Abandono

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Abandono Cristiane Bispo 1ª edição Rio de Janeiro, 2012.

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A autobiografia de Cristiane Bispo revela uma realidade que muitos brasileiros desconhecem: a realidade de uma favela. Tendo vivido no Vidigal, a autora relata suas aventuras e experiências da dura infância que teve, contrapondo com a rotina enfrentada no ano de 2007, quando seu irmão e grande amigo encontrava-se em coma no Hospital Miguel Couto. A transição entre o passado e o presente narrados fica bem marcada pela linguagem utilizada. Ao falar da infância, é possível perceber uma visão infantil dos fatos, até de certa forma romântica. A autora consegue passar a pureza de uma criança, como se o texto tivesse realmente sido escrito nos anos 70. O interessante é que, nas histórias acontecidas no ano de 2007, a linguagem muda, torna-se mais dura, fria e seca, mostrando como um adulto encara a vida.

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AbandonoCristiane Bispo

1ª edição

Rio de Janeiro, 2012.

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B531a

Bispo, Cristiane, 1971-

Abandono / Cristiane Bispo. - Rio de Janeiro : AR Ed., 2012.

202p. : 23 cm

ISBN 978-85-65873-00-0

1. Bispo, Cristiane, 1971-. 2. Mulheres - Brasil - Biografi a. 3. Vidigal (Rio de Janeiro, RJ). I. Título.

12-4474. CDD: 920.72

CDU: 929-055.2

28.06.12 06.07.12 036752

O conteúdo deste livro é de inteira responsabilidade do seu autor.

Ar Editora

www.areditora.com.br

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Sumário Tempo atual Infância • Paraíba do Sul, 03 de agosto de 2007 ◆ 07 20 ◆ Duas janelas, uma porta Um olho se abre ◆ 21 21 ◆ Pão e café com leite quente… Bala e coração partidos ao meio ◆ 24 25 ◆ Carneirinhos indo pro abate Muitos problemas, algumas soluções ◆ 32 36 ◆ Uma boa senhor a em nossas vidas Cheiro de mar: santo remédio ◆ 42 44 ◆ Latão, latinha, água e diversão Uma luta e um agradecimento ◆ 46 48 ◆ …um sonho que virou pesadelo Lembranças da juventude ◆ 52 62 ◆ Incêndio por um bife Parecia o papai ◆ 69 71 ◆ O dia mais feliz das nossas vidas Enquanto há vida, há esperança ◆ 85 86 ◆ O que é orgulho Compasso de espera angustiante ◆ 89 90 ◆ Doze dedos 98 ◆ Como nasce uma favela 107 ◆ Vinte e um filhos Na enfermaria ◆ 120 121 ◆ Pedras nos telhados 124 ◆ Fuga para as três Marias 134 ◆ Cilada Outubro ◆ 142 144 ◆ Abandono

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Uma boa surpresa ◆ 155 156 ◆ O inesquecível circo Terceira semana de outubro ◆ 174 177 ◆ Os meninos são todos chatos Primeiro de novembro ◆ 181

Agradecimentos ◆ 197 Pequenas notas ◆ 199

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P a r a í b a d o S u l , de agosto de ...

Estou há 1 ano e 08 meses morando em Paraíba do Sul. Voltei para onde eu sempre quis. Depois de muitas idas e vindas, eu consegui vencer, por minha conta, por meu trabalho e, o que é melhor, consegui fi car na minha casa com meu fi lho.

Arrumei um trabalho, tenho um companheiro, o Valdecir, e uma fi lha linda, a Walquíria, e era nela que eu pensava nesta manhã. Quando me levantei, meu filho já havia saído para o trabalho. Ele já é um homem. Valdecir também já não estava mais em casa. Eram 6:45 da manhã. Levantei-me e andei pela casa, como faço todas as manhãs. Fiz minha higiene pessoal. Preparei o café, e, enquanto a água fervia, olhei pelo basculante da cozinha e notei que o dia estava lindo. O sol brilhava. Senti até calor em pleno mês de agosto. Logo depois eu iria acordar minha fi lha para levá-la à creche. Quando olhei para trás, vi que não seria mais necessário: ela já havia acordado e vinha ao meu encontro. Peguei-a no colo, dei-lhe beijo e me senti muito feliz. Como meus fi lhos são lindos! Tenho medo de perdê-los!

Olhei o relógio, eu tinha urgência. Arrumei minha filha, peguei sua mochila, tomei-a pela mão e a conduzi até a creche. Despedi-me com um beijo. Voltei para casa, arrumei tudo, deixei a janta semipronta, vesti-me e fui trabalhar. Sempre levo aproxi-madamente 10 minutos de casa até o trabalho. Sou cozinheira numa escola

municipal. Agora sou funcionária pública!

Entro às 9 horas. Estava eu na cozinha olhando o cardápio e me senti mal. Sem mais nem menos, comecei a tremer. Minha nuca doía, meu coração pulsava acelerado, sentia calor e frio. Não encontrei explicação para o meu mal estar. Minha colega de trabalho disse que eu estava pálida. Minhas mãos estavam geladas, não sabia o que fazer. Preparei um copo de água gelada com açúcar e tomei, o que não resolveu muito.

Fui até a porta da cozinha, olhei o tempo, observei o céu, e nada, nada me preparava para o que estava por vir. Não consegui identifi car de onde vinha tanto mal estar. E mesmo que eu já soubesse, nada poderia me preparar para o que eu teria de enfrentar nos 4 meses seguintes. E assim foi a manhã inteira: dores pelo corpo, um cansaço tremendo, boca seca, coração batendo alucinadamente. Minha companheira de trabalho olhou para mim e disse que eu estava cinza, amarela. Pensei em pedir para ir embora, mas alegar o quê? Os meus sintomas não eram físicos, não eram reais, não eram palpáveis, não havia remédio que aplacasse, e assim foi o dia inteiro, mas cumpri com minha rotina. Às vezes, sentia-me levando com a barriga, porém fi ndou o dia. Peguei minha fi lha e fui pra casa.

Adentrei o meu lar, e sem mais nem menos minha tia me chamou. Nem o sapato eu havia tirado do pé, fui ver o que ela queria. Disse que minha grande amiga de infância, Claudia,

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havia me ligado o dia inteiro, mas que não deixara recado. Pus-me a pensar: o que ela queria? Já entrei em muitos rolos por causa dela na juventude, entretanto agora tudo é passado. Tornamo-nos balzaquianas e, juntas, rimos muito de certas coisas.

Como me mudei aqui para Paraíba do Sul, nossos contatos ficaram escassos. Claudia veio aqui uma vez para o batizado do Rodrigo, de quem ela é madrinha. Trabalhamos juntas várias vezes. Uma vez ela arrumou um trabalho para mim, e, na outra vez, eu arrumei pra ela. Catamos xepa juntas, levamos bolo de namorados, quase que ao mesmo tempo. Somos muitíssimo amigas, desde sempre, desde que eu me entendo como gente, de modo que era normal Claudia me ligar para me dar qualquer notícia, de qualquer fato novo, de qualquer novidade que houvesse no Rio de janeiro. E foi por um destes motivos que Claudia me ligara, mas minha amiga não é uma pessoa direta em suas palavras. Foi um suplício falar com ela pelo telefone, pois não sabia me dizer qual dos meus irmãos se encontrava internado, o que me deixou mais confusa ainda, já que eu me encontrava bem de saúde e ainda restavam quatro irmãos.

Claudia, sempre confusa e querendo consertar o mundo, antes de mais nada me deu uma bronca tremenda, me dizendo que eu era negligente. Um irmão meu estava hospitalizado! Expliquei a minha amiga que não era verdade, que eu não sabia de nada! Eu estava ligando para ela afi m de obter informações. Ela, mais do que

ninguém, sabia que de negligente eu nada tinha, e que se ela me explicasse com calma o que estava acontecendo, quem sabe eu pudesse me justifi car. Claudia não sabia ao certo, e eu teria que ligar para outras pessoas pra obter a informação que eu buscava. Foi o que eu fi z. Depois de falar com minha amiga, liguei para todos os números de telefone do Vidigal que eu tinha. Falei com um, falei com outro, pus todos em alerta, todavia ninguém ainda sabia ao certo de nada.

No começo da noite, liguei pra dona Silvana, uma vizinha da nossa casa no Vidigal. Ela nos conhece desde crianças e poderia me dar a informação que eu queria, e assim foi. Dona Silvana foi clara e precisa e me deu conta de que o Eduardo era quem estava em coma no Hospital Miguel Couto. Já fazia uma semana e desde que fora internado não recebera uma visita. Perguntei a ela como se dera o acontecido, mas Silvana não me esclareceu. Disse que o Eduardo bebera um pouco a mais no fi m do dia e, ao retornar para casa, caiu na escada, batendo com a cabeça na mesma. Foi socorrido por amigos e pelo Átila, nosso irmão do meio.

Meu mundo caiu e me senti péssima por não estar lá. Por outro lado pensei que talvez tudo fosse um exagero: as pessoas têm tendência a isso, o que não é o meu caso. Procurei ser o mais racional possível, pensei que talvez tudo fosse um tremendo mal entendido, talvez fosse um tombo leve, coisa de pinguço que cai, levanta, e cai de novo. Combinei com ela que

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no sábado eu iria ao Rio de Janeiro, chegaria o mais cedo possível. Desliguei o telefone em estado de choque, tremia muito, mas tive que me controlar para dar a noticia a minha família. Todos aguardavam ansiosos pelas minhas informações. Repeti tudo que ouvira de dona Silvana, e fui embora para minha casa. Admito, não pensei muito quando entrei lá, visto que minhas decisões já estavam tomadas. Eu iria para o Rio de Janeiro na manhã seguinte. É meu estilo agir sem pensar.

Mesmo sabendo que não é assim que se faz, não dei a mínima para nada. Se um irmão meu estava com problema, era lá que eu deveria estar. Arrumei uma sacola de viagem com roupas minhas e de minha fi lha. No sábado, às 6:45 da manhã, lá estava eu, fi lha no colo, mochila no ombro na rodoviária de Paraíba do Sul, rumo ao Rio de Janeiro. Embarquei no ônibus de 7:30. Essa viagem dura duas horas e trinta minutos, mas experimente fazê-la ansiosa. Demora uma eternidade!

Enfi m chegamos, caia uma chuva fina e fazia frio. Desci do ônibus, arrumei a mochila nas costas, dei um beijo em minha fi lha, e rumei para o ponto de ônibus. Meu Deus! Como fede aquela área da Novo Rio. Qualquer ônibus que me levasse ao final do Leblon serviria. Esperei um pouco, e logo apareceu o 128, que me deixaria na Praça Antero de Quintal. Então bastaria andar um pouquinho e pegar o 522, no calçadão em frente ao mar, ou o ônibus 177,

o que aparecesse primeiro. Eu estava tremendamente ansiosa. Meu coração batia desesperadamente. Francamente eu esperava que tudo fosse apenas chilique de bêbado e, claro, invenção do povo e exagero da Claudia, afi nal é típico dela exagerar.

Cheguei ao morro do Vidigal, não olhei muito pros lados, apenas segui o meu caminho. Conheço aquelas ruas, aqueles becos, aquelas vielas. Vi alguns conhecidos, acenei pra uns, falei com outros, e continuei subindo. Aquilo foi bastante cansativo, pois já fazia muito tempo que eu não sabia o que era subir escadas, andar por becos, e, francamente, não esperava fazê-lo tão cedo. Como caía uma chuva fi na, não tinha muita gente por ali. Minha chegada foi tranquila. Sem encontrar muita gente, não tive que responder a uma saraivada de perguntas das pessoas, até porque eu tinha muitas coisas pra fazer.

Cheguei ao Beco da Maré. Não é bem um beco, na realidade é um largo cheio de casas, barracos em torno. Aliás as construções é que deram esta forma ao lugar. Quando éramos crianças, havia uma fi gueira bem no meio dali. O Beco da Maré é um lugar diferente, cheio de crianças e cachorros. Quer criança e cachorros? Vá ao Beco da Maré! Também é chamado assim porque antigamente havia muitas brigas, xingamentos entre as mulheres, era confusão quase todo dia. Hoje, devido a certas intervenções, isso mudou. Era até engraçado: cachorro latindo, criança chorando e mulheres brigando,

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mas, quando alguém necessitava de alguma ajuda, de alguma coisa em casa ou um remédio pra alguém, era imediato o socorro. Éramos, e somos ainda, todos amigos.

Ao chegar a casa, nem precisei chamar: a porta já estava aberta, mas me fi z anunciar. Átila, cheguei! Com fome, com sede e cansada. Minha fi lha, que dormia, acordou e queria água, no que foi prontamente atendida. Enquanto brincava com os brinquedos da minha sobrinha, fi lha do Átila, comecei a fazer perguntas. “Quero saber de tudo! Como está o Eduardo? O que realmente acon-teceu? Qual o estado de saúde dele? Como se dera o ocorrido?” Átila foi econômico nas palavras, dava-me conta de que Eduardo, chegando em casa bêbado, perdera o equilíbrio ao subir as escadas e caíra, batendo com a cabeça no meio fi o. Os vizinhos imediatamente o socorreram, logo em seguida um menino correu até nossa casa e chamou o Átila, que foi também ver o que tinha acontecido. Ele também ajudara a carregar o Eduardo até o carro que o levou até o Miguel Couto.

Levando-se em consideração que o que o Átila diz não se escreve, não dei crédito a nada do que ele me falou. Perguntei a ele por que não me ligou para comunicar o ocorrido. Ele somente me respondeu que o Eduardo estava bem cuidado e que eu não precisava ter vindo assim, correndo, pro Rio, afi nal, não era nada grave. Mais uma vez minha descon-fi ança afl orou, comuniquei a ele que

iria até o Miguel Couto ver com os meus próprios olhos, mas naquela hora não seria possível, ademais o Eduardo se encontrava na Unidade de Tratamento Intensivo. Fiquei pasma! Como uma pessoa pode estar bem na U.T.I.? (Vejo que minha família é doente). Fiquei por ali, troquei ideias, revi algumas pessoas, conversei com o pessoal do Beco da Maré, e todos me contaram a mesma coisa, apenas com algumas variações.

Fui à casa da Silvana e apresentei a ela minha fi lha. Ficamos conver-sando, ela repetiu tudo. Na realidade, ela e Eduardo têm um rolo já faz tempo. Não me importo, ela tem sido nossa/minha amiga há muito tempo, desde que nos éramos crianças. Sempre nos ajudou e nos socorreu nos momentos mais difíceis. Entre idas e vindas, o Eduardo cresceu, tornou-se um homem bonito. Silvana, que era casada, separou-se, criou os fi lhos, reformou a casa, reencontrou o Eduardo, e fi caram juntos. Somos amigas. O sábado demorou a passar. Silvana foi a única que me disse a verdade. Ela me contou que o estado do Eduardo não era bom e que, se ele melhorasse, seria um milagre, o que muito me entristeceu, porque eu não creio em milagres. Há tempos eu deixei de acreditar neles, mas vou vivendo e, creio, tenho me saído bem. Enquanto falávamos sobre estas coisas, minha ansiedade só crescia. Gostaria que o sábado acabasse logo, pois queria ir correndo pro hospital. Queria muito ver com meus próprios olhos a real situação do Eduardo.

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A noite chegou. Átila fez a janta, pois minha cunhada não sabe cozi-nhar e eu não estava afi m de fazer nada. Cuidei da minha fi lha, dei-lhe banho, jantar e de mamar, e, logo a seguir, cama. Custei a dormir. Rolei na cama. A ansiedade tomou conta de mim. Meus olhos ardiam. Vi o dia nascer. Átila disse que iria ao hospital comigo, mas como sempre diz mentiras, na hora ele mudou de ideia e disse que tinha um monte de coisas pra fazer, que não iria comigo. Não foi um problema. Magdala, minha irmã, juntou-se a mim, somando a Claudia e as crianças (minha fi lha e minha sobrinha). Partimos todas rumo ao Miguel Couto. É claro! Com a demora do Átila cheguei atrasada ao hospital.

Na portaria, expliquei que eu morava em outro município e que só tomei conhecimento do fato na noite passada. Disse que eu era irmã dele e que eu precisava muito vê-lo. A mulher só dizia que eu estava atrasada e que ela não poderia fazer nada por mim. Insisti com ela e disse: “minha querida, faz anos que eu não venho a este hospital, de modo que eu não sei dia e hora de visitação. Por favor, me diga tudo que eu preciso saber e eu vou embora”. A mulher fi cou me olhando por um tempo, e continuei: “por favor, me deixe entrar. Eu moro em outro município. Nem sei quando poderei voltar aqui, mas se voltar prometo nunca mais chegar atrasada”. Fiquei ali implorando, e ela me olhando. Por fi m ela me deixou entrar, reco-mendando que eu não demorasse.

Prometi a ela que não o faria. Fui caminhando pelos corredores, já os conheço, afi nal eu nasci ali e minhas crises de bronquites foram cuidadas ali. O Eduardo, todos os meus irmãos e meu fi lho também nasceram ali, o que justifi ca serem aqueles corredores bem conhecidos. Segui caminhando. Direita, esquerda. Subi as escadas. No fi nal, a porta que eu tanto queria. Identifi quei-me, expliquei a minha situação. Deixaram-me entrar. Ainda naquele momento, pus-me a pensar que tudo não passava de um chilique de bêbado, e que eu daria uma bela bronca no Eduardo. Depois ele iria pra casa e daríamos boas risadas, mas a realidade se impunha e era pior do que eu pensava.

Entrei na UTI e o quadro era triste, desesperador, devo dizer. Eduardo estava todo cheio de fi os, por todos os lugares possíveis e imagináveis. A cabeça estava imensa, e o peito, quando ele respirava, subia mais ou menos 60 cm. Eduardo Damião Bispo, idade 32, estado atual: traumatismo craniano, coma profundo, leito 03. Fiquei ali parada, pensando em como chegamos a este ponto. Senti-me sozinha, com um imenso vazio, desamparada. Olhei em volta, máquinas, tubos, fi os, monitor de coração. Tudo ligado em função daquele corpo. A luta seria grande, todavia pensei: “será mais uma a ser vencida”. Naquele momento, comecei a me organizar. Como seriam os dias de visita? O que eu faria? Teria dinheiro pra poder vir sempre ao Rio? Com quem deixar minha fi lha? Ela viria comigo ou fi caria com alguém?

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Todas essas questões me tomaram de assalto. Naquele instante, uma enfer-meira veio falar comigo. Perguntou quem eu era, identifi quei-me e disse que eu era irmã do paciente. Ela me disse: “ainda bem, porque já faz uma semana que ele está aqui e ninguém veio fazer uma visita sequer”. Meu coração doeu. Como o Átila pode fazer isso? Mora ali, tão perto, e não ir ver o irmão nem uma vez! Mas não fi quei tão surpresa, pois era típico dele. Apenas fi quei triste, mas decidi que dali em diante o Eduardo não fi caria mais sem visita, e que, mesmo eu morando distante, faria o possível e o impossível para estar sempre presente, e foi o que eu fi z.

Eu sabia que seria uma tarefa árdua. Sem dinheiro disponível e com um bebê de colo, que ainda por cima mamava no peito. Além disso eu já estava endividada. A primeira grana pra ir ao Rio de Janeiro eu peguei emprestada com meu sogro. Pensei eu: “darei um jeito”. E dei mesmo. Conversei um pouco com a enfer-meira, dei o meu telefone e o meu endereço para ela, pus a minha mão na cabeça do Eduardo. Percebi que estava muito quente (a cabeça estava quente, mas a mão estava gelada). Comentei sobre isso com a enfermeira e ela me disse que era normal. O Eduardo vinha lutando contra essa febre já fazia dias, mas ele estava sendo medicado e, logo logo, aquele estado febril passaria. Lembrou-me de que já era hora de eu me retirar, afi nal nem hora de visita era. Concordei, pedi desculpas e me retirei. Dei um beijo

na testa do meu irmão, e saí do quarto. Desci a escada desolada e, quando cheguei lá fora, encontrei-me com Claudia, minha irmã e as crianças. Claudia me perguntou: “E aí?”. Olhei em volta, olhei pra ela e disse: “vamos caminhar”. Enquanto caminhávamos, fui contando pra Claudia tudo o que eu vi, naquele leito de hospital. Minha amiga, evangélica que é, me dizia: “tenha fé, Cristiane, tenha fé”.

Ponderei com ela que, naquele momento, este pedido seria impossível, mas minha amiga dizia: “Para Deus nada é impossível”. De minha parte eu sabia o que tinha visto, portanto esperar por um milagre era tudo o que eu poderia fazer. Sempre tive fé, mas em algum momento eu sempre a perdia e este era um destes momentos. Relatei tudo o que vira para Claudia, depois seguimos andando ali, pelo Leblon. Resolvi levar as crianças até a Praça Antero de Quintal, que era e é a praça de minha infância; minha e do Eduardo. Enquanto conversava com Claudia, fui me lembrando de nossa infância. Minha fi lha e minha sobrinha brincavam alegres e felizes, o balanço ia e vinha, os risos eram fáceis, mas eu não compartilhava da mesma alegria. Queria muito, mas naquele momento era impossível. Comecei a pensar que somente voltaria para Paraíba do Sul na segunda-feira. Naquele momento, nada me impor-tava, a não ser acompanhar o estado clínico do Eduardo.

Por sorte, neste período eu me encontrava trabalhando no serviço público, com uma diretora

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maravilhosa, uma mulher fantástica. Devo dizer que se ela não fosse a mulher que é, eu estaria perdida, sendo comissionada sem direito a nada. Somente dependendo da boa vontade alheia, eu estaria perdida, tendo que me ausentar pelo menos uma vez por semana do trabalho. Quem suportaria? Dona Helena Salgado foi de uma humanidade incrível, sim, naquele momento resolvi que fi caria no Rio o fi m de semana inteiro, chegaria no horário de visitas. Queria muito falar com o neurocirurgião. A enfermeira havia me dito que somente ele poderia me dar mais informações, referentes ao estado do meu irmão, de modo que eu tinha que permanecer no Rio de Janeiro. E foi o que eu fi z.

Minha fi lha já dava sinais de cansaço. Veio até mim, queria mamar. Minha cabeça estava a mil. De repente me deu um cansaço, uma falta de esperança tremenda. Caminhei até o calçadão, queria mostrar o mar pra minha fi lha. Após tomarmos um sorvete, fomos pra casa. Estava frio e era o melhor a fazer. Um vazio imenso tomou conta do meu peito. Eu estava confusa, não sabia bem o que fazer. Para dizer a verdade, com minha filha no colo comecei a chorar. Senti-me confusa, necessitava da ajuda de alguém que me orientasse, alguém que me dissesse o que fazer, alguém que me desse uma luz, mas não havia ninguém. Eu tinha que me virar sozinha, fazer o meu melhor possível, fazer o que de melhor aprendi na vida, que é me virar. Em casa, ao olhar pra cara do Átila,

tinha ganas de matá-lo, só pela sua negligência, pela sua omissão. Como ele pôde mentir assim para mim? Um completo ignorante, ou será que ele realmente acreditou que o Eduardo teria uma recuperação rápida?

Só sei que me deu uma vontade de apertar o pescoço dele, de tanta raiva que me deu, mas vida que segue, tive que engolir minha raiva e pensar em coisas mais urgentes. Como fazer? Como arrumar dinheiro pra vir ao Rio toda semana? E meu trabalho como fi ca? Meus fi lhos, meu marido. Sim, porque agora até marido eu tenho, de certa forma já não posso sair correndo por tudo que acontece na família, mas neste caso vou abrir uma exceção, visto que é de extrema necessidade. E quer saber? Eu nunca abandono alguém, da minha família muito menos. Pra ser franca, eu poderia deixar pra lá. Não era problema meu. Eduardo já era adulto, tinha um relacionamento. A mulher é quem deveria assumir o problema e todas as responsabili-dades referentes ao acidente, mas se eu, abandonasse tudo, não seria eu. Decidi então pegar o “touro à unha’’. Permaneci no Rio, gostaria muito de levar minha fi lha à praia, mas o tempo não colaborou. Fiquei em casa, andei por ali, conversei com os vizinhos. Todos nos conhecem desde a mais tenra idade, alguns até mesmo antes de nós nascermos, e todos queriam saber como estava o Eduardo. Todos queriam notícias, já que o Átila não as dava. Eu fui falando, na medida do possível, já que eu mesma ainda não sabia muitas coisas.

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Enquanto eu relatava o que eu vi, também explicava que no domingo e na segunda-feira eu ainda voltaria ao hospital, mas, que na segunda, de lá mesmo eu voltaria pra casa pra me organizar e ver o que fazer. Foi bom rever aquelas pessoas, falar com elas e me distrair um pouco, porque nem só de tristeza a gente vive. Também apre-sentei minha fi lha, Walquiria, para todos. Fiquei a par da vida desgarrada que o Eduardo estava levando. Não fiquei surpresa. Sei bem como ele é exagerado na bebida, na comida e nos relacionamentos. Até para ouvir música, tem que ser no último volume. Enfi m, um homem enorme não poderia ser diferente, inclusive no uso de drogas, cocaína pra ser exata. Contaram que geralmente ele chega a gastar todo o salário num fi m de semana, e olha que não é pouco. No fi m da noite me despedi das pessoas. Estava cansada e minha fi lha também. Fomos dormir.

Acordei cedo no domingo, arrumei nossas roupas, tomei café, cuidei da minha neném e saí logo de casa. O tempo não ajudou muito, não havia sol, e Rio de Janeiro sem sol, conve-nhamos, não é muita coisa. Ao descer o morro, encontrei velhos conhecidos. Como é bom de repente reencon-trar pessoas que nos conhecem há tempos! Senti-me confortável. Todos, como sempre, foram muitos amáveis comigo, queriam saber como estava o Eduardo, qual o grau dos danos causados pela queda. Respondi da melhor maneira possível, e segui em frente. Ao chegar ao ponto de

ônibus, decidi caminhar. “Será bom pra desanuviar as ideias e me dará tempo pra pensar no que fazer, quais atitudes tomar daqui pra frente”. A vista era linda e caminhar pela Av. Niemeyer é sempre gratificante. Atravessei a referida avenida, segui em frente. Toda aquela paisagem me deixava menos tensa. Minha fi lha ia me fazendo perguntas, o que tornava tudo mais agradável. Disse pra ela que ali é a praia que eu sempre tomava banho. Mais adiante, mostrei a pedra que fi cava perto de onde eu sempre mergulhava. Ela me perguntou se poderia nadar e mergulhar ali também. Respondi que sim, e o riso veio fácil. Como é bom ser criança!

Chegamos ao calçadão. Ali, bem no fi nzinho do Leblon, existe uma área de lazer. Não é grande coisa, mas a vista ajuda muito. Olhei para o relógio, dava pra fi car umas duas horas por ali, ademais o Eduardo não poderia ir a lugar nenhum, e domingo as avenidas da beira mar estão fechadas pra área de lazer. Alguém passou de ônibus e me viu. Falou pra Claudia onde eu estava, e logo, logo ela chegou me enchendo de perguntas, como: “Por que você não foi lá em casa me chamar? Por que não me disse que iria ao hospital? Eu teria ido contigo”. Esta é a Claudia! Expliquei pra ela que na realidade eu nem pensei no fato de chamá-la num domingo pra ir a um hospital. Achei que seria um pouco demais, mas Claudia continuou: “Amigos são pra essas coisas, além do que, carregando a Walquiria, você não

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entraria no Miguel Couto”. Pronto! Ela me chamou à razão. Ficamos por ali, e, quando se aproximou a hora de ir ao hospital, parti. Eu não queria e nem poderia me atrasar. Seguimos pelo calçadão, depois pegamos a Av. Bartolomeu Mitre e chegamos ao hospital.

Ainda era cedo. Ficamos vendo quem entrava e quem saía, e, quando deu a hora de entrar, meu coração disparou. Comecei a tremer, mas acredito que me contive. Voltei ao balcão, dei minha identidade, meu endereço e telefone, peguei um crachá me pus a caminhar. O único senão era que a situação agora era diferente. Dirigi-me ao terceiro andar, e esperei ser chamada, o que aconteceu logo em seguida. Já o tinha visto, mas, agora com calma, tive outra visão das coisas e da situação. O Centro de Tratamento Intensivo era moderno e bem aparelhado. Máquinas monitorando o coração, tubo de respiração na traqueia, tubo de alimentação entrando pelo nariz. Mas nada vem de graça! Apurando mais a vista, pude ver acima da cabeça do Eduardo uma placa em que se lia “Eduardo Damião Bispo, leito 03, data da entrada 4/07, aos familiares, favor trazer pro hospital: um colchão casca de ovo, enxague bucal, creme hidratante, sabonete líquido”. Pensei: “As outras coisas são fáceis, mas, o colchão, esse vai ser difícil, como arrumar isso? Onde vende? Será que o meu dinheiro vai dar?”

Todas essas dúvidas me tomaram de assalto. Falei com uma enfermeira

que estava por ali, ela não me deu muitas informações mas me disse para esperar até o fi m da visita que o médico me daria mais informações. Fiquei por ali olhando e pensando: “Como pode um hospital público, em plena Zona Sul, pedir isso?, O que eles pensam? Acham que eu compro colchão casca de ovo todo dia? Onde vende? Onde comprar? E o pior, quanto custa?” Acabou a visita e tive que me retirar. Ao sair alguém me lembrou que era pra eu esperar que o médico iria falar comigo.

Do lado de fora, no saguão, assim como eu havia várias pessoas, familiares de doentes que também aguardavam por notícias. De repente veio um médico muito agradável, portando uma folha de papel na mão, onde continha os nomes de todos os doentes. Ele ia dizendo o nome de um por um, de modo que nós, da família, íamos nos aproximando e ouvindo tudo o que o doutor nos falava. Alguns saíam chorando, e eu ali, esperando minha vez. A, B, C, D, E. Eduardo Damião Bispo. Pronto, agora eu desmaio! Meu coração pulou e tremi inteira. Cheguei mais perto, olhei dentro dos olhos do doutor, esperei as notícias, que como eu já imaginava não eram nada boas, e começou ele: “O estado de saúde do Eduardo não é nada bom, traumatismo craniano com afundamento do crânio, vindo a afetar o cérebro. No momento o estado de saúde do paciente é delicado, podendo ter uma melhora ou não, mas para isso temos que aguardar mais uma semana”.

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Isso não demorou mais que uns dez minutos, uns cinco talvez, mas para mim foi uma eternidade. Eu queria mais, algo mais concreto. Fiquei ali olhando para a cara do doutor. Como ele não disse mais nada, me retirei. Lembro que abaixei a cabeça, saí andando, desci as escadas e me pus a chorar. Era tudo que me restava. Quando cheguei à portaria, já não dava mais tempo de Claudia entrar. Ela entendeu. Expliquei a ela que eu só demorei porque eu tinha que conversar com o médico e isso só seria possível quando ele voltasse com o boletim médico. Eu tinha que aguardar! Claudia quis saber qual era o estado do Eduardo. Eu repeti pra ela tudo o que o doutor dissera. Pegamos as crianças e fomos pra casa. Não havia mais nada a fazer. Voltamos pro Vidigal.

Cheguei a casa, recolhi minhas roupas e de minha filha, mal falei com meu irmão. Estava chateada, triste e magoada, e, o pior, sem saber que rumo tomar. Já sabia que com o Átila não poderia contar. Ele já estava enchendo o meu saco com aquela conversa de “viu, eu não falei, o Eduardo está bem cuidado, no melhor hospital, na Zona Sul, tá tranquilo”. Francamente! Aquele papo estava me irritando e eu, já esgotada, só queria fi car num canto, quieta. Sem mais nem menos, o Átila se calou e saiu. Demorou um pouco e, quando voltou, veio trazendo três garrafas de vinho e um prato de salaminho (ele sabe que eu gosto). Ficamos por ali. Átila falando, falando mais do que nunca.

Eu pus minha bebê pra dormir e tomei duas garrafas de vinho, comi todo o salame, e não fiquei nem tonta. Muito pelo contrário, mais lúcida eu fi cava e mais minha cabeça dava voltas. Pensava nas providências a serem tomadas, e na grana que eu teria que gastar sem ter. Como eu faria pra vir ao Rio de Janeiro toda semana pras visitas? Com quem eu deixaria Walquiria? Era tudo que me atormentava, e o pior de tudo era não saber, nem imaginar, por quanto tempo duraria o coma. “Já vi casos de pessoas que fi caram vinte, trinta anos assim, e de repente voltaram a si. Será esse o caso?” Quem sabe. Todo aquele papo estava me torrando a mente. Parei, olhei pro meu irmão e disse: “Vou dormir”. Na realidade eu não queria dormir, só queria fi car sozinha. Como ele não se calava, retirei-me e me deitei ao lado de minha fi lha. Continuei pensando, percebi que minha cabeça doía, assim como todo meu corpo. Estava muito cansada, e, no dia seguinte, segunda-feira, eu me levantaria a hora que fosse e me arrumaria. Queria antes de ir embora passar no hospital pra mais uma visita e nem voltaria mais aqui. Foi o que eu fi z.

Quando deu cinco e meia, minha cunhada saiu pro trabalho, levando minha sobrinha pra creche. Logo em seguida meu irmão também, vi todo movimento da casa, mas não me movi. Quando todos saíram, levantei--me e fui pra laje, ver o mar e toda a movimentação. Tudo como sempre, é lindo o mar batendo furioso nas

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rochas, as pessoas todas saindo pro trabalho. A vida começa cedo nos morros, aliás pra todo pobre tudo começa cedo. Permaneci ali, olhando o mar, como é lindo! Ele estava como eu, revolto, pra lá e pra cá. Então ouvi uma voz de criança. Era minha fi lha quem me chamava. Desci as escadas, entrei em casa, peguei-a no colo e dei um beijo nela.

Arrumei tudo, pois iríamos sair. Fui ao Beco da Maré e me despedi de alguns vizinhos e da Filomena. Desci o Vidigal novamente, encontrei algumas pessoas, todas queriam saber do Eduardo. Isso me irritou, pois queria ir embora, minha fi lha também. Já não aguentava tantas perguntas. Sei que todos gostam muito de todos nós, mas já estava passando dos limites, ademais em Paraíba do Sul terei que dar mais informações. Resolvi passear um pouco com minha fi lha. Fui até Ipanema e depois voltei pro Miguel Couto. Refi z todo o trajeto, esperei a hora da visita, subi, entrei, olhei, saí, esperei pelo boletim, que foi assim: “Eduardo Damião Bispo, estável, aguardando melhoras, quadro sem alteração”. Meu DEUS! Isso só faz piorar! Pra cada lado que eu olhava, não via melhoras. Fiquei ali parada e algumas pessoas vieram falar comigo frases como: “Não fica assim, de repente ele tem uma melhora”. Uma senhora disse: “Reza, minha filha, reza. Reza porque só Deus pode nos ajudar numa hora dessas”.

Fiquei ali ouvindo tudo isso e mais um pouco, imaginando quantas vezes eu rezei por mim e pelo Eduardo,

quantas vezes eu pedi a Deus que nos ajudasse, quantas vezes eu implorei por uma intervenção. Quantas, quantas? O mais engraçado é que naquele momento eu não conseguia pedir nada. Na realidade me rebelei, deu em mim uma revolta, não queria pedir nada, não tinha coragem de pedir nada a Deus. Eu só chorava, não sabia o que fazer, como agir e nem o que pedir. Talvez eu pedisse pelo pronto restabelecimento do Eduardo, porém não tinha coragem, pois eu cria ser um pedido demasiado grande. Somente pedi que me desse forças para suportar tudo que viria pela frente, e mal sabia eu que seriam coisas muito maiores do que eu, coisas que fugiriam ao meu controle, coisas com as quais eu não saberia como lidar, mas que teria que enfrentar.

Nesse dia, Claudia estava comigo. Ela também subiu pra ver o meu irmão, e voltou de lá muito triste. Somente nos olhamos, peguei minha fi lha e fomos andando até o ponto de ônibus. Dali mesmo eu voltaria para Paraíba do Sul. De fato eu evitei tocar no assunto. Falamos somente sobre bobagens, tempo, sol, quando eu voltaria. Meu ônibus chegou, embarquei e me despedi de Claudia, prometendo entrar em contato assim que desse. Segui meu rumo. Cheguei à rodoviária, comprei a passagem. A viagem foi tranquila. Na subida da serra, acabei dormindo com minha fi lha no colo, e quando dei por mim já estávamos no nosso destino. Desci do ônibus, entrei em outro, cheguei a casa. Antes fui à casa da minha

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tia, pedi a ela que reunisse o maior número de parentes possíveis, pois eu somente falaria uma vez sobre tudo que aconteceu. Com a família reunida, para mim seria bem melhor.

Enquanto ela reunia todos, fui em casa arriar as bolsas e amamentar. Voltei em seguida. Com todos reunidos, foi mais fácil: fi z um relato completo. Contei como, onde e por quê, qual era o estado do Eduardo, quais as atitudes que eu deveria tomar. Falei do principal: eu já estava sem dinheiro e endividada. Ficamos por ali conversando. Devo dizer que minha família não tem posses, cada um tem sua casa, seu trabalho, e nada mais. Num ponto todos concordavam… seria difícil, muito difícil acompanhar o Eduardo hospitalizado lá no Rio de Janeiro.

Cada um fez o que podia, cada um deu o que tinha, e eu fi quei comovida. Minha tia Lia me lembrou de que eu deveria escrever uma carta para minha mãe, mas francamente eu não estava com a menor vontade, ademais já fazia tempo que ela não fazia parte da nossa vida. Aliás creio que ela nunca fez. Nossa mãe, uma figura interessante e uma mulher forte, nunca soube aproveitar a fortaleza que era. Era também inteligente, mas nunca utilizou a inteligência que tinha. Era forte, mas nunca usou a força que tinha pra alguma coisa útil. Nossa mãe era uma fi gura estranha, os vizinhos me dizem que não sabem o que houve, e eu me pergunto onde houve o desvio, o que nos levou a esta situação.

Para dizer a verdade, naquela semana e nem na seguinte eu escrevi pra minha mãe. Eu não via sentido em fazê-lo, apenas entrei em desespero: um desespero lento e calmo, como é do meu estilo. Somente me preocu-pava o estado de saúde do Eduardo. Isto sim era motivo de preocupação: a distância que eu teria que percorrer para fazer as visitas, meu dinheiro era pouco, tinha uma fi lha pequena e mamando no peito, eu estava em meu primeiro emprego em Paraíba do Sul, e eu não sabia se teria a ajuda das pessoas, mesmo porque até ali eu era uma completa estranha e as pessoas não são benevolentes com quem elas não conhecem. Fui, então, surpre-endida com uma onda de carinho, amizade e compreensão, e tudo sem nenhum interesse, coisa que eu não via há muito tempo. Ainda me sobrara dinheiro resultado do empréstimo que eu tinha feito com o meu sogro e eu o guardei como se fosse minha vida. Sabia que ainda iria utilizá-lo e assim foi nas semanas seguintes. Fui ao Rio de Janeiro por três fi ns de semana por minha conta, mas aquilo não daria certo. Eu não daria conta de bancar viagens assim por muito tempo…

Já fazia vinte dias que o Eduardo estava em coma e eu estava na porta do Miguel Couto aguardando a hora da visita e me pus a pensar. O que houve? Como chegamos a este ponto? Nós sempre fomos tão unidos, nunca brigamos quando crianças, somente nos separamos duas vezes na vida, uma quando pequenos e outra vez já adolescentes. Lembro-me como

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se fosse agora de quando éramos crianças, a fome que nos corroía as entranhas, o frio que nos gelava, o sapato que não tínhamos, as roupas que não tínhamos, nem amor nós tínhamos, tínhamos era somente um ao outro. Depois de certa idade, até comida tínhamos que buscar, senão morreríamos de fome. Para nós, isso era até brincadeira, pura brincadeira de criança.

Descíamos o morro do Vidigal e percorríamos toda a Ataúlfo de Paiva e a Visconde de Pirajá, de padaria em padaria, de lanchonete em lancho-nete, de bar em bar, de restaurante em restaurante, pedindo pão, bolo, salgadinhos, sobras de comida, restos de carne, de frango, enfi m, tudo o que tivesse para nós era o bastante. Quando não conseguíamos nada, ainda havia as feiras livres da Zona Sul. A hora da xepa, na feira, era outra brincadeira, mas levada a serio, pois sabíamos que nossa sobrevivência dependia do que tirássemos dali. Catávamos sobras de legumes, frutas, verduras, tomate, cebola, alho. Este nos era exigido, porque às vezes levávamos também cabeças e sobras de peixe, de frango.

Éramos crianças na rua, às vezes revirávamos o lixo da gente rica. Para nós, aquilo era diversão pura. Íamos em busca de brinquedos, livros, qualquer coisa diferente nos era interessante. Naqueles momentos nos sentíamos livres, brincávamos, corríamos, e falávamos muito uns

com os outros. Para dizer a verdade eu não gostava daquilo. Não sei, mas eu sentia falta de alguma coisa, não achava aquilo certo. Ademais eu via que algumas crianças iam pra escola e eu também queria ir, mas como?

Meu sonho era vestir o uniforme da época, azul e branco, saia plissada, meias até o joelho, tênis azul, blusa branca. Para os meninos a mesma coisa, tirando a parte da saia. Usavam calça comprida ou bermuda. Franca-mente eu acreditava que merecíamos ir pra escola, eu acreditava mesmo nisso. Depois as crianças pareciam tão felizes com suas mães lhes dando as mãos, conduzindo-lhes até a escola. Isso me matava de inveja. Na reali-dade a gente não sabia bem o que elas faziam na escola, mas todos iam felizes e diziam que lá tinha merenda, e merenda queria dizer comida. Então a coisa fi cou mais interessante e eu fi quei doida pra ir também.

Isso demorou pra acontecer, pois pra mim e meu irmão a vida era dura. Nós não sabíamos disso e assim a gente ia levando. Nossa casa até que era boa. Nossos pais tinham se separado e, pelo que eu sei, papai havia saído de casa levando apenas suas roupas, deixando tudo o mais para trás: móveis, utensílios, fogão, cama, enfi m, tudo, e a casa, é claro. Creio que ele agiu assim pensando que estava fazendo o melhor para nós, que desta forma nossa mãe cuidaria melhor de nós. Como ele estava enganado…

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• I n fâ n c i a • D u a s j a n e l a s , u m a p o r t aAssim que papai virou as costas, a primeira coisa que ela fez foi trocar a casa por um barraco. Não me lembro bem do tamanho, mas sei que era pequeno: um quadrado pra ser mais exata, sem banheiro, sem cozinha. Um barraco. Duas janelas, uma porta, um quintal e nada mais. E assim tudo começou. O fogão foi o primeiro a ser vendido, passamos a cozinhar na lenha; depois foram as panelas: só fi camos com duas. Em seguida, o colchão. Ficamos com somente o estrado. Também foram vendidas as roupas de cama. Daí em diante foi tudo que pudesse render dinheiro… penso que minha mãe poderia arrumar um trabalho. Ela sempre fez tudo tão bem e gostoso, e tinha um capricho quando queria, e nós poderíamos ter vivido muito bem.

Depois de depauperar a casa, começou um entra e sai do barraco que não era brincadeira. Era gente chegando, gente saindo, gente chamando o tempo todo, e nós ali. Quando não íamos catar xepa, fi cávamos por ali observando tudo. De repente vieram as latas de dezoito litros, as caixas de isopor. Das latas minha mãe tirava umas folhas, que eram separadas e enroladas em papel seda. Assim era chamado o papel que fi cava dentro do maço de cigarros. Do isopor ela tirava uns envelopinhos com um pó branco, que era posto num prato quente. Enrolava-se uma nota e aspirava aquilo, e, por último, minha mãe apareceu com dois revólveres, ou melhor, dois três oitão, como se dizia na época (não sei dizer se ela chegou a fazer uso deles, mas francamente espero que não).

Um dia ela nos chamou e disse: “Prestem atenção! Não é para não mexer em nada que está aqui, e, se mexer, vocês vão apanhar e muito”. Como está-vamos cientes das consequências, nem chegamos perto, e assim os dias iam passando. Xepando, apanhando, brincando. A gente também brincava, o que para minha mãe era bom. Nós sumíamos das vistas dela. A brincadeira que a gente mais fazia era o seguinte: fi cávamos eu e meu irmão por ali nos arredores catando pedaços de madeira, palitos de fósforo e de sorvete; depois íamos pra de trás do barraco onde havia um barranco, e ali escavávamos e começávamos a construir. Fazíamos casas de madeira imitando o morro, o

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nosso habitat. Às vezes algumas tinham até piscina. Lembro que costumá-vamos fazer vilas inteiras, e isso tomava tempo. Ficávamos o dia inteiro nesta brincadeira, e nossa mãe nem percebia. A noite chegava e acabávamos por dormir, ali mesmo no meio da terra, atrás do barraco, e ela nem percebia. A gente se abraçava e, com fome, sujos de terra, sem banho, dormíamos, e quando ela dava pela nossa falta e nos encontrava, enchia-nos de porrada.

O Eduardo, por ser menor, apanhava menos, mas apanhava do mesmo jeito. Eu sempre apanhava mais, acho que por ser maior. Ela nos cobria de pancadas e nos punha pra dentro do barraco. E eu era jogada contra a parede. Depois ela me catava do chão, me erguia no ar e me atirava ao chão novamente, me pisava, me chutava, e o Eduardo era sacudido de um lado para o outro. Tomava uns tapas e logo em seguida era atirado em cima do estrado. Às vezes apanhávamos com tábuas de caixote com ou sem pregos, mas quem se importa…

um olho se abre

Hoje fui visitar o Eduardo. A médica disse que ele abriu um olho e mexeu a perna direita, aliás ele só movimenta o lado direito do corpo. Eu tive a

impressão que ele chorou. Havia uma marca de sal, sal de lágrima, no canto dos olhos dele, mas se eu pensasse que há dezoito dias ele estava em coma profundo, já seria um milagre. Não era bem o que eu esperava, mas vá lá, um milagre de cada vez.

• Infância • pão e café com leite quente. Casa e sonho destruídosPela época que nossa mãe andava com latas e isopores, ela conheceu o Edson

não sei onde, mas sei que ele era um cara legal. Trabalhava como cobrador de ônibus, um homem tranquilo, paciente, que nos tratava com carinho e, o melhor de tudo, não a deixava nos massacrar. Lembro que ele tinha um olhar doce e suave, fala mansa, enfi m um cara calmo, que foi mudando nossas vidas. A primeira coisa que ele fez foi nos tirar do barraco. Subimos mais um pouco, mas não tinha problema agora. Era uma casa de verdade novament e,

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Agradecimentos:

Aos meus tios e tias, aos meus avós, ao meu pai, que tornou um pouco menos sofrido o nosso viver.

Aos meus amigos recentes: dona Helena Salgado, Marilene Paschoal, Lurdes, doce Lurdes, sempre com palavras cari-nhosas, Soninha, sempre a me levantar o astral. Mariana, obrigada. Rose Ann me surpreendeu.

Em especial agradeço à tia Georgina, que muito me ajudou. Sem ela muitas coisas não seriam possíveis.

A todas as pessoas, que de uma forma ou de outra colabo-raram para a nossa sobrevivência.

Nossa televizinha, dona Regina, desculpe o transtorno.

Meus mais profundos e sinceros agradecimentos à Lara Steva-nato, ao Th iago Alves e à Professora Felisete Maria e seu fi lho.

A todos que nos acolheram: obrigada!

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Pequenas notas… Do Vaz até a escola mais próxima são, mais ou menos, quatro quilômetros.

De onde minha mãe morava até a casa de meu pai existem, aproximada-mente, uns cento e cinquenta degraus.

Vieira Cortês é o primeiro distrito de Paraíba do Sul. O bairro Cruz das Almas atualmente se chama bairro Liberdade. Bem melhor, tem portal e tudo na entrada!

A escola de Vieira Cortês ainda está de pé, chama-se Prefeito Rocha Werneck, com algumas mudanças (mas na essência continua a mesma).

Papai morreu em mil novecentos e noventa e nove, dia dezesseis de março; minha tia Maria já tinha morrido, bem antes.

Meu tio Dario se casou de novo, aposentou, continua criando galinhas, cuidando de hortas. Agora tem até carroça, com cavalo e tudo. Às vezes nós nos encontramos nos domingos, e bebemos, rimos, contamos piadas, falamos da vida; minha prima Rose é minha vizinha, agora tem um fi lho, somos amigas. Eu nunca cumpri a promessa que eu e Eduardo fi zemos um ao outro: tenho dois fi lhos, meu irmão sabe disso.

Entre idas e vindas, convivi com a Maninha e a família dela até mil novecentos e oitenta e oito, ano em que ela muito me ajudou e aconselhou.

Filomena continua lá no Vidigal, criou cinco fi lhos, todos analfabetos; agora cria dez netos, analfabetos também. Vive da xepa até hoje...

Benildes, que na época tinha somente um fi lho, mudou-se, e nos

anos noventa, quando reapareceu, tinha... dez fi lhos, uma escadinha que dava até medo.

Luciene, juntamente com a mãe e os irmãos, mudou-se pra favela da Rocinha. Apesar de ser tão perto, nunca mais nos vimos.

Nossa cadela Laika veio a morrer quando eu já contava dezessete anos, já morando com minha mãe, que até chorou. Tivemos outros cães, mas como a Laika nunca mais.

Meu pai nunca mais se reergueu fi nanceiramente.

Meu irmão voltou ao Rio de Janeiro em mil novecentos e noventa e cinco. Já veio de São Paulo viciado em drogas. Quando percebi, já era tarde. Também não sei se daria pra fazer algo para ajudá-lo.

Minha mãe foi embora pra São Lourenço, Minas Gerais, cidade natal dela, em mil novecentos e noventa e três; em dois mil, voltou para o Rio de Janeiro, causando-me muitos problemas, e retornando, em seguida, para São Lourenço. Nunca mais falei com ela, e ela nem sabe que o fi lho dela morreu. Não me deu vontade de avisar. Não vi sentido em fazê-lo.

Quanto a mim, senti que vim aqui para Paraíba do Sul em busca de aconchego, para resgatar um pouco do amor e carinho há muito perdidos. Estou ao lado de minha família, de meus fi lhos, meu marido. É o que me basta. Não sinto saudades do Rio de Janeiro; sinto, sim, apenas de meus amigos, mas estes estarão sempre em meu coração.

Eu e Claudia somos amigas e

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comadres. Nós nos falamos sempre pela rede. Ela ainda mora no Vidigal, no mesmo lugar.

Dona Silvana ainda está lá, e nós nos falamos de vez em quando.

Minha madrinha morreu em dois mil e três.

Já não trabalho mais na escola municipal TIM Lopes. Estou lotada em outra escola, o que muito me angustia, pois sinto falta dos meus amigos.

Minha avó morreu em mil nove-centos e oitenta e oito, aos sessenta e quatro anos. Meu avô, bem depois, aos noventa e seis anos.

Dona Iracema ficou viúva nos anos noventa. Uma das filhas dela resolveu se tornar mulher de bandido, mas alguma coisa deu errado: o bandido se aborreceu, pondo dona Iracema e os filhos pra fora de casa só com as roupas do corpo. Vendo-se na mais completa miséria, ironia das ironias, dona Iracema se uniu a um... negão. Quem diria! Um negro, um negão da mais pura espécie a tirou da miséria... Coisas da vida.

Uma vez eu fui com minha mãe visitar o Edson no presídio de Água Santa, um lugar horrível, um buraco

quente, abafado. A mãe dele também estava lá. Senti pavor ao revê-la. Acho que foi ali que minha mãe decidiu por abandoná-lo.

Em mil novecentos e oitenta e nove, eu encontrei o Edson na Praça Antero de Quental. Estava mais gordo, com uma cicatriz acima do olho direito, mas era o mesmo, o mesmo olhar, os mesmos gestos suaves. Não tive coragem de falar com ele, apenas fi quei parada olhando. Queria muito pedir desculpas e dizer que o seu gesto fora em vão. Mesmo assim eu gostaria de agradecer, mas não tive coragem. Afastei-me com o coração aos pulos, e senti uma tristeza imensa.

Sabe a expressão: Vim, vi, e venci”? Foi assim com dona Ilda e senhor Dudé: juntaram dinheiro, compraram as tão faladas terrinhas lá no Ceará, tiveram um menino. Quando este já estava se tornando rapaz, partiram de volta pro Ceará. Ainda me perguntaram pelo Eduardo, tinham esperança de levá-lo com eles. Nunca mais nós os vimos.

Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Cristiane Regina Damião Bispo, nascida em 14/03/1971.

Contato: cristianebispo@ymail. com

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Esta obra é registrada. Todos os direitos preservados, sob o número 481. 467 livro 908 folha : 392.