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AÇÃO PEDAGÓGICA E TRANSFORMAÇÃO EDUCATIVA NAS CRÔNICAS DE
CECÍLIA MEIRELES
Rosane Doralice Lange Schmidt1
Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer2
Profa. Dra Teresa K. Teruya3
RESUMO
Este artigo analisa o pensamento de Cecília Meireles, acerca da educação brasileira, para
identificar em seus escritos os elementos que constituem o processo de ação pedagógica e da
transformação educativa. Para concretizar esse objetivo, realizou-se uma investigação
exploratória das crônicas sobre educação nas décadas de 1930-40, publicadas por Cecília
Meireles, uma jornalista, escritora, poeta e educadora, no jornal carioca Diário de Notícias.
Nessas crônicas, ela defende suas ideias com espírito crítico em relação aos problemas da
educação brasileira.
Palavras-Chave: Escola pública. Crônicas de Cecília Meireles. Ação pedagógica.
Transformação educativa.
EDUCATIONAL ACTION AND THE TRANSFORMATION OF EDUCATION IN
THE LIGHT OF CECÍLIA MEIRELES
ABSTRACT
Broadening the understanding of the thought of Cecilia Meireles about Brazilian education,
seeking to identify the elements in his writings that constitute the process of pedagogical
action and transformation in education is the purpose of this article. To achieve this goal, it
was developed an exploratory survey based on the study of literature relevant to the chronic
production of education, published by the author in the decades of 1930-40, in Diario de
Noticias , a carioca newspaper. Throughout the texts, it ispossible to see a critical spirit
journalist, writer and poet-educator, always concerned with the problems of education in the
country, and for which she defends her ideas with dignity and critical reflection.
Keywords: Chronicles of education, pedagogical action, educational transformation, Cecilia
Meireles.
1 Professora do Departamento de História da UEPR-FECILCAM, Campo Mourão-PR, 2011. E-mail:
[email protected] 2 Professora de Teoria e Prática do Dep. de Educação da UEM.
3 Professora de Teoria e Prática do Dep. de Educação da UEM.
2
introdução
As crônicas de Cecília Meireles estão centradas nos aspectos literários, jornalísticos e
educacionais, que revela uma essência comprometida, obstinada e corajosa. Suas reflexões
abrangeram temas variados no campo da infância, da família, da educação escolar, dos
professores, da escola e da política. Em seus estudos, nota-se um crescente interesse em
explorar o contexto de ação pedagógica e da transformação educativa, realçados pelos
fundamentos filosófico-epistemológicos pautados em objetivos educacionais renovadores. Ela
defende uma escola pública de qualidade para atender toda a população brasileira.
Enfrentando os grandes desafios políticos, Cecília Meireles divulgou suas ideias a
uma sociedade conservadora, atuando como educadora no universo da ação pedagógica, no
qual seu pensamento educacional não foi bem compreendido. Mesmo assim, seus textos
superam “a visão da criança como um ser passível de homogeneização” (MEIRELES, 1930)4.
Para Cecília Meireles, a educação nutre os ideais de mudança social, pois o poder
transformador da educação centra-se no desenvolvimento humano. Assim “quando se tem de
educar é preciso sentir a alma da criança” (LÔBO, 2001, p. 77), e perceber que ela precisa
ocupar um lugar especial no cenário familiar e educacional, podendo ser orientada com
coerência e sinceridade.
O olhar sensível de Cecília Meireles revela-se nas suas crônicas ao expressar uma
preocupação com as imagens projetadas pelos adultos na criança. Sua luta é dar visibilidade
ao problema educacional e transformar as concepções de educação e infância predominante
na sociedade de sua época. Na década de 1930, a educação brasileira vivia um clima de
esperanças e expectativas em decorrência das mudanças que se operavam nos campos
político, econômico e cultural (LÔBO, 2010).
Pécaut (1990) diz que a situação política brasileira, nessa época, passava por um
processo de transição e marcada pela falta de um projeto de transformação social para a
construção de um Brasil moderno. O eixo era construir uma nação com estratégias que
giravam em torno da formação cultural, para isso era necessário organizar a instrução pública
e o sistema de ensino.
4 MEIRELES, Cecília. O mundo dos adultos, 18 set. 1930. (Crônica).
3
Nas décadas de 1920 e 1930, a educação nacional era considerada, pelos intelectuais
que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, um problema nacional que
necessitava urgentemente de soluções.
[...] nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem
mesmo os de caráter econômico podem disputar a primazia nos planos de
reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de
um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as
forças econômicas, ou da produção, sem o preparo intensivo das forças
culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são
os fatores fundamentais do acréscimo da riqueza de uma sociedade
(MANIFESTO ... 1932).
Todavia, a luta de alguns intelectuais da época, faz surgir um movimento de ideias e
de ações no país, para fazer da educação uma prioridade de Estado. O Manifesto de 1932 foi
um movimento educacional anunciava novos tempos para a educação. É neste contexto
histórico que o pensamento de Cecília Meireles ganha relevância na educação brasileira. Os
seus escritos identificam-se com as ideias que constituem uma nova concepção de ação
pedagógica e de transformação educativa. Para tanto, realizou-se uma investigação
exploratória das crônicas sobre educação escolar, publicadas pela autora nas décadas de 1930-
40, no jornal carioca Diário de Notícias. As crônicas revelam um espírito crítico da jornalista,
escritora e poeta/professora/educadora, sempre preocupada com os problemas da educação
brasileira e pelos quais defende suas ideias com dignidade e reflexão crítica.
ATUAÇÃO intelectual no contexto DO mANIFESTO DE 1932
Autora de vários gêneros literários, poesia, prosa, conto e crônica, Cecília Benevides
de Carvalho Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901 no Rio de Janeiro e faleceu em 1964,
aos 63 anos de idade. Teve uma vida pessoal, familiar e profissional intensa, atuando na
literatura, na imprensa e na educação brasileira.
Fez-se ouvir nas instituições e sociedade brasileira, destacando-se pela introspecção,
pela natureza sentimental, subjetiva, filosófica e intuitiva. Na educação, delineou os caminhos
da ação pedagógica e da transformação educativa, realçando-lhe os passos por uma atitude
pragmática (LÔBO, 2010).
Cecília Meireles escreveu várias crônicas no Diário de Notícias, no período de 1930
a 1933. Ela criticava as atitudes do presidente Getúlio Vargas e suas ideias possibilitavam
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uma maior compreensão acerca da relação entre política e educação revelada pelo contexto
que abrigava diferentes realidades sociais: de um lado havia um grande número de
trabalhadores analfabetos, convivendo com uma classe média urbana crescente; de outro, uma
elite aristocrática de origem rural. Nesse espaço se constituía um público que desejava
reformas estruturais na sociedade, fato que levou à implementação de uma indústria cultural,
através da ampliação da imprensa escrita (DAL FARRA, 2006).
Nesse contexto, o Diário de Notícias, era o único órgão de imprensa que
apresentava página totalmente dedicada à educação, intitulada „Página de
Educação‟, dirigida por Cecília Meireles, contendo entrevistas, noticiário,
artigos e uma coluna intitulada “Comentário”, na qual Cecília publicou mais
de 700 textos. Ainda conforme as palavras da pesquisadora, - a Página de
Educação dividia-se em dois planos: o primeiro, marcado pelas digressões
filosóficas e ideológicas de sua diretora, e o segundo, voltado inteiramente
para a luta política (LAMEGO, 1996, p.34).
Detentora de um saber especializado, Corrêa (2001) afirma que Cecília Meireles se
destacava no meio intelectual por articular as questões literárias às questões educacionais. A
pedagogia moderna baseada no pensamento de Jean-Jacques Rousseau fundamenta-se nos
pressupostos educativos de que a boa educação é aquela que estimula o amor pelo
conhecimento. Não se trata de ensinar as ciências, mas “dar-lhe o gosto para amá-las e os
métodos para aprendê-las quando esse gosto estiver suficientemente desenvolvido” (BOTO,
1996, p 29).
Esta efervescência intelectual dos anos 1930 contagiou boa parte dos educadores,
marcada, especialmente, pela escolha da educação como prioridade para o projeto de
transformação do país. Vale destacar ainda a contribuição de Cecília Meireles nessa
conjuntura brasileira. Sua atuação no jornalismo projetou o seu nome e ampliou a sua função
de educadora, contribuindo, assim, para um jornalismo crítico e, ao mesmo tempo,
propositivo, ao indicar sugestões para um projeto moderno de educação e de sociedade
(SILVA, 2008).
Os discursos de Cecília Meireles, publicados em 1930, no Diário de Notícias,
permeados pelas ideias de um Brasil novo, foram responsáveis pela difusão dos princípios da
Escola Nova. Ela defendia a responsabilidade de todos os segmentos sociais na tarefa de
aprimorar continuadamente a educação pública, uma vez que - a responsabilidade política, na
obra educacional, é ponto que não se pode perder de vista, quando se tenta a reconstrução de
uma pátria (MEIRELES, 1998, p.115). Para ela, “a educação era uma das coisas deste mundo
em que acreditava de maneira inabalável” (MEIRELES, 1998, p.46).
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Como jornalista, ela defendia a responsabilidade de tomar para si também a tarefa de
educar. Diz Meireles (1998, p.169), “na vida moderna, o jornal tende, cada vez mais, a ser,
para o povo, a forma rápida e imediata de cultura e, como tal, a determinar-lhe uma orientação
e a modelar-lhe o caráter”.
Silva (2008) afirma que Cecília Meireles articulou o seu pensamento na relação vida
e educação como escritora e educadora, levando-nos a acreditar que a educação precisa ser
alimentada no dia a dia das escolas. Ela atribuía o imperativo de um despertar também para a
arte, na medida em que concebia a íntima relação entre arte e vida, ambas convergindo para a
educação.
A este respeito, Meireles (2001, p.231) diz: “Pudéssemos nós fazer com que todos
compreendessem e apreciassem melhor, não apenas a arte, mas também a vida; de que ela é
apenas um aspecto, - e teríamos realizado completamente a obra imensa, extenuante,
infindável da educação” Em sua época, Cecília já defendia que em termos de leitura, não se
deve ter preconceitos, afinal, como a própria autora manifesta:
Os grandes gênios da arte – como os da ciência – não têm pátria, não têm
limites e, malgrado sofram, muitas vezes, do julgamento dos
contemporâneos que os reduzem, no seu conceito, à mediocridade mais
detestável sempre sabem estar num ambiente universal que é a sua mais
íntima e duradoura satisfação (MEIRELES, 2001, p.62).
Cecília Meireles já apregoava a complexidade da educação e a sua condição
interdisciplinar (MEIRELES, 2001, v,5, p.1). Assim, em forma de prosa, trazia para o espaço
da crônica a discussão dos problemas da sociedade em que vive numa visão crítica da
realidade cultural e ideológica de sua época.
Nas palavras de Silva (2008, p.56), Cecília Meireles,
acreditava no ideal de humanização da educação e, por isso mesmo destaca
em suas crônicas temas que se revestem de extrema relevância para o debate
que ainda hoje se instaura à guisa de desafios a serem enfrentados pelos
educadores de hoje como o interesse pelas crianças e jovens, especialmente,
no que tange à educação estética via literatura, bem como à formação e
atuação dos professores.
O desejo de um novo olhar sobre a educação torna a sua crônica um instrumento de
informação e crítica ao sistema sócio-político e educativo das primeiras décadas do século
XX. Cecília Meireles defendia uma ação educativa ampla, pois para ela, “educar é preparar
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para a vida completa, para que o homem não tenha medo da vida, e saiba agir de acordo com
ela” (MEIRELES, 2001).
Vivendo numa época em que começam a proliferar alguns programas
governamentais, voltados para o controle do analfabetismo, a cronista se posicionou contrária
ao modo como tais ações eram desenvolvidas. Ela defendeu que a função da escola deve
transcender a mera tríade do aprendizado mecânico de ler, escrever e contar, tão propalada
pelos governantes e educadores tradicionais. Para Cecília Meireles, é mister uma visão mais
ampla do que seja ler.
Naturalmente, ninguém vai se arvorar em partidário da ignorância. Por isso
mesmo é que a alfabetização assusta. Pois uma ignorância declarada pode
até ser muito respeitável. E sábia. E útil. Mas a ignorância fantasiada de
cultura, - dessa, Deus meu – como nos defendermos? Como nos livraremos
dos falsos sábios, dos impossíveis messias, dos que juntam as letras mas não
entendem as palavras, dos que juntam as palavras mas não entendem as
frases, dos que juntam as frases mas não têm nada para dizer? (MEIRELES,
1998, p. 278).
Ainda, sobre a educação, Cecília Meireles foi uma intelectual envolvida com a
pedagogia moderna. Em 29 de julho de 1932, no Diário de Notícia, Página de Educação, ela
se manifestou como uma defensora de uma transformação que poderia ser conseguida por
meio da Educação:
Neste momento em que a luta de brasileiros é, para nós, tão lamentável e
cruel como a Grande Guerra, só a mesma esperança nos fica: a de uma
educação que salve, que “acaba de humanizar os homens” - como escreveu
Alfonso Reyes. E essa esperança nos vem somente da Nova Educação. É
verdade que ainda não conhecemos seus efeitos. Mas conhecemos os da
antiga. É deles que o mundo sofre. E que sofre o Brasil. Sofrimento por
sofrimento, não se pode ter maior (MEIRELES, 2001, 29 de julho de 1932)5.
Cecília Meireles criticava um ensino considerado antigo e insuficiente. Ela
acreditava em um mundo de homens formados em uma nova visão de Educação, capaz de
salvá-los e de humanizá-los. Para isso, a atividade jornalística poderia colaborar para ampliar
horizontes, atingir um grande número de leitores para divulgar a importância da Educação
Nova na formação do povo brasileiro. (SENA, 2010).
5 C. Crônicas de Educação. Vol. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Biblioteca Nacional, 2001, estão citadas com
a data da publicação no “Diário de Notícias”.
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Cecília Meireles aspirava por uma escola que promovesse a liberdade e a
espontaneidade do ser humano. Difundia os princípios orientadores da nova perspectiva
pedagógica para outorgar aos homens a liberdade de viverem de acordo com o seu
pensamento. Para ela, era preciso estabelecer novos princípios capazes de introduzir uma
nova atitude pedagógica (LÔBO, 2010), que viesse acompanhada de uma transformação
educativa capaz de tornar a escola atraente. Ela assinala que é importante transformar a
relação pedagógica entre professor e alunos, e o ambiente físico da escola. Na verdade, ela
procurava mostrar que era preciso modificar aquele ambiente hostil da escola que impedia a
sua reorganização pedagógica.
A educação nos anos de 1930 tinha um papel importante: sustentar o novo regime,
sendo um eixo articulador dos princípios que deveriam orientar a sociedade brasileira. Desta
forma, era preciso desenvolver iniciativas para ampliar a escolarização elementar da
população, que nas primeiras décadas do século XX estava excluída da escola, havendo
especial interesse na educação física e moral da infância, iniciativa associada ao
aprimoramento da raça e à possibilidade de redenção nacional (SENA, 2010)
O projeto de construção de um Brasil moderno, portanto, estava relacionado aos
intelectuais, à educação e tinha como foco a infância, entendida como “o homem do futuro,
protagonista de uma nova sociedade” (CORRÊA, 2001a, p. 55).
Todavia, para compor a nova face da educação, era preciso, “retirar a presença ativa
de experiências passadas entranhadas em cada professor sob a forma de esquemas de
percepção, de pensamento e de ação” que aprisionavam a prática docente e obstruíam o
caminho da renovação pedagógica (LÔBO, 2010 p.70).
É neste ideário que Cecília Meireles, aponta para um conhecimento da infância como
uma etapa respeitável da vida. Sua ideia de infância não é o de adulto em miniatura (leitores
pequenos), mas como aquele que vive uma fase com especificidades. É uma fase em processo
de desenvolvimento que está sendo delineada e por isso, merece livros e literatura destinada a
ela, uma fase que precisa ser respeitada. Era preciso outra escrita para esta nova infância, um
novo modelo de ensino da leitura, coerente com esta nova sociedade que a reforma desejava
construir. Não se tratava de se ensinar como a “velha pedagogia” havia feito, mas de
compreender novos valores como coletividade, a importância de servir à pátria através do
trabalho e a valorização do cidadão comum.
A ciência pedagógica, segundo Cecília Meireles, informa que é preciso
conhecer o mundo infantil. Para isso é necessário colocar em destaque a
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concepção de infância que norteia a pedagogia moderna. Seus fundamentos
filosóficos encontram-se em Jean Jacques Rousseau, para quem a infância só
existe em respeito à ordem natural. A infância é parte inalienável da natureza
porque „a natureza quer que as crianças sejam crianças, antes de ser homens‟
por serem diferentes dos adultos, têm maneiras próprias de sentir, ver e
pensar. E devem ser amadas pelos adultos (CORRÊA, 2001b, p. 122).
O arcabouço teórico da pedagogia moderna baseia-se nessa relação assimétrica entre
as partes. De um lado, a criança, ser eticamente amoral porque ingênuo e inconsciente,
necessitando de direção. De outro, o adulto que concede à criança proteção e direção e,
consequentemente, passa a ter o direito de ser obedecido. Esse contrato foi explicitado por
Cecília Meireles em seu livro „Criança, meu amor‟, publicado em 1924 e, posteriormente
indicado como livro de leitura para as escolas públicas do Distrito Federal. Os textos reunidos
sob o título de „Mandamento‟ apresentam os princípios rousseaunianos de forma acessível à
criança (CORRÊA, 2001).
Em correspondência com o amigo Fernando de Azevedo, encontrada em Lamego
(1996), Cecília Meireles por várias vezes comenta sobre sua pesquisa, e em uma das cartas
afirma:
Estou trabalhando numa comissão técnica, estudando o que leem e como
leem as crianças cariocas. Isto me absorve cerca de quatro horas mais, por
dia. Faço-o intensamente, quer como ação quer como intenção. Pode ser que
se chegue a uma visão sugestiva do que temos e do que precisamos (08 de
novembro de 1931). (MEIRELES apud LAMEGO, 1996, p. 218).
Cecília Meireles atendeu a uma encomenda do governo para produzir obras literárias
ao público infanto-juvenil. Ela pesquisou as leituras infantis dentro da escola por meio de
entrevistas, depois tabulou e organizou um Relatório. Essa pesquisa resultou na produção de
obras literárias para atender ao gosto expresso pelo público infanto-juvenil e a demanda
editorial. Como jornalista-educadora, divulgou e propôs um novo conceito de “literatura” para
a formação da infância, afinado às concepções pedagógicas (SENA, 2010).
Nota-se a perspicácia de sua visão sobre educação e sobre a necessidade de
renovação educacional. Sua preocupação é nítida em não subestimar a capacidade intelectiva
das crianças. Cecília Meireles, no livro “Olhinhos de Gato”, defende que a imaginação
criadora da criança se concretiza nas mais diversas situações do dia a dia, levando-a a
construir mundos imaginários e até mesmo a interagir com as coisas e os seres inventados:
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Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas; nas cores do tapete
que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direções secretas. As
pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam que tudo são flores,
grinaldas de flores... flores... mas Olhinhos de Gato bem sabe que ali há
noites, dias, portas, jardins, colinas, plantas e gente encantada, indo e vindo,
e virando o rosto para lhe responder, quando ela chama (MEIRELES, 1983,
p. 17).
O projeto pedagógico de Cecília Meireles muito contribuiu para a construção do
Brasil moderno, pela via da educação, vislumbrado pela poeta-educadora, rejeitava toda e
qualquer forma autoritária de lidar com as crianças e privilegiava a aprendizagem construída
pela experiência, afastando-se de um ensino pautado na memorização de respostas
cristalizadas (SILVA, 2008).
É importante lembrar que, através da função de jornalista, Cecília pôde compartilhar
com os leitores de sua coluna, os ideais da Escola Nova, da qual fazia parte, lutando em
defesa da implementação de uma nova política educacional, capaz de gerir uma educação
promissora, democrática e de qualidade.
Esse ideal de educação, por sua vez, não era responsabilidade apenas da escola,
conforme entendia Cecília Meireles, envolvendo também a sociedade como um todo,
inclusive os pais e a imprensa (SILVA, 2008).
Para a educadora, a criança pode ser vista como alguém que deve ser respeitado
como um outro em sua alteridade, no que é capaz de produzir como cultura. É a existência de
um ser no mundo. A ideia de uma infância que pensa e, portanto, precisa ser ouvida e
orientada com coerência e confiança, era defendida por Cecília Meireles na crônica “Nós e as
crianças” v. 1, p.161, publicado em 24 de outubro de 1930:
Quando nos aproximamos do mundo infantil, o primeiro cuidado que
devemos ter é o de agir de tal modo, que entre nós e as crianças se estabeleça
uma ponte de absoluta confiança, por onde possamos ir até elas, e elas, por
sua vez, sejam capazes de vir até nós. (MEIRELES, 1930, p.161).
Não somente a infância era seu foco, mas as ações dos “adultos da escola” também
não escapavam ao olhar atento da educadora. Sabia que era muito difícil ser professor
naqueles tempos e que poucos estavam realmente envolvidos com os novos ideais
educacionais.
Embora à escola fosse conferida uma responsabilidade fundamental na
transformação das novas ideias em práticas educacionais, o diagnóstico da
educadora era o de que a instituição não estaria, de maneira geral, preparada
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para sua missão. Preocupada com a assimilação, pelos professores, do
pensamento renovado, indicava que aqueles que em seu tempo já se
mostravam afinados com a nova orientação constituíam uma pequena
minoria. (MAGALDI, 2001, p.136).
Foi assim que a reconstrução educacional do Brasil, defendida por Cecília Meireles,
tomou rumos pretensiosos e chegou até nós. Agora, como um chamamento para o
reconhecimento da sua luta a favor de uma educação de qualidade para todos, capaz de,
[...] restituir à criatura humana as suas primitivas qualidades de ânimo livre,
de inteligências franca, de sentimento justo e de vontade equilibradora,
reconquistando-lhe a independência de qualquer preconceito novo, pelo
estímulo da sua iniciativa de observar, do seu destemor de experimentar, da
sua coragem de agir, uma vez desenvolvidas, prévia e sabiamente, todas as
suas faculdades, num ambiente de iniciações favoráveis. (LÔBO, 2010, p.
81).
Para Kastelic e Machado (s.d.), era preciso ainda, a aquisição dos conhecimentos
teóricos e práticos necessários à compreensão dos novos ideais em que se fundamentava a
pedagogia científica, isto é, a escola nova.
[...] para compreender as questões referentes à “Formação de Professores”,
no período do surgimento da Educação Nova, é importante contextualizar,
de forma breve, as primeiras décadas do século XX. Nesse período em que a
sociedade brasileira se reorganizava, reconhece-se, juntamente com a
historiografia brasileira, a importância das lutas travadas pelos defensores da
escola pública na década de 1930. Este período foi marcado por grandes
agitações sociais, culminando com a chamada Revolução de 1930
(KASTELIC; MACHADO, s.d., p.2).
Romanelli (1978, p. 151) descreve esse período de grandes mudanças no cenário
político, econômico e social dos acontecimentos a partir de 1930 no Brasil.
Naturalmente, desde que aceitemos que a sociedade brasileira, após 1930,
iniciou a liquidação da velha ordem oligárquica, sem no entanto eliminá-la
totalmente; desde que concordemos com que o poder passou a ser
estruturado e as lideranças manipuladas de forma que acomodavam velhas e
novas posições; enfim, desde que admitamos que o regime se estabeleceu à
base do compromisso tácito entre o novo e o velho, é incontestável que, na
estrutura então vigente do sistema educacional, o movimento renovador
representava a nova ordem de coisas e a oposição à tradicional
(ROMANELLI, 1978, p.151).
Existiam, naquele período, duas vertentes políticas, a tradicional, representada pelas
forças políticas que exerciam o domínio político do país, e a nova, representada por forças
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políticas que até então não haviam encontrado oportunidade para se organizarem e atuarem no
governo. Dentre estas forças, pode-se destacar o grupo representado pelo tenentismo. O
tenentismo foi um movimento novo e frágil, enquanto as velhas forças políticas estavam
sólidas, firmadas em séculos de dominação. Essa época também foi marcada por lutas
violentas entre esquerdistas e direitistas. As classes sociais participaram de acordo com seu
grau de esclarecimento político, o fascismo, facção política oriunda da Europa, agia junto às
forças políticas de direita, representada pela classe média. A classe operária, ainda não tinha
consciência de seu próprio papel no processo e transformação social (SODRÉ, 1982).
As dificuldades do Sistema Nacional de Ensino no Brasil, de se organizar,
revelavam-se nitidamente nos vários discursos apresentados no período Imperial (SAVIANI
et al., 2004). “A ideia de educação integral, a co-educação dos sexos e a organização de um
sistema nacional”, bem como “[...] a mudança na estrutura organizacional da escola”, e a
formação de professores “para ensinar [...] de forma a se tornar realidade a nova proposta
educacional”, “impressionava vivamente a falta de uma visão global do problema educativo”
(MANIFESTO ... 1932, p.39).
Todavia, as reformas que precederam após as décadas de 1930 e 1940, com o
Manifesto dos Pinheiros da Educação Nova, dirigido ao povo e ao governo, em 1932,
propondo a reconstrução educacional no Brasil, frutificaram, e atualmente, ainda são movidas
pela necessidade de reflexão crítica sobre os fatos que movimentaram as propostas e os
movimentos liderados, em parte, pelos intelectuais da época, a favor de uma educação de
qualidade para todos.
Enfim, o olhar de Cecília para o campo educacional da época e sua ação pedagógica,
revelados em seus escritos, contribuiu largamente para o entendimento da história da
educação brasileira a partir de 1930. Em sua época, ela estava em sintonia com as novas
ideias pedagógica que suscitavam a construção de um novo processo de ação pedagógica e de
uma nova transformação educativa, calcados em seu profundo conhecimento dos problemas
educacionais. Pois, como educadora tinha convicção de que toda ação pedagógica implica em
decisões sobre que conhecimento ensinar, para quem e como fazê-lo e que a luta por uma
sociedade melhor, seria possível por meio da educação. Seu desejo era que todas as pessoas se
interessem pela educação e trabalhem por ela, a fim de preparar uma nova nação brasileira.
considerações
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Cecília Meireles configura-se como uma escritora de perfil multifacetado,
apresentada como um ser humano de muitas faces e fases: poetisa, jornalista, cronista,
professora, intelectual e mulher. Seu nome evoca associações diversas, dadas à pluralidade
estética e temática de suas obras e às múltiplas atividades que desenvolveu entre 1920 e 1964,
no âmbito da educação e da cultura brasileiras. Com este perfil multifacetado, ela direcionou
boa parte da crítica literária, ressaltando, sobretudo, a marca de poeta do efêmero, da morte,
das nuvens, numa postura limitada diante da dimensão estética e filosófica de sua vasta
produção literária e ensaística.
Neste artigo, o nosso olhar incidiu sobre as Crônicas de Educação que revela uma
faceta de cronista da escritora. Suas crônicas continuam atuais e se constituem um campo de
pesquisa valioso para o debate de questões pertinentes da educação brasileira, notadamente,
pela reflexão sobre os conceitos de literatura infantil, o livro para crianças, a preocupação
com o leitor e a formação de professores, dentre outras.
Todavia, o propósito de formar uma nova mentalidade pedagógica, para criar uma
nova escola e implementar um sistema educacional diferente, foi certamente, o sentimento
que motivou Cecília Meireles a entrar na luta em prol de um movimento renovador da
educação brasileira.
referências
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13
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