literatura vinculada a projetos pedaggicos, como um encaminhamento concreto (2012, p. 205), que tambm considero

    fundamental. Incluir a Carta Guarani Kaiow significa trabalhar para que estudantes brasileiros possam l-la nas escolas e faculdades. Como diz Pedro Cesarino (2009),

    a formao intelectual que comea no ensino bsico no considera a existncia das culturas amerndias (para no falar das africanas ou asiticas), preteridas em favor dos cnones euro-americanos. Essa negligncia sistemtica representa uma enorme perda para o conhecimento cosmopolita, que no estabelece acesso aos insondveis mananciais de pensamento e criao indgenas.

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 176

    Para esse conhecimento cosmopolita, a noo e a prtica da

    traduo vm fundamentando com uma parceria muito bem-vinda e de sucesso tico e esttico entre antroplogos, poetas e crticos literrios, trabalhando juntos na traduo dos cantos e narrativas afro-americanas, quilombolas e amerndias. Um exemplo, entre muitos, o trabalho da poeta e tradutora Josely Vianna Baptista (2011), que, em Roa barroca, traduz trs cantos sagrados dos Mby-Guarani do Guair, no Paraguai, parte do Ayvu Rapyta, seguidos de seus poemas Moradas nmades (impresses e vestgios de viagem). Como diz Francisco Faria, trata-se de um projeto potico/poltico, que combina inveno artstica,

    interveno cultural, dilogo multidisciplinar e reviso (seno reavaliao) de nossa herana cultural (Faria, 2011, p. 148). Esse projeto

    permite estabelecer um campo de dilogo (concebendo a literatura como lngua franca) em que textos extraocidentais e ocidentais se alteram mutuamente.16

    Parte II A Carta de Pyelito Kue/Mbarakai

    Os Kaiow (junto com os Mby e andeva no Brasil) so parte da

    grande nao Guarani que ocupava a Amrica meridional e a regio da bacia do rio da Prata quando da chegada dos espanhis e portugueses no sculo XVI.17 Apesar do trauma da conquista que faz com que no se possa estabelecer continuidade entre os grupos histricos do sculo

    XVI e os etnogrficos do sculo XX, h elementos do modo de ser Guarani que se mantm recriados frente a condies progressivamente

    adversas (Monteiro, 1992, p. 475), tais como o discurso proftico e o

    profundo senso de identidade (1992, p. 476). Caberia aos especialistas dizer se se poderia estudar a Carta Guarani Kaiow como parte do profetismo, pois parece plausvel inclu-la na tradio dos discursos de resistncia dos movimentos revoltosos que, desde o sculo XVI, uniam profetismo e discurso subversivo contra o modo de vida imposto pelos kara cristos (Monteiro, 1992, p. 485)

    16 No campo da prosa de fico atual e sua relao com o mundo e as narrativas amerndias, ver o estudo de Rita Olivieri-Godet (2012). No campo da poesia, ver antologia organizada por Sergio

    Cohn (2012) e que comea com os Cantos Amerndios.

    17 Do Chaco at o Atlntico, das capitanias do Sul at o rio da Prata, a presena guarani abrangia, no sculo XVI, uma imensa rea que hoje inclui os estados brasileiros de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo e Mato Grosso do Sul, alm de parte dos pases vizinhos (Monteiro, 1992, p. 476-477).

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    177 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    Os principais dados da histria Guarani no perodo colonial remetem s redues jesuticas no contexto das colnias ibricas (as primeiras redues so fundadas em 1610), e ao bandeiritismo18 paulista no contexto regional brasileiro. Com as destruies das misses do Guair entre 1628 e 1632 pelos paulistas, milhares de guaranis se deslocaram para So Paulo (calcula-se de 30 a 50 mil); e outros vo para as margens do rio Uruguai (cerca de 10 mil). Houve tambm um deslocamento das misses para regies mais afastadas ao longo dos rios Uruguai e Paraguai. Esse contexto implica ao menos trs coisas: os Guarani esto na origem da histria de formao territorial do Brasil meridional; tambm esto na origem da constituio das populaes do Sul e Sudeste tanto o povoamento espanhol como o portugus se deram por meio da incorporao de mulheres Guarani e a consequente

    emergncia de uma populao mestia (Monteiro, 1992, p. 482-3); e seus dialetos fizeram parte da chamada lngua geral que tanto

    influenciou o portugus do Brasil.

    Os Guarani contemporneos, e os grupos Pyelito Kue/Mbarakay

    A comunidade Guarani Kaiow atual resulta da unio de dois grupos:

    os Guarani, que se autodenominam andeva, tambm chamados Ava-Chiripa, e os Kaiow, que no Paraguai se autodenominam Pai-Tavytera. O terceiro subgrupo da etnia Guarani vivendo no Brasil e no Paraguai formado pelos Mby. Os Kaiows so o maior dos subgrupos Guarani, e sempre habitaram o norte do Paraguai e o sul do Mato Grosso

    (Almeida, 2001, p. 17). A histria do contato com os no ndios e a ocupao progressiva e sistemtica de suas terras desde o sculo XIX19 reproduz o que Manuela Carneiro da Cunha bem sintetizou ao falar sobre o processo geral de desrespeito aos direitos indgenas no pas: Cada

    passo uma pequena burla, e o produto final, resultante desses passos mesquinhos, uma expropriao total (Cunha, 2012, p. 82).

    18 Como adverte Monteiro, o termo bandeirante se trata de um anacronismo, pois no pertence a documentao do sculo XVII. A palavra entrou em uso em meados do sculo XVIII, inicialmente

    para designer expedies punitivas contra os ndios em Gois. (Monteiro, 1992, p. 497)

    19 Ver estudo de Antonio J. Brand (1998), que, em sua verso on-line, oferece um excelente

    abreviado da histria do contato.

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 178

    As famlias das comunidades Pyelito Kue e Mbarakay,20 que assinam a carta, habitavam o territrio hoje em disputa sem serem

    importunadas em suas vidas e atividades por no indgenas (Silva,

    2013) at as dcadas de 1940 e 1950, quando projeto de ocupao agrcola do governo Vargas trouxe uma grande leva de gachos e paulistas para a regio, e os ndios foram progressivamente sendo mais e mais despejados em reservas (Brand, 1998). Aqueles que ficaram

    fora das reservas vivem em situaes de extrema precariedade, ao mesmo tempo que buscam o retorno a seus territrios antigos de modo a reconstrurem seu tekoha. Tekoha o lugar e o meio em que se do as condies de possibilidade do modo de ser guarani (Meli, 2010); o

    termo que sintetiza o vnculo complexo entre modo de ocupao do espao atravs de um constante caminhar (oguata),21 vivncia comunitria e sentido cosmognico, como veremos na leitura da Carta.

    A carta

    A carta anunciada como Carta da comunidade Guarani-Kaiow de

    Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justia do Brasil

    Ns (50 homens, 50 mulheres e 70 crianas) comunidades Guarani-Kaiow originrias do tekoha Pyelito Kue/Mbarakay, viemos atravs desta carta apresentar a nossa situao histrica e deciso definitiva diante da ordem de despacho expressa pela Justia Federal de Navirai-MS, conforme o processo n 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012.

    Um ano e dois meses antes da divulgao da Carta, e aps trs dias e noites de reza preparatrias para o caminho de volta, a comunidade Pyelito Kue/Mbarakay retorna ao seu tekoha, no dia 8 de agosto de 2011, informando que, dessa vez, no sair mais de l at a demarcao.22

    20 Pyelito o modo como pronunciam pueblito, pequeno povoado, no seu dialeto guarani, e Kue partcula que indica passado: assim, Pyelito Kue designa o [lugar] que era o Pyelito (Silva, 2013). Mbarakay o nome do outro grupo familiar, que, junto com Pyelito, tentam o retorno a seu tekoha.

    21 Como ressalta texto do Instituto Socioambiental: Entre estes tekoha e por todo o territrio guarani, processam-se as mais variadas formas de efervescente movimento de traslados orientados

    por relaes familiares. Esse constante caminhar (oguata) pode representar visitas, mudanas, passagem, casamentos, etc. (ISA, s.d.).

    22 Para compor essa narrativa resumida, vali-me das vrias informaes veiculadas pelo site do

    Conselho Indigenista Missionrio (Cimi), que acompanha caso a caso os eventos envolvendo os

  • Marlia Librandi-Rocha

    179 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    Essa a terceira tentativa de retorno: tanto na primeira, em julho de 2003, como na segunda, em dezembro de 2009, o grupo foi espancado e jogado beira da estrada por pistoleiros a mando de fazendeiros da regio. Em 2011, o mesmo procedimento vai se repetir at o impacto da Carta que ser veiculada em 8 de outubro de 2012. Inicialmente, o grupo acampara em rea da fazenda Santa Catarina. Foram atacados, seus barracos destrudos e suas lonas confiscadas, conforme documento encaminhado s autoridades pela Assembleia Aty Guasu. Em 5 de setembro de 2011, aqueles que ainda permaneciam no local so violentamente expulsos para a margem do rio Hovy e ali ficam isolados, impedidos de atravessarem para a outra margem, pois as pontes de cips que constroem so constantemente destrudas. As polcias militar e civil do Estado chegam a fazer barreira nas estradas vizinhas para impedir que se leve comida aos ndios, segundo nota pblica de denncia lanada pelo Cimi no dia 9 de setembro de 2011. Em novembro de 2011, outra assembleia da Aty Guasu publica uma Declarao contra ameaas de morte e relata outro caso estarrecedor:

    uma comitiva da Presidncia da Repblica23 foi ao local do conflito. Mesmo escoltado por equipe da Fora Nacional de Segurana Pblica, ao retornar com as lideranas indgenas, o grupo ameaado na estrada por quatro ocupantes de um veculo que os filmava: Um deles se

    apresentou como prefeito de Iguatemi, e outro, como presidente do Sindicato Rural de Iguatemi-MS. Os dois so fazendeiros da regio de Pyelito Kue-Mbarakay (Cimi).

    A situao precria dos ndios isolados na margem do rio persiste, at que em 17 de setembro 2012, o juiz federal Sergio Henrique Bonachela d ganho de causa ao proprietrio da Fazenda Cambar, determinando a manuteno de posse e a retirada dos ndios. ento que a Carta enviada por correio eletrnico a Egon Heck, do Conselho Missionrio Indigenista (Cimi), acompanhada de um relatrio da Aty Guasu, que conclui: No possvel despejar indgenas da margem de

    um rio (Heck, 2012).

    Guarani Kaiow no Mato Grosso do Sul. Para uma consulta direcionada, basta digitar em seu sistema de busca a palavra, Pyelito Kue, e todas as notcias relativas ao caso desde 2011 encontram-se l.

    23 Integram a comitiva o Secretrio de Articulao Social da Secretaria-Geral da Presidncia, Paulo

    Maldos, e dois membros da Secretaria de Direitos Humanos.

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 180

    Recebemos esta informao de que ns comunidades, logo seremos atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela prpria Justia Federal de Navirai-MS. Assim, fica evidente para ns, que a prpria ao da Justia Federal gera e aumenta as violncias contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver na margem de um rio e prximo de nosso territrio tradicional Pyelito Kue/Mbarakay.

    Qualquer conhecedor da literatura latino-americana sabe a importncia da margem, e no caso especfico brasileiro, da importncia da margem de um rio, simbolizada por Joo Guimares Rosa no conto publicado em Primeiras estrias, A terceira margem do rio. Trata-se aqui da margem do rio Hovy:

    A quem vamos denunciar as violncias praticadas contra nossas vidas? Para qual Justia do Brasil? Se a prpria Justia Federal est gerando e alimentando violncias contra ns? Ns j avaliamos a nossa situao atual e conclumos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, no temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa, tanto aqui na margem do rio, quanto longe daqui.

    A terceira margem do rio j foi analisada como territrio dos mortos (Wisnik, 2004). No conto, o filho fica sempre margem, espera do pai, e quando chega sua hora de ocupar o espao do meio do rio, na canoa, o filho receia, vacila e foge, e o conto tambm o relato dessa culpa. Ao recebermos a Carta Guarani Kaiow/Pyelito Kue/Mbarakay estamos postos, ns leitores, na mesma posio desse filho: por isso, a reao de muitos foi adotar o sobrenome Guarani Kaiow, que continuam usando nas redes sociais at hoje. Ao dizerem: no temos e

    nem teremos perspectiva de vida digna e justa, tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui, esses pobres, miserveis e famintos nos

    apelam para o meio simblico que habitamos: o fosso, a vala comum, a morte continuada e impune, ou se alguma redeno no meio do rio e na sua terceira margem ser possvel.

    Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde j ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicdio e duas em decorrncia de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem do rio Hovy h mais de um ano e estamos sem assistncia nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos at hoje. Comemos comida uma vez por

  • Marlia Librandi-Rocha

    181 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso territrio antigo Pyelito Kue/Mbarakay.

    A resposta Guarani Kaiow uma voz fina e mutilada, e do meio dessa fraqueza que aponta para a fraude, a covardia e a matana que a histria do Brasil sempre transcendeu, infelizmente, com o auxlio de

    boa parte de sua literatura.

    De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso territrio antigo esto enterrados vrios de nossos avs e avs, bisavs e bisavs, ali esto os cemitrios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histrico, ns j vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. Por isso, pedimos ao Governo e Justia Federal para no decretar a ordem de despejo/expulso, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar ns todos aqui.

    O Relatrio da Funai fala sobre a importncia das sepulturas entre os guarani:

    Sepultar a pessoa numa terra com a qual no guarda uma relao de identidade, ou seja, qual ela no pertence, constitui uma anomalia de difcil equao em termos cosmolgicos e espirituais para os Kaiow, constituindo-se em algo que deve ter, em algum momento, conserto para que o ordenamento sociocosmolgico se torne aquele que deve ser, o correto. Por constiturem um indcio significativo e materialmente visvel da ligao dos indgenas com seu territrio, uma prtica generalizada foi a de os proprietrios no indgenas destrurem as sepulturas (yta) que se encontravam nos limites das fazendas [...] (Silva, 2013).

    E aqui vem a sentena principal, a fora desse apelo ao revs, pois em nossa lgica ningum pede para ser morto, a no ser que esteja em condies to miserveis e insuportveis, que a vida no valha nem salve:

    Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa dizimao e extino total, alm de enviar vrios tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse nosso pedido aos juzes federais. J aguardamos esta deciso da Justia Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a no sairmos daqui com vida e nem mortos.

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 182

    A preciso importante: no sairo dali com vida, ou seja, expulsos como sempre foram; e tambm no sairo dali nem mortos,

    semelhante expresso nem que me matem, para manifestar recusa

    total a qualquer tipo de remoo, por isso o pedido muito concreto aos juzes federais: enterrem-nos aqui e enviem tratores para cavar o buraco. No se trata, assim, de uma reivindicao para viverem na terra que lhes pertencia, pois j no esperam mais esse direito sempre negado, mas da solicitao de uma cova, um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos, porque assim no sairo da terra em que esto seus

    ancestrais. Esse pedido indito e inverso lgica ruralista de ocupao de enormes territrios para algumas centenas de bois ou para a produo em larga escala da soja ou da cana, baseados em uso explorador da terra. O Guarani no deixa desertos atrs de si (Meli, 1990, p. 36), explica um

    de seus principais estudiosos, remetendo ao conceito de tekoha, ao qual aludimos anteriormente. Comeamos a entend-lo melhor, a partir do pedido dessa carta, que nos revela o quo intenso o sentido do vnculo com a terra, um vnculo que pode ser traduzido em nossos termos como potico, pois est tambm ligado noo da palavra com terra, e no

    apenas com papel, que citamos inicialmente.24

    Sabemos que no temos mais chance de sobreviver dignamente aqui em nosso territrio antigo. J sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justia, porm no vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indgena histrico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. No temos outra opo, esta a nossa ltima deciso unnime diante do despacho da Justia Federal de Navirai-MS.

    E o texto conclui com a formalidade das missivas, como se o que acabasse de enunciar no impossibilitasse a gentileza final para com seus violentadores: Atenciosamente, Guarani-Kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay.

    24 Em seu estudo etnolgico que resulta de uma convivncia e participao em vrios rituais e

    caminhadas do grupo Kaiow na rea de Dourados, Mato Grosso do Sul, sintetiza Gabriela Chamorro: A terra Kaiow e Mby comparada a um corpo murmurante. O mundo vem existncia pela palavra. Antes da criao, a palavra j murmurava nas entranhas da matria (Chamorro, 2008, p. 25).

  • Marlia Librandi-Rocha

    183 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    Ps-carta

    Aps o impacto gerado pela carta, a deciso judicial foi suspensa, e

    aos ndios ficou reservada uma rea onde esto vivendo espera do processo de demarcao. Em janeiro de 2013, foi aprovado e publicado no Dirio Oficial da Unio o Relatrio circunstanciado de identificao e delimitao da terra indgena Iguatemipegua (Silva, 2013), assinado pela antroploga que coordena a equipe da Funai. No momento em que escrevo, a comunidade Pyelito Kue/Mbarakay continua a viver em um hectare de terra, com poucas condies de deslocamento, espera do prazo de 90 dias seguido de outros 60 dias para avaliao e encaminhamento ao Ministrio da Justia. O fato que h 46 fazendas no territrio reconhecido (de 41.571 hectares), e nada ser feito enquanto governo e fazendeiros no chegarem a um acordo sobre indenizaes. Importa lembrar que, segundo a Constituio de 1988, o processo de demarcao das terras indgenas no pas deveria ter sido concludo em 1993. Em 2013, completaram-se vinte anos desde o fim desse prazo. Alm disso, como diz o lder Kaiow Oriel Benites, [a] terra est voltando

    [para os indgenas] toda devastada, sem floresta (Sposati, 2013). O que a carta pe em jogo todo um histrico de represso,

    etnocdio, genocdio, expondo-o ao inverter o discurso que sempre louvou os ndios mortos, enquanto, na prtica, continuava-se a ignorar e a exterminar os vivos. Agora, os ndios vivos solicitam sua morte,

    pois esta vem sendo perpetrada h sculos, e assim denunciam o crime e, pelo revs, pedem socorro. Ao fazerem isso, eles saem da posio de vtimas sem voz, expondo quem so os assassinos. Sua fraqueza vira fora e, por isso, fora potica. Diferentemente de outras cartas que vm circulando nas redes, a dramaticidade desse texto se manifesta em sua dico retorcida; a Carta diz, desdizendo; acusando, aponta sua inocncia; pedindo para morrer, vive. E assim, ao solicitarem que decretem sua morte, os ndios se mostram mais vivos do que nunca.25

    25 Essa carta furou o muro de silncio hipcrita que costuma impedir que as vozes indgenas sejam ouvidas pelos demais cidados do pas e, graas ao circuito informal das redes sociais da internet, acabou tendo que ser divulgada pela mdia convencional. Quando todos todos, isto , todos aqueles que dizemos todos como um grito de raiva e de guerra passaram a se assinar Fulano Guarani Kaiow, era como se o Brasil tivesse descoberto outro Brasil (Viveiros de Castro, 2013).

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 184

    Paragens: o direito terra e literatura

    Jacques Derrida, no ltimo captulo de seu livro Parages, relembra a

    nobre tradio poltica e literria francesa (2003, p. 272) que, de

    Voltaire a Camus, defende a literatura como direito vida: o direito da

    literatura, o direito literatura no como direito morte e ao terror mas como o direito vida, direito para-alm do direito e direito abolio da pena de morte (Derrida, 2003, p. 272, traduo nossa).

    Derrida passa ento a comentar texto de Maurice Blanchot La

    littrature et le droit la mort, que parece indicar o sentido contrrio: a literatura como direito morte, expresso maior da liberdade revolucionria durante o perodo do Terror na Revoluo Francesa. O livro La Part du Feu, de Blanchot, lembra Derrida, foi publicado um ano aps a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, por sua vez, escrita cem anos depois de 1848, quando Victor Hugo vota pela abolio da pena de morte no contexto do Terror revolucionrio. Do texto de Blanchot comentado por Derrida, importa destacar a seguinte passagem, til para entender a torso operada pela Carta Guarani Kaiow:

    Esse o sentido do Terror. Cada cidado tem, por assim dizer, direito morte: a morte no sua condenao, a essncia de seu direito; ele [o cidado] no eliminado [suprim] como culpado, mas precisa da morte para se afirmar cidado e a partir do desaparecimento da morte que a liberdade o faz nascer (Blanchot, 1949, citado por Derrida, 2003, p. 277).

    No parece estranho que essas palavras aplicadas ao acontecimento da Revoluo Francesa se adequem ou se encaixem perfeitamente ao gesto da Carta Guarani Kaiow? No exatamente isso que esto dizendo? A morte no nossa condenao, mas a essncia de nosso direito? O de sermos enterrados no terreno de nossos antepassados, na terra que sempre foi nossa por direito negado e suprimido desde a conquista? E no isso que pedem, exigem mesmo, do governo brasileiro: decretem a nossa morte coletiva e tragam tratores para cavar nossa cova? No esse um gesto de mxima liberdade: a libertao do Terror (esse sim) do massacre sempre disfarado impetrado contra eles?

    O direito da literatura morte o mesmo que est na origem do direito como tal, diz Derrida, o direito de matar, de se matar, e da pena de morte. Mas h uma outra face desse debate que nos faz sair do terror que ela anuncia; e Derrida enumera: 1) a linguagem literria

  • Marlia Librandi-Rocha

    185 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    contraditria e inquieta (diz uma coisa e outra que aparece; 2) o princpio de morte tambm princpio de ressureio e sade, e a esperana est na materialidade da linguagem, pois as palavras so coisas que nos do mais do que compreendemos; e 3) Blanchot fala da morte como impossibilidade de morrer.

    Reivindicar a incluso da Carta Pyelito Kue/Mbarakay como parte de nossa literatura significa ento apelar para dois movimentos: 1) o de

    minar o nossa pela sua ampliao e tirar-nos do domnio colonialista, fazendo com que esse nosso seja, tambm, o dos nativos. E, de novo, no se trata de incluso caritativa ou incluso que elimina a diferena, mas incluso deles como grupo produtor de texto, enunciadores de sua histria, donos de sua voz, aquilo que em nosso regime discursivo chamamos autores, o direito literatura como o direito autoria,

    autoridade e assinatura; e 2) o direito literatura como reverso da pena de morte, pois que no nosso, e agora me refiro ao Ocidental sistema discursivo, h um terreno ao qual se reserva a possibilidade (que venha a ocorrer ou no tarefa delegada aos leitores) de uma sobrevida: esse terreno o arquivo escrito que vai formar parte de uma tradio que os mortos deixam aos vivos e com eles dialogam. Esse o sentido do direito literatura enunciado por Brs Cubas e que parece fazer par com Blanchot/Derrida: como se a morte se inscrevesse enquanto acontecimento inevitvel no processo que faz de algum um autor: como se, em contrapartida, todo o autor estivesse impossibilitado de morrer. O que aqui se anuncia, na fico e pela fico, a presena inelutvel da morte na prpria destinao do texto literrio (Baptista, 2005, p. 166).

    De Caminha ao caminhar

    Nesse contexto, a pequena e incisiva Carta Guarani Kaiow torna-se

    a nova Carta de Caminha, s que ao revs. Se esta era a Carta de Achamento do Brasil, aquela a Carta de Fechamento do Brasil, entendendo pelo termo tanto o fim geral do Brasil, que ou vai desaparecer nas cinzas de seu prprio fogo, brasa que no cessa de incendiar povos e gentes de sua histria, de sua flora e de sua fauna; ou o fim, apenas, do Brasil maior que a primeira carta inaugurava, mostrando-se, pois, como possibilidade, ainda aberta, de um Brasil menor que a sempre esteve e continuar a estar. Se a carta de Pero Vaz de Caminha (que apenas no sculo XIX entra para as histrias literrias)

  • A Carta Guarani Kaiow

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014. 186

    dava notcias do achamento da Terra de Santa Cruz, a carta assinada

    por cinquenta mulheres, cinquenta homens e cinquenta crianas da comunidade Pyelito Kue/Mbarakay fecha um ciclo de cinco sculos e com isso inaugura a possibilidade de outros futuros. Se a carta de Caminha se endereava ao Rei, a carta Kaiow se enderea Justia brasileira. Se a carta de Caminha dava incio escrito ao processo de colonizao, a Carta Guarani Kaiow se institui como o documento descolonial por excelncia. No entanto, h uma diferena ainda mais radical, como vimos discutindo: se a carta de Caminha dava notcia dos ndios vivos que o redator encontrou no Brasil, a carta Kaiow d notcia de sua morte coletiva iminente. No primeiro caso, trata-se de uma carta inaugural; no segundo caso, trata-se de uma carta de despedida. Acontece que aqui, como um quiasma, as coisas se invertem: no primeiro caso, os ndios vivos daro lugar aos milhares de exterminados por guerras e epidemias; no segundo caso, os ndios em via de desaparecimento daro lugar sua multiplicao e vo renascer com a fora de sua palavra. No primeiro caso, os brasileiros vo nascer como os mestios daquele encontro e confronto, e o pau-brasil dar incio a rvore genealgica brasileira; no segundo caso, os brasileiros vo retornar como nativos, parte da famlia extensa Guaranis Kaiows a se espalhar nos rizomas das redes. Sua repercusso deu-nos, de fato, a chance de afirmar no Brasil todo mundo ndio, inclusive eu,26 e meu nome Guarani Kaiow, Munduruku, Kadiwu e Canela, como o belo poema Totem, de Andr Vallias, condensou.27 A fora potica e poltica da Carta de Pyelito Kue/Mbarakay o que este texto buscou descrever.

    26 Frase que retoma a famosa sentena de Viveiros de Castro (2007), No Brasil, todo mundo ndio, exceto quem no .

    27 Veja-se o belo e forte poema Totem de Andr Vallias (2013), que condensa todos os nomes das tribos indgenas do Brasil, e o seguinte comentrio de Viveiros de Castro (2013), que o acompanha:

    Os ndios no so nossos ndios. Eles no so nossos. Eles so ns. Ns somos eles. Todos ns somos todos eles. Somos outros, como todos. Somos deste outro pas, esta terra vasta que se vai devastando, onde ainda ecoam centenas, milhares de gentlicos, etnnimos, nomes de povos,

    palavras estranhas, gramticas misteriosas, sons inauditos, slabas pedregosas mas tambm ditongos

    doces, palavras que escondem gentes e lnguas de que sequer suspeitvamos os nomes.

  • Marlia Librandi-Rocha

    187 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

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    Recebido em abril de 2014. Aprovado em maio de 2014.

    resumo/abstract

    A Carta Guarani Kaiow e o direito a uma literatura com terra e das gentes

    Marlia Librandi-Rocha

    Este artigo prope incluir a Carta Guarani Kaiow no campo da literatura contempornea produzida no Brasil. Essa incluso impe desafios tericos em relao ao que entendemos por literatura, quais suas relaes com os direitos humanos no mbito dos estudos culturais, alm de exigir um enfrentamento com a histria literria do Brasil. O objetivo pensar no apenas nossa

    literatura, historicamente vinculada ao sistema colonial e depois nacional, mas pensar uma literatura vinculada terra, e no apenas da gente do Brasil, mas das gentes da Amrica do Sul.

    Palavras-chave: Guarani Kaiow, tekoha, histria literria brasileira, literatura amerndia.

  • Marlia Librandi-Rocha

    191 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.

    The Guarani Kaiows Letter and the right to a literature with land and from the pluralities of people

    Marlia Librandi-Rocha

    This article proposes to consider the Guarani Kaiowas Letter as part of contemporary Literature produced in Brazil. This inclusion presents itself as a theoretical challenge because it obligates us to explicit what we understand by literature, its connections to Human Rights, and which place this letter

    occupies within the history of Brazilian literature. The final aim is to think not only about our literature, historically linked to the colonial and then to the

    national system, but about a post-colonial literature produced and signed by the pluralities of people living in Brazil.

    Keywords: Guarani Kaiow, tekoha, Brazilian literary history, Amerindian literature.