Abib 2008 Psicologia Em Estudo

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Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 ARTIGOS ENSAIO SOBRE DESENVOLVIMENTO HUMANO NA PÓS-MODERNIDADE José Antônio Damásio Abib * RESUMO. Neste ensaio, o conceito de desenvolvimento humano na pós-modernidade apóia-se em uma filosofia pós-moderna de direitos humanos, e na modernidade apóia-se em uma filosofia moderna de direitos humanos. O Estado moderno fracassou na realização da filosofia moderna dos direitos humanos. Uma filosofia pós-moderna de direitos humanos deixa para trás a filosofia moderna de direitos humanos. Isso significa abandonar o fundacionismo ético e as grandes narrativas emancipatórias de desenvolvimento humano. Sugerimos que uma ética pragmatista da alteridade e uma política pós-moderna da alteridade podem contribuir para elaborar uma filosofia pós- moderna de direitos humanos. Palavras-chave: alteridade, ética, política. ESSAY ON HUMAN DEVELOPMENT IN THE POST-MODERNITY ABSTRACT. Whereas the concept of human development in post-modernity is supported by a post-modern philosophy of human rights, in modernity it is supported by a modern philosophy of human rights. The modern State has failed in the modern philosophy of human rights and the post-modern philosophy of human rights has laid aside a modern philosophy of human rights. This means that ethical foundationalism and emancipatory great narratives of human development have been discarded. We suggest that a pragmatist ethics of alterity and a post- modern policy of alterity may be a help in the elaboration of a post-modern philosophy of human rights. Key words: Alterity, ethics, policy. ENSAYO SOBRE DESARROLLO HUMANO EN LA POS-MODERNIDAD RESUMEN. En este ensayo, el concepto de desarrollo humano en el pos-modernidad es apoyado en una filosofía pos- moderna de los derechos humanos y en la modernidad, es apoyado en una filosofía moderna de los derechos humanos. El Estado moderno fracasó en la realización de la filosofía moderna de los derechos humanos. Una filosofía pos-moderna de derechos humanos deja atrás la filosofía moderna de derechos humanos. Lo que significa abandonar el fundacionismo ético y las grandes narrativas emancipatorias del desarrollo humano. Sugerimos que una ética pragmatista de la alteridad y una política pos-moderna de alteridad pueden contribuir en la elaboración de una filosofía pos-moderna de derechos humanos. Palabras-clave: Alteridad, ética, política. * Doutor em Psicologia. Pesquisador Visitante da Fundação Araucária no Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, PR. Neste ensaio, o conceito de desenvolvimento humano na pós-modernidade refere-se à realização de direitos humanos no contexto de uma política e ética da alteridade. O que venha a ser uma política e ética da alteridade depende em grande parte do esclarecimento de três críticas, uma que foi dirigida ao fundacionismo ético, outra ao Estado moderno e a terceira ao desenvolvimento humano na modernidade. O fundacionismo ético tem uma longa tradição, que começa com a filosofia grega. Na primeira parte desse ensaio revisitamos brevemente algumas versões canônicas dessa tradição. Iniciamos pelo racionalismo ético de Platão e Aristóteles e concluímos com o racionalismo ético de Kant e o empirismo ético de Stuart Mill. Esses fundacionismos têm sido questionados pelo pensamento pós-moderno. Apresentamos essa crítica bem como uma ética

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Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 ARTIGOS ENSAIO SOBRE DESENVOLVIMENTO HUMANO NA PS-MODERNIDADE Jos Antnio Damsio Abib* RESUMO. Neste ensaio, o conceito de desenvolvimento humano na ps-modernidade apia-se em uma filosofia ps-moderna de direitos humanos,enamodernidadeapia-seemumafilosofiamodernadedireitoshumanos.OEstadomodernofracassounarealizaoda filosofia moderna dos direitos humanos. Uma filosofia ps-moderna de direitos humanos deixa para trs a filosofia moderna de direitos humanos. Isso significa abandonar o fundacionismo tico e as grandes narrativas emancipatrias de desenvolvimento humano. Sugerimos queumaticapragmatistadaalteridadeeumapolticaps-modernadaalteridadepodemcontribuirparaelaborarumafilosofiaps-moderna de direitos humanos.Palavras-chave: alteridade, tica, poltica. ESSAY ON HUMAN DEVELOPMENT IN THE POST-MODERNITYABSTRACT. Whereas the concept of human development in post-modernity is supported by a post-modern philosophy of human rights, in modernity it is supported by a modern philosophy of human rights. The modern State has failed in the modern philosophy of human rightsandthepost-modernphilosophyofhumanrightshaslaidasideamodernphilosophyofhumanrights.Thismeansthatethical foundationalismandemancipatory great narratives of human development have been discarded. We suggest that a pragmatist ethics of alterity and a post- modern policy of alterity may be a help in the elaboration of a post-modern philosophy of human rights. Key words: Alterity, ethics, policy. ENSAYO SOBRE DESARROLLO HUMANO EN LA POS-MODERNIDAD RESUMEN.Enesteensayo,elconceptodedesarrollohumanoenelpos-modernidadesapoyadoenunafilosofapos-modernadelosderechoshumanosyenlamodernidad,esapoyadoenunafilosofamodernadelosderechoshumanos.El Estadomodernofracasenlarealizacindelafilosofamodernadelosderechoshumanos.Unafilosofapos-modernade derechos humanos deja atrs la filosofa moderna de derechos humanos. Lo que significa abandonar el fundacionismo tico y lasgrandesnarrativasemancipatoriasdeldesarrollohumano.Sugerimosqueunaticapragmatistadelaalteridadyuna poltica pos-moderna de alteridad pueden contribuir en la elaboracin de una filosofa pos-moderna de derechos humanos.Palabras-clave: Alteridad, tica, poltica. * Doutor em Psicologia. Pesquisador Visitante da Fundao Araucria no Departamento de Psicologia e Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Estadual de Maring, PR.Nesteensaio,oconceitodedesenvolvimento humanonaps-modernidaderefere-serealizao dedireitoshumanosnocontextodeumapolticae ticadaalteridade.Oquevenhaaserumapoltica eticadaalteridadedependeemgrandepartedo esclarecimento de trs crticas, uma que foi dirigida ao fundacionismo tico, outra ao Estado moderno e aterceiraaodesenvolvimentohumanona modernidade.Ofundacionismoticotemumalongatradio, quecomeacomafilosofiagrega.Naprimeiraparte desseensaiorevisitamosbrevementealgumasverses cannicas dessa tradio. Iniciamos pelo racionalismo ticodePlatoeAristteleseconclumoscomo racionalismoticodeKanteoempirismoticode StuartMill.Essesfundacionismostmsido questionadospelopensamentops-moderno. Apresentamosessacrticabemcomoumatica 418Abib Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 pragmatistaquenosumaalternativaao fundacionismotico,mastambmumdospilaresda tica da alteridade.Oconceitodedesenvolvimentohumanona modernidaderefere-serealizaodosdireitos humanosnocontextodedeterminadasfilosofiasda histria.UmadasprincipaisfunesdoEstado moderno,talvezaprincipal,teriasidoadegarantira realizaodessesdireitos.Nasegundapartedesse ensaiorevisitamosbrevementeasrelaesentreo Estadoeodesenvolvimentohumano,eressaltamoso fatobastanteconhecidodequeoindividualismo possessivodeclassetemseconstitudoemumadas principaisdificuldadesnatrajetriadoEstadocom vistas realizao dos direitos humanos.Apresentamos,enfim,acrticaps-modernas filosofiasdahistriaquefundamentamo desenvolvimentohumano na modernidade, bem como umapolticaeticadaalteridadecomoorientao filosficaparaodesenvolvimentohumanonaps-modernidade.RACIONALISMO TICO DE PLATO E ARISTTELES Areflexosobreanaturezadascoisastemincio comoessencialismodafilosofiagrega(Plato, n.d./1987).Oessencialismoumaperguntasobrea qididade,sobreoqudeumacoisa,sobresua essncianecessria,ousuasubstncia.O essencialismoumaperguntasobreanaturezadas coisas.Deacordocomele,todososseresetodasas coisastm uma substncia. A substncia que define o homem, por exemplo, a razo (logos). Afirmar que o homemumsersemrazoumacontradiode palavras(contradictioinadjecto),osujeito(homem) introduzumanooquedestrudapelopredicado (semrazo).Nohcontradio,porm,quandose trata de acidentes, de essncias no necessrias - dizer, porexemplo,homemreligioso,mulhernegra.Um homem preserva sua substncia independentemente de qual seja a sua religio ou a sua cor.Quemconheceascoisaseosseresesteser racional: o homem. esse ser que faz teoria (theoria), porqueelequeconheceasubstnciadascoisas,as essncias sem as quais as coisas no so. Ou, pode-se dizertambm,elequeconheceosseressubjacentes saparncias,sessnciasnonecessrias,s essnciassemasquaisascoisasnodeixamdeser. Conhecerosseressubjacentesconhec-losdeuma vezportodas.Soeternoseimutveis,aopassoque asaparnciassomutveiseperecveis.Conheceros seressubjacentesconhecerassubstncias, conhecer a realidade; e isso conhecimento terico, theoria(episteme).Conheceraaparnciaopinio (doxa).Arazoarealidadequedescobreoutras realidades,arealidadedesteser,daqueleser,de qualquerser.Porissoelatambmarealidadeque descobreaverdade,averdadedesteser,daqueleser, dequalquerser.,emsuma,arealidadequedes-velaoudes-cobre.Torna-sepossvel,ento, contemplararealidadeeaverdade.Arazo,essa realidade que define o ser humano, o fundamento do conhecimento,elaquefundaaepisteme.desse modoquetemincionafilosofiaclssicaa fundamentao racional do conhecimento.arazoqueconheceosumobem(agathn). ela que identifica e define o bem supremo. Somente o sbio,diferenadoignorante,discerneosimples viverdavidaboa.Nessavida,aterrena,busca-sea vida boa, o sumo bem, o bem supremo e perfeito, que almejado por si mesmo, e no como um meio para se obter outro bem. Para Plato (n.d/1987), o sumo bem ajustia(dikaiosyn),alei.Noadmira,pois,que Scrates,condenadomortepelotribunalateniense, tenha recusado a proposta de fuga que lhe foi feita por Crito, seu discpulo. Seguir a lei da cidade e ingerir o veneno que lhe foi prescrito era justo. Injusto seria no cumpri-la(naverdade,adecisodeScratesmais complexa).Emltimaanlise,ajustia,obem, fundamenta-senarazohumana.dessemodoque temincionafilosofiaclssicaafundamentao racional da tica. Aristteles(n.d./1999),emboratenhadado continuidadefundamentaoracionaldatica, desenvolveuumareflexoquevaibemalmda justificaoexclusivamenteracionaldosumobem.O filsofogregorestringeoconhecimentocomo contemplaoaosfenmenosreguladospela necessidade,aosfenmenosquesoregidospela natureza, que so e que no podem deixar de ser como so - por exemplo, os solstcios, o ciclo das estaes, o movimentodosastros.Paraele,esseosentido strictosensudeconhecimentoouteoria(theoria). Porm, lato sensu, conhecimento refere-se tambm ao saber que elaborado com base na ao, que pode ser prtica(prxis)outcnica (poiesis). A ao prtica, a ao,eaaotcnica,ofabricar,oproduzir, dependem da deliberao humana. Ambas referem-se, pois, ao possvel, ao que pode ser e deixar de ser; no se escolhe o necessrio, escolhe-se o possvel. A ao idnticaaosseusprpriosfins,uma ao que busca obemspodeserumaboaao.Omesmonose podedizerdofabricar,comonamedicinaouna construo naval; produzir diferente dos fins que so realizados.Desenvolvimento humano na ps-modernidade419 Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 aao,enoo fabricar, que, ao lado da razo, defineohomem,poisela,aao,queseidentifica comasfinalidadesqueele,ohomem,pretende alcanar.Ohomemescolheaescujosfinsso idnticossfinalidadesqueeleestabelece previamente;eporisso,porqueinvestigaaao, que a tica e a poltica so as disciplinas clssicas para seestudaroserhumano.Aaonorecobre completamenteosumobem,noauto-suficiente, noamelhoratividadehumana,enopode,em ltimaanlise,definirosumobem.Porexemplo, homensjustosaindaprecisamdeoutroshomenspara realizar a justia. Sendo assim, a justia no pode ser o sumo bem. Na verdade, as virtudes morais no podem ser identificadas com o sumo bem. Da mesma maneira comoajustianopode,tambmnopodema moderao,acoragemealiberalidade,pois necessitam,respectivamente,daoportunidadede prazer,foraedinheiro.Noentanto,apesardesses limites,apesardenoseremosumobem,asvirtudes morais so bens.Haindaosumobem.Obemsupremo,omais altoprazer,afelicidade(eudaimonia).A felicidadenosereduzaoprazerderivadode virtudesmorais.Ela a atividade auto-suficiente, desejvelporsimesma,enoemfunodeoutra coisa;arealizaodamaisaltaemelhor faculdadeevirtudehumana:arazo.Felicidade contemplao,poisrealizararazoexerceras virtudesintelectuais,porexemplo,aintelignciae asabedoriafilosfica,quedefinemarazocomo contemplao.AticadeAristtelesfundamenta-senarazoenaao.Obemfundamentadona aooprazer,comooprazerdaaojusta, corajosa,moderada,liberal,oprazerdasvirtudes morais.Obemfundamentadonarazotambmo prazer, o prazer das virtudes intelectuais.AfilosofiamoraldeAristtelesrepresentaum esforonotvelparaconciliarrazocomao,ou teoriacomprtica,eissosefazcomoconceitode prudncia(phronesis).Aprudnciaumavirtude intelectualdestinadaao,umadisposio mediadoraentreateoriaeaprtica.aindaa virtudehumanaqueestabeleceodilogoentrea razo e a ao, delibera ponderando a necessidade e apossibilidade.Aprudncia,enfim,sabedoria prtica.Strictosensufelicidadevirtude intelectualelatosensuvirtudeintelectuale moral,prazerecontemplao.Emsuma,arazo nomaisarbitrasoberanasobrequestesmoraise sofreumaprimeiralimitaonahistriado pensamento ocidental. PS-MODERNIDADEAps-modernidadeesvaziaojogodelinguagem doessencialismogrego.Termoscomosubstncia, essncianecessria,real,eternoeimutvelno encontramrefgionodiscursops-moderno.como se a brecha feita por Aristteles, aquela em que a tica eapolticaconstituem-senodomniodopossvel,se alargasseparaatingirmortalmentearazocomo fundamentaoeateoriacomoconhecimentode essnciasnecessrias.Comefeito,segundoRorty (2000), urgente abandonar a idia grega de realidade everdadequedominouopensamentoeuropeuat muito recentemente. Masoessencialismo,essainvenogrega,no estmorto.Naps-modernidadecombatidopelo feminismo,quenovasdiferenasdegnerocomo variedadesdeessnciasnecessrias,massimcomo contingnciassociaishistoricamenteconstitudas.A crticafeministaaoessencialismogrego acompanhadadeoutrascrticas,comoaquese verificanafilosofiadalinguagemdeWittgenstein (1958/1988).SegundoWittgenstein,nopossvel sairdalinguagemeapreenderumarealidadelfora, sempreidnticaasimesma,eternaeimutvel.Essa tesepodeseralargadaparaincluirtantoaprtica socialquantoosparadigmaseteoriascientficas (Kuhn,1975; Rorty, 1980). O que todas essas crticas pretendemressaltarquearealidadeconstruda: intrinsecamente mediada, no s pela linguagem, mas tambmpelaprticasocialepelosparadigmase teorias cientficas. Aps-modernidadetambmfortemente marcadapelaconscinciaradicaldotemaque inaugurou a modernidade, a tradio da ruptura (Paz, 1984).SegundoPaz,amodernidadeumconceito exclusivamenteocidentalenoapareceemnenhuma outracivilizao(p.43).Emumaacepodistinta daquelas que o termo adquiriu em outras culturas e em outras pocas do Ocidente, o conceito de tempo que inauguraamodernidade.Emdetrimentodaverdade eterna,aconscinciadahistria,averdadeda mudana,quedinciomodernidade;aruptura adquireocarterdetradio.Aps-modernidade radicalizaaverdadedamudana ao negar um sentido para a histria. Essa radicalizao verifica-se na crtica ps-moderna s filosofias da histria que prevem um destinocomumparatodaahumanidade,sgrandes narrativashistricas,ouainda,acertognerode historicismo que recorre ao que seriam leis da histria parapreveroprogressoeaemancipaoda humanidade.Dessaperspectiva,oEstado, racionalmenteorganizado,seriaumainstituio 420Abib Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 definitiva que realizaria a liberdade universal, ou que, maiscedooumaistarde,desapareceriadepoisda revoluoedarealizaodosocialismo,quandoa justiaseriafinalmentealcanada.Acrticaps-moderna rejeita terminantemente esse tipo de discurso. Combasenessacrticapoderamospensarem abandonardefinitivamenteofundacionismo epistmico e tico; porm, se o fizssemos agora, esta discussosimplificariaexcessivamenteatesedo fundacionismo tico.DEONTOLOGISMO AteoriaticadeKantcontinuasendoaprincipal introduoaodeontologismo.Kantargumentaqueh umaleimoralobjetivaconhecidapelarazo.Sendo objetiva e racional, ela exige respeito. O respeito lei moralcriaanecessidadeouaobrigaodeaao estaremconformidadecomalei.Emumapalavra,a leimoralcriaodever,queanecessidadedeuma ao por respeito lei (p. 114). O dever de cumprir a lei moral no s regula a ao dos agentes morais, mas tambmalmejauniversalizaraprprialei.oque afirmaoimperativocategrico:...devoproceder sempre de maneira que eu possa querer tambm que a minha mxima se torne uma lei universal (p. 115).Aleimoralintrnsecaaomoral.Aao moralidentifica-secomobem;nomeiopara realizar o bem, o prprio bem. Em outra formulao doimperativocategrico,Kantafirmaquea humanidadedevesertratadacomoumfimemsi mesma,ejamaiscomoummeio.Aspessoasdevem ser tratadas como fins porque no so coisas, como os seresirracionais.Elassoseresracionaisea natureza racional existe como fim em si (p. 135). As aesdeatoresmoraisso aes racionais dirigidas a seresracionais.Sendoassim,sointernasou intrnsecas ao seu prprio fim, que o de respeitar os seresracionais,isto,aspessoas.Nessesentido,no s a felicidade do prprio ator, mas tambm o amor ao prximo,mesmoaoinimigo,podemserfinsdaao moral. Com efeito, a promoo de sua felicidade (...) pordever(...)tempropriamentevalormoral(...)o bem-fazerpordever(...)sesseamorquepodeser ordenado (p. 114).Na tica de Kant, a ao moral racional porque osfinstambmsoracionais.Noh, conseqentemente,qualquerpossibilidadedese justificararacionalidadedaaocomomeiopara realizar um fim sem que a racionalidade do fim esteja previamenteestabelecida.ArazomoralemKant razo substancial; apreende a racionalidade dos fins e confereaoumaracionalidadequesempreados fins.Situa-se,pois,nasantpodasdarazo instrumental,quesedefinepelaracionalidadedos meios.Issoequivaleadizerqueasconseqnciasda aosodesprezadas.Porexemplo,oamorao prximo no exterior ao de amar o prximo. No conseqnciadaao.Noserve,portanto,como critrio, seja para atribuir racionalidade instrumental ao, seja para avaliar a moralidade da ao.AfilosofiamoraldeKantumaticade princpios absolutos, como, por exemplo, o de cumprir as promessas ou de no mentir, derivados da lei moral, que, sob o imperativo categrico, almeja universalizar a ao moral revelia de suas conseqncias. TELEOLOGISMO TICO Oteleologismoticoestquasesempreem conflitocomodeontologismoporquesevolta precisamenteparaasconseqnciasdaao.Uma aoexaminadacombasenasuafinalidade.Nesse caso, moralmente correta a ao que gera felicidade. Extrnseca ao, a felicidade o bem e o critrio de correomoral.Retoma-senessaticaoprojetode definirfelicidadefundadonanaturezahumana.Idia antiga.Aristtelesjdisseraquefelicidadea realizaodarazo,enquantoosfilsofoshedonistas, comoEpicuro,disseramquefelicidadearealizao do prazer, que o bem o prazer.Bentham(1789/1984)escreveuqueanatureza colocouognerohumanosobodomniodedois senhoressoberanos:adoreoprazer(p.3).Definiu felicidade como prazer e infelicidade como dor. Stuart Mill(1863/2000),porsuavez,alargouessadefinio aodizerquefelicidadepodesignificaroauto-aperfeioamentoeoaprimoramentodahumanidade. Eleformulouoprincpiodamaiorfelicidade,ouo princpio de utilidade, como fundamento da moral: ... as aes esto certas na medida em que elas tendem a promoverafelicidadeeerradasquandotendema produzir o contrrio da felicidade (p. 30). Dito dessa maneiraoprincpiodeutilidadepodeserusadopara legitimar o egosmo tico, hedonista ou no-hedonista, adependerdecomosedefinefelicidade.Mas,Stuart Millcompletaadefiniodoprincpiodamaior felicidade:...essecritrio(utilidade)noode maiorfelicidadedoprprioagente,masodamaior somadefelicidadegeral...(p.35).Nessaversoo princpio de utilidade legitima um universalismo tico, hedonista ou no-hedonista, novamente a depender de como se define felicidade.Emsntese,ticasteleolgicaspodemser classificadascomoegosmotico-hedonista,egosmo tico-no-hedonista,universalismotico-hedonistae Desenvolvimento humano na ps-modernidade421 Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 universalismotico-no-hedonista.Aaotica egosta e hedonista se o bem for a maior quantidade de prazer para o indivduo, e egosta e no-hedonista se o bemforoauto-aperfeioamento.Aaotica universalista e hedonista (ou utilitarista e hedonista) se obemforamaiorquantidadedeprazerparaomaior nmeropossveldepessoas,euniversalistaeno-hedonista (ou utilitarista e no-hedonista) se o bem for o aprimoramento da humanidade.TICA PRAGMATISTA Emumaticapragmatistahumteleologismoe umhumanismo.Comefeito,trata-sedeum conseqencialismoquetemporfinalidadeo desenvolvimentodohomemcomoumfimemsi mesmo.Conservadodeontologismoateseda humanidade como um fim em si mesma, mas refuta as noes de natureza humana racional, lei moral, dever, imperativocategricoeprincpiosabsolutos;edo teleologismopreservaatesedasconseqnciasda ao,subtraindo,nessecaso,ouniversalismodo princpiodeutilidadeeoegosmotico.Qualquer ticavisaaobem.Issoestforadequesto.No entanto,ainvestigaodobemumtemapolmico, porque, de um lado, existe a dificuldade de saber se o bem um, o sumo bem, ou muitos, e, de outro lado, as tradiesdepensamentoticodivergemacercada naturezadobem,mesmoquandodizemquea felicidade o sumo bem. As controvrsias referentes natureza,unidadeoupluralidadedobemrefletemas divergnciastericassobreanaturezahumana,mas combasenessasteoriasquesefundaoconceitode bem. So tanto o fundacionismo tico como as teorias racionalistaseempiristasdanaturezahumanaque no so aceitos pela tica pragmatista. Uma tica antifundacionista desloca a questo do quefundamentaobem,oconceitodenatureza humana, para quem decide o que pode ser aceito como bemoubens.Aquelequedeliberarsobreessas questesdevereivindicaraeventuallegitimidadede suasproposiesnodebatepblico,ondeareflexo sobre o bem permanece sempre aberta. No entanto, no intuitodeevitarequvocos,devemosobservarque, desdequeoconceitodenaturezahumanaseja submetidoaodebatepblico,podemosapreciarsua eventualcontribuioparaaelaboraodeumatica antifundacionista.Oquenopodemosignorara natureza discursiva do conceito de natureza humana e acat-locomosendoapalavrafinal,tantosobrea realidade quanto sobre a verdade.Sugerimos,repetindoaqui,queumaaotica pragmatistapodevisarcomoumbemaesta conseqncia: o desenvolvimento do homem como um fimemsimesmo.PodemosconcordarcomRorty (2000)ecaracterizaressebemcomaobservaode queohomemrepresentaumprojetoaumstempo promissor e confuso. No se trata de superficialidades. Comefeito,comodefensordeumaticapragmatista, Rorty no aceita o fundacionismo tico, no se vale de nenhumateoriasobreanaturezahumanaparadefinir previamente o bem. Uma tica pragmatista uma tica parasepensarofuturo:pensaremcomocriara humanidade, pensar em como desenvolver o homem.Umaticapragmatistanosomenteum conseqencialismo,tambmumcontextualismo. Comoticacontextualistadefendeacompreensoda questoticacomooestudodesituaes.Coma defesa de que no possvel aplicar automaticamente regrasmoraispreviamenteestabelecidasparajulgar, porexemplo,casosdeabortoeeutansia,umatica contextualistaargumentaqueaavaliaodeuma questoticaparticulardeveserfeitadaperspectiva da histria e da situao dos atores morais envolvidos. Argumentaaindaqueoconhecimentotico adquirido comoexamedesituaesnoautomaticamente aplicvelanovassituaes,mesmoqueasanalogias sejamsugestivas,porquantooconhecimento aprofundadoedetalhadodecadacasopodeafetar significativamenteasregrasgeraispreviamente estabelecidas. Uma tica contextualista ope-se tica formalista,ateoriadequeamoraldevevaler-sede princpiosabstratosegerais,aplicveisaqualquer caso. Uma tica contextualista avessa a formalismos, abstraesegeneralizaesquesimplifiquemojuzo circunstanciado e concreto das questes ticas.Nologicamenteincompatvelestudarcasos comoobjetivodecompreenderexaustivamentesuas refernciasesimultaneamenteformularregrasgerais. Apsicologiaprdigaemexemplos(Kvale,1996; Martinez,1999).Comefeito,Piagetelaborouuma teoriadodesenvolvimentocognitivocombaseem entrevistasrealizadascomsuasprpriasfilhase Skinnerdesenvolveusuasreflexestericasapoiado, emparte,noestudodecasosexperimentais.Na psicologia social investiga-se a histria de vida de uma pessoa,tantoparacompreend-lacomopara esclarecer costumes, crenas e valores da comunidade naqualvive.Tambmosclssicosdaliteraturaso prdigosemexemplos.EmseulivroOProcesso, KafkacontaasdesventurasdeJosefK.eesclarecea estruturafundamentaldeconceitoscomoprocesso, burocracia,lei,aparelhojudicialeterror.Dostoivski elabora,emCrime e Castigo, o esquema fundamental doconceitopsicolgicodeculpa.Comoobserva Martinez (1999), todos esses exemplos mostram que o 422Abib Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 todoimanenteparteouqueogeralexisteno particular.Anfasequeumaticacontextualistacolocano estudodecasosnosomentenoincompatvelcom a formulao de regras gerais, como tambm pode ser um excelente veculo para a elaborao dessas regras, comoesteloqentementedemonstradonapsicologia enaliteratura.Oqueumaticacontextualista questionaaaplicaoautomticaderegras preexistentes a um determinado caso sem o seu exame concreto;etambmageneralizaomecnicado conhecimentodeumcasoparaoutroscasos,jque apenasainvestigaoconcretadoscasospermite saber se h ou no semelhanas contextuais entre eles. De qualquer modo, importante ressaltar que, na ps-modernidade, uma tica contextualista se interessa por problemas e solues ticas particulares e locais, e que a questo das eventuais semelhanas com outros casos - como tambm a da generalizao - permanece aberta einteiramentedependentedeevidnciaseprovas obtidas no debate pblico. Emsuma,umaticapragmatistaum conseqencialismoeumcontextualismo e orientada parapensarofuturo,eessefuturo,aqui,visaao desenvolvimentodohomemcomoumfimemsi mesmo.ESTADO MODERNO E DESENVOLVIMENTO HUMANO Nesteensaio,oconceitodedesenvolvimento humanorefere-serealizaodedireitoshumanos. Coube ao Estado moderno a tarefa de realiz-los, e se houvesselogradoxitooresultadoteriasidoa formaodocidado-que,aoladodoEstado,seria umcoadjuvanteprivilegiadoparalevaradianteessa tarefa. O Estado e o cidado seriam a garantia de uma sociedadelivreejusta.Examinamosaseguir sucintamente essa questo. Iniciamosesseexameapresentandoumrpido esclarecimentodotermocidadoedeseuscognatos: cidadania e cidade. Cidadania designa uma qualidade ou estado de ser, que pode ser abstrada do ser, sem o qual,contudo,nopodeexistir.Acidadaniadoser cidadooucidad.Cidadaniaumtermoquederiva de cidado que, por sua vez, deriva de cidade. Cidadoohabitantedacidade,dacivitas.Na Romaantiga,acivitascompreendiaaurbse,aoseu redor,oterritorium,sendoaprimeirahabitadapelos patrcios, os descendentes dos fundadores de Roma, e o segundo, pelos plebeus. Cidado o patrcio, o civis, aoqualseaplicaoJusCivile,oDireitoCivil.Aos plebeuseperegrinosaplica-seoJusGentium,o DireitodasGentes.Ono-cidado,ocontrriode civis, carente de todo o direito, o hostis, o inimigo ouoestrangeiro,passveldeserconquistadoe transformado em escravo. Caracterizado pela excluso socialinternaeexterna,oDireitoCivil,jna Antigidade,temafundamentalparacaracterizara cidade, o cidado e a cidadania. Daperspectivadojusnaturalismo,aleidacidade expressaodireitopositivo,odireitoqueest fundamentadonodireitonatural,odireitocomoele deveser.SegundoBobbio(n.d.),osdireitosnaturais vida,liberdadeeigualdadeestonaorigemda transiodoEstadodenatureza,umaficofilosfica, paraoEstadoartificial,civiloucivilizado,produtoda cultura.Osindivduosinteressadosemabandonaro Estadodenatureza,umEstadoemqueosseres humanossupostamentesolivreseiguais,masonde arriscado viver, legitimam, por um ato de consentimento voluntrio e recproco, a constituio do Estado poltico com a finalidade de instituir o direito como lei ou como ordenamentonormativo-coativo.Odireito,ento, estatizaododireito,lei, fora, que s legtima se existiraoladodajuridificaodoEstado(Bobbio, 1986).Institudopelaleieporelaprotegido,odireito cvel garante a coexistncia dos indivduos, tcnica de convivnciaquepermiteestabeleceroEstadopoltico comoprocessocivilizador.OEstadociviloEstado polticooucivilizado,,enfim,oEstadodeDireito. Justifica-seassimoEstadocivilizadocomoopontode partidaparaarealizaodosdireitoshumanos, direitos queforamexemplarmenteapresentadosnaDeclarao dosDireitosdoHomemedoCidadode26de agosto de 1789. Baseada nessa Declarao, a Constituio Francesa de1791foifundamentalparaoconstitucionalismo modernonoquesereferedefesadosdireitoscivise dasliberdadesfundamentaisdoindivduo,liberdade pessoal,liberdadedecirculao,depensamento,de conscinciaeexpresso,dereunio,dereligio, liberdade econmica (Haarscher, n.d.; Matteucci, 1986). Oconstitucionalismomodernojnascemarcadopelo individualismo;oindivduodesconfiadopoderdo Estado-poderestequedevepreservarasliberdades fundamentais-edetodasasformasdepoder organizado,exigindoqueoexercciodessespoderes seja subordinado defesa de seus direitos. A defesa das liberdades fundamentais do indivduo tem o objetivo de limitaropoderdoEstado,reclamandoumaatitudede no-interveno, o que d origem ao Estado absentesta (Haarscher, n.d.; Matteucci, 1986). Com a conquista dos direitos polticos, a liberdade deassociaonospartidoseosufrgiouniversal,o Desenvolvimento humano na ps-modernidade423 Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 EstadoausentedlugaraoEstadodemocrtico representativo(Haarschern.d.;Matteucci,1986). Comaprticadessasliberdades,oscidados comeamaparticipardadeterminaodosobjetivos polticos do Estado. Essa prtica termina contribuindo paratransformaroEstadodemocrticorepresentativo no Estado-providncia, ou Estado de bem-estar social (WelfareState).Oscidadospassamaexigirqueo Estadointervenhanarealizaodosdireitos econmicos,sociaiseculturais,direitoaotrabalho, educao,sade,assistncia.OEstado democrticorepresentativopassaaser simultaneamenteumEstado-providncia,umEstado queintervmeatuacomopropsitodegarantira realizaodessesdireitos(Haarscher,n.d.;Matteucci, 1986).SegundoHaarscher(n.d.),oindividualismoque interessarealizaodosdireitoshumanoso individualismohumanista,quesereferesolido essencial do homem: sofre-se s (...) e essa verificao preliminarimplica,paraumaespciehumanacuja fragilidadepatente,orespeitoportodaa individualidadecomotal,asuatomadaenquantoum fim,enunca-diziaKant-comomeio(p.128). Trata-sedoindividualismoquedefendeasliberdades fundamentaisdetodososindivduos.Oindivduo precisadeproteo,frgilecarente.daquevm osoutrosnomesqueHaarscher(n.d.)atribuiaesse individualismo:individualismogeral,individualismo comum,individualismotico,individualismotico-poltico. Livres da interveno do Estado em seus assuntos privados,elivrestambmparaparticipardavida poltica,osindivduoseassociedadesdariam continuidadeaocombatepelosdireitossociaise obrigariam o Estado a intervir, progressivamente, para realiz-los.Essaseriaarealizaoprovveldo desenvolvimentohumanoedaformaodocidado. Porm,oindividualismoquevigenoEstadoo individualismopossessivo.OEstadorefmda associaodosinteressesdaclassepolticae econmica, da classe dos que tm bens. por isso que Haarschernomeiaoindividualismopossessivode individualismo de classe. O Estado defende interesses de classe, da burguesia e da classe poltica, defende o direitopropriedadeeliberdadedemercado,ou ainda, desemboca em totalitarismos, como o nazismo e o stalinismo. Apesardisso,outalvezporisso,alutapelos direitos sociais ganhou importncia nos sculos XIX e XX (Matteucci, 1986). Porm, agora se assiste a uma inversodetendnciaseseretomaabatalhapelos direitoscivis(p.355).Evidentementeissonoquer dizerqueosdireitossociaistenhamsidoplenamente conquistados e que, portanto, teria chegado a hora, por umacuriosainverso,deseempenharnalutapelos direitos civis. Provavelmente Matteucci quer dizer que oprojetodoindividualismohumanistapermanece inconcluso, que a realizao dos direitos civis soobra ainacabada,eque,tendoadquiridoalguma experinciahistricanalutapelosdireitossociais,os seres humanos estariam, agora, mais organizados para defenderasliberdadesfundamentais.O individualismo humanista teria na atualidade o suporte dosgrupossociaisparadefenderasliberdades fundamentaiseenfrentaroindividualismopossessivo declasse.Dessemodo,surgecomoumanova esperanaparapromoverodesenvolvimentohumano e formar a cidadania, o combate dos grupos sociais, os novosatoressociais-masumcombatetravadona perspectivadeumapolticaps-modernada alteridade. POLTICA DA ALTERIDADE Oconceitodedesenvolvimentohumanona modernidadeapoiou-seemfilosofiasdahistriaque viamnahistriadahumanidadeumsentidocom desfechosquasesempremuitootimistas,comoa conquista da liberdade e da igualdade. Havia a crena noprogressoenaemancipaodahumanidade (Lyotard, 1998). Esse projeto sustentava-se na idia de queacinciadescobririaarealidadeeaverdadee, portanto,acerteza.Acertezafundamentadano conhecimentodarealidadeedaverdadefavoreceria iniciativaspolticasesociaisquepromoveriamo progressoeaemancipaodahumanidade.Essas iniciativasfracassaram.Lyotardobserva, amargamente,queoresultadofoi,porexemplo,a riqueza do Norte e a pobreza do Sul, o despotismo da opiniopraticadopelamdia,odesemprego,a desculturaoproduzidapelaescola,guerrase totalitarismos.Alinguagemps-modernanoacalentapalavras comorealidade,verdadeecerteza.Elaacolhe discursos, paradigmas e prticas sociais eventualmente universalizveiscomacomunicao.Orelativismo est,portanto,excludo.Afamosatesedequea verdaderelativanospertenceaodiscursoda verdade,comotambmcriaumabarreiradesilncio quecaracterizaoimobilismo,aincomunicabilidadee os perigos sobejamente conhecidos do relativismo. Na ps-modernidadedefende-seamobilidadeea comunicabilidade dos discursos, o que bem diferente de defender verdades relativas. Essa comunicao tem, aomenos,duasfunes.Aprimeiraadeser 424Abib Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 intolerantecomointolervel-porexemplo,o nazismo, o fascismo, o autoritarismo e todas as formas de violncia. A segunda a de chamar a ateno para asqualidadesemergentesdacomunicaocomo propsitodecriarnovosespaosdeconvivncia pacficaparaosindivduoseassociedades,por exemplo,espaoscapazesdeabrigarpacificamente judeus e palestinos, cristos e muulmanos.Desabaram,deoutrolado,osjuzosabsolutos centradosnadescobertadarealidade,verdadee certeza,osjuzosquenostornavamsemelhantesa pontodetermosprojetoscomunsdeprogressoe emancipao. Somos diferentes e precisamos perceber e compreender a existncia de dissensos e de conflitos. Naps-modernidade,oconceitodedesenvolvimento humanorefere-sesdiferenas,poissoelasque constituempossibilidadesdeformasdevida alternativas,refere-se,emsntese,aocompromisso com a poltica da alteridade. Apolticadaalteridadetemumsentidomoderno eoutrops-moderno.Nosentidomoderno,essa polticavisaidentidadenacionaldoEstado-Nao, reconhecendo-seaomesmotempoaexistnciadas chamadas subculturas no interior desse Estado. Esse ideal da identidade nacional permanece at hoje como abuscadeumimaginriocapazdenosreconduzirs nossas razes, seja para esclarecer a nossa histria seja paradizerqualonossolugar.Jassubculturas permanecerammargemdasidentidadesnacionais, reconhecidas,semdvida,masmarginais,semmaior valor, acidentes, simples contingncias.Naps-modernidadeomundotornou-se radicalmenteglobalizado,predominamasidentidades supranacionais,comosubseqentedeslocamentodas identidadesnacionaisparaumsegundoplano.A identidade nacional tornou-se local, uma posio antes ocupadapelassubculturas.Abuscapor identidades gradualmentemaisamplas,asidentidadesnacionais na modernidade e supranacionais na ps-modernidade, tendeaapagardiferenas,eporissomesmoocorre umareao:asdiferenas tornam-se aguadas no seu esforoparanosubmergiremuniversos progressivamentemaisabstratosemaisformais.Mas noto-somentedissoquesetrata.Asdiferenas tendemaproliferar.Nosentidops-moderno,a polticadaalteridadetrazasdiferenasparaoplano principal do debate, as diferenas saem da sombra, das margens, do sem-valor, do que s a custo se tolera.Foicomomovimentofeministaqueapoltica da alteridadeveiotona(Hall,1998).Soexemplos dessapolticaapolticadegnerodofeminismo,a polticasexualdegaysedelsbicas,apolticade gruposperseguidosporsuacorouporsuascrenas religiosas,apolticaambientalistadeecologistas,a polticaantibelicistadepacifistas,apoltica indigenistacontraoextermniodecomunidades indgenas.Osmovimentossociaissoprviosps-modernidade. O sentido especificamente ps-moderno dessesmovimentosaconstataodequeoEstado falhounadefesadosdireitosdosexcludoseque tambmnocompetenteparapromoverosdireitos sdiferenas.nesseexatosentidoqueapolticada alteridadenaps-modernidadevontadedeincluire deseaventurarpelosuniversosdesconhecidosque herdamos da modernidade, uma cultura que, com suas grandesnarrativassobreosentidoeodestinoda histriadohomem,transformouarazoemopresso dooutroeempreguiadepensarradicalmenteo diferente.Osentidops-modernodosmovimentos sociais s vem refletir e fortalecer a idia de que uma polticaps-modernadaalteridadeseapiaemsolo propcio para aguar e fazer proliferar diferenas.Umapolticaps-modernadaalteridadeuma polticadedireitoshumanos,pois,comoobserva Lyotard(1998),nosnoseameaaexcluirum parceirodojogodelinguagemquesejoga,casoo dissensodomineojogo,comotambmseresiste ameaaqueestpresentenoterror,adeobtero consensoporforadaprpriaameaa.Emsntese, umapolticaps-modernadaalteridade antiterrorista,eessadistino,oantiterrorismo, conditiosinequanonpararealizarosdireitos humanosepromoverassimodesenvolvimento humano.TICA DA ALTERIDADE Odiscursosobrepolticadaalteridade incompletosenoforacompanhadopelodiscurso sobre a tica da alteridade. De nossa perspectiva, tica daalteridadeumaticapragmatista,queenfatiza fortementeaformaodasensibilidade.Comotica pragmatista, a tica da alteridade tem dois alicerces, o conseqencialismoeocontextualismo.Oterceiro alicercedaticadaalteridadeconsistenaformao dassensibilidadesesttica,hermenuticaepoltica.A sensibilidadeestticaforma-senapercepodequeo outrooestranho;aexperinciaque desconhecemos,asituao,olugareotempoque ignoramos.Naformaodessasensibilidade percebemos essa estranheza e tomamos conscincia de queaignoramosprofundamente.Podemosdarum passoadianteerealizarumadcalage,um deslocamento, dirigindo nosso olhar para o estranho e procurandodesenvolverogostopelanovidadeepela surpresa e, conseqentemente, pelo aprimoramento da Desenvolvimento humano na ps-modernidade425 Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 dimensoestticadeumaticadaalteridade.A sensibilidadehermenuticaforma-senodialogismo, naescutaamorosa da voz do outro, na imaginao da experincia, da situao, do lugar e tempo do outro, na pesquisadetextossobreooutroe,enfim,na percepodaestranhezadesi,oudosoutrosque somos,dosoutrosqueexistememnossasmentese aes.Oqueumaticadaalteridadebusca, precisamente,compreenderooutro,sendo,porisso, tica da compreenso ou hermenutica. Por sua vez, a sensibilidade poltica forma-se no gosto pela negao, pelocontra-exemplo,nosensodointolervel,no intolervel que h, por exemplo, na violncia, no gosto pelaaopoltica,pelasrelaesdeliberdadee resistnciaaospoderescirculantesnonosso cotidiano e nas esferas mais amplas da sociedade. Umaticadaalteridadequesejaorientadapela formaodasensibilidadeesttica,hermenuticae polticaconfigura-secomoticaps-moderna.Nessa ticaooutronopodemaissercompreendidocom baseemumprincpioracionalouempricode felicidade,ouainda,comoherdeirodeumdestino histricocomumcujosdireitossoassimilveise garantidospeloEstado,emboraelasejareceptivaa pequenassemelhanasconquistadascomoexame acurado de situaes. O que essa tica no pretende passarporcimadediferenas,eoqueelaalmeja tratar uma diferena por vez, seja ela religiosa, tnica, degnero,oudequalqueroutrotipo(Rorty,2000). Enfim,oseupropsitoreconhecere,namedidado possvel,minimizardiferenas.Trata-se,naspalavras deRorty, de invocar uma poro de pequenas coisas comunsaosseusmembros,aoinvsdeespecificara nicaegrandiosahumanidadecomumentreeles(p. 121). Portanto essa tica, que estuda situaes e casos, adequadanospararevelarparticularidadese singularidades, mas tambm para recuperar o valor do detalhe ao retirar da sombra o diferente e o estranho.CONSEQNCIAS PARA A PSICOLOGIA Qualacontribuioqueessadiscussosobre desenvolvimentohumanonaps-modernidadepode trazerparaapsicologia?Humacontribuiomais geral,quetemavercomasrelaesentretica, polticaepsicologia,eoutramaisespecfica, que tem avercomaconcepops-modernade desenvolvimento humano defendida neste texto.Qualquertradiodepensamentopsicolgico tratacomconhecimentoterico,tcnicoeprtico. Comoconhecimentotericoetcnico,apsicologia identificadarespectivamentecomaidiadecinciae deprofisso.Como,aomenosdesdearevoluo cientficamoderna,humafortetendnciaase identificaroconhecimentoprticocomo conhecimentotcnico,atalpontoqueoexerccioda atividadeprticaentendidocomooexerccioda atividadetcnica,arazoprtica epistemologicamentereduzidaarazotcnica.Sendo assim,umarazoinstrumentalpassaaocupar indevidamenteolugardeuma razo finalista, de uma razoticaepoltica;e,namedidaemquearazo tcnica,desdearevoluocientficamoderna,se transformounofundamentodoparadigma tecnocientficodaatualidade, ela, agora como razo terico-instrumental,quepassaaditarasfinalidades que estabelecem o norte das aes profissionais.Atecnocincianoserefereaqualquercincia emparticular,umparadigmadacinciaqueemsua hegemonia ameaa devorar a razo prtica de todas as cincias,poisseorientato-somenteporproblemase questes que dizem respeito apenas razo terica e razo tcnica, um desfecho lamentvel, mas previsvel, da revoluo cientfica moderna, que, ao desvincular a cinciadafilosofiacortouacabeadacincia,seu crebro,suaconscincia.Evidentemente,apsicologia estaincluda,pois,afinal,porquenoestaria?No entanto,apsicologiaemprimeirolugarrazo terico-prtica,razopoltica,ticaeterica,e somenteemsegundolugarrazoterico-instrumental, razo tcnica.A tica e a poltica da alteridade defendidas neste textosugeremumaprxisparaapsicologiaque consiste na defesa da democracia como um bem, pois, parafraseandoLyotard(1998),ademocracia antiterrorista:casoodissensodomineojogode linguagem, o parceiro no ameaado de ser excludo dojogo.Essaprxisconsistetambmnadefesada diversidade,oqueequivaleadizer,daperspectiva dessetexto,quevontadedeincluir,vontadede defenderosdireitosdosexcludos.Masentoas prticasdemocrticasdeinclusosocialdevero respeitaroprincpiodealteridade,oprincpiodo direitosdiferenas.Pressupomos,portanto,nessa noodeinclusosocial,umadefiniopolticade pessoa:apessoasujeitodedireitos.Sendoassim,a noodeinclusosocialadquireosentidodejustia social com preservao da noo de alteridade. Essaprxiseessadefiniopolticadepessoa caracterizamosprincpiosdeumabiotica pragmatista, muito prxima das bioticas principialista - baseada no valor moral da pessoa - e existencialista, baseadananoodepessoacomoaberturaaofuturo, quepodecontribuirnosparanortearadiscusso doscomitsdebioticanaavaliaodeprojetosde pesquisacientfica,mastambmparaorientarou 426Abib Psicologia em Estudo, Maring, v. 13, n. 3, p. 417-427, jul./set. 2008 reorientar a razo tcnica das tradies de pensamento psicolgico.CONCLUSO Circulamnamodernidadeduasacepesde razo:umarazofundacional,presentenoincioda modernidade,eumarazocrtica,queinaugura propriamenteamodernidade(Paz,1984).Arazo fundacionaltambmcrtica,pormoseuobjetivo alcanaraverdade,aopassoqueoobjetivodarazo crticatransformaraverdadeemcrtica.Como escreve Paz (1984), a verdade crtica (p. 47).Emseumagistralensaio,Paz(1984)identificaa razocrticacomatradiodaruptura,coma conscinciahistrica.Paradoxalmente,aruptura transforma-seemtradio.Arazocrticatorna-se implacvelcomohomogneo,aunidadeea identidade.Surgeoutravertentedamodernidade:o gostopeloheterogneo,pelapluralidadeealteridade. Abuscapelacompreensodensmesmosganhou, desdeento,umainterminvelrefernciaaooutro. Compreender-noscompreenderooutro.Nasbelas palavrasdePaz(1984),logodeixamo-loparatrse corremosoutravezprocuradensmesmos,no rastro de nossa sombra. Contnuo ir para alm, sempre paraalm-nosabemosparaonde.Eaisto chamamos progresso (pp. 48-49). essedeslocamentomodernodarazo fundacional para a razo crtica, da primordialidade da identidade para a primordialidade da alteridade, que abraadopelaps-modernidade.Instala-searazo crtica,arupturacontnua,aalteridade,apresena significativadooutro.NodizerdePaz(1984), vivemosemumcontnuoirparaalm,semsaber paraonde,ecomconscinciadequeistoo progresso.Na ps-modernidade a razo crtica abala crenas carasmodernidade,comolegrandrcit,agrande narrativa que conta o porvir luminoso da humanidade, eacapacidadedoEstadoderegular-sepelo individualismohumanista.Comafalnciadas metanarrativasmodernaseaheranadeumEstado refm do individualismo possessivo, as diferenas no encontramseusespaosdeconvivncia,explodemao ladodoEstadoneoliberaledesociedadescadavez menosinclusivas.Aps-modernidadeinvadidapor uma mirade de diferenas jamais vistas ou imaginadas na modernidade.Uma filosofia de desenvolvimento humano uma filosofia de direitos humanos. Aqui, uma filosofia ps-moderna de direitos humanos centra-se em uma tica e polticaps-modernadaalteridade,retomao individualismohumanistamodernoesesolidariza com os movimentos sociais ps-modernos.Nessaacepops-modernadedesenvolvimento humano,umafilosofiadedireitoshumanosnopode maisdefenderessesdireitoscomoterminusaquo, comopontodepartidaparaa formao da cidadania, massimcomoterminusadquem,comopontofinal paraaconstruodacidadehumana.Osdireitos humanos no so universais, so universalizveis. Adefiniopolticadepessoa,apessoacomo sujeitodedireitos,pode,comorazoprtica,orientar ou reorientar a razo tcnica da psicologia.REFERNCIASAristteles(1999).ticaaNicmacos(M.daG.Kury,Trad.). Braslia: UnB. (Original publicado em n.d.). Bentham,J.(1984).Umaintroduoaosprincpiosdamoraleda legislao(L.J.Barana,Trad.).EmV.Civita(Org.),Stuart Mill e Bentham (pp. 3-68). So Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1789). Bobbio, N. (n.d.). O modelo jusnaturalista (Srgio Bath, Trad.). 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