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Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 39-45, out/dez 2010 Adolescência & Saúde 39 Abordagem clínica e nutricional na anorexia nervosa: relato de caso Clinical and nutritional evolution of an adolescent with nervous anorexia: case report Tatiana dos Santos Yarzón 1 Denise Tavares Giannini 2 1 Nutricionista do Hospital Federal Geral de Jacarepaguá e da Prefeitura Municipal de Tanguá. 2 Mestre em Ciência Médicas – UERJ. Nutricionista da Divisão de Nutrição – NESA; HUPE RESUMO Objetivo: acompanhar a evolução clínica e nutricional de uma adolescente portadora de anorexia nervosa (AN). Descri- ção do caso: analisou-se retrospectivamente um caso de AN do tipo restritiva, durante as internações e no acompanha- mento ambulatorial. A paciente foi acompanhada pela equipe multidisciplinar de um hospital universitário do estado do Rio de Janeiro. As características clínicas mais marcantes foram bradicardia, hipotensão e a desidratação, que ocorreu nas duas internações. Os exames laboratoriais realizados no momento das internações não demonstraram alterações típicas verificadas na AN. Nas internações utilizou-se nutrição por via oral e enteral, com o objetivo de atingir as necessidades calóricas e proteicas necessárias para a reabilitação nutricional. O aporte calórico foi aumentado gradativamente e não houve síndrome de realimentação. Na alta da primeira internação, a paciente atingiu o alvo de 75% do percentil 50 do peso para a estatura. Após a alta, continuou com perda de peso e 4 meses e meio depois foi reinternada, com valores de peso e índice de massa corporal (IMC) inferiores aos da primeira internação. No entanto, na segunda internação não atingiu o alvo de 75% do percentil 50 do peso para a estatura até a alta hospitalar. Retornou ao tratamento ambulatorial, no qual oscilou entre períodos de melhora e recaída, porém se manteve clinicamente estável. Comentários: O manejo de pacientes com AN é árduo e trabalhoso, exigindo equipe multidisciplinar com troca constante de informações entre todos os profissionais da equipe. PALAVRAS-CHAVE Anorexia nervosa, adolescência, relato de caso. ABSTRACT Objective: To follow the evolution of clinical and nutritional state of an adolescent with nervous anorexia. Case description: The case of nervous restrictive anorexia was evaluated retrospectively, during of hospitalization and outpatient visit. The patient was monitored by multidisciplinary team of the University Hospital located on Rio de Janeiro state. The most important clinical features were bradycardia, hypotension and dehydration, occurred in two hospitalizations. Laboratory exams done at the both hospitalization didn’t show typical changes found in nervous anorexia. In both admissions were used oral and enteral nutrition, aiming to provide caloric and protein requirements necessary for nutritional rehabilitation. The caloric intake was increased gradually, and didn’t occur refeeding syndrome. In the first hospital discharge, the patient reached the target of 75% of 50th percentile for height and weight. After discharge, she lost weight and 4,5 months later, she was re-hospitalized, with weight and BMI values less than those of 1st hospitalization. However, in the 2 nd hospitalization didn’t reach the target of 75% of 50th percentile for weight and height until the hospital discharge. She returned to outpatient treatment, which oscillated among improvement and relapse periods, however remained clinically stable.Comments: The management of patient with nervous anorexia is hard- working, requiring a multidisciplinary team with regular exchanges of information among the professionals. KEY WORDS Nervous anorexia, adolescent, case report. RELATO DE CASO Tatiana dos Santos Yarzón ([email protected]) - Rua Araguaia, 1616, ap. 306, Freguesia - CEP 22745-271 - Rio de Janeiro - RJ Recebido em 22/07/2010 - Aprovado em 08/09/2010

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Abordagem clínica e nutricional naanorexia nervosa: relato de casoClinical and nutritional evolution of an adolescent with nervous anorexia: case report

Tatiana dos Santos Yarzón1

Denise Tavares Giannini2

1Nutricionista do Hospital Federal Geral de Jacarepaguá e da Prefeitura Municipal de Tanguá.2Mestre em Ciência Médicas – UERJ. Nutricionista da Divisão de Nutrição – NESA; HUPE

RESUMOObjetivo: acompanhar a evolução clínica e nutricional de uma adolescente portadora de anorexia nervosa (AN). Descri-ção do caso: analisou-se retrospectivamente um caso de AN do tipo restritiva, durante as internações e no acompanha-mento ambulatorial. A paciente foi acompanhada pela equipe multidisciplinar de um hospital universitário do estado do Rio de Janeiro. As características clínicas mais marcantes foram bradicardia, hipotensão e a desidratação, que ocorreu nas duas internações. Os exames laboratoriais realizados no momento das internações não demonstraram alterações típicas verifi cadas na AN. Nas internações utilizou-se nutrição por via oral e enteral, com o objetivo de atingir as necessidades calóricas e proteicas necessárias para a reabilitação nutricional. O aporte calórico foi aumentado gradativamente e não houve síndrome de realimentação. Na alta da primeira internação, a paciente atingiu o alvo de 75% do percentil 50 do peso para a estatura. Após a alta, continuou com perda de peso e 4 meses e meio depois foi reinternada, com valores de peso e índice de massa corporal (IMC) inferiores aos da primeira internação. No entanto, na segunda internação não atingiu o alvo de 75% do percentil 50 do peso para a estatura até a alta hospitalar. Retornou ao tratamento ambulatorial, no qual oscilou entre períodos de melhora e recaída, porém se manteve clinicamente estável. Comentários: O manejo de pacientes com AN é árduo e trabalhoso, exigindo equipe multidisciplinar com troca constante de informações entre todos os profi ssionais da equipe.

PALAVRAS-CHAVEAnorexia nervosa, adolescência, relato de caso.

ABSTRACTObjective: To follow the evolution of clinical and nutritional state of an adolescent with nervous anorexia. Case description: The case of nervous restrictive anorexia was evaluated retrospectively, during of hospitalization and outpatient visit. The patient was monitored by multidisciplinary team of the University Hospital located on Rio de Janeiro state. The most important clinical features were bradycardia, hypotension and dehydration, occurred in two hospitalizations. Laboratory exams done at the both hospitalization didn’t show typical changes found in nervous anorexia. In both admissions were used oral and enteral nutrition, aiming to provide caloric and protein requirements necessary for nutritional rehabilitation. The caloric intake was increased gradually, and didn’t occur refeeding syndrome. In the fi rst hospital discharge, the patient reached the target of 75% of 50th percentile for height and weight. After discharge, she lost weight and 4,5 months later, she was re-hospitalized, with weight and BMI values less than those of 1st hospitalization. However, in the 2nd hospitalization didn’t reach the target of 75% of 50th percentile for weight and height until the hospital discharge. She returned to outpatient treatment, which oscillated among improvement and relapse periods, however remained clinically stable.Comments: The management of patient with nervous anorexia is hard-working, requiring a multidisciplinary team with regular exchanges of information among the professionals.

KEY WORDSNervous anorexia, adolescent, case report.

RELATO DE CASO

Tatiana dos Santos Yarzón ([email protected]) - Rua Araguaia, 1616, ap. 306, Freguesia - CEP 22745-271 - Rio de Janeiro - RJRecebido em 22/07/2010 - Aprovado em 08/09/2010

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Yarzón & Giannini

INTRODUÇÃO

A anorexia nervosa (AN) é um distúrbio ali-mentar que afeta, em princípio, mulheres adoles-centes e adultas mais jovens, de etnia branca e alto nível socioeconômico e cultural. Cerca de 90% dos indivíduos atingidos são do gênero feminino1,2.

Os pacientes com AN apresentam distorção da imagem corporal, o que faz com que se sin-tam gordos, apesar do frequente estado caquéti-co. Alguns indivíduos se sentem com sobrepeso, ao passo que outros estão excessivamente preo-cupados com a gordura de uma parte específi ca do corpo, como abdome, nádegas ou coxas1.

Antes que se faça o diagnóstico de anorexia é importante excluir causas orgânicas que po-dem simular os quadros de transtornos alimenta-res, como: doenças gastrointestinais (síndrome da artéria mesentérica superior) e consumptivas (AIDS, câncer), depressão e esquizofrenia2.

A Americam Psychiatric Association esta-beleceu os seguintes critérios para o diagnós-tico de AN3:1. Recusa em manter o peso normal ou acima

do mínimo normal de peso para a idade e altura: perda ponderal que induz a ma-nutenção do peso corporal inferior a 85% do esperado ou índice de massa corporal (IMC) menor ou igual a 17,5kg/m².

2. Medo intenso de ganhar peso ou engordar ou, até mesmo, de fi car com sobrepeso.

3. Visão distorcida do peso ou do tamanho corporal; excessiva infl uência na autoava-liação do peso ou do tamanho corporal ou não considerar o baixo peso preocupante.

4. Amenorreia em mulheres pós-menarca, por exemplo, ausência de três ciclos mens-truais consecutivos.

O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – IV descreve dois subtipos de AN para distinguir a presença ou ausência de compul-sões periódicas ou purgações regulares durante o episódio atual de anorexia. O tipo restritivo é quando o emagrecimento ocorre em virtude de dietas, jejuns ou exercícios em excesso. O

tipo compulsão periódica purgativa ou bulímica ocorre quando o indivíduo recorre regularmente a purgações que incluem vômitos autoinduzidos e abuso de laxantes ou de diuréticos3.

Quanto à etiopatogenia, não há etiologia única responsável pela AN. Acredita-se no mo-delo multifatorial, com contribuição de fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociocultu-rais e familiares2.

Geralmente os pacientes relatam que o iní-cio do quadro ocorreu após um fator estressan-te, como algum comentário sobre seu peso, o término de relacionamento, ou ainda a perda de ente querido. Paulatinamente, o paciente passa a viver exclusivamente em função da dieta, do peso, da forma corporal, das atividades físicas, de tabela de calorias e do medo patológico de engordar. Concomitantemente, esses pacientes apresentam traços de personalidade como pre-ocupações e cautela em excesso, medo de mu-danças, hipersensibilidade e gosto pela ordem2.

Dentro da equipe multidisciplinar que deve tratar do paciente com transtornos alimentares (TA), o nutricionista é capacitado para propor a reeducação no que se refere ao consumo, e ao padrão e comportamento alimentares, aspectos profundamente alterados nos TA4.

As metas do tratamento nutricional na AN envolvem o restabelecimento do peso, a nor-malização do padrão alimentar e da percepção de fome e saciedade e a correção das sequelas biológicas e psicológicas da desnutrição3. A principal meta do tratamento da AN, segundo a Associação Psiquiátrica Americana, é o ganho de peso até o IMC acima de 193.

No caso de internação dos pacientes com AN, o peso corporal, o IMC e o estado metabó-lico são os fatores mais importantes na avaliação para diagnóstico. São considerados critérios clí-nicos para internação na AN5: Peso: abaixo de 75% do peso mínimo esperado. IMC: abaixo da faixa de 13 a 14kg/m2. Alterações hemodinâmicas, hidroeletrolíticas e metabólicas importantes: hipotensão arte-rial grave, bradicardia, hipotermia, hipoglice-mia, hipopotassemia.

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Alterações físicas indicativas de ameaça ime-diata à sobrevivência do paciente: disfunção cardíaca, renal ou hepática, sintomas de desi-dratação, desnutrição grave.

Alguns fatores são preditivos de evolução desfavorável, como peso muito baixo no início do tratamento, aparecimento tardio da doença, demora para procurar ajuda médica, presença de práticas purgativas, relações familiares com-prometidas e comorbidade psiquiátrica2.

O relato desse caso teve como objetivo acompanhar a evolução clínica e nutricional de uma paciente portadora de AN.

APRESENTAÇÃO DO CASO

J.S.D.A.F, adolescente de 16 anos, parda, baixo nível socioeconômico, escolaridade – 1° ano ensino médio, Tanner P4M4, apresentando ame-norreia, foi diagnosticada como portadora de AN. O diagnóstico foi baseado na presença de ame-norreia há três meses, distúrbio da autoimagem, IMC=14,2kg/m² , e medo intenso de ganhar peso.

A internação ocorreu em razão de AN as-sociada a sintomas graves de depressão e perda ponderal progressiva. Em relação aos parâme-tros clínicos e físicos, a paciente apresentava bra-dicardia, hipotensão, sopro sistólico, cabelos res-secados e quebradiços, pele seca e descamativa, estando hipo-hidratada e hipocorada.

Na avaliação antropométrica realizada no momento da internação, a paciente pesava 34kg, estatura de 1,61cm (IMC = 13,1kg/m² ), tendo como diagnóstico baixo peso. A avaliação bioquímica não apresentou alteração. A anam-nese alimentar revelou baixa ingestão calórica e irregularidade das refeições.

A conduta nutricional foi dieta hipercalóri-ca e hiperproteica, associada a dieta enteral, para complementar o aporte de calorias e nutrientes. Optou-se por uma fórmula polimérica, adminis-trada por bomba de infusão nos períodos diurno e noturno, porém em horários apropriados, com

o objetivo de permitir e estimular a ingestão das refeições por via oral. O aumento do aporte foi realizado gradativamente e não houve síndrome da realimentação. A ingestão dietética foi moni-torada diariamente pela nutricionista.

O suporte psicológico realizou-se pela saú-de mental; o tratamento clínico e medicamen-toso consistiu em terapia de reidratação oral (na primeira semana de internação), antidepressivo e suplementação de ferro.

O Gráfi co 1 revela um ganho ponderal, no qual observamos que a adolescente internou com IMC abaixo do percentil 5 e teve alta hos-pitalar quando atingiu o percentil 10. Portanto, foi atingido peso superior ao alvo de 75% do percentil 50 do peso para a estatura (38,8kg), associado à melhora da aceitação da dieta e do humor. A reabilitação nutricional alcançou um aporte de aproximadamente 81kcal/kg/dia e 3g de proteína/kg de peso. A adolescente também obteve melhora nos parâmetros clínicos, man-tendo exames laboratoriais sem alterações.

Após a alta hospitalar, a paciente retornou ao acompanhamento ambulatorial, porém não compareceu regularmente às consultas e perdeu 7 kg nesse período. Em razão da perda ponderal importante e da falta de adesão ao tratamento, voltou a ser internada. Ao exame clínico, apre-sentava hipotensão, hipotermia, ritmo cardíaco tendendo a bradicardia, pele seca com lesões hipercrômicas em membros inferiores e desca-mação superfi cial nas mãos, extremidades frias com perfusão lentifi cada, peristalse reduzida, estando desidratada e hipocorada, fazendo-se necessária a observação hemodinâmica.

A reabilitação nutricional consistiu em dieta hipercalórica e hiperproteica por via oral como preferencial, fornecendo inicialmente 30kcal/kg/dia. Entretanto, diante da difi culdade de a paciente alcançar a ingestão mínima recomen-dada pela via oral e do seu estado nutricional, foi indicado o suporte nutricional para suplementar o aporte de calorias e nutrientes no quinto dia de internação. O aumento do aporte foi realiza-do gradativamente.

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GRÁFICO 2. Evolução semanal do IMC durante a segunda internação

GRÁFICO 1. Evolução semanal do IMC durante a primeira internação

Segundo a avaliação antropométrica, ob-servou-se evolução de IMC mais lenta, compa-rada com a da primeira internação.

Conforme o Gráfi co 2, a adolescente in-ternou com IMC abaixo do P5, com valores

inferiores aos da primeira internação. Apesar do ganho ponderal, a adolescente se manteve abaixo do percentil 5 até a alta hospitalar, não sendo atingido o alvo de 75% do percentil 50 do peso para estatura.

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Com relação aos parâmetros clínicos, hou-ve melhora sob vários aspectos, como pressão arterial, temperatura corporal, perfusão capilar e função intestinal.

A reabilitação nutricional alcançou um apor-te de aproximadamente 80kcal/kg/dia e 2,9g de proteína/kg de peso.

A paciente retornou ao acompanhamento nutricional, psicológico e clínico, em ambulató-rio. A conduta nutricional incluiu o estímulo ao aumento da ingestão calórica e hídrica, enfatizan-do a importância da alimentação saudável e equi-librada nos diversos grupos de alimentos para o restabelecimento das condições nutricionais.

Durante o acompanhamento ambulatorial, a avaliação antropométrica revelou oscilação do IMC em diversos momentos (Gráfi co 3). No entanto, o percentual de gordura foi crescente (Gráfi co 4).

Durante o acompanhamento ambulatorial, a adolescente se manteve clinicamente estável, corada, hidratada, eupneica, eucárdica e apre-sentando pele e cabelos de aspecto normal, fun-ção intestinal regular e humor estável.

DISCUSSÃO

Atualmente, os TA estão cada vez mais pre-valentes. Neste relato de caso, a AN ocorreu em uma adolescente de cor parda e baixo nível so-cioeconômico e cultural, o que confi rma dados da literatura que afi rmam que o grupo acometi-do está fi cando cada vez mais heterogêneo.

De acordo com o DSM – IV, a adolescente apresenta AN do tipo restritivo, já que em ne-nhum momento se dedicou à prática regular de purgações como vômitos autoinduzidos, abuso de laxantes ou diuréticos6.

Sob o aspecto da saúde mental, a AN é sempre uma resposta a uma questão psíquica, e neste caso o fator estressante que contribuiu para o início do quadro foi a relação confl itu-osa com o pai. A tristeza instalada a partir das difi culdades de relacionamento com o pai é o marco de início da doença.

Com relação ao quadro clínico e físico, apresentou as seguintes alterações comuns na AN: bradicardia e hipotensão, perda de tecido adiposo e muscular, desidratação, cabelos res-

GRÁFICO 3. Evolução do IMC durante o acompanhamento ambulatorial

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secados e quebradiços, pele seca e descamativa, extremidades frias, com perfusão lentifi cada e peristalse reduzida (retardo do esvaziamento gástrico e constipação).

Nos dois momentos de internação da pa-ciente foi utilizada a nutrição enteral por sonda nasogástrica, administrada por bomba de infu-são no período diurno e noturno. A dieta evoluiu de forma cautelosa, e por isso não ocorreram anormalidades dos fl uidos e dos eletrólitos.

A conduta nutricional seguiu o recomen-dado, que é o consumo energético inicial de 30 a 40kcal/kg/dia, podendo chegar até 70 a 100kcal/kg/dia com a progressão do tratamen-to, até se atingir o peso ideal3,7. É necessária alta ingestão calórica para recuperação de peso, pois a taxa de metabolismo basal se encontra alterada: pacientes com AN do tipo restritivo necessitam de mais calorias do que os do sub-tipo bulímico8,9,10. Segundo Marcason11, o valor energético total da dieta não deve ser menor que 1.200kcal/dia. O aumento gradual pode ajudar a reduzir a ansiedade quanto ao ganho de peso e permite que o trato gastrointestinal

se adapte à realimentação. A proporção de ma-cronutrientes deve ser igual às recomendações para populações saudáveis4.

Nos dois momentos de internação, a oferta calórica inicial foi de 42,9kcal/kg/dia e 29,2kcal/kg/dia, respectivamente, e chegou a aproxima-damente 82kcal/kg/dia (via oral + enteral) no fi nal das duas internações. No acompanhamen-to ambulatorial, a média dos três momentos de acompanhamento demonstrou ingestão calóri-ca de aproximadamente 37kcal/kg/dia, abaixo do que é recomendado pela literatura3,12.

O ganho de peso deve ser controlado. A recomendação de ganho de peso é de 900g a 1,3kg/semana e de 250 a 450g/semana, para pacientes de enfermaria e para de ambulatório, respectivamente3. Todavia, Ornstein et al.12 veri-fi caram que um ganho de peso de 720g/4 dias era mais seguro, pois não causava a síndrome da realimentação.

Durante as internações, verifi cou-se ga-nho de peso gradativo, porém durante a pri-meira internação, o ganho semanal chegou a até 3,8kg/semana, superior à recomendação

GRÁFICO 4. Evolução do percentual de gordura corporal

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REFERÊNCIAS

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da APA3, que é de no máximo 1,3kg/semana. Porém, não apresentou síndrome da realimen-tação, muito comum na enfermaria, conforme afi rma Latterza4.

Durante a terapia nutricional na segunda internação hospitalar da paciente, houve perda de peso (0,3kg) após a primeira semana de tra-tamento. Logo foi iniciado o suporte nutricional, no quinto dia de internação. Após, evoluiu com ganho semanal de peso corporal, chegando a ganhar 0,3kg/semana, 0,4kg/semana, 0,5kg/semana e até 1,1kg/semana. Durante o acom-panhamento ambulatorial o peso oscilou em di-versos momentos, chegando a ganhar 2,6kg/15 dias e a perder 0,7kg/15 dias.

A paciente atingiu o IMC de 16,42kg/m², porém a principal meta do tratamento da AN, segundo APA3, é o ganho de peso até o IMC acima de 19.

A AN é uma doença crônica, portanto é ne-cessário bom senso e compreensão da doença como um todo para se progredir com as ade-quações na dieta e hábitos alimentares do indi-víduo, com metas atingíveis e praticáveis, sem exigências de recuperação rápida e imediata do quadro clínico. O acompanhamento deve ser em longo prazo, mesmo após não mais existirem sintomas, visando prevenir hábitos alimentares incorretos, recaídas e distúrbios emocionais.

CONCLUSÃO

Conclui-se, portanto, que o manejo de pa-cientes com AN é árduo e trabalhoso, exigindo uma equipe multidisciplinar, com troca cons-tante de informações entre todos os profi ssio-nais da equipe.

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