Abordagens Epistemologicas No Ensino de Fisica Cosmologia

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1 ABORDAGENS EPISTEMOLÓGICAS NO ENSINO DE FÍSICA: A COSMOLOGIA COMO TEMA MOTIVADOR * Leandro Daros Gama 1 João Zanetic 2 1 Pós-graduação em Ensino de Ciências – Universidade de São Paulo, [email protected] 2 Instituto de Física – Universidade de São Paulo, [email protected] 1. Resumo O conhecimento científico goza de certa autoridade, ou seja, de confiança em seu discurso, em sua metodologia e em seus resultados, mesmo por parte daqueles que pouco conhecem sobre a construção da ciência ou sobre as variadas metodologias de que pode valer-se. No caso desse público, a autoridade (entendida aqui como o valor ou o merecimento de confiança, que não deve ser confundida com autoritarismo) da ciência pode estar associada à mistificação da ciência, assen tada sobre um conhecimento público muitas vezes pobre ou falho a respeito da historicidade, dos desafios e dos debates que estiveram e estão fortemente presentes na dinâmica da construção do conhecimento científico. Se a ciência for entendida como conhecimento que visa a elucidar, a manutenção de uma imagem mistificada vai ao encontro desse objetivo. A educação científica encontra aí, portanto, um importante desafio. A história da Física é rica em episódios de discussões entre partidários de diferentes teorias e em exemplos de problemas para serem solucionados. O quadro atual, porém, não é menos rico em debates e questões em aberto, muitas das quais têm conquistado espaço nos veículos de divulgação científica. O presente trabalho tem por objetivo, com base na concepção de educação libertadora de Paulo Freire e na de ciência como construção social aberta, apresentar a Cosmologia física como tema motivador para discussões, nos ensinos médio e superior, sobre a natureza dinâmica da ciência, com vistas a dar contribuição, com as reflexões apresentadas, para a problemática que envolve o ensino de Ciências, o qual entendemos que seria, desejavelmente, enriquecido pela abordagem de seus assuntos em uma dimensão histórico-epistemológica. Palavras -chave: Epistemologia ; Autoridade da Ciência; Paulo Freire; Cosmologia, Ensino de Física. 2. Introdução e Justificativa No primeiro capítulo de “A Revolução Copernicana”, Thomas Kuhn salienta, de forma muito lúcida, que a humanidade desde muito cedo buscou descrever, por meio de mitos e modelos, o universo 1 . A cosmologia de uma cultura precisa dar conta de grande * Texto baseado no projeto de mestrado do primeiro autor. 1 Adotaremos, aqui, a convenção proposta por RIBEIRO & VIDEIRA (2004), p.532, de reservar o termo “Universo” (com 'U' maiúsculo) para a natureza com a qual estabelecemos uma relação de base empírica, e o

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ABORDAGENS EPISTEMOLÓGICAS NO ENSINO DE FÍSICA: A COSMOLOGIA COMO TEMA MOTIVADOR*

Leandro Daros Gama 1

João Zanetic 2

1 Pós -graduação em Ensino de Ciências – Universidade de São Paulo, [email protected]

2 Instituto de Física – Universidade de São Paulo, [email protected]

1. Resumo

O conhecimento científico goza de certa autoridade, ou seja, de confiança em seu discurso, em sua metodologia e em seus resultados, mesmo por parte daqueles que pouco conhecem sobre a construção da ciência ou sobre as variadas metodologias de que pode valer-se. No caso desse público, a autoridade (entendida aqui como o valor ou o merecimento de confiança, que não deve ser confundida com autoritarismo) da ciência pode estar associada à mistificação da ciência, assen tada sobre um conhecimento público muitas vezes pobre ou falho a respeito da historicidade, dos desafios e dos debates que estiveram e estão fortemente presentes na dinâmica da construção do conhecimento científico. Se a ciência for entendida como conhecimento que visa a elucidar, a manutenção de uma imagem mistificada vai ao encontro desse objetivo. A educação científica encontra aí, portanto, um importante desafio. A história da Física é rica em episódios de discussões entre partidários de diferentes teorias e em exemplos de problemas para serem solucionados. O quadro atual, porém, não é menos rico em debates e questões em aberto, muitas das quais têm conquistado espaço nos veículos de divulgação científica. O presente trabalho tem por objetivo, com base na concepção de educação libertadora de Paulo Freire e na de ciência como construção social aberta, apresentar a Cosmologia física como tema motivador para discussões, nos ensinos médio e superior, sobre a natureza dinâmica da ciência, com vistas a dar contribuição, com as reflexões apresentadas, para a problemática que envolve o ensino de Ciências, o qual entendemos que seria, desejavelmente, enriquecido pela abordagem de seus assuntos em uma dimensão histórico -epistemológica. Palavras-chave: Epistemologia ; Autoridade da Ciência; Paulo Freire; Cosmologia, Ensino de Física. 2. Introdução e Justificativa

No primeiro capítulo de “A Revolução Copernicana”, Thomas Kuhn salienta, de forma muito lúcida, que a humanidade desde muito cedo buscou descrever, por me io de mitos e modelos, o universo 1. A cosmologia de uma cultura precisa dar conta de grande * Texto baseado no projeto de mestrado do primeiro autor.

1 Adotaremos, aqui, a convenção proposta por RIBEIRO & VIDEIRA (2004), p.532, de reservar o termo “Universo” (com 'U' maiúsculo) para a natureza com a qual estabelecemos uma relação de base empírica, e o

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número de necessidades dessa cultura, que em geral estão marcadas pela interação do homem com o mundo, donde se pode supor que ocorresse aquilo que Kuhn observou: que as antigas sociedades descrevessem o universo por meio de mitos. Estes podem representar a luta humana pela sobrevivêcia, e mesmo normas morais, através de batalhas, monstros e heróis2.

O homem contemporâneo, porém, como aponta Kuhn, passa a delegar a construção de uma cosmologia ao especialista, o físico ou o astrônomo. Não se aceita, portanto, que o modelo cosmológico que venhamos a desenvolver possa deixar de explicar certos fenômenos celestes largamente observados pelos mesmos especialistas, como o redshift das galáxias, a radiação cósmica de fundo3, e mesmo fenômenos da escala do Sistema Solar, como o movimento retrógrado aparente dos planetas, que levou à incorporação de epiciclos nos modelos cosmológicos ptolomaico e copernicano.

A cosmologia já não precisa possuir mais o papel de dar significado à vida humana, mas precisa dar significado a uma vastidão de fenômenos de cuja existência o leigo, em geral, pode jamais tomar conhecimento. Isso significa que o homem comum delega aos especialistas a tare fa de desenhar o modelo de universo, levando em conta uma infinidade de detalhes desconhecidos por esse mesmo homem comum. Vemos aí uma forte autoridade da qual a Física, enquanto ciência, está dotada.

O ensino da Física, e, de maneira mais geral, o de Ciências, tem sido pautado, tipicamente, em operações e conteúdos conceituais, sendo dado pouco ou nenhum valor ao desenvolvimento, à construção da ciência, ao seu papel e às suas conexões com as demais instituições sociais.

O nicho ocupado pela ciência, no mundo atual, pode outorgar-lhe respeito, mas dificilmente podemos dizer que a ciência está alocada plenamente nas vidas humanas. O homem e a mulher não diretamente envolvidos na pesquisa científica vivem em “um mundo assombrado por demônios” 4, onde o conhe cimento científico aparece como mágica, algo esotérico e misterioso no sentido mais etimológico das palavras5.

Sem dúvida que o conhecimento científico lança luz à forma de olhar o mundo, e coloca -se em questão não a validade da ciência e nem mesmo sua autoridade, entendendo esta como o valor que se pode atribuir às afirmações da ciência6, mas questionando a autoridade misteriosa da ciência, entendida como o tom de mistério e distanciamento que parece envolver a imagem da ciência tal como aparece, geralmente, para o público leigo. Essa autoridade misteriosa vai de encontro à educação que se pretende em prol da

termo “universo” (com 'u' minúsculo) para os modelos de mundo ou de Universo. 2 O tema da representação mítica de universo relacionada a uma representação da vida humana tem sido amplamente investigado por autores dentre os quais merecem destaque J-P Vernant e J. Campbell, sendo que este último dedicou-se à divulgação, tendo concedido uma série de seis entrevistas em uma obra intitulada “O poder do mito”. Não nos ateremos a esse ponto, entretanto, por não constituir objeto de nossa análise. 3 Para uma introdução às questões em aberto na física cosmológica, ver, no dossiê do n. 62 da Revista USP (2004), o artigo de Beatriz Barbuy, A idade, a massa e a expansão do universo, e outros mais detalhados que abordam, de maneira bastante acessível, a divulgação desses problemas, em especial os textos dos autores J. A. de Freitas Pacheco, R. Rosenfeld, e J. A. Sales de Lima. 4 Parafraseando o título de um livro de Carl Sagan.

5 Seria pertinente abordar com maior riqueza de detalhes a semântica aqui explorada, dado que estamos colocando em problemática a educação como veículo de formação crítica e desmistificadora. Ater-nos -emos, porém, neste espaço, a uma breve observação acerca do significado etimológico das palavras apresentadas: quanto a ‘misterioso’, atente-se para o fato de derivar da palavra grega mystikós, com a conotação de ‘segredo’; a respeito de ‘esotérico’, é importante recordar que está inicialmente relacionada às sociedades secretas, tomando-se a escola pitagórica como exemplo de grande relevância histórica. 6 Estamos aqui, como faz Bakhtin, aceitando a distinção entre Autoridade (concebida como o merecimento de confiança em um discurso, como quando se diz que alguém é ‘autoridade no assunto’, o que significa que vale a pena confiar no que essa pessoa diz) e Autoritarismo (controle e imposição, subjugo ou privação da liberdade de discurso de outrem).

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autonomia dos educandos. É praticamente desconhecido, pelo homem e pela mulher leigos em ciência, o fato

de que esta não é uma entidade finalizada. Essa vivacidade da ciência é muito pouco conhecida, e possivelmente tal desconhecimento alimente uma distorcida autoridade da ciência, pela qual “comprovações científicas” são inquestionáveis. É em torno dessa problemática que se justifica a abordagem histórico-epistemológica das ciências nos currículos escolares e de ensino superior.

Se se admite a necessidade dessa abordagem curricular, pode-se considerar que as questões acerca da educação científica passem pela discussão da autoridade que a ciência possui em nosso mundo, e sobre como lidar com essa autoridade (refutando -a, reiterando-a ou discutindo -a mais abertamente) na educação em ciências, tanto nos ensinos básicos quanto nos níveis universitários, em particular nos cursos de formação de professores e/ou de formação de pesquisadores.

Se bem que a carreira científica não seja das mais pleiteadas em nosso país, certamente a ciência goza de relevante autoridade em nossa civilização. Neste ponto fica evidente que uma educação científica pode (e precisa) assumir um papel libertador, no sentido de promover, no educando, a habilidade de questionar ativamente o papel desenvolvido pela ciência e o valor de suas descobertas.

3. Desenvolvimento do trabalho: os referenciais Na intenção de explicitar a descrição do trabalho desenvolvido, nesta seção serão

apresentadas as fontes bibliográficas fundamentais e as relações consideradas no cotejo dos autores analisados.

É importante salientar que a característica de uma evolução não linear da ciência, a qual historicamente se constrói por rupturas e revoluções, já vem sendo amplamente defendida e argumentada por muitos autores, dentre os quais nem seria necessário mencionar que se destacam G. Bachelard e T. Kuhn.

Nossa concepção de Educação admite o valor da pedagogia que toma Paulo Freire como referência importante para a profissão do educador. A concepção de ciência sobre a qual nos debruçamos, que envolve uma evolução por rupturas, a relação simbiótica entre ciência e sociedade, a visão externalista da história da ciência e o pluralismo metodológico, tem bases nas obras dos dois epistemólogos acima citados e ainda é enriquecida por P. Feyerabend, ao qual voltaremos mais adiante.

Além de Educação como prática da liberdade, escreveu também Freire um texto um tanto menos conhecido, na ocasião de estar vivendo no Chile. Trata-se do Comunicação ou extensão? , obra de cunho mais gnosiológico pela qual a natureza do conhecimento é posta em debate. Esse livro traz-nos relevantes problematizações dentro da nossa proposta de pesquisa (a ser explicitada mais adiante), no quadro em que os textos de Freire possibilitam lançar um olhar crítico sobre a educação.

Paulo Freire classifica a educação tradicionalmente visante à sujeição do indivíduo a um sistema sociocultral vigente como educa ção bancária. A esta se opõe a educação libertadora, na qual o Educando-Educador forma-se capaz de questionar e opinar, mostrando-se hábil a fazer uma leitura do mundo.

Cabe agora dar um pouco mais de atenção a Feyereband, visto ser um autor ainda polêmico . Esse físico e epistemólogo tem sido muitas vezes mal interpretado, e já o era mesmo em sua época, como atestam esgotantes, porém bem elaboradas – há de se conceder –, críticas à sua filosofia. Ater-nos-emos, porém, apenas no conceito nuclear de sua epistemologia, seu anarquismo epistemológico que tem dado margens a criticar Feyerabend como inimigo do racionalismo.

De fato escreveu “Adeus à Razão”, mas que venha a tornar-se inimigo desta não é

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a opinião de alguns autores, com os quais concordamos, como Pinto 7 e Regner 8. O próprio Feyerabend chegou a defender-se:

[...] “qualquer coisa serve” não é um “princípio” que eu sustente – não penso que possam ser utilizados e produtivamente discutidos os “princípios” fora da situação concreta de investigação que supomos que afetam – mas a exclamação apavorada de um racionalista que observa a história um pouco mais de perto. Ao ler as muitas críticas sérias, de grande fôlego, amplas e amplamente equivocadas que me foram feitas após a publicação da primeira edição inglesa do livro, lembrei-me muitas vezes do meu convívio com Imre [Lakatos]; como teríamos rido os dois lendo juntos semelhantes efusões. 9

O Adeus à razão , de Feyerabend, explicita uma filosofia científica que acena uma

problematização da autoridade possuída pela ciência. Vale colocar que esse autor não mancha a seriedade e muito menos busca derrubar a validade da ciência, mas traz à superfície a qualidade social da ciência enquanto construção humana. Nesta e em outras obras do físico austríaco, em especial seu Contra o método, vem à tona uma filosofia da ciência cuja discussão muito tem a oferecer, de forma que compõem parte da base de nossa pesquisa.

3. A cosmologia como tema motivador

Esperamos ter mostrado, nas seções precedentes, o valor de discutir a autoridade detida pela Física atual na formação da visão de mundo/universo (físicos) e colocar em debate a forma como uma educação que se pretenda libertadora (em termos freireanos) enfrentaria essa autoridade no ensino científico.

Estamos pautados na hipótese de que a Física (e a “ciência”, em termos gerais) goza de autoridade reconhecida no mundo atual, porém tal autoridade toma forma exacerbada pelo desconhecimento da forma pela qual a ciência é construída. Assumimos que a ciência é histórica e socialmente construída, sua história não segue uma estrutura contínua e não existe um método científico único ao qual se apóia. Sustentando esses pontos pode-se trazer a seguinte citação (FEYERABEND, 1971, p. 328):

A minha tese principal sobre este aspecto é: os acontecimentos e os resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura vulgar; não contêm os elementos que se registram em todas as investigações científicas mas faltam noutros sítios [...]. Os desenvolvimentos concretos (como a eliminação de cosmologias de estado invariável ou a descoberta da estrutura do ADN) apresentam, como é lógico, características bastante distintas e com freqüência é possível explicar a maneira como essas características levam ao êxito. Mas nem todas as descobertas se podem justificar da mesma forma, e processos que se revelaram viáveis no passado podem originar problemas quando impostos no futuro. A investigação bem sucedida não obedece aos parâmetros gerais: depende de um artifício agora, outro depois, e os movimentos que a fazem progredir nem sempre são conhecidos de quem os desencadeia [...].

Se concluímos que o ensino de ciências explicitando as relações históricas e

7 Cf. PINTO, Alexandre C. Tradição cultural, contraste entre teorias e ensino de física. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2003. Cap. VI, “Em defesa da racionalidade científica”, pp. 58-64. 8 Cf. REGNER, Anna C. K. P. Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 235. 9 FEYERABEND apud REGNER (Op. Cit.) . Prefácio da 2.ª ed. de Against Method, 1988.

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sociais envolvidas em sua construção é desejável, a Física atualmente mantém problemas em aberto ricos para evidenciar a dinâmica da ciência. Em particular, algumas das questões mais debatidas na Física contemporânea situam-se na área da Cosmologia.

Atendo-nos às cosmologias presentes até o século XVII, testemunhamos o debate entre um universo geocêntrico e um heliocêntrico (para não falar de outros modelos ou das muitas nuances desses mesmos).

Passando aos tempos mais recentes, poderíamos esperar respostas cada vez mais únicas. Mas não é essa a dinâmica da ciência. A origem dos raios cósmicos, a curva de rotação das galáxias com sua conseqüente proposta de existência de uma matéria invisível, a constante cosmológica, e tantos outros itens que não esgotariam toda a lista de discussões ainda presentes na área da Cosmologia testemunham uma ciência em movimento.

Essa abertura é explorada por Ilya Prigogine:

A história da Cosmologia do século XX é uma história dramática. Einstein utilizou pela primeira vez as suas equações fundamentais para sair de um modelo estático do universo, correspondente ao seu conceito de eternidade. Como se sabe, por volta de 1922, teve de abandonar -se a idéia de um universo estático a favor de um universo em expansão. Mas poucos tomavam então a sério esta teoria que tinha origem numa singularidade, o célebre Big Bang, datável há entre os dez e vinte mil milhões de anos. Podia afirmar-se que, de qualquer modo, esta expansão não era mais que uma comparação geométrica. Mas, depois de 1965, foi inevitável assumir seriamente a idéia de uma evolução cosmológica, já que se descobriram os fotões da radiação de fundo produzidos muito rapidamente na história do universo. E é assim que o mundo científico aceitou unanimemente a idéia de um Big Bang, de uma singularidade inicial. 10

É possível ilustrar, com grande riqueza e possibilidades múltiplas de

aprofundamento, variados temas da Física, o estudo de uma “história contemporânea da física” e a filosofia da estruturação dessa ciência através da cosmologia do século XX.

Podemos dar destaque ao fato de que o modelo do Big Bang é considerado um “modelo padrão” não por acaso: há modelos alternativos a este. O fato é que, se olharmos para as fases de evolução científica propostas pos Kuhn, há como deixar claro, ao estudante, estar vivenciando, em tempo real, o desenvolvimento de uma ciência normal, que procura responder a questões observacionais não triviais sem romper com o “modelo padrão”.

Talvez um dos melhores exemplos que podemos buscar na cosmologia seja o seguinte: o modelo cosmológico (da solução obtida, para as equações de campo de Einstein, por Friedmann, Lemaître, Robertson e Walker) define um parâmetro adimensional O (que depende da densidade do universo) que possui valor crítico igual à unidade. O fato observacional permite inferir que o valor de O está muito próximo desse valor crítico, o que seria de se considerar instável.

Esse e outros problemas levaram o modelo padrão a incorporar uma hipótese de inflação cósmica (ABDALLA, 2004): “Segundo tal processo, teria havido no princípio uma expansão exponencial do fator de escala do universo”. O fator de escala é um termo cosmológico que se refere ao inverso da constante de Hubble e que, à guisa de uma interpretação geométrica informal, representaria o “raio” do universo observável.

Hipóteses como as da existência de uma inflação, de matéria e energias escuras podem mostrar-se, no futuro, análogas aos epiciclos que os ptolomaicos usaram para

10 Declaração de Prigogine em uma conferência realizada em Roma, em 12 de fevereiro de 1987, por ocasião do “Progetto cultura Montedison”. Extraída de O nascimento do tempo, Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1990. pp. 53-4.

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adequar o geocentrismo às observações astronômicas. Podem figurar, daqui a algumas gerações, como uma crise do paradigma atual, e é possível que os estudantes estejam a testemunhar uma revolução científica ou, pelo menos, um grande avanço da ciência normal.

Essas questões estão no cerne da física contemporânea. Entretanto, é possível estabelecer um diálogo entre elas e a mecânica de Newton. Não sem motivo, portanto, há cursos e manuais de cosmologia11 que dedicam algum espaço a um modelo que, tendo-se criado no século XX, convenciona-se chamar de Cosmologia “Newtoniana”, em referência ao fato de utilizar-se da teoria gravitacional do físico do séc. XVII.

Esse modelo, com o uso de algumas extrapolações teóricas adicionadas à mecânica e à gravitação newtoniana (como considerar um universo homogêneo e isotrópico, em acordo com o Princípio Cosmológico, e interpretar a velocidade da luz, c, como limite universal), permite escrever equações que levantem as questões a respeito da expansão do universo ser aberta ou fechada e encontrar o raio de Schwarschild (que define um buraco -negro teórico) sem a necessidade de um tratamento matemático mais aprofundado envolvendo cálculo tensorial.

Sem a pretensão de um aprofundamento teórico, mas com o objetivo de exemplificar como essas questões podem surgir em um curso de ensino médio (com o uso de um instrumental matemático mais simples e de uma “física newtoniana adaptada”), pode -se obter uma modelagem (FILHO, 2004) bem simplificada do problema do universo aberto/crítico/fechado ao considerar a igualdade explicitada na equação 1, onde -U e T representam, respectivamente, as energias potencial gravitacional12 e cinética totais do universo, E (a energia mecânica total do universo) é uma constante cosmológica que permite decidir se o universo expande -se de forma aberta (E > 0), crítica ou plana (= 0), ou se de forma fechada (< 0).

-U + T = E (1)

Ainda no âmbito dessa cosmologia newtoniana, o valor crítico da relação entre

massa e raio para que um corpo torne-se um buraco-negro pode ser encontrada (Id., Ibid.) se for considerado que, para um campo gravitacional dessa magnitude, a velocidade de escape é igual à da luz. O resultado assim obtido está de acordo com o derivado pela Relatividade Geral, muito embora as duas teorias gravitacionais sejam rigorosamente bastante distintas.

A busca por evidências observacionais de buracos negros e a o questionamento acerca do futuro do universo são alguns dos problemas atualmente muito explorados pela Física e, muito provavelmente, podem instigar, nos estudantes, discussões e debates sobre a ciência nos nossos dias.

Para finalizar, é importante ressaltar que teorias alternativas ao modelo padrão têm sido levantadas. Desde simples adaptações da gravitação newtoniana13 até teorias de cordas e membranas, novos modelos têm sido rechaçados ou explorados, bem aceitos ou pouco financiados, como demonstração da dinâmica histórica e social da ciência.

4. Considerações e conclusões parciais 11 Como exemplo podemos mencionar o livro de Kepler de S. O. Filho (vide Referências Bibliográficas). 12 Assume-se aqui a convenção de que o potencial gravitacional tende a zero quando a distância entre as massas

envolvidas tende ao infinito. A energia potencial, então, assume valores negativos, o que evidenciamos pelo sinal “-”.

13 Existem formulações alternativas da mecânica newtoniana que buscam oferecer um tratamento a alguns problemas da Física e da Cosmologia. Apenas a título de exemplo, citemos a Mecânica Relacional e a Teoria MOND (Modified Newtonian Dynamics).

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O trabalho aqui apresentado representa o desenvolvimento parcial de um projeto de pesquisa ainda em andamento. As considerações que ora são apresentadas constituem resultados parciais, portanto, do estado atual dessas investigações.

A manutenção de uma autoridade derivada de mistério é indesejada e pode ser considerada antiética do ponto de vista educacional, especialmente se admitimos que o papel da ciência é esclarecer, não ocultar. Isso implicaria que a educação científica tem, como uma de suas tarefas, esclarecer sobre a dinâmica e construção da ciência, tanto no ensino básico quanto no superior, em especial na formação de professores e/ou pesquisadores.

A cosmologia física atual mostra, com riqueza de exemplos, a dinâmica e a estrutura da Física enquanto ciência, tornando possível, em seu estudo, levantar questões de ordem histórico -epistemológica acerca do conhecimento científico.

Atuando em diferentes recortes desse tema motivador, pode -se obter uma análise dessa problemática tanto em cursos do nível superior quanto nos de nível médio, sendo possível uma transposição feita no diálogo entre a cosmologia atual e a linguagem matemática da cosmologia “newtoniana”. Aspectos de teorias alternativas ao modelo cosmológico padrão podem ser transpostos em dimensões conceituais e mesmo, em alguns casos, em termos matemáticos (especialmente para cursos superiores). 5. Referências Bibliográficas

ABDALLA, Elcio. A estrutura do universo, a mecânica quântica e a cosmologia moderna. Revista USP n.62 2004, p. 17, 25; BARBUY, Beatriz. A idade, a massa e a expansão do universo. Revista USP n.62 2004, p. 194-9; FEYERABEND, Paul. Adeus à Razão. Trad. M. G. Segurado. Lisboa: 70 Ltda., 1971; _____________. Contra o método. Trad. Mota & Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985; FILHO, Kepler de Souza Oliveira. Astronomia e Astrofísica. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2004. Capítulos “Universo e Cosmologia” e “Leis de Kepler Generalizadas”; FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Trad. R. D. de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; _______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967; _______. Pedagogia Do Oprimido. Janeiro: Paz e Terra, 1980; KUHN, Thomas. La Revolución Copernicana. Trad. D. Bergadà. Barcelona: Seix y Barral, 1978;

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PACHECO, J. A. de Freitas. O lado escuro do universo II. Revista USP n.62 2004, p. 156-71; PINTO, Alexandre Custódio. Tradição cultural, contraste entre teorias e ensino de física. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2003; PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Trad. J. Gama. Lisboa: Edições 70, 1990; REGNER, A.C.K.P. 1996. Feyerabend e o pluralismo metodológico. Episteme: Filosofia e História das Ciências em Revista, 1(2): 61-78; RIBEIRO, M. B. & VIDEIRA, A. A. P. Cosmologia e Pluralismo Teórico. In: Scientiae Studia, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 519-35, 2004; ROSENFELD, Rogério. O lado escuro do universo I. Revista USP n.62 2004, p. 148-55; ZANETIC, João. Física também é cultura . Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 1989.