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Trs agendas, seus resultados e um desafio: balano recente da administrao pblica federal brasileira

Trs agendas, seus resultados e um desafio: balano recente da administrao pblica federal brasileiraFernando Luiz Abrcio*

Resumo Fernando Luiz Abrcio destaca trs das principais linhas de atuao da gesto pblica brasileira no decorrer dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, a saber: a gesto por resultados, a governana federativa e os mecanismos de controle pblico. No primeiro caso assinala a continuidade nos dois governos e expanso das metas por resultados para alguns governos estaduais. A governana federativa se encaminhou para mais articulao intergovernamental, em especial nas reas de sade e educao, bem como para a recentralizao na rea tributria. Os mecanismos de controle, ainda que frgeis, avanaram, especialmente por meio de instituies como a Controladoria Geral da Unio, os Tribunais de Contas e o Ministrio Pblico. Conclui afirmando que apesar dos dficits ainda existentes, os dois governos, atuando no mbito de um processo de democratizao, trouxeram melhora sensvel para a administrao pblica brasileira. Em ambos os casos, ainda que com estilos e prioridades distintas, houve um aperfeioamento contnuo do processo de profissionalizao meritocrtica das carreiras de Estado, embora persista uma precria relao dos partidos e do Legislativo com o tema da gesto pblica. Palavras-chave: relaes intergovernamentais nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, federalismo e centralizao, controles pblicos, governana federativa.Fernando Luiz Abrcio, doutor em Cincia Poltica, professor de Gesto e Administrao Pblica na Escola de Administrao de Empresas de So Paulo da Fundao Getulio Vargas.*

Desigualdade & Diversidade Dossi Especial, segundo semestre de 2011, pp. 119-142

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Abstract Fernando Luiz Abrcio highlights three of the main lines of action in Brazilian public administration during the Fernando Henrique Cardoso and Lula da Silva Administrations: results-based management, federative governance, and mechanisms for public oversight. In the first case, he identifies the continuity between the two Presidents Administrations and the expansion of targets for results in some Statelevel administrations. Federative governance tended towards more linkage between levels of government, especially in the areas of health and education, as well as towards fiscal re-centralization. The mechanisms for public oversight, although still weak, made some progress, especially through such institutions as the Federal Comptrollers Office, the Accounts Courts, and the Office of the Public Prosecutor. The author concludes by stating that despite persistent gaps, the two Administrations, working within a process of democratization, produced tangible improvements in Brazils public administration. Both cases, although with distinct styles and priorities, witnessed a continuous improvement in the process of merit-based professionalization in civil service careers, despite a persistently precarious relationship between the political parties and the Legislative Branch on the issue of public administration. Keywords: intergovernmental relations in the Fernando Henrique Cardoso and Lula da Silva Administrations, federalism and centralization, public oversight, federative governance.

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Trs agendas, seus resultados e um desafio: balano recente da administrao pblica federal brasileira

A administrao pblica contempornea precisa responder, a um s tempo, aos ditames do desempenho governamental e da legitimao democrtica contnua. Esta posio normativa orienta o debate contemporneo das polticas pblicas. A questo- chave que se coloca, do ponto de vista analtico, que instrumentos socioinstitucionais devem ser adotados para perseguir esta dupla meta. A experincia brasileira um caso interessante para explorar este assunto, uma vez que a redemocratizao recente do pas trouxe presses e iniciativas para se melhorar tanto a gesto como o controle pblico. Este artigo procura destacar as principais linhas de atuao e os resultados mais importantes das principais agendas que marcaram recentemente a gesto pblica brasileira, com destaque para o papel do plano federal, realando principalmente trs pontos: a gesto por resultados, a governana federativa e os mecanismos de controle pblico. Ao analisar a trajetria de cada um deles e seus avanos, o texto ressalta um desafio comum: a relao entre poltica e burocracia, que se expressa de diferentes formas em torno destas agendas, mas delimita claramente como se constri o interrelacionamento do desempenho com a legitimao democrtica no Brasil dos ltimos vinte anos. 1) O pacto constitucional: o incio das mudanas na administrao pblica brasileira A Constituio de 1988 abriu o caminho para um conjunto grande de mudanas na administrao pblica brasileira. Em grandes linhas, houve trs frentes de atuao na Carta Constitucional: a profissionalizao da burocracia particularmente com a universalizao do instituto do concurso pblico , a definio de mecanismos de controle e publicizao do Poder Pblico e a descentralizao das polticas pblicas, rompendo com a tradio mais centralizadora do Estado brasileiro ps-Vargas (Abrcio, 2007). Estas mudanas trouxeram ganhos administrao pblica brasileira, reduzindo problemas crnicos como o clientelismo baseado no empreguismo e a pouca visibilidade das decises governamentais. Mas persistiram questes que atrapalhavam a boa gesto, como, por exemplo, a lgica formalista da burocracia e a baixa profissionalizao do servio civil no plano local. Tambm houve a criao de normas que resultaram num tipo de corporativismo estatal, bastante ntido no modelo de isonomia e na falta de regramento das greves no setor pblico, o qual muitas vezes leva a burocracia a se descolar da perspectiva republicana de Estado como se o servidor, neste ambiente, fosse mais estatal do que pblico (Pacheco, 2010). Por fim, vale ressaltar que o processo descentralizador no levou, de incio, a grandes alteraes na governana estadual, seja no que se refere s formas de accountability, seja no que tange qualidade burocracia e da gesto pblica (Abrcio e Gaetani, 2006). O modelo da Constituio de 1988 trouxe, inegavelmente, elementos necessrios transformao do paradigma patrimonialista e centralizador do Estado brasileiro, mas isto no foi, em si, suficiente para fazer as engrenagens da gesto e do controle funcionarem a contento. Nas ltimas duas dcadas, a implementao deste novo arcabouo institucional trouxe novos debates e conceitos, criando instrumentos que procuraram adequar a administrao pblica s exigncias da sociedade brasileira, cada vez mais vida pela ex121

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panso das polticas pblicas, pela melhoria do desempenho governamental e pela maior democratizao do Poder pblico. Entre os aspectos que foram alterados ao longo do caminho, o destaque ficou para trs pontos: a construo de uma agenda baseada na adoo, em maior ou menor medida, da gesto por resultados; a criao de mecanismos para aperfeioar a descentralizao e a coordenao federativa; e o desenvolvimento de uma forte estrutura de transparncia e controle pblico. 2) A gesto por resultados: da lgica da reforma para a adoo incremental de modernizao administrativa (as polticas pblicas puxando a gesto) A despeito dos avanos em termos de profissionalizao e publicizao trazidos pela nova Constituio, o incio do Governo FHC foi marcado por um diagnstico negativo sobre a situao da administrao pblica federal em parte acompanhando o trabalho produzido por Andrade e Jaccoud (1993) e particularmente acerca dos efeitos das normas constitucionais na dinmica da gesto pblica (cf. Bresser-Pereira, 1998; Plano Diretor, 1995). Vale ressaltar que, alm desta viso sobre a realidade brasileira, as ideias daquele perodo foram bastante afetadas pelo movimento de reformas que ocorria em pases da Europa e da Oceania, intitulado de New Public Management. Deste iderio, o mais importante, para o que viria pela frente no Brasil, foi a adoo de uma agenda de gesto por resultados. A reforma Bresser estava fortemente ancorada numa proposta de reforma ampla da administrao pblica, defendendo mudanas institucionais como a flexibilizao das normas relativas aos Recursos Humanos e a criao de um novo design organizacional, por meio das Agncias Executivas e das Organizaes Sociais. Mas o projeto bresseriano tambm atuou noutra frente: o Ministrio da Administrao e Reforma do Estado (MARE) reorganizou a burocracia pblica federal, em sua estrutura e, especialmente, as suas carreiras tpicas de Estado. Neste sentido, sua proposta aperfeioava elementos presentes na Constituio, corrigindo, ademais, por intermdio da Emenda 19, excessos corporativistas e torneirinhas referentes ao gasto pblico. Se analisarmos o projeto reformista de Bresser por sua concepo maximalista, ele no foi bem-sucedido. Na verdade, o prprio Governo FHC no apoiou uma reforma ampla da administrao pblica (cf. Martins, 2002; Ferreira Costa, 2002), como prevista no Plano Diretor, preferindo dar sustentao pontual aos temas que mais interessavam agenda da estabilizao econmica. Entretanto, seu desempenho foi essencial para reconstruir a mquina pblica federal, desarrumada e fragilizada desde os estertores do regime militar, aumentando a capacidade de gesto da Unio. possvel dizer, sem nenhum exagero, que a reorganizao da administrao pblica foi essencial para o sucesso de vrias polticas pblicas dali para diante, que ganharam sustentao para formular e acompanhar os programas, ao esta que foi, em boa medida, continuada pelo Governo Lula. Mas o ponto central do sucesso bresseriano esteve na capacidade de espalhar suas ideias, que foram incorporadas pelos policy-makers federais e em vrios estados. Esta nova viso centrada no desempenho gerou uma prtica orientada mais por metas, indicadores, monitoramento e avaliao das polticas pblicas. verdade que estes instrumentos j122

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tinham sido usados por outras reas do Governo Federal (embora sem tanta consistncia sistmica) e por municpios inovadores um caso paradigmtico aqui o da Prefeitura de Santo Andr, no perodo comandado pelo petista Celso Daniel. No obstante, se possvel dizer que o Plano Diretor no foi o nico vetor causador desta mudana no modelo administrativo, tambm crvel afirmar que ele foi a melhor referncia simblica para este processo de mudana da gesto pblica em prol de uma lgica guiada por resultados. interessante notar que, no segundo mandato de FHC, o sentido mais totalizante da reforma da gesto pblica se perdeu e a adoo de seus princpios pelas polticas pblicas foi pequena. Paradoxalmente, o partido que mais tinha brigado contra ideias presentes no Plano Diretor, o PT, foi aquele que, ao chegar ao poder, mais espraiou uma parte daquelas propostas, em particular o uso de instrumentos de monitoramento e avaliao para as polticas pblicas. A chegada do PT ao poder federal geralmente lida, no plano da gesto pblica, como uma resposta crtica ao Plano Diretor e, consequentemente, s ideias de Bresser-Pereira. De fato, a base poltica do lulismo continha mais resistncias a algumas propostas, como a flexibilizao organizacional ou de pessoal. No entanto, mais correto analisar o perodo Lula como um caminho marcado por contradies e pela adoo fragmentada e difusa da gesto por resultados, em vez de classific-lo predominantemente como uma rejeio integral das ideias bresserianas. Neste sentido, foi feita uma reforma da Previdncia do servidor pblico que FHC no conseguira fazer , embora sua regulamentao tenha sido deixada pela metade; houve a proposio da Fundao Estatal de Direito Privado para a rea de Sade, no to distante da inspirao das Organizaes Sociais, embora o projeto no tenha sido votado no Congresso Nacional, por presses de deputados petistas, principalmente;1 as privatizaes foram criticadas, porm o Governo Lula formulou e promulgou a Lei de Parcerias Pblico-Privado (PPPs), alm de ter ocorrido um processo de concesso de estradas bem-sucedido, do mesmo modo que parcerias com o setor privado expandiram-se na esteira do Plano de Acelerao do Crescimento (PAC). Outros exemplos nesta linha de continuidade, mesmo que problemtica ou tensa, poderiam ser invocados. Para ficar apenas no caso mais interessante de gesto por resultados da experincia lulista, vale citar o caso da reformulao das agncias do INSS, que realiza o ideal de gesto pblica preconizado por Bresser-Pereira, particularmente em seu livro Reforma do Estado e Cidadania (1998): fazer com que as melhorias de gesto cheguem efetivamente aos cidados. Realizado pelo Ministro da Previdncia, Nelson Machado, este projeto conseguiu, a um s tempo, criar um sistema de metas e cobrana por resultados, controle de processos por meio de mecanismos de governo eletrnico e, sobretudo, melhora na prestao dos servios aos usurios, em termos de agilidade, eficincia e efetividade. Mesmo tendo havido continuidades e avanos, o que pode caracterizar singularmente o Governo Lula a falta de uma agenda prioritria e centralizada para a questo da gesto pblica, resultando na adoo de novos modelos de gesto de forma dispersa e fragmentada nas polticas pblicas. Inversamente ao perodo FHC, as polticas pblicas que puxaram a agenda da gesto. Este fenmeno fica claro em programas como o Bolsa Famlia, com a adoo de um mo123

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delo sofisticado de monitoramento, ou, ainda na rea do Desenvolvimento Social, no ndice de Gesto Descentralizada (IGD), instrumento tpico da gesto por resultados, que vincula a distribuio de recursos aos municpios obteno de determinados resultados. Inovaes tambm podem ser vistas na Educao, com o ProUni (Programa Universidade para Todos), o IDEB (ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica), o modelo de compras governamentais e no Plano de Aes Articuladas, importante instrumento de planejamento estratgico que o MEC instalou em milhares de municpios. A gesto por metas do PAC e sua forma de monitoramento, bem como a sua proposta de compartilhamento com governos subnacionais e o setor privado, constitui outro exemplo do uso de modernas tcnicas de gesto. Sobre o PAC vale ressaltar, na linha das polticas pblicas puxando a gesto, que o Governo Lula tentou acoplar um projeto de gerenciamento com um novo modelo de desenvolvimento. Deste casamento, houve bons resultados tanto nos meios adotados em particular o modelo de monitoramento e, embora pouco institucionalizado, as formas de coordenao intra e intergovernamental como dos fins, trazendo ao centro da agenda temas fundamentais para desenvolver o pas e que estavam escanteados ou mal tratados. claro que vrias aes do PAC foram insatisfatrias e deixaram a desejar, afora que h muito a ser feito em termos de polticas para infraestrutura e desenvolvimento no mbito federal. Desse modo, mais do que os sucessos (tambm importantes em si), o Plano de Acelerao do Crescimento reordenou parte do papel do Estado nacional, algo que no poder ser ignorado pelos prximos governantes. Alm da falta de um projeto geral, a melhor forma de diferenciar a reforma Bresser (pelo menos no seu intuito) e a prtica do perodo Lula est no fato de que no primeiro a proposta de gesto por resultados estava vinculada, claramente, a processos de contratualizao da gesto pblica e reformulao organizacional, ao passo que no segundo isto no ocorreu. As gestes petistas no plano federal, neste sentido, utilizaram-se de instrumentos de avaliao e monitoramento de polticas pblicas os quais, salvo raras excees, no criaram uma cadeia de incentivos contratualizados, nem novas formas organizacionais para se alcanar os resultados. Desse modo, a mudana proposta pelo lulismo era mais incremental e se dava principalmente no nvel dos processos, em vez de se buscar alterar a lgica organizacional como um todo. Se, por um lado, isto trouxe a vantagem de se evitar os custos transicionais que h em grandes modificaes institucionais, como a resistncia poltica e a incerteza presente na introduo de novas regras e sistemticas, por outro lado, os limites mais profundos do modelo vigente no foram enfrentados. Cabe frisar que no segundo mandato do Presidente Lula houve duas tentativas de produzir um modelo mais geral e prioritrio para a administrao pblica federal. Uma foi o anteprojeto de Lei Orgnica da Administrao Pblica, incentivado pelo Ministrio do Planejamento, e outra foi a de uma agenda Nacional da Gesto Pblica, capitaneada pela Secretaria de Assuntos Estratgicos em parceria com o Movimento Brasil Competitivo (MBC), graas iniciativa do Ministro Mangabeira Unger. Ambas buscaram aliados em lugares distintos a primeira, nos juristas reformadores, e a segunda, em estudiosos e124

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gestores pblicos e privados , mas nenhuma dela angariou fora dentro do centro do poder. O mais prximo que se chegou de uma estrutura coordenada foi a gesto do PAC no mbito da Casa Civil. Como se sabe, no entanto, a maior parte da prtica administrativa do Executivo federal est fora do Plano de Acelerao do Crescimento. O grande sucesso do Governo Lula no que tange administrao pblica foi o de utilizar novas tcnicas administrativas diretamente nas polticas pblicas, independentemente de se ter uma diretriz geral. Dessa perspectiva surgiram vrias das inovaes governamentais do perodo; todavia, desse modelo tambm advieram os principais problemas. Dito de outro modo, apenas algumas reas da administrao pblica federal melhoraram seu desempenho notadamente o Ministrio do Desenvolvimento Social, o MEC e algumas aes controladas pela Casa Civil, como o Minha Casa Minha Vida , enquanto outras mantiveram uma prtica bastante arcaica, seja do ponto de vista da profissionalizao, seja do ponto de vista da agenda da gesto por resultados. desta realidade que brotam tanto os casos de corrupo como os fracassos em termos de desempenho de resultados. reas como Transportes, Turismo, Esportes e outras, no fundo, no foram ainda atingidas nem pelas mudanas positivas da Constituio de 1988, tampouco pelos avanos obtidos nos anos FHC e Lula. Isto ainda no ocorreu, em boa medida, por conta de problemas no sistema poltico e na relao entre poltica e burocracia. No fundo, preciso saber se a velocidade e a extenso das transformaes j ocorridas na gesto pblica federal so compatveis com o modelo de presidencialismo de coalizo montado no pas. Voltamos a esta questo no final do artigo. 3) A Governana Federativa: Avanos e Problemas A descentralizao era um dos pontos centrais da mudana do paradigma estatal efetuada pela Constituio de 1988. Inegavelmente era necessrio alterar o modelo centralizador at ento vigente, uma vez que o aumento da oferta de direitos, realizado pela redemocratizao, tornaria invivel uma proviso completamente centralizada. Ademais, o processo descentralizador gerou em muitos governos subnacionais uma onda de democratizao e inovao em polticas pblicas (Pinho e Jacobi, 2006). Mas nem sempre a descentralizao gerou os resultados positivos esperados. Governos locais no so sinnimos de democratizao nem de eficincia (Arretche, 1996) e o processo descentralizador por vezes gera externalidades negativas, como o aumento da desigualdade (PrudHomme, 1995). Estas constataes presentes na literatura mais geral verificaram-se no caso brasileiro, com a existncia de formas oligrquicas e de fragilidades administrativas em diversos governos subnacionais. Aqui, a grande heterogeneidade entre os entes federativos, a parca tradio de proviso de servios no plano local, a baixa profissionalizao da burocracia, a pouca efetividade do controle pblico em estados e municpios, entre os principais aspectos, explicam os problemas da descentralizao no Brasil. A estes aspectos deve-se acrescentar a ausncia inicial, logo aps a Constituio de 1988, de um projeto de construo da descentralizao e da coordenao entre os entes federativos. As polticas pblicas foram descentralizadas sem haver a preocupao de melhorar125

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a articulao intergovernamental, tampouco se levou em conta a heterogeneidade e a desigualdade presentes na Federao brasileira. Este processo gerou trs resultados negativos: a) a adoo de um modelo compartimentalizado de relaes intergovernamentais, nas quais cada nvel de governo atuava mais de forma autrquica do que compartilhada, uma vez que os custos da barganha federativa em prol da cooperao tornavam-se muito altos (Daniel, 2001; Abrcio, 2005; Machado, 2009); b) o aumento da competio entre os governos subnacionais, em processos como a guerra fiscal ou o jogo de empurra das polticas pblicas como nos casos de municpios que pagavam pela construo de hospitais e se viam invadidos pelos habitantes das cidades vizinhas, cujas prefeituras pegavam carona e apenas participavam da proviso do servio pela compra de ambulncias; c) a perda de uma viso mais sistmica e/ou nacional das polticas pblicas, num pas bastante desigual e que, por conta desta natureza, precisa de padres bsicos e de aes contra a assimetria dos entes federativos; A agenda da governana federativa comeou a mudar em meados da dcada de 1990. O ponto de partida foram as mudanas causadas pelo Plano Real, seja no plano econmico com a reduo drstica da inflao, seja no plano poltico, com a nova configurao de foras, favorveis s reformas empreendidas pelo Presidente Fernando Henrique (Abrcio e Ferreira Costa, 1998). A partir de ento, o Governo Federal recuperou poder e centralidade no jogo federativo. Primeiro, por meio da recentralizao tributria, que j comeara um pouco antes, mas que ganhara mais fora e teve um salto brutal nos anos em que o PSDB esteve comandando o pas tal diviso de recursos entre os nveis de governo permaneceu praticamente a mesma durante o perodo petista, que, portanto, no reverteu este processo. Tambm merece grande destaque a reformulao das relaes federativas no plano financeiro, especialmente no que tange aos estados, que, aps mais de uma dcada de irresponsabilidade fiscal, entraram praticamente em dfault em 1995, perdendo o poder de utilizar instrumentos predatrios para seu financiamento. Desta situao advieram medidas como a interveno nos bancos estaduais que na poca serviam como instrumentos dos governadores para produzir um endividamento quase sem controle , a renegociao das dvidas dos governos subnacionais (1997) e, por fim, a aprovao da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000 (Loureiro e Abrcio, 2004). Do ponto de vista das polticas pblicas, o processo foi alm de uma mera recentralizao ou da reduo de instrumentos financeiros predatrios. O objetivo era fazer com que a implementao das polticas de forma descentralizada respondesse melhor s questes da eficincia, efetividade e equidade. Para tanto, seria necessrio criar padres nacionais (baseados em metas, avaliao e, por vezes, premiaes/punies), redistribuir recursos segundo critrios de desempenho e montar mecanismos de induo para que os governos subnacionais assumissem certos programas ou construssem determinadas estruturas administrativas, atividades estas que exigiram diferentes capacidades e formas variadas de implementao das decises por parte da Unio.126

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Em poucas palavras, tratava-se de coordenar federativamente as polticas pblicas, o que levou o Governo Federal a um processo contnuo de legitimao junto a estados e municpios, embora com intensidades diferentes conforme o setor. Mesmo nos casos em que a participao da Unio foi inicialmente, ou ainda comparativamente mais hierrquica, crescentemente foram ganhando importncia arenas e fruns federativos nos quais, em maior ou menor medida, os governos subnacionais se fazem representados e procuram interferir no processo deliberativo. Articulaes horizontais entre estados ou municpios e sistemas nacionais de polticas pblicas ganharam importncia no jogo federativo (Sano, 2008; Franzese, 2010; Abrcio; Franzese e Sano, 2010). Exemplos dessas aes de coordenao federativa iniciam-se com a montagem gradativa, ao longo da dcada de 1990, do Sistema nico de Sade (SUS). Desde a promulgao da Constituio e da Lei Orgnica (1990), passando pelas Normas Operacionais Bsicas (NOBs) 1993 e 1996, trs instrumentos principais de coordenao instalaram-se: a criao de fruns e arenas interfederativas de discusso, negociao e deliberao; o estabelecimento de um piso de ateno bsica para todos os municpios o PAB , como maneira de enfrentar a desigualdade; e a Unio comeou a repassar recursos extras aos governos que adotassem polticas consideradas importantes nacionalmente como o Programa Sade da Famlia (PSF) , induzindo os entes federativos a adotar tais programas. O fato que o SUS se transformou num caso paradigmtico do que tem sido chamado de sistemas de polticas pblicas (Franzese, 2010), no qual o arranjo intergovernamental pea-chave. Vale ressaltar que vrias polticas tm se inspirado no conceito de sistema nacional de polticas pblicas, com mais ou menos sucesso de formulao e implementao. Mudanas federativas ocorreram igualmente na questo educacional. Iniciaram-se com alteraes no padro de financiamento, procurando redistribuir melhor, tanto no plano vertical quanto no horizontal, os recursos entre os municpios, em prol daqueles que aumentassem o nmero de alunos matriculados. Neste sentido, foram aprovados o Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (Fundef ), no Governo FHC, e o Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao (Fundeb), no mandato de Lula. Para alm do financiamento, melhores avanos em termos de coordenao federativa ocorreram na gesto do ministro Fernando Haddad. Neste perodo, foi criado o IDEB para avaliar e monitorar padres nacionais mensurveis de desempenho educacional (algo indito na histria do pas),2 ao qual se agrega, neste mesmo objetivo, a criao do piso nacional do magistrio, para minorar as diferenas de padro salarial entre as burocracia de estados to dspares. Como forma de melhorar a qualidade das polticas educacionais nos municpios, foi criado o Plano de Aes Articuladas (PAR), o qual vincula o repasse de verbas montagem de um planejamento estratgico para as polticas educacionais locais. Negociaes polticas informais com os estados e municpios e, sobretudo, com seus representantes, por meio do Conselho dos Secretrios Estaduais de Educao (Consed) e da Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao (Undime), tambm foi outro destaque do perodo.127

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Outras reas passaram por processos de coordenao federativa durante o perodo Lula, com destaque para o Ministrio do Desenvolvimento Social. Nele, foi formulado e implementado programa Bolsa Famlia, o qual, do ponto de vista federativo, tem duas funes: a redistribuio de renda, reduzindo no s desigualdades interpessoais como ainda as regionais, e a articulao com as polticas de Sade e Educao no plano local, uma vez que a famlia beneficiria s recebe a transferncia caso cumpra condicionalidades vinculadas a estas duas polticas, executadas no plano local (Lcio; Mesquita e Curralero, 2011). Ainda vale ressaltar que o Bolsa Famlia, ao entregar os recursos diretamente populao, por meio de um carto eletrnico, conseguiu ter um enorme impacto social sem precisar do exrcito de intermedirios polticos locais, enfraquecendo elites oligrquicas que se beneficiavam de relaes clientelistas e subservientes com o Governo Federal. No plano institucional, a principal ao do lulismo para melhorar a articulao intergovernamental foi a aprovao, em 2005, do projeto que cria os Consrcios Pblicos. Embora no tenha havido o crescimento esperado dessa modalidade de associativismo territorial (Abrcio, 2011), recentemente foram constitudas experincias interessantes, como o Consrcio de Transportes do Grande Recife e a adoo obrigatria de consorciamento para aqueles governos locais que pleitearem recursos federais poltica nacional de resduos slidos.3 A coordenao federativa envolve o enfrentamento de trs desafios bsicos para o aperfeioamento da administrao pblica brasileira. O primeiro dizia respeito conciliao de dois dos mandamentos mais profundos da Constituio de 1988: a expanso dos direitos (particularmente por meio de polticas sociais) e a implementao descentralizada da maioria das polticas, preferencialmente pelos municpios, transformados em entes federativos. A dificuldade de juntar os dois processos encontrava-se, em parte, na baixa tradio dos governos locais em provisionar extensamente e de forma universal os servios e programas governamentais, o que se refletia na fragilidade administrativa. Por outra parte, era muito complicado expandir igualmente direitos num pas marcado por fortes desigualdades territoriais e h mais diferenas e heterogeneidades entre os 5.565 municpios do que entre as cinco macrorregies. A resoluo deste desafio de coordenao federativa passa pelo aumento das qualidades de gesto dos governos subnacionais, pelo estabelecimento de mecanismos que incentivem a ao conjunta das prefeituras de uma mesma rea, como ainda pela criao de capacidades indutoras no plano federal. O segundo desafio de coordenao federativa reside na compatibilizao dos dois ideais presentes nas Federaes democrticas: o da autonomia e o da interdependncia (Elazar, 1987). Este objetivo praticamente novo para o federalismo brasileiro, uma vez que a histria moderna do pas, inaugurada pela revoluo varguista, foi muito mais marcada pela centralizao estatal e por relaes autoritrias e subservientes no plano intergovernamental. fato que no perodo 1946-1964 houve pluralismo poltico e mais autonomia das elites regionais. Entretanto, a descentralizao de polticas ampliadas e universalizadas no era regra, ao mesmo tempo em que os municpios tinham baixssima autonomia constitucional. Este cenrio muda radicalmente nos ltimos 25 anos, constituindo-se uma Federao bem128

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mais democrtica, com relaes intergovernamentais mais complexas. Do ponto de vista da administrao pblica, esta nova situao pressupe uma relao mais dialgica entre os nveis de governo, com espaos formais e informais para lidar com isso, e a criao de incentivos institucionais que favoream a atuao mais cooperativa e entrelaada. Por fim, a relao entre poltica e burocracia tambm traz desafios para a governana federativa. De um lado, relaciona-se com a melhoria dos instrumentos de accountability e gesto dos governos subnacionais, tornando mais republicanos e democrticos. De outro, est vinculado com o sistema de intermediao dos parlamentares e polticos regionais presente no Oramento e na estrutura de cargos da mquina pblica federal. No que se refere ao primeiro ponto, ressalte-se que os governos estaduais comearam um ciclo de reformas da gesto pblica em 1995, quando precisaram fazer um forte ajuste fiscal. Esta onda ganhou mais fora a partir de 2003, momento em que alguns estados lideraram mudanas orientadas pela gesto por resultados, sendo o caso mais notrio o de Minas Gerais, primeiro com o Choque de Gesto, depois com o chamado Estado para Resultados. Por meio do Conselho de Secretrios Estaduais de Administrao (Consad) e a partir da vinda de tcnicos que haviam trabalhado no Governo Federal, outras governadorias entraram neste processo reformista, com destaque para Pernambuco, Sergipe, Esprito Santo, Acre, Bahia e, mais recentemente, o Rio de Janeiro. Note-se que tais governos estavam sob o comando de partidos diversos, da situao e da oposio no plano federal. Governadorias petistas, como a de Marcelo Deda ou a de Jaques Wagner, tomaram medidas e adotaram modelos que dialogam com as ideias presentes na Reforma Bresser, realando como a gesto por resultados, mesmo que por caminhos diferentes, tem avanado no pas. A maioria destes estados colocou a agenda da gesto pblica num patamar estratgico melhor do que o presente no plano federal. Especialmente Minas Gerais e Pernambuco deram a esta questo um carter integrador das aes governamentais, em vez do modelo fragmentado adotado no Governo Lula. Por esta razo, tais governos estaduais conseguiram dar um sentido mais sistmico s reformas da administrao pblica. Como contraponto, o Governo Federal tem conseguido colar mais a gesto s polticas pblicas, o que potencializa a sua capacidade de transformao. Mas tambm deve se ressaltar que alguns estados comearam mais recentemente este processo de tentar acoplar mais a gesto s polticas pblicas. O problema mais complicado para atingir este objetivo est hoje no na questo fiscal, como ocorreu durante mais de dez anos, e sim na indefinio das competncias estaduais e na relao federativa mais forte estabelecida entre a Unio e os municpios. Como forma de mudar esta situao, diversos governos estaduais esto criando estruturas regionalizadas, com parcerias mais claras e formalizadas com os municpios, como o caso do Cear. O Governo Federal sob o comando petista, mesmo tendo dado menor prioridade agenda da gesto pblica, atuou tambm como impulsionador de reformas no plano estadual, por meio do Programa Nacional de Apoio Modernizao da Gesto e do Planejamento dos Estados Brasileiros e do Distrito Federal (PNAGE), ao que procurou diagnosticar a situao das mquinas pblicas estaduais e lhes repassar recursos para me129

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lhoria da gesto. interessante notar duas coisas em relao ao PNAGE. A primeira que ele se orientou por dois parmetros fundamentais da Era Lula, que so a governana mais participativa e combate desigualdade, o que significou que o programa foi montado conjuntamente com todos os estados foi o primeiro programa brasileiro efetivamente nacional de modernizao administrativa e procurou auxiliar, sobretudo, os mais frgeis em termos financeiros e administrativos. Este avano no campo da induo federativa em prol de reformas do Estado conviveu paradoxalmente, como j dito, com a falta de uma proposta integrada de gesto para a administrao pblica federal (Abrcio, 2005a). A raiz disso talvez esteja no s na lgica mais fragmentada e baseada no princpio de que as polticas puxam a gesto, como tambm se relaciona com os ditames do presidencialismo de coalizo e seus efeitos no Executivo federal. Tal questo reaparece, ainda no plano da governana federativa, na distribuio de cargos e recursos federais por intermdio de congressistas e polticos regionais. Novamente, a resoluo do imbrglio passa pela dinmica da relao entre poltica e burocracia, desafio que ser tratado na concluso do artigo. 4) Os avanos no controle pblico federal e seus limites A Constituio de 1988 criou novas possibilidades de controle institucional do Poder pblico, gerando instrumentos para fortalecer a accountability vertical e horizontal. A efetivao destes mecanismos, no entanto, no foi automtica. A trajetria poltico institucional do pas nas duas ltimas dcadas consolidou e aperfeioou a responsabilizao democrtica, num caminho com percalos e aprendizados. Do ponto de vista eleitoral, as eleies se tornaram, paulatinamente, mais competitivas, livres e limpas. Obviamente que este processo no levou ao fim de fenmenos como o clientelismo, a oligarquizao, a dificuldade de controlar os representantes e a corrupo. Mas, da situao inicial aos dias hoje, muitas melhoras houve. O fortalecimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tanto no uso das urnas eletrnicas quanto no combate e punio das fraudes eleitorais, inegvel. As principais foras polticas j ocuparam as funes pblicas mais importantes no plano federal e, afora os arroubos da linguagem poltica (com todos os seus exageros), tm convivido bem com a alternncia poltica, num pas que no sculo 20 foi marcado pelo golpismo. A accountability vertical avanou igualmente no campo do controle social. A Constituio e a legislao infraconstitucional propuseram a criao de diversos Conselhos de Polticas Pblicas pelo Brasil afora. Continuando esta tendncia, vrios programas e polticas implantados nos governos FHC e Lula atrelaram o recebimento de recursos montagem de mecanismos de participao e fiscalizao locais. Se verdade que nem sempre tais instituies conseguem ser efetivas na democratizao do plano local, sendo muitas vezes frgeis perante os Executivos subnacionais e/ou os grupos de interesse mais poderosos, tambm deve se ressaltar que nunca houve tantos cidados participando, de algum modo, do ciclo de polticas pblicas e, conseqentemente, o Estado se tornou mais visvel e permevel para a sociedade.130

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Mais recentemente, no perodo Lula, as formas de participao social ganharam espao no plano federal, particularmente com as Conferncias Nacionais de polticas pblicas. Trabalho feito por Pogrebinschi e Santos (2010) mostra que entre 1988 e 2009 foram realizadas oitenta Conferncias Nacionais (68% delas ocorridas na gesto petista) envolvendo 33 temticas. O uso deste instrumento participativo tem gerado quatro efeitos importantes: a incluso de novos atores e assuntos agenda nacional, a realizao de debates que ajudam a amadurecer a poltica pblica em questo, a criao de um mecanismo de presso sobre o Poder Executivo e a produo de projetos no Legislativo derivada dessa discusso segundo Pogrebinschi e Santos (2010), durante este perodo foram apresentados 3.750 projetos de lei no Congresso Nacional que guardavam afinidade com 1.937 diretrizes resultantes das Conferncias. Dois outros exemplos recentes de accountability vertical no mbito federal so a abertura participao social na elaborao do Plano Plurianual (PPA) e a constituio do Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (CDES), popularmente conhecido como Conselho. No primeiro caso, no possvel inferir resultados significativos do processo de ampliao participativa no plano oramentrio, at porque grande parte do Oramento j vinculada a determinadas despesas e, ademais, o grau de centralizao da execuo oramentria tornam o PPA e as outras peas oramentrias um instrumento pouco efetivo de sinalizao de preferncias sociais construdas por mecanismos participativos. No caso do CDES, trata-se de um instrumento que amplia a esfera pblica, trazendo atores sociais dos mais diversos tipos para a discusso dos assuntos mais importantes do pas, exatamente numa instituio sediada na Presidncia da Repblica. Embora possa se questionar sua eficcia decisria, uma vez que suas decises no tm poder vinculante (Fleury, 2005), criou-se a um espao importante de debate entre variados grupos de interesse e seus representantes. Dada a tradio insulada e pouco transparente das decises polticas presidenciais, no se pode negar que o experimento do CDES avanou em termos de permeabilidade social, a despeito de suas funes institucionais ainda serem imprecisas e suas decises terem, por ora, pouco impacto na agenda de polticas pblicas. Obviamente que a participao social no plano federal mais limitada do que a possibilidade de atuao no plano local, em razo da prpria proximidade espacial dos cidados e das polticas afetadas. Alm disso, o controle social muitas vezes dificultado por falhas no campo da gesto, uma vez que a falta de informao e de instrumentos de acompanhamento de resultados podem criar obstculos para que cidados, individualmente ou de forma organizada, possam efetivamente fiscalizar o Poder pblico. interessante que o Governo Lula, no qual de fato houve uma ampliao dos mecanismos participativos, por no ter uma agenda de gesto clara e prioritria de gesto e indicadores de desempenho em grande parte dos Ministrios, enfraqueceu sua prpria escolha poltica, gerando aquilo que Francisco Longo chamou de um tipo de controle social sem [capacidade de] accountability (Longo, 2009, p. 7). A escolha pela ampliao dos mecanismos participativos , evidentemente, um mrito da gesto Lula no plano da administrao pblica. Mas cabe frisar a dificuldade que o gover131

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no petista teve em lidar concomitantemente com a ampliao da democracia deliberativa e o jogo tradicional da democracia representativa brasileira, identificada nos padres de relacionamento com o Congresso Nacional, baseados principalmente na troca de cargos na casa dos milhares e verbas por apoio. Dito de outra forma, se um lado foi marcado por enormes inovaes institucionais embora nem sempre ainda bem-sucedidas no outro esteve presente a reproduo da mesma forma de conquista de maioria parlamentar que vigorou noutros governos. No se prope aqui o modelo que ignora o Legislativo em nome do participacionismo, tampouco a imposio de um presidencialismo imperial. No obstante, mais uma vez, se percebe como a relao entre poltica e administrao precisa de novos projetos, ausentes depois de passados mais de 20 anos de reconstruo democrtica. Um dos campos de melhor evoluo institucional no mbito federal foi o do accountability horizontal, em particular o vinculado ao chamado controle procedimental (cf. definio de CLAD, 2000). Os alarmes de incndio institucionais da derivados conseguem captar, cada vez mais, os desvios do Poder pblico, de modo que nunca no Brasil se teve tanta capacidade de trazer luz, em especial no mbito nacional, a corrupo. Este diagnstico aparentemente contradiz a mobilizao de setores da sociedade (embora tragam poucas pessoas s ruas) e mesmo o pipocar de escndalos no perodo recente. Mas a melhor capacidade de tornar transparentes os desmandos governamentais no plano federal que gera este paradoxo, ao que se somam alguns fatores que permitem e at facilitam, a despeito da melhoria contnua da democracia brasileira, a ecloso de atos corruptos. Antes de entender melhor as razes que tornam insuficientes os alarmes de incndio, fundamental expor os avanos obtidos. Um retrato panormico deste processo revela que ele se iniciou com a Constituio de 1988, quando os rgos de fiscalizao ganharam mais autonomia, em particular o Ministrio Pblico. No decorrer da dcada de 1990, o clamor social por mais transparncia e accountability, impulsionado pela campanha do impeachment e por vrias CPIs, obrigou os governos e congressistas a melhorar o arcabouo legal. No incio do sculo 21, a aprovao da Lei de Responsabilidade Fiscal criou mais obstculos a aes perdulrias ao estilo quebrei o estado, mas elegi meu sucessor. Finalizando esta trajetria de mudana, o Governo Lula fortaleceu a Controladoria Geral da Unio e a Polcia Federal, bem como, em paralelo, o Tribunal de Contas da Unio (TCU) tornou-se mais ativo e poderoso (cf. Speck, 2010; Olivieri, 2010; Loureiro et alii, 2011; Abrcio, 2011a). Se a Constituio de 1988 abriu a possibilidade institucional para o fortalecimento do sistema de controles, o caminho posterior no foi linear. As instituies andaram em ritmos diferentes e sua evoluo foi vinculada tanto a fatores exgenos como endgenos. No caso das variveis externas, possvel observar dois pontos comuns na trajetria da accountability horizontal no plano federal: a demanda crescente da sociedade por mais democratizao e o surgimento de eventos que tiveram o papel de conjunturas crticas, nos quais no s houve um fato relevante que mobilizou a opinio pblica (com destaque para a intermediao da mdia) e os polticos, como este gerou uma resposta institucional, na forma de novas regras e da reestruturao dos rgos.132

Trs agendas, seus resultados e um desafio: balano recente da administrao pblica federal brasileira

O Ministrio Pblico Federal foi o que apareceu mais rapidamente neste novo contexto de alarmes de incndios atuantes. Similarmente aos congneres estaduais, eles tornaram-se rapidamente ativos na figura dos seus promotores, agentes com grande capacidade fragmentada e individualizada de nutrir o sistema de controle (Arantes, 2002). Esta atomizao da ao do MP federal gerou melhor capacidade de trabalho, sendo inegavelmente importante para expandir a garantia dos direitos difusos e para vigiar e controlar desmandos do Poder pblico, ou ento para atuar como auxiliar do trabalho fiscalizatrio e essencial da oposio aos ltimos governos. Entretanto, essa mesma caracterstica institucional foi acompanhada, em muitas ocasies, de um comportamento mais jacobino de seus componentes, o que levava grande publicizao das aes normalmente em parceria com a imprensa , mas que igualmente redundava em pouca efetividade judicial, seja pela falta de provas, seja pelos exageros cometidos ao longo do processo alguns desses integrantes ficaram clebres no Governo Fernando Henrique pela maneira caricata que atuavam. Somava-se a esta situao o fato de que a autonomia do Procurador-Geral da Repblica perdeu fora na dcada de 1990, mais claramente no perodo FHC, quando eles foram chamados de engavetadores-gerais da Repblica, isto , no davam vazo, do alto da instituio, ao trabalho do restante da corporao, notadamente nos casos que envolviam figuras importantes do Governo Federal. Ao longo da primeira dcada do sculo 21, em particular no perodo Lula, o Ministrio Pblico Federal passou por trs importantes modificaes. Primeiro, tem havido mais coordenao institucional entre os seus membros, ao que se adiciona ao aumento da preocupao com a governana da instituio. Segundo, os Procuradores-Gerais da Repblica escolhidos pelo presidente comearam a ter mais autonomia poltica e ampliaram o controle sobre o centro do Poder. E, terceiro, o MP tem se preocupado mais em se articular com os demais rgos de controle presentes no plano federal, o que tem fortalecido sua capacidade institucional. O controle externo teve avanos tambm no mbito do Tribunal de Contas da Unio. Embora sofra do limite institucional de ter a maior parte de seus membros vinculada a uma escolha poltico-partidria e tenha, ademais, que definir, ano a ano, parcela de sua autonomia junto ao Congresso Nacional, o TCU vem ganhando importncia como delimitador dos atos da administrao pblica federal. Trs eventos crticos, quais sejam, a Lei de Licitaes (1993), a CPI das Obras Pblicas (1995-1996) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), favoreceram o fortalecimento do Tribunal de Contas. Somaram-se a tais fatores externos, duas aes endgenas: o reforo dos quadros tcnicos, que recebem salrios melhores do que a maioria das carreiras de Estado do Executivo, e a melhoria de sua gesto, com programas de capacitao e intercmbio internacional e a melhor utilizao das visitas de campo, para alm do trabalho de mero acompanhamento dos procedimentos (Loureiro et alii, 2011). Estas mudanas fizeram com que o TCU ganhasse poder dentro do sistema poltico nacional. Ao ter este novo status, e assim incomodar mais o governo de ocasio, tambm comeou a enfrentar mais obstculos s suas aes, em especial na articulao do Executivo com o Congresso, a cada ano, para delimitar as funes de rgo auxiliar do Legislativo133

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que cabe ao Tribunal de Contas. Isso se d principalmente no que se refere paralisao de obras pblicas e sua fiscalizao. Mais um choque estrutural enfrentado pelo TCU diz respeito modalidade de controle. Este aspecto envolve duas coisas: uma so os conflitos com o controle interno em relao ao de campo de atuao de ambos, gerando muitas vezes redundncia e frico; a outra questo se relaciona com a tentativa de fazer controles a posteriori, sem que tenha havido uma definio prvia dos critrios que guiariam a avaliao dos gestores pblicos (Loureiro et alii, 2011). Aqui se identifica um ponto marcante nos ltimos anos: h uma sensao na administrao pblica federal de que aumentaram os embates e a incongruncia de objetivos entre gesto e controle. Mudanas institucionais aconteceram igualmente em rgos do Executivo federal incumbidos de atuar no campo do controle. Destaque especial para a Polcia Federal e a Controladoria Geral da Unio (CGU). No caso da PF, ela se fortaleceu bastante nos ltimos 20 anos, em especial a partir da gesto do Ministro Mrcio Thomaz Bastos, durante o primeiro governo Lula. No s houve um fortalecimento institucional interno muito grande, como tambm a instituio se concentrou no combate corrupo, como mostrou estudo recente de Rogrio Arantes (2010). Este maior impacto neste tema teve outro efeito importante: as demais instituies de controle cada vez mais atuam em parceria ou com base em material coletado e trabalhado em investigaes da Polcia Federal. A CGU uma novidade importante no campo do controle pblico federal. Sua estrutura atual origina-se das mudanas ocorridas no controle interno ao longo da dcada de 1990, com sua gradativa centralizao, e da importncia que os temas da transparncia e do combate corrupo ganharam nos ltimos anos, mormente no Governo Lula, obrigando o Executivo federal a montar uma mquina burocrtica capaz de monitorar, de forma cada vez mais fina, o caminho dos gastos pblicos.4 Muitos dos escndalos recentes vieram tona a partir do trabalho da CGU. Sua ao de fiscalizao no abrange apenas as aes centralizadas dos Ministrios, mas tambm o uso de recursos federais pelos governos subnacionais, a partir do programa de sorteios para realizao de auditorias, concentradas principalmente nos municpios. Esta atividade deu uma capilaridade enorme CGU, que a tornou habilitada a mapear e averiguar, in loco, as fragilidades da administrao local, incluindo a a corrupo. Duas outras inovaes institucionais foram feitas pela CGU. A primeira est no campo da transparncia governamental, tema escolhido pelo Presidente Lula como central em seu mandato. Sua principal ao foi a construo do Portal da Transparncia, uma das melhores inovaes da democracia brasileira, que tornou mais cristalinas as aes federais para os cidados, em particular no campo do gasto pblico. Alm disso, a CGU tem inovado no campo da preparao de gestores locais e membros da sociedade civil para aprender como controlar a gesto pblica o Programa Olho Vivo um grande exemplo neste sentido. Os avanos da Controladoria Geral da Unio ancoram-se, como nos outros casos de instituies de controle, no reforo do profissionalismo e na capacidade organizacional de atuao. Mas tambm como no caso do TCU, surgiram conflitos com os gestores em134

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relao forma da CGU controlar. Em entrevista pesquisa recente, um gestor pblico federal disse o seguinte sobre o controle: Existem fiscalizaes que acabam criando obstculos para a chegada da poltica pblica ao beneficirio. Deveria haver uma maior interao entre fiscalizador e fiscalizado com o objetivo de levar o benefcio para quem dele precisa. Raramente o fiscal est preocupado com isso. Algumas fiscalizaes se apegam muito a aspectos de natureza formal mesmo no havendo irregularidades e acabam criando barreiras para a implementao ou continuidade da poltica pblica. (Loureiro et alii, 2011, p. 57) O que est em questo a definio mais clara, para controlados e para o sistema poltico, de quais devem ser formas e os objetos do controle. Neste processo, preciso que haja um dialogo entre os especialistas em fiscalizao e os atores mais importantes do Estado burocratas e polticos.5 At porque o que pode ser mais fcil de controlar nem sempre o melhor caminho para uma gesto pblica eficiente e efetiva. claro que, olhando para o outro lado da questo, o controle aprendeu muito sobre o funcionamento da mquina pblica federal e ele fundamental tambm na definio dos instrumentos para se alcanar melhores resultados nas polticas pblicas. O Brasil criou, no plano federal, um robusto sistema de controles. No obstante, esta transformao positiva no mudou a sensao de que o combate corrupo tem sido uma espcie de trabalho de Ssifo: os rgos de controle levam a denncia at o cume da montanha, para que esta pedra volte ao mesmo lugar no dia seguinte (Abrcio, 2011a). A manuteno desta situao deriva, em primeiro lugar, da incapacidade de o Judicirio lidar com a impunidade. Eis a um ponto que pouco avanou no pas. Em segundo lugar, este problema deriva do fato de que nem sempre estes rgos atuam de modo a produzir um jogo de soma positiva. Como bem definiu Maria Fernanda Alves (2009), em uma metfora precisa, constituiu-se no Brasil, a partir de 1988, um institucionalidade composta por mltiplas chibatas. Disto decorre que a grande questo estaria na dificuldade em estabelecer coordenao entre estas instituies, algo que tem melhorado nos ltimos anos, mas que ainda produz problemas de sobreposio, competio ou (principalmente) de descoordenao, de maneira que a accountability fragmentada pode prejudicar a qualidade da gesto e do prprio controle. O controle institucional, ademais, teve avanos menores nos estados e municpios. Muito da impresso da generalizao da corrupo se deve a fatos ocorridos no plano subnacional. interessante notar que se no plano dos estados a questo da gesto ganhou mais importncia recentemente do que no plano federal, o controle, inversamente, foi muito mais central, sobretudo na Era Lula, na Unio do que nos governos estaduais. Ao olhar para o conjunto do perodo, especialmente para os dois mandatos do presidente Lula, possvel dizer que o controle avanou mais do que a gesto nos ltimos anos. Este fato explica muito das contradies e problemas recentes da administrao pblica federal. De um lado, melhor controle significa mais capacidade de encontrar desvios go135

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vernamentais. De outro, gesto menos qualificada, em especial nas reas que no compunham o centro das preferncias do governo petista (como Transportes), facilitavam a ocorrncia de desmandos administrativos e atos corruptos. Em poucas palavras, o Governo Lula permitiu, a um s tempo, o aumento da fiscalizao institucional e a produo de um ambiente favorvel, em determinados setores, ineficincia e aos atos ilcitos. Este descompasso entre gesto e controle no nvel nacional verifica-se, ainda, na convivncia de duas realidades: a falta de definio de um modelo mais amplo de gesto por resultados para o conjunto da administrao pblica federal e, quase como uma consequncia, a manuteno do modelo procedimentalista de controles como a forma por excelncia da atuao da CGU e do TCU. bem verdade que a tradio formalista do Direito Administrativo brasileiro contribui para isso, mas o fato que o Governo Federal, durante o perodo Lula, no mudou este modus operandi. Houve at uma tentativa, com a produo, em 2009, de um anteprojeto de Lei Orgnica da Administrao Pblica Federal, feito por uma comisso de juristas que props, em sntese, mais flexibilizao organizacional e da gesto de pessoal, acompanhada pela construo de instrumentos de gesto por resultados (Modesto, 2009). Porm, este projeto no foi levado adiante pelo governo. Para sair desta armadilha do excesso de controle formal, o Governo Federal deveria optar mais firmemente e em todo o seu aparato por uma gesto orientada por resultados. Afinal, a fiscalizao procedimentalista tem apontado os desvios e servido como bom alarme de incndio, mas, ao fim e a ao cabo, tem menos eficcia em inibir tais comportamentos. Leonardo Avritzer (2011) reala a importncia de ter um modelo administrativo mais vinculado a metas e indicadores que deveria ser implementado, na sua viso, por meio de contratos de gesto , pois o atual, alm de no garantir a punio dos corruptos no plano judicial, no garante a extirpao do problema e, pior, muitas vezes torna a administrao pblica mais lenta e incapaz de chegar a um bom desempenho.6 O conflito entre controle e gesto, por fim, vincula-se tambm com a relao entre poltica e administrao no plano federal, uma vez que a dificuldade de melhorar determinados Ministrios ou de implantar um modelo geral de gesto passa pela mudana na forma como se monta o gabinete presidencial, distribuindo vrios cargos coalizo que no so selecionados nem estruturados em prol do melhor desempenho das polticas pblicas. exatamente a forma de se construir maioria e legitimidade junto ao Congresso Nacional o ponto que menos avanou desde a promulgao da Constituio de 1988, gerando entraves para a gesto, a governana federativa e o controle. Concluso O panorama apresentado no artigo revela, claramente, que a administrao pblica federal melhorou sensivelmente com o desenrolar da democratizao recente do pas. A anlise das trs agendas ressaltou as inovaes e avanos ocorridos, e pode-se afirmar que houve tanto um processo incremental de aperfeioamento, com um aprendizado favorecido pela presso crescente da sociedade e pelo aperfeioamento da burocracia e dos modelos136

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institucionais, como ainda as alteraes ligavam-se s prioridades do governante de ocasio. Neste sentido, o Governo FHC priorizou modificaes e melhorias na gesto econmica do Estado, na introduo de mecanismos de avaliao de polticas, bem como comeou um processo de ordenamento das polticas sociais no campo federativo, alm de ter proposto a reforma Bresser, um amplo paradigma de gesto pblica, embora o Plano Diretor no tenha sido adotado na maior parte de suas proposies. J no perodo Lula a prioridade foi dada a inovaes nos campos do combate desigualdade, da participao social e da transparncia e controle do Poder pblico. Em relao ao primeiro ponto, as mudanas concentraram-se nas polticas sociais, em seus mecanismos de coordenao federativa, de monitoramento de resultados e de garantia de direitos aos mais carentes, tendo tido menos sucesso no processo de melhoria da proviso dos servios de massa. O paradigma participativo ampliou o nmero de atores includos na esfera pblica e na agenda de polticas pblicas, alm de ter sido incorporado a boa parte do processo de formulao. E o aumento tanto da transparncia quanto do controle sobre o Governo Federal tem obrigado o Estado a se tornar mais accountable, embora isso por vezes realce as imperfeies poltico-administrativas da governana lulista. Em ambos os perodos governamentais, ressalte-se, houve um aperfeioamento contnuo do processo de profissionalizao meritocrtica das carreiras de Estado, algo que se ampliou quantitativamente no Governo Lula, apesar de ainda no abarcar a algumas reas dominadas ainda pelo perfil fisiolgico e patrimonial. Vale citar que este processo ainda carece de melhorias em termos de cobrana de resultados, o que s poder ocorrer com mudanas organizacionais e institucionais. A realidade poltico-administrativa no plano subnacional tambm sofreu algumas alteraes positivas, inclusive com processos de induo advindos do Governo federal, como nos casos do PNAGE e de aes vinculadas a determinadas polticas pblicas, como tem feito a Educao e o Ministrio do Desenvolvimento Social. Houve transformaes gerenciais brotadas dos prprios estados, especialmente de uma parcela que tem empreendedores de polticas de gesto muito ativos e empoderados (Abrcio e Gaetani, 2006). Este processo vem sendo disseminado horizontalmente em fruns federativos, em particular no mbito do Consad. No obstante tais avanos, os governos subnacionais, sobretudo os municpios e estados menos desenvolvidos, ainda precisam enfrentar uma extensa lista de desafios nos campos da gesto e do controle. Melhorar continuamente as relaes intergovernamentais, incentivando parcerias da Unio com os outros entes, pode favorecer esta empreitada. Na trajetria recente da gesto pblica brasileira, o desafio que foi menos enfrentado diz respeito relao entre poltica e administrao. No se trata de propor a velha dicotomia entre tcnicos e polticos, de inspirao wilsoniana, to ao gosto daqueles que advogam uma viso tecnocrata. Estudos recentes sobre o Brasil mostram a necessidade e a importncia de critrios polticos no processo de nomeao e definio dos cargos de alto escalo (DArajo, 2009; Loureiro e Abrcio, 1999). Afinal, a legitimidade democrtica essencial para avaliar o funcionamento de qualquer Estado contemporneo. Alm disso,137

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no se advoga, aqui, a reduo do multipartidarismo e da sua expresso consociativa, uma vez que a heterogeneidade sociocultural e poltica do pas exige algum tipo de arranjo moldado por alianas partidrias, federativas e sociais. Contudo, a experincia no plano federal revela um desbalanceamento entre a forma de preenchimento dos postos e a busca de melhoria do desempenho governamental. Seguindo os passos de Aberbach, Putnam e Rockman (1981), a partir de sua pesquisa comparativa, o ideal construir um ambiente para que os policy-makers respondam tanto aos ditames da poltica como aos da administrao. Tal ideal no vem sendo atingido a contento no Brasil. Isso se deve, primeiramente, ao excessivo nmero de cargos em comisso, tanto no plano federal como nos governos subnacionais, caso se adote uma perspectiva comparada (Abrcio, 2007). Embora os Governos FHC e Lula tenham aumentado as exigncias para se assumir estes postos, inclusive reservando burocracia federal uma parcela significativa dos chamados DAS, a visibilidade do perfil dos ocupantes e as formas de responsabiliz-los ainda so precrias. Em poucas palavras, preciso criar mecanismos para selecionar melhor os cargos comissionados. Mesmo levando em conta a necessidade de se montar uma coalizo ampla no presidencialismo brasileiro, se a troca de postos por votos no Congresso Nacional obedecesse a um processo de seleo mais transparente e baseada em critrios de mrito mais consistentes, haveria mais dificuldades para o florescimento de disfunes como o fisiologismo, o aparelhismo partidrio e a corrupo. Se o Executivo federal estabelecesse limites institucionais mais claros ao preenchimento do alto escalo, os prprios partidos seriam obrigados a profissionalizar seus indicados. Eis a um ponto essencial do debate negligenciado por aqueles que tratam da administrao pblica brasileira: falta modernizar a relao dos partidos com a gesto pblica. Isso uma empreitada essencial no plano local e tambm no federal, como ainda deve ser resolvida em sua manifestao no elo entre congressistas e suas bases locais. preciso no s melhorar a qualidade das indicaes aos cargos pblicos, mas, sobretudo, convencer os polticos de que o aprimoramento da qualidade das polticas pblicas sob critrios meritocrticos pode ser o grande instrumento de resposta aos eleitores. Cabe s principais lideranas polticas do pas desenvolver esta discusso, incluindo a a Presidncia da Repblica, das principais legendas, os governadores e prefeitos das grandes cidades. Modernizar o presidencialismo de coalizo tarefa para estadistas e grandes reformadores, como o foram o Plano Real, o Bolsa Famlia, o Portal da Transparncia e outras inovaes recentes que revelam o quanto avanamos em termos de administrao pblica no plano federal. S entrando nesta agenda da relao entre poltica e burocracia que poderemos mudar algumas causas profundas da ineficincia e da corrupo estatais, problemas que devemos atacar para fazer o que ainda est por ser feito aprimoramento da qualidade da Educao e da Sade, investimento em infraestrutura, reformas urbanas, continuar no combate desigualdade, tudo somado para se alcanar o desenvolvimento do pas.138

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Notas 1. interessante observar que governos petistas no plano subnacional adotaram o paradigma de flexibilizao organizacional preconizado pela Reforma Bresser. Um exemplo disso, entre outros, o do governo baiano, que tem adotado Organizaes Sociais e o modelo de Fundao Estatal de Direito Privado no setor de Sade. 2. importante dizer que o IDEB tambm faz parte de um planejamento at 2022 data do bicentenrio da Independncia para se alcanar melhores resultados educacionais. 3. Outras polticas tambm j esto montando modelos para atrelar as polticas pblicas a formas de associativismo territorial. Uma delas so os chamados Arranjos de Desenvolvimento da Educao, que procura articular parcerias intermunicipais, tendo como base o Plano de Aes Articuladas (PAR) que estabeleceria prioridades e aes conjuntas entre os governos locais. 4. Sobre o processo de criao da CGU, ver os trabalhos de Olivieri (2010) e de Balbe (2006). 5. Como bem observou o trabalho comparado de Pollitt et alii (2008: 37), assim como a poltica muito importante para ficar restrita aos polticos, as atividades dos Entes Supremos de Fiscalizao no devem ser restringidas aos auditores. 6. Leonardo Avritzer (2011) resume sua opinio a favor de uma gesto mais orientada por resultados da seguinte maneira: A introduo de contratos de gesto no setor pblico teria dois objetivos: o primeiro deles diminuir o foco do controle administrativo. O que vemos nos escndalos de corrupo mais importantes, aqueles que implicam em fortes danos s finanas pblicas, que rgos como o TCU e a CGU controlam tudo e, no final, exercem muito pouco controle efetivo. Falta foco no controle administrativo no Brasil e ele s pode ser adquirido com uma nova filosofia dos rgos de controle. Ao conciliar aumento da produtividade do setor pblico com um controle mais seletivo ser possvel alcanar o que a sociedade brasileira clama: o aumento do risco de aderir corrupo que depende da punio criminal e no do controle administrativo.

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Fernando Luiz Abrcio

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