ABA - Antropologia e Patrimonio Cultural - Dialogos e Desafios Contemporaneos

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Manuel Ferreira Lima Filho Cornelia Eckert Jane Felipe Beltro(Organizadores)

2007

Copyright 2007 ABA - Associao Brasileira de Antropologia Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.

Patrocnio:

Foto capa Olavo Ramalho Marques Beco da cidade de Gois, 15 junho 2006 Reviso e superviso editorial Fernanda Cardozo Projeto grfico e impresso Nova Letra Grfica e Editora

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Municipal Dr. Fritz Mller363.69 A848a Associao Brasileira de Antropologia. Antropologia e patrimnio cultural : dilogos e Desafios contemporneos / organizadores Manuel Ferreira Lima Filho, Jane Felipe Beltro, Cornelia Eckert. Blumenau : Nova Letra, 2007. 368p. ISBN 978-85-7682-198-4 1. Patrimnio cultural 2. Antropologia e patrimnio cultural I. Lima Filho, Manuel Ferreira II. Beltro, Jane Felipe III. Eckert, Cornelia IV. Ttulo.

Impresso no Brasil

SUMRIOA ABAE AS

PESQUISAS

SOBRE O

PATRIMNIO CULTURAL

Lus Roberto Cardoso de Oliveira, Miriam Pillar Grossi ............................................... 7

QUANDO O CAMPO O PATRIMNIOManuel Ferreira Lima Filho, Jane Felipe Beltro, Cornelia Eckert ........................... 11

1. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO: REFLEXES E PERSPECTIVAS DA 25 REUNIO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA GOINIA GO A ANTROPOLOGIA E O PATRIMNIO CULTURAL NO BRASILManuel Ferreira Lima Filho, Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu ............... 21

PATRIMNIO, LINGUAGENS E MEMRIA SCIALJane Felipe Beltro, Carlos Caroso ..................................................................................... 45

PATRIMNIO

E

CULTURA:

PROCESSOS DE POLITIZAO, MERCANTILIZAO E

CONSTRUO DE IDENTIDADES

Mnica Rotman, Alicia Norma Gonzles de Castells ..................................................... 57

EDUCAO PATRIMONIAL: PERSPECTIVAS E DILEMASFlvio Leonel Abreu da Silveira, Mrcia Bezerra ......................................................... 81

2. EXPLORAES ANTROPOLGICAS: QUANDO O CAMPO O PATRIMNIO OIMPACTO DA IMIGRAO EUROPIA SOBRE A PRODUO DE ALIMENTO E A CULINRIA DO

MDIO VALE DO ITAJA SC

Marilda Checcucci Gonalves da Silva .......................................................................... 101

CAMINHOS E DESCAMINHOS DO PATRIMNIO IMATERIALBartolomeu Tito Figueira de Medeiros ....................................................................... 133

TRADUES MAGTA:

PENSAMENTO

TICUNA E

PATRIMNIO CULTURAL

Priscila Faulhaber .............................................................................................................. 145

PATRIMNIO CULTURAL, LUTA E IDENTIDADE. OS INDGENAS PANKARARU EM SO PAULOArlete Assumpo Monteiro ............................................................................................. 157

MUSEU DO NDIO: UMA INSTITUIO SINGULAR E UM PROBLEMA UNIVERSALMrio Chagas ...................................................................................................................... 175

RELQUIAS E PATRIMNIOS QUE O RIO VERMELHO LEVOU...Izabela Maria Tamaso ....................................................................................................... 199

ENTRE FORMAS E TEMPOS: GOINIA NA PERSPECTIVA PATRIMONIALManuel Ferreira Lima Filho ............................................................................................ 221

3. O PATRIMNIO COMO CATEGORIA ANALTICA ANTROPOLGICA OS LIMITESDO

PATRIMNIO

Jos Reginaldo Santos Gonalves .................................................................................... 239

PATRIMNIO, NEGOCIAO E CONFLITOGilberto Velho ..................................................................................................................... 249

PATRIMNIO CULTURAL: TENSES E DISPUTAS NO CONTEXTO DE UMA NOVA ORDEMDISCURSIVA

Regina Maria do Rego Monteiro Abreu ........................................................................ 263

M ETAMORFOSES C ONCEITUAIS DO M USEU PATRIMNIO ETNOGRFICO DO BRASIL OUVIRA

DE

M AGIA N EGRA :

PRIMEIRO

Alexandre Fernandes Corra ........................................................................................... 287

CULTURA: ANTROPLOGOS, MEMRIAS, NARRATIVAS

Julie Cavignac, Andrea Ciacchi ....................................................................................... 319

A CIDADE: SEDE DE SENTIDOSAna Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert .......................................................... 343

A ABA E AS PESQUISAS SOBREO PATRIMNIO CULTURALLus Roberto Cardoso de Oliveira (Presidente da ABA - gesto 2006/2008) Miriam Pillar Grossi (Presidente da ABA - gesto 2004/2006)

com muita satisfao que apresentamos este livro, fruto do frtil colquio sobre Patrimnio, realizado com o apoio da Fundao Ford, da Secretaria de Museus do Ministrio da Cultura e da Embaixada da Frana. O encontro, organizado por Manuel Ferreira Lima Filho e por Regina Abreu, foi uma das atividades organizadas pelo GT Patrimnio da ABA na gesto 2004/2006 e reuniu significativo grupo de especialistas brasileiros e estrangeiros na cidade de Gois, de 15 a 16 de julho de 2006. Neste colquio, foram apresentados os resultados dos trabalhos expostos nos cinco grupos de trabalho reunidos sob este tema durante a 25 Reunio Brasileira de Antropologia, bem como foram discutidos temas candentes, como o papel dos antroplogos nos museus e os dilemas ticos, polticos e tcnicos do resgate da arte dos povos tradicionais. Alm de aprofundar coletivamente questes relativas s novas prticas profissionais dos antroplogos no Brasil, o colquio permitiu tambm a elaborao de um programa de aes do GT Patrimnio, consolidando a proposta deste GT na ABA, o qual foi criado por demanda de vrios scios no final da 24 RBA em Recife. A principal discusso do livro se d em torno do tema do Patrimnio Intangvel, tema que tem sido central para as polticas pblicas de patrimnio, tanto em nvel internacional, como estabeleceram as ltimas reunies da UNESCO sobre o tema, quanto em nvel nacional, por ter-se tornado uma das prioridades do Ministrio de Cultura nos ltimos anos. Sobre estas reflexes, o livro traz7

contribuies de Gilberto Velho, Reginaldo Gonalves, Regina Abreu, Tito Bartolomeu Medeiros, Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert. Gilberto Velho, por sua vez, conta sua experincia enquanto conselheiro do IPHAN no tombamento do primeiro terreiro de candombl no Brasil, apontando para o papel do antroplogo em momentos decisivos da poltica patrimonial. Os outros autores fazem reflexes mais gerais sobre o tema, apontando para sua amplitude conceitual e para a aplicao dos saberes antropolgicos na implementao das polticas pblicas sobre este tema. O reconhecimento e a divulgao do patrimnio intangvel de populaes tradicionais um dos temas recorrentes no livro e est presente de forma mais central no texto de Priscila Faulhaber, que relata sua experincia de transformao de saberes indgenas em CD room. Outras questes tambm tm destaque no livro, como a temtica da presena dos antroplogos nos museus, que abordada nos trabalhos de Alexandre Fernandes Corra e de Mario Chagas, respectivamente sobre o Museu de Magia Negra e sobre o Museu do ndio, ambos no Rio de Janeiro, ou o tema da migrao, presente nos trabalhos de Arlete Assumpo Monteiro, que analisa as tradies urbanas em processo migratrio dos ndios Pankararu de Pernambuco, e de Marilda Checcucci Gonalves da Silva, que estuda a questo patrimonial referente alimentao de imigrantes europeus no Vale do Itaja, em Santa Catarina. Os relatos das atividades dos grupos de trabalho da 25 RBA so tambm um registro importante para conhecermos o desenvolvimento desta temtica na Antropologia brasileira contempornea. Jane Beltro e Carlos Caroso relatam as atividades do grupo Patrimnio e Memria, tema tambm central no GT coordenado por Julie Cavignac e Andra Ciacchi. Flavio Leonel da Silveira e Mrcia Bezerra relatam as atividades do grupo de Educao Patrimonial, tema que aproxima este grupo com o de Alcia Gonzales Castells e Mnica Rotman sobre Patrimnio e Identidades. Finalmente, o livro chama a ateno para pelo menos trs aspectos importantes da temtica do patrimnio, particularmente realados quando abordados sob a perspectiva antropolgica: (1) a8

articulao cada vez mais forte entre as noes de bens (inclusive os imateriais), direitos e identidades nas discusses sobre patrimnio e sua relevncia para o exerccio da cidadania na contemporaneidade; (2) a necessidade do dilogo com outras disciplinas na definio do patrimnio e na elucidao de seus significados, cujo carter dinmico no permite abordagens estticas nem classificaes definitivas, dada a pluralidade de vises e de experincias do pblico-alvo das polticas pblicas nesta rea; (3) o potencial de interao dos museus com os cidados de uma maneira geral seja por meio de sua identificao com o material exposto, seja pela possibilidade de contrastar sua viso de mundo e sua identidade social com as de outros povos. Os trs aspectos tm como pano de fundo o significado da dimenso simblica da vida social e a importncia de atentar para o ponto de vista nativo marca registrada da Antropologia na compreenso do patrimnio.

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QUANDO

O CAMPO O PATRIMNIOManuel Ferreira Lima Filho Jane Felipe Beltro Cornelia Eckert

O ano de 2006 foi significativo para a Associao Brasileira de Antropologia em sua trajetria associativa. Sob a presidncia da Prof. Dr. Miriam Pillar Grossi (gesto 2004-2006), foi realizada a 25 Reunio Brasileira de Antropologia na cidade de Goinia GO, no perodo de 10 a 13 de junho, congregando os associados na comemorao de bodas de prata de atividade de congresso e finalizando igualmente as comemoraes das bodas de ouro da ABA, em seus cinqenta anos de existncia. O contexto era propcio para se falar das lembranas e para se viver a memria da Associao. Assim sendo, o patrimnio tornou-se campo para os antroplogos, no sentido mais amplo da tradio do fazer Antropologia. O Grupo de Trabalho Patrimnio Cultural foi institudo na gesto da Prof. Miriam Pillar Grossi, que convidou os antroplogos Dr. Manuel Ferreira Lima Filho e Dr. Regina Maria do Rego Monteiro para, respectivamente, coordenar e vice-coordenar a primeira gesto do GT dedicado ao Patrimnio Cultural no mbito da ABA. O desafio maior foi o pioneirismo da tarefa, voltada a articular uma rede de antroplogos da ABA com o intuito de sistematizar e de informar comunidade cientfica os vrios campos de pesquisas e aes relacionados ao tema. Os frutos das aes desaguaram na 25a RBA, em Goinia, sob a forma de inmeros trabalhos sobre o Patrimnio Cultural na perspectiva antropolgica, inclusive com boa articulao internacional. Isso provocou a continuidade da discusso no formato11

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de um Colquio sobre o Patrimnio Cultural, desta vez na colonial e acolhedora cidade de Gois, sob os auspcios da Fundao Ford e do Departamento de Museus do IPHAN este sob a coordenao do antroplogo Jos Nascimento Jnior. A discusso e os vrios textos sobre o assunto gestaram o presente livro, que rene diversos artigos, indicando ao pblico que os autores no apenas palmilham e mapeaim o territrio nacional, mas que, com autoridade, discutem temas candentes e provocativos que fogem s impertinentes fronteiras disciplinares. A diversidade da discusso repercutiu na organizao do livro em trs partes. A primeira discute Antropologia e Patrimnio: reflexes e perspectivas da 25 Reunio Brasileira de Antropologia Goinia GO. Nela nossos colegas coordenadores do GT de Patrimnio da ABA, Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro, abrem a seo com o artigo A Antropologia e o Patrimnio Cultural no Brasil e contextualizam a trajetria conceitual do tema do Patrimnio como campo de atuao dos antroplogos, apresentando as primeiras produes e o crescimento do tema nos ltimos anos e revelando um forte apelo ao dilogo interdisciplinar, sobremaneira com profissionais que transitam em outras esferas de atuao diferentes do crculo acadmico e universitrio. Em Patrimnio, linguagens e memria social, Jane Felipe Beltro e Carlos Caroso fazem uma sntese das questes levantadas no GT Patrimnio, Linguagens e Memria Cultural, coordenado pelos autores pela ocasio da 25a RBA em Goinia. O GT abordou temas desde a origem e constituio de colees controladas pelo Estado brasileiro por amadores; a definio dos papis dos museus institucionais e a relao com as comunidades estudadas; a necessidade de se romper com as fronteiras da disciplinaridade e a importncia de se estabelecer uma proposta de indexao de acervos e de imagens fotogrficas visando a um maior acesso s informaes, uma vez que a fotografia um instrumento analtico pertinente compreenso minudente da sociedade brasileira. Em Patrimnio e Cultura: processos de politizao, mercantilizao e construo de identidades, Mnica Rotman e Alicia Castells apresentam uma sntese dos trabalhos debatidos no GT de mesmo nome. As autoras pontuam reflexes sobre a questo patrimonial na Amrica Latina12

ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

destacando: (1) a importncia dos documentos internacionais como o de Haya de 1954, e (2) a proteo de bens patrimoniais em caso de conflito armado ambos referentes a documentos da UNESCO sobre a salvaguarda da cultura tradicional popular (1989) e do patrimnio imaterial (2003). A partir deles, observam-se luzes focalizando culturas populares e relao entre o patrimnio e identidade que amalgama a noo de herdeiros culturais e a possibilidade de se visualizarem os criadores de novos patrimnios. As autoras exploram a tenso entre os conceitos do patrimnio material e imaterial e apontam imprecises de alcance junto a grupos denominados por elas como culturas subalternas. Encerrando a primeira parte, Flvio Leonel Abreu da Silveira e Mrcia Bezerra, em Educao Patrimonial: perspectivas e dilemas, trazem a lume questes candentes sobre patrimnio, indicando que, no Brasil, pouca ateno tem sido dada s experincias de ensino-aprendizagem que valorizem o patrimnio mantido pelos mais diversos grupos sociais, sendo que, no mais das vezes, se ignoram saberes e fazeres acumulados pela tradio e a relao dos agentes sociais com o patrimnio enquanto estratgia de conservao, a ponto de se questionar o trabalho desenvolvido por especialistas. O trabalho feito a partir da frutfera discusso dos temas durante a RBA; nesse sentido, interessante observar que os autores trabalham questes tericas que preocuparam os participantes do GT, fechando a argumentao em torno de problemas prticos no esgotados, para os quais no temos soluo. Discutem, sobretudo, a chamada educao para o patrimnio e a Arqueologia pblica, estratgias que objetivam correr em busca do tempo perdido quando a postura de muitos ignorava patrimnio no expresso em pedra e cal. A segunda parte do livro denominada Exploraes Antropolgicas: quando o campo o patrimnio. Apresenta a trama das reflexes sobre a atuao dos antroplogos que produzem etnografias relacionadas ao tema do Patrimnio Cultural. Em O Impacto da Imigrao Europia sobre a Produo de Alimento e a Culinria do Mdio Vale do Itaja SC, Marilda Checcucci Gonalves da Silva expe um interessante estudo da culinria da colnia alem no Vale do Itaja, em Santa Catarina. A autora opta por uma etnografia do contato por meio das prticas e do saber fazer da culinria alem13

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enraizada no Brasil. Esta, por sua vez, marcada por estratgias culturais como o rito de passagem da noiva, uma espcie de noviciado para as artes culinrias em casas de famlias ou de freiras luteranas envoltas em segredo. A pesquisadora disserta, ainda, a respeito de como se deu, aos poucos, a substituio por algumas prticas de cultivo impostas pela diferena ambiental entre o pas de origem e o Brasil, apontando para uma adaptao e incorporao das prticas lusobrasileiras e indgenas presentes na regio antes da chegada dos imigrantes, o que revela processos de transformaes sociais. O estudo demarca uma Patrimonializao da alimentao, que passa da esfera privada para a pblica, notadamente com a conotao poltica do patrimnio imaterial que valoriza prticas culturais fomentadas pelo turismo. Assim, a culinria migra de um mbito cultural para uma esfera econmica. Em Caminhos e descaminhos do Patrimnio Imaterial, Bartolomeu Tito Figueira de Medeiros nos fala de suas vrias experincias como antroplogo atuando no campo da gesto do patrimnio cultural e da academia, especialmente como pesquisador envolvido com aplicao da metodologia do INRC (Inventrio Nacional de Referncias Culturais) para o patrimnio Imaterial, especificamente no Litoral Norte de Pernambuco. Tange questes de grande pertinncia sobre o ofcio do trabalho numa equipe multidisciplinar, o papel de mediador entre o Estado e a sociedade civil e, ainda, a relao do mercado com os produtos patrimoniais. O autor chama a ateno sobre o fato de no haver uma articulao entre o IPHAN e o GT do Patrimnio da ABA na questo do Patrimnio Imaterial. Em continuidade, trazemos trs experincias com a temtica indgena. Primeiramente, sobre os Ticuna, Priscila Faulhaber, por meio do artigo Tradues Magta: pensamento Ticuna e patrimnio cultural, revela-nos como os Ticuna valorizam sua produo material, a saber, objetos culturais, numa escala de alta significao ritual at a destituio de mana, quando, ento, passam a ser musealizados. O estudo aponta para uma reapropriao, por parte deste grupo indgena amaznico, de seus objetos indexados e guardados em museus, utilizando-se da noo de patrimnio cultural como instrumento operacional do contato intertnico e de um grande poder comunicativo. Como resultado de seus estudos, a autora apresenta um Cd room interativo no qual se14

ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

encontram indexados 455 objetos do Museu Paraense Emlio Goeldi que segue uma classificao segundo a viso de mundo dos Ticuna. Em seguida, Arlete Assumpo Monteiro d voz aos Pankararu, em Patrimnio cultural, luta e identidade. Os indgenas Pankararu em So Paulo. A partir da metodologia da histria oral, o processo migratrio do grupo de Pernambuco para So Paulo reconstrudo. O cenrio de deslocamento tambm o contexto de mudanas advindas das prticas culturais do grupo, aderindo aos impactos de novas situaes e de novas complexidades, sobretudo pela interface de sua cultura com a educao formal. Por fim, fechando a temtica indgena, Mrio Chagas, em Museu do ndio: uma instituio singular e um problema universal, faz um recorte histrico e conceitual dos museus etnogrficos no Brasil. Versa sobre o papel deles como mediadores entre os atores sociais na contemporaneidade a partir da experincia do Museu do ndio (RJ), ao realizar a exposio com a co-participao do grupo indgena Wajpi, quando se processou a construo de uma exposio ou de uma representao museal sobre eles mesmos para o outros, registrando, assim, uma alterao na qualidade da participao e da prtica de mediao museal. Essa parte do livro encerra-se com duas etnografias realizadas no Estado de Gois. Sobre Goinia, Manuel Ferreira Lima Filho, no artigo Entre Formas e Tempos: Goinia na perspectiva patrimonial, parte de uma experincia etnogrfica de uma Antropologia na cidade de Goinia e analisa as representaes construdas em torno do ato administrativo e poltico do tombamento do conjunto Art Dco de Goinia em contraponto com as narrativas dos primeiros habitantes da primeira rua da cidade, a Rua 20, tendo como referncia uma etnografia da memria, nas quais o referido estilo arquitetnico est longe de ser uma representao central identitria da cidade. Neste campo patrimonial de reflexo, as categorias serto, mundo rural, modernidade, nao e regio e passado tecem as narrativas em torno do patrimnio cultural da cidade. Agora, tendo a cidade de Gois, antiga Vila Boa, como objeto de estudo, Izabela Maria Tamaso, em Relquias e Patrimnios que o Rio Vermelho Levou, revela-nos um sentimento de inquietude quando se comparam aes a respeito do patrimnio coletivo, pblico, tombado15

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e, por outro lado, os patrimnios familiares, pessoais, numa condio de crise ou de catstrofe, como foi o caso da enchente que destruiu boa parte da cidade de Gois em dezembro de 2001. A autora constata, de fato, que o conflito constitutivo das polticas de preservao ou, de outra forma, aponta para a existncia de um hiato entre o tempo monumental e o tempo social. A terceira parte do livro intitulada O Patrimnio como categoria analtica antropolgica. Traz como pontos convergentes algumas questes conceituais inerentes ao tema do patrimnio cultural. Constri uma reflexo crtica sobre o prprio campo disciplinar e sobre tenses em torno dos processos de objetivao da cultura. Assim, em Os limites do Patrimnio, Jos Reginaldo Santos Gonalves alerta para o risco de um enflacionamento da categoria patrimnio, o que pode fazer perder de vista a fora da categoria enquanto instrumento analtico, e ressalta, ainda, que, apesar de a mesma ser uma categoria universal, no se pode deixar de qualific-la em termos culturais e histricos. O autor, em sua anlise, chama a ateno para o fato de que a construo do passado ou da memria muitas vezes no depende das intenes do Estado, ou as agncias de enquadramento do passado/patrimnio podem no ter sucesso e, conseqentemente, o sucesso do mercado turstico pode no acontecer, uma vez que os patrimnios esto numa zona de ambigidades que pode ser exterior a ns ou, como quer Reginaldo, nossa inteira revelia. Em Patrimnio, Negociao e Conflito, Gilberto Velho narra um episdio ocorrido em 1984 em torno do tombamento do terreiro de candombl Casa Branca, em Salvador, Bahia. A partir deste estudo de caso, demonstra, por um lado, a fora do deslocamento dos sentidos de conceitos como tradio e memria cultural a partir de novos paradigmas da disciplina antropolgica no final do sculo XX e, por outro lado, as mudanas que o reconhecimento simblico das produes coletivas operacionaliza sobre a gesto poltica da memria social. Esta conjuntura favorvel para a transformao do que patrimnio e do que memria no Brasil se d em torno de novos agentes sociais convergentes s polticas afirmativas de respeito alteridade e diversidade do sistema de crenas dos grupos sociais que configuram a nao. A atualidade do episdio coloca em alto relevo a trama complexa16

ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

que os antroplogos brasileiros buscam considerar ao ter por problemtica de ponta a questo da memria coletiva no trajeto da nao. Regina Maria do Rego Monteiro Abreu nos traz o tema do Patrimnio Cultural: tenses e disputas no contexto de uma nova ordem discursiva. Regina Abreu faz uma didtica apresentao da constituio da noo de patrimnio Cultural desde a sua identificao com a formao dos Estados Nacionais, a trajetria da conceituao da noo no Brasil at se chegar aos domnios contemporneos da apropriao das questes patrimoniais (patrimnio imaterial, por exemplo) pela sociedade, grupos tnicos, ONGs. Nesse cenrio epistmico e histrico, a autora aponta que o papel do antroplogo est para alm de mediador entre culturas ou de rbitro de disputas entres grupos. Ela chama a ateno de que a dimenso da humanidade, implcita ao conceito de cultura, est diretamente ligada noo de patrimnio cultural. J Alexandre Fernandes Corra nos apresenta O Primeiro Patrimnio Etnogrfico do Brasil: a coleo-Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro (1938). Tendo como referncia um tipo de arqueologia da noo de patrimnio etnogrfico para se compreender a gnese da idia de um patrimnio etnogrfico, o autor toma como alvo de pesquisa a Coleo-Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro (1938), tombada pelo Iphan, e procura interpretar os sentidos das categorias esquecimento e negao para, desta forma, indagar sobre os significados do conceito de etnogrfico na sociedade brasileira e sobre qual a lgica de classificao no que se refere inscrio de um bem cultural na categoria etnogrfico no Livro do Tombamento Federal. Por fim, evoca a necessidade de um quadro conceitual mais adequado para dar conta de uma realidade social e cultural global e contempornea e menciona o fato de que no se pode ser neutro num domnio de ao cultural como no caso estudado. Os antroplogos Julie Cavignac e Andrea Ciacchi preferiram o tema das Memrias e Narrativas em Ouvir a Cultura: Antroplogos, Memrias, Narrativas. Eles advogam que h uma ausncia de estudos tericos sobre a matria narrativa e apontam sobre a necessidade de se ter um maior cuidado metodolgico e de melhor explorao conceitual quando o antroplogo faz das narrativas o seu objeto principal de anlise e de se prestar ateno nas pormenoridades das17

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narrativas, ou seja, aprender a ouvir. Esse fato relevante no campo patrimonial de investigao dos saberes ancorados no passado. Utilizando o termo etnografia da memria, os autores escrevem que, ao se escutar, transcrever e depois ficar disposio de novos olhares e escutas, esse processo, inerente ao ofcio do antroplogo, revela questes metodolgicas como as caractersticas das transcries e a relao quantitativa e qualitativa dos dados sobre uma nova realidade social. Fechamos o livro com a A cidade: sede de sentidos, de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert. As autoras trazem para o debate a poltica de preservao e de conservao de bens culturais nas cidades modernas. Para isto, trazem como notcia o caso do patrimnio universitrio como campo de disposio de sentidos, a fim de dimensionar a perspectiva de situar a cidade no plano do simblico como condio humana. Desta forma, a poltica do patrimnio deveria contemplar as estruturas espaciais da cidade como tributria de uma fantstica transcendental por meio da qual o homem ocidental tem operado o seu conhecimento do mundo social e csmico. Por ltimo, agradecemos ao Presidente da atual gesto da ABA, Professor Dr. Lus Roberto Cardoso de Oliveira, e sua diretoria, por abraar e reforar o seu apoio causa do patrimnio cultural como um dos eixos norteadores dos debates da antropologia brasileira contempornea.

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1 ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO: REFLEXES E PERSPECTIVAS DA 25 REUNIO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA GOINIA GO

A ANTROPOLOGIA E O PATRIMNIOCULTURAL NO BRASILManuel Ferreira Lima Filho Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu

O nmero de antroplogos que se dedicam ao tema do patrimnio cultural quer em atividades acadmicas, quer em atividades de gesto de polticas pblicas ou comunitrias tem crescido muito no Brasil. Acompanhando essa demanda, a Associao Brasileira de Antropologia instituiu o Grupo de Trabalho Permanente do Patrimnio Cultural em 2002. Assim, o objetivo do presente artigo apresentar uma seqncia histrica das produes e aes dos antroplogos relacionados e apontar algumas reflexes. Esperamos, assim, estar contribuindo com a consolidao do tema do Patrimnio como rea de produo de conhecimento antropolgico, o que implica muitos desafios tanto na ABA quanto no que diz respeito a aes voltadas sociedade brasileira para os prximos anos. As Produes Antropolgicas e de Campos Afins Pode-se dizer que a atuao dos antroplogos no campo do Patrimnio no nova. Se incluirmos no campo do Patrimnio os museus, ser possvel sistematizar aes significativas tanto em prticas de colecionamento, pesquisa em museus, quanto em formulaes e realizaes de exposies. A Antropologia nasceu nos museus e marcada pela idia de preservao desde o incio, quando os primeiros pesquisadores da disciplina coletavam objetos e documentos em suas pesquisas de campo e depois os armazenavam nos laboratrios de pesquisa. Internacionalmente, h alguns exemplos expressivos de21

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antroplogos articulados diretamente ao tema dos museus, como Franz Boas, Georges Henri Rivire (Museu de Artes e Tradies Populares de Paris), Paul Rivet (Museu do Homem) e mesmo Claude Lvi-Strauss (colaborador do Museu do Homem e do Projeto de fundao da UNESCO). Nacionalmente, h algumas personagens emblemticas neste sentido, como dison Carneiro (Museu Nacional), Darcy Ribeiro (fundador do Museu do ndio) e Luiz de Castro Faria (Museu Nacional). No que tange s instituies de patrimnio propriamente ditas, a atuao dos antroplogos se fez sentir desde o incio, mas sempre de forma espordica, num campo em que predominavam arquitetos e historiadores. No Conselho do Patrimnio do IPHAN, h de se distinguirem a atuao de Gilberto Velho integrante deste Conselho por alguns anos e, mais recentemente, a presena de Roque de Barros Laraia. De qualquer modo, o patrimnio tornou-se objeto de reflexo sistemtica dos antroplogos nos ltimos anos, quando alguns pesquisadores decidiram incluir o tema em suas teses de doutorado. Antonio Augusto Arantes Neto, orientado por Edmund Leach, defendeu, em 1978, na Universidade de Cambridge/Kings College, Inglaterra, a tese Sociological aspects of folhetos literature in Northeast Brazil; mais tarde, em 1984, ele publicou o livro Produzindo o passado. No ano de 1989, registra-se a tese de doutorado de Jos Reginaldo Gonalves (UFRJ), intitulada Rediscoveries of Brazil: Nation and Cultural Heritage as Narratives, defendida na Universidade da Virginia (EUA), orientada por Richard Handler e transformada no livro A Retrica da Perda os discursos do patrimnio cultural no Brasil (1996). Esses dois trabalhos podem ser considerados marcos de uma reflexo antropolgica sobre o patrimnio no Brasil. Um tema antes tratado por arquitetos e historiadores passava a ser focalizado sob o vis da Antropologia. A tnica destes trabalhos consistiu em apresentar uma viso desnaturalizada de um campo eivado por ideologias e por paixes sobretudo de cunho nacionalista. Arantes e Gonalves esforaram-se por propor uma outra leitura de construes discursivas particularmente eficazes na fabricao de uma memria e de uma identidade nacionais. Ao mostrarem o quanto estas construes discursivas so datadas na histria do Ocidente e a maneira como elas foram sendo construdas por intermdio de polticas especficas no interior do aparelho de22

ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

Estado, estes trabalhos abriram nova perspectiva no campo dos estudos de patrimnio. Particularmente, o trabalho de Gonalves iniciou um dilogo importante com antroplogos americanos de linhagem interpretativista, como Richard Handler e James Clifford, e toda uma rea de estudos antropolgicos voltada para memria social, museus, prticas de colecionamento e patrimnios. Estas pesquisas problematizaram, sobretudo, o tema do patrimnio nacional, evidenciando sua relao com o carter arbitrrio das naes modernas enquanto comunidades imaginadas (ANDERSON, 1989) e a necessidade de construes discursivas e de alegorias capazes de expressar certa iluso de homogeneidade e de coeso para os Estadosnaes. A estratgia de Gonalves foi analisar duas narrativas centrais na formulao de polticas do patrimnio no Brasil: a de Rodrigo Mello Franco de Andrade um dos idealizadores e primeiro diretor do SPHAN, que inspirou sua poltica de 1937 a 1979 e a de Alosio Magalhes que esteve frente do SPHAN/Pr-Memria por um curto perodo, de 1979 a 1983, mas que foi decisivo para sua transformao. Ao tomar o patrimnio como um campo no sentido etnogrfico, estas duas pesquisas evidenciaram as estratgias de construo ou de inveno de bens considerados dignos para representar a memria e a identidade nacionais e as justificativas retricas que passaram a ser introjetadas pelos agentes do patrimnio e pela sociedade brasileira. Alguns conceitos foram especialmente introduzidos formando um pensamento antropolgico sobre o patrimnio, como o conceito de objetificao cultural, de Richard Handler, quando este autor sugere a coisificao de culturas e de tradies em modernos contextos nacionais, ou seja, uma certa tendncia em pensar as culturas como coisas, em represent-las a partir de determinados bens materiais, como edificaes, paisagens ou objetos museolgicos cuidadosamente escolhidos e retirados de seus contextos originais para serem (re)significados em outros. O patrimnio seria, portanto, o lugar em que agentes estatais especialmente treinados coletariam fragmentos de tradies culturais diversas para reuni-los num conjunto artificialmente criado voltado para representar a idia de uma totalidade cultural artificialmente criada expressa pela idia de nao. Outro conceito importante, desenvolvido especialmente por James Clifford em ensaio sobre sistemas de arte e cultura seria o conceito de prtica23

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de colecionamento, entendido como uma prtica universal, presente em todas as sociedades humanas e relacionada necessidade vital dos homens em classificar e hierarquizar. A reflexo de Clifford inspiradora para a pesquisa seminal de Gonalves, que sinaliza, nas construes discursivas estudadas (de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Alosio Magalhes), os bens considerados dignos de colecionamento com o intuito de formar um mosaico autenticamente nacional. O tema da autenticidade colocado em relevo. Gonalves, utilizando-se de estratgia etnogrfica e tomando os discursos de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Alosio Magalhes como os de informantes selecionados numa pesquisa de campo, produz a relativizao desta categoria fundante das modernas ideologias ocidentais. O tema do patrimnio emerge, assim, como um lugar de construo de valores e, como tal, extremamente plstico e varivel. O bem cultural autntico como representao metafrica da totalidade nacional desnaturalizado, e a sua face ideolgica e ficcional descortinada. Gonalves est atento para a dimenso literria e provisria de ideologias que procuram firmar-se como verdades calcadas em noes positivistas da cincia. Neste sentido, alinha-se com a reflexo de Hayden White acerca dos mecanismos de produo da moderna historiografia e da fixao da idia presente em toda a histria linear de que todas as naes devam obrigatoriamente ter um passado. O patrimnio, em certa modalidade discursiva (no caso, a de Rodrigo Mello Franco de Andrade), seria a de representao ou de objetificao deste passado. Por outro lado, o patrimnio na modalidade discursiva de Alosio Magalhes estaria mais fixado na noo de cultura e de diversidade cultural numa nfase num tempo presente capaz de, por si s, eternizar-se. A nao, em ambas as construes discursivas, apresentada como uma entidade dotada de coerncia e de continuidade. Essa coerncia seria menos um dado ontolgico do que o efeito daquelas estratgias narrativas. Enquanto o trabalho de Gonalves centrado no estudo de categorias de pensamento, em discursos, narrativas, o trabalho de Arantes volta-se para os contextos sociais e intitucionais em que as polticas de patrimnio nacionais so construdas. Arantes est interessado em desvendar as relaes sociais envolvidas neste processo de patrimonializao. Estes dois trabalhos abrem caminho para que24

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outros antroplogos se interessem pelo tema do patrimnio. Na dcada de 90, duas pesquisas so especialmente relevantes: a primeira de autoria de Silvana Rubino (Unicamp), intitulada As fachadas da histria: os antecedentes, a criao e os trabalhos do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1937-1968, apresentada como dissertao de mestrado ao Departamento de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em janeiro de 1991; a segunda produzida por Marisa Velloso M. Santos, O tecido do tempo: a idia de patrimnio cultural no Brasil (1920-1970), orientada por Roberto Cardoso de Oliveira e apresentada como tese de doutorado ao Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, em 1992. preciso observar que, do final dos anos 80 at pelo menos a primeira metade dos anos 90, houve uma expressiva voga de trabalhos refletindo sobre o tema da nao. Talvez este interesse reflexivo sobre o nacional tenha sido, em parte, motivado pela grande quantidade de produes de historiadores e de cientistas sociais franceses por ocasio das comemoraes do bi-centenrio da Revoluo Francesa. deste perodo a publicao da coletnea de textos organizados em quatro grossos volumes pelo historiador francs Pierre Nora, da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, intitulada Lugares de Memria. Em cada um destes volumes trs volumes consagrados ao tema da Nao e um volume voltado para a Repblica , historiadores consagrados dedicaram-se a esquadrinhar o longo processo de construo do Estado-nao francs em todos os seus mais nfimos detalhes, como o culto aos heris, os manuais de histria da Frana para crianas, os guias de viagem para formar os cidados franceses na noo de ptria e de territrio e, claro, toda a mquina estatal que se voltou para a inveno do patrimnio francs desde os primeiros protestos de Vitor Hugo em 1832 quando ameaavam destruir os prdios histricos e monumentais e os primeiros projetos de Violet Le Duc, engenheiro e arquiteto francs que iniciou todo o processo de restaurao de Paris para que ela conservasse para sempre sua feio eloqente de bero dos novos ideais que passariam a reger o Ocidente. Nas palavras de Pierre Nora, as comemoraes do bi-centenrio da Revoluo Francesa incitaram o autor a tecer um inventrio dos lugares onde a memria nacional na Frana tomou corpo e que, pela vontade dos homens ou pelo trabalho dos sculos, sobreviveram como os25

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smbolos mais evidentes: festas, emblemas, monumentos e comemoraes, mas tambm elogios, dicionrios e museus. A noo de lugares de memria, construda ao longo de trs anos de 1978 a 1981 num seminrio dirigido por Nora na cole, foi um marco importante nos estudos que procuravam relacionar Memria e Histria. No entender de Nora, os lugares de memria surgiram nas sociedades ocidentais modernas como fragmentos de uma memria em franco desaparecimento. A ao da Histria moderna, calcada numa representao linear do tempo e numa reconstruo sempre problemtica do que no mais existe, teria condenado ao fim da memria coletiva. O fato de se falar tanto em memria seria, para Nora, um sintoma de que esta no mais existiria, tendo sido substituda pela Histria. As sociedades ocidentais modernas seriam o resultado de uma mutilao sem retorno representada pelo fim das coletividadesmemria que eram as sociedades tradicionais, por excelncia as sociedades camponesas, em que cada gesto cotidiano era vivido como uma repetio religiosa de atos extremamente significativos para a coletividade, ou seja, havia uma identificao do ato e do significado. Com certo tom nostlgico, Nora se props a discorrer sobre os estilhaos ou fragmentos daquela que seria o ltimo esforo de construo de uma memria coletiva no Ocidente: a memria nacional.Estes lugares precisam ser compreendidos no sentido pleno do termo, do mais material e concreto, como os monumentos aos mortos e os Arquivos nacionais, ao mais abstrato e intelectualmente construdo, como a noo de linhagem, de gerao, ou mesmo de regio e de homem-memria. Dos lugares institucionalmente sagrados, como Reims ou o Panteo, aos humildes manuais de nossas infncias republicanas. Das crnicas de Saint-Dennis do sculo XIII, ao Tesouro da Lngua Francesa, passando pelo Louvre, pela Marselhesa e a Enciclopdia Larousse1 .

Esta onda de estudos dessacralizadores do ideal de nao teve talvez no campo da Histria sua maior repercusso, mas circulou tambm entre antroplogos e cientistas sociais que desenvolveram estudos reflexivos sobre os mecanismos de constituio do nacional1 Nora, Pierre. Prsentation. In: Les Lieux de Mmoire. Paris: Ed. Gallimard, 1984.

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entre ns. Afinal, se a Repblica francesa comemorava 200 anos em 1989, no mesmo ano a Repblica verde e amarela completava 100 anos. Na perspectiva da Histria, desta poca o trabalho, por exemplo, de Jos Murilo de Carvalho intitulado A Formao das Almas e que evidencia em mincias o processo de elaborao dos smbolos nacionais: a bandeira, o hino, as alegorias, os monumentos2 . Por esta ocasio passava-se em revista a histria da formao das naes modernas. O historiador ric Hobsbawm publicou a Era dos Imprios, tematizando o perodo que se abriu em 1870, quando, na Europa, tiveram lugar as grandes transformaes que desencadearam novas relaes entre os indivduos. A partir de ento, todos deviam fidelidade a um ente abstrato e distante: o Estado-nao. Outro trabalho do historiador ingls deste perodo foi A Inveno das Tradies, que propunha pesquisar sobre pequenas invenes necessrias consolidao dos Estados nacionais, como alegorias e trajes tpicos. O ensaio sobre a inveno do traje tpico dos escoceses e de toda a tradio envolvida inspirou pesquisas de historiadores e de antroplogos sobre o papel das identidades regionais e locais na construo dos smbolos nacionais3 . Outros trabalhos de Antropologia, embora no se dedicassem exatamente ao tema do patrimnio nacional, voltaram-se para o estudo da criao de muitos outros smbolos necessrios formao dos novos cidados. Cabe registrar o trabalho do antroplogo Ruben Geoge Oliven sobre a inveno do gacho, em certa parte inspirado no ensaio de Eric Hobsbawm. Oliven utiliza a perspectiva antropolgica para desvendar a maneira pela qual a tradio gacha foi criada com festas, datas e trajes tpicos. A antroploga Maria Eunice Maciel, tambm do Departamento de Antropologia da UFRGS, iniciou suas pesquisas sobre o tema do patrimnio nacional, vindo a abrir uma linha de pesquisa em torno do tema do Patrimnio Intangvel, especialmente articulado com a questo dos saberes e fazeres em torno do processo da alimentao. Uma outra linha de investigao que se inaugurou no perodo dos anos 80 e 90 foi o estudo dos museus e das prticas de colecionamento de objetos museolgicos. Tambm em parte inspira2 Carvalho, Jos Murilo de. A Formao das Almas. O Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. 3 Hobsbawm, ric. A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

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dos na voga dos estudos sobre a formao dos Estados-naes e seus smbolos, estes estudos congregaram historiadores e antroplogos. Os museus e suas colees eram entendidos enquanto partes expressivas dos patrimnios nacionais. Com relao perspectiva antropolgica de estudos de museus e de prticas de colecionamento, devemos registrar que a tendncia auto-reflexiva da Antropologia tambm contribuiu para o foco nesta rea. Do projeto editorial organizado por George Stocking Jr. sobre a histria da Antropologia, foi lanado, em 1985, um nmero especial sobre museus e prticas de colecionamento na Antropologia. O livro Objects and Others. Essays on Museums and Material Culture, terceiro volume da srie, trouxe artigos sobre a estreita relao da Antropologia com os museus desde o nascimento da disciplina. Vale destacar o artigo de Ira Jacknis focalizando o trabalho de Franz Boas como curador de exposies em museus etnogrficos; o artigo de Richard Handler, que se tornou clssico nos estudos do patrimnio, sobre o processo de construo do patrimnio em Quebec; e, por fim, o artigo de James Clifford sobre a prtica de colecionamento dos objetos dos outros nos grandes museus e sobre os problemas advindos desses deslocamentos dos objetos com relao a seus contextos de origem4 . Tomar os museus e as colees de museus numa perspectiva antropolgica procurando perceber estes lugares de memria como elementos importantes do sagrado nacional consistiu no objetivo na dissertao de mestrado de Regina Maria do Rego Monteiro Abreu, apresentada ao PPGAS do Museu Nacional em 1990 com o ttulo Sangue, Nobreza e Poltica no Templo dos Imortais: um estudo antropolgico da Coleo Miguel Calmon no Museu Histrico Nacional e publicada em livro em 1996 sob o ttulo A Fabricao do Imortal. Utilizando como principal referncia o Ensaio sobre a ddiva, de Marcel Mauss, e suas reflexes sobre reciprocidade, a autora percebeu o museu enquanto um lugar de trocas simblicas e rituais entre os agentes sociais que, nestes movimentos, construam uma verso da Histria do Brasil e fabricavam personagens histricos. No dos anos 80 e 90, muitos dos autores citados dialogaram em4 Os ttulos dos artigos so respectivamente: JACKNIS, Ira. Franz Boas and Exhibits: On the Limitation of the Museum Method of Anthropology; HANDLER, Richard, On Having a Culture: Nationalism and the Preservations of Quebecs Patrimoine; CLIFFORD, James Objects and Selves An Afterword. In: STOCKING, Jr., George W. Objects and Others. Essays on Museums and Material Culture. London: University of Wisconsin Press Ltd., 1985.

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diferentes momentos no Grupo de Trabalho sobre Pensamento Social Brasileiro nas reunies da ANPOCS, em Caxambu. Alm dos trabalhos citados, o tema do patrimnio foi objeto de reflexo de teses e de pesquisas de socilogos e de cientistas polticos. importante destacar o trabalho de Myrian Seplveda dos Santos, que focalizou o tema dos museus em dissertao apresentada em 1989 no mestrado em Cincia Poltica no IUPERJ, Histria, Tempo e Memria: um estudo sobre museus a partir da observao feita no Museu Imperial e no Museu Histrico Nacional. Outro trabalho relevante sobre o tema do Patrimnio no perodo focalizado o de Ceclia Londres apresentado como tese de doutorado em Sociologia da Cultura na UnB e publicado em 1997 pela editora da UFRJ sob o ttulo Patrimnio em Processo. Trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. Myrian Seplveda dos Santos preocupouse em refletir sobre construes da histria em diferentes momentos de dois museus histricos. Ceclia Londres, pelo contrrio, no refletiu sobre a histria, mas adotou uma perspectiva primordialmente histrica, tomando como objeto de pesquisa o processo de construo do patrimnio histrico e artstico no Brasil, considerado enquanto uma prtica social produtiva, criadora de valor em diferentes direes5 . Na Universidade de Braslia, Izabela Maria Tamaso defende, em 1997, a dissertao de mestrado em Antropologia com o tema A Histria: Percepes do Conflito na Prtica da Preservao do Patrimnio Cultural Edificado em Esprito Santo do Pinhal; e, em 1998, tambm na UnB, Manuel Ferreira Lima Filho defende a sua tese de doutorado Pioneiros da Marcha para o Oeste: Memria e Identidade na Fronteira do Mdio Araguaia, quando encontra, entre os pioneiros, a prtica de constituio de museus e de colees como estratgia de construo de uma memria coletiva. Ainda em 1998, Mrcia Regina Romeiro Chuva defende sua tese de doutorado em Histria pela Universidade Federal Fluminense com o ttulo Os arquitetos da memria: a construo do patrimnio histrico e artstico nacional no Brasil anos 30 e 40. Por fim, Alexandre Fernandes Corra apresenta a sua tese de doutorado em 2001, na Pontifcia Universidade de So Paulo, em Cincias Sociais, com o ttulo Vilas, parques e Terreiros Novos Patrimnios na Cena das Polticas Culturais de So Lus e So Paulo.5 Trecho retirado de FONSECA, Maria Ceclia Londres. O Patrimnio em Processo. Trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Minc-IPHAN, 1997 (pp. 19-20).

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Patrimnio como Antropologia da Ao? Se, de um lado, temos um movimento crescente nas universidades, novos debates nacionais e internacionais vm colocando o tema do patrimnio na ordem do dia das polticas pblicas no Brasil e no exterior. Particularmente os antroplogos vm sendo convocados diante de mudanas significativas nas formulaes de polticas culturais, afirmativas e do prprio, notadamente a partir da constituio de 1988 e particularmente com o fomento do chamado Patrimnio Intangvel, de 2001. Desta maneira, um campo de atuao profissional se abre rapidamente, clamando por profissionais com capacidade tanto de atuar na reflexo conceitual do tema do patrimnio cultural como de agir como gestor ou aquilo que Roberto Cardoso de Oliveira chamou de Antropologia da Ao. Mas uma questo se apresentava como fundmental nesse jogo de atuao: o antroplogo se via diante do desafio de se sustentar como profissional, norteado pelas regras do mercado, e, ao mesmo tempo, ser fiel aos princpios metodolgicos, conceituais e ticos da disciplina. Tal desafio foi, inclusive, tema de um seminrio promovido pela ABA com a Universidade Federal Fluminense intitulado Antropologia extra-muros, no ano de 2003. A participao dos antroplogos nas instituies de patrimnio era pequena at bem pouco tempo atrs. No Brasil, na instituio mais representativa, o IPHAN, h de se ressaltar a participao de Gilberto Velho no Conselho do Patrimnio, rgo renomado e de grande credibilidade no setor. A poltica hegemnica do IPHAN de sua fundao at final dos anos 90 privilegiou os tombamentos e a preservao de edificaes em pedra e cal, de conjuntos arquitetnicos e paisagsticos, bem como a proteo a bens mveis e imveis considerados de relevo para a nao brasileira, seja por expressivas caractersticas arquitetnicas, artsticas ou histricas. Tornou-se j um relato mtico para os que contam a histria da instituio mencionar as diferenas entre o ante-projeto de Mrio de Andrade esboado em 1936 e a verso final do Decreto-Lei 25, que instituiu e criou a instituio. De acordo com uma certa corrente de pesquisadores mais simpticos viso de Mrio de Andrade, seu ante-projeto conteria uma verso mais culturalista e antropolgica, privilegiando uma noo de patrimnio que enfatizava os aspectos mais intangveis da cultura,30

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como manifestaes diversas da cultura popular. A proposta vencedora, protagonizada na figura de Rodrigo de Mello Franco de Andrade, tenderia a privilegiar os aspectos materiais do patrimnio. Evidentemente, este relato mtico da proposta vencida de Mrio de Andrade na disputa com Rodrigo de Mello Franco de Andrade serve para legitimar a viso de um grupo de gestores do patrimnio que manteve uma oposio ao poder hegemnico no campo, formado, em grande parte, por arquitetos, e que privilegiaram aes de preservao de cunho material pautadas em critrios histricos e artsticos. As aes mais contundentes do rgo com repercusses em esferas regionais e locais de preservao e de construo da memria no pas consistiram em tombamentos de grandes monumentos, exemplarmente ilustrados pelas igrejas barrocas de Ouro Preto. A breve passagem do designer Alosio Magalhes pela instituio trouxe algumas idias novas com a criao do Centro Nacional de Referncias Culturais e com a transformao, por um certo perodo, da instituio de Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional para Fundao Nacional Pr-Memria. Alosio Magalhes adotava uma perspectiva mais culturalista do Patrimnio e formou um grupo de colaboradores que fazia uma crtica velada ao que eles consideravam um certo elitismo da proposta at ento hegemnica encarnada por Rodrigo. A viso deste grupo era a de que a nao inclua diferentes culturas que deveriam ter seus patrimnios representados numa instituio voltada para este fim. Essas diferentes culturas eram expressas em diferentes suportes e no apenas nos suportes arquitetnicos, que acabaram constituindo o grande elenco de bens preservados. A morte prematura de Alosio Magalhes e o acirramento de disputas internas no rgo no possibilitaram que vingasse uma proposta culturalista do patrimnio, permanecendo a viso at ento hegemnica. Entretanto, alguns esforos isolados continuaram a ser implementados. Um dos momentos de destaque desta disputa consistiu na luta pelo tombamento do terreiro de candombl Casa Branca, na Bahia, onde havia uma rvore sagrada que tambm deveria ser preservada. Amplo debate se processou envolvendo antroplogos, arquitetos e historiadores que produziram artigos para um nmero da Revista do Patrimnio. Arquitetos acostumados com tombamentos de bens mveis e imveis e no exatamente com um local sagrado com as caractersticas de um terreiro31

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de candombl expressaram certa perplexidade com relao ao papel do Estado no caso de um tombamento com aquelas caractersticas. Alm do mais, levantavam objees relativas fiscalizao por parte de um organismo estatal de um espao csmico, controlado, em ltima instncia, pelos desgnios do sobrenatural. E se os santos decidissem que o terreiro deveria migrar para outro local? O terreiro deveria ser destombado? Em suma, o terreiro foi tombado, mas a polmica em torno do caso tornou-se um emblema da contenda entre duas vises de patrimnio. Durante a passagem de Fernando Collor pelo Governo, a instituio, seguindo os mesmos desgnios de outros setores da cultura no pas, sofreu um desmonte com demisses de funcionrios e com falta de verbas e de uma poltica clara para o setor. A instituio mudou de nome e passou a se chamar Instituto Brasileiro do Patrimnio Cultural, num sinal evidente de que a tendncia culturalista continuava a se insinuar em oposio vertente histrica e artstica. Nos anos do Governo de Fernando Henrique Cardoso, intelectuais e profissionais do campo insistiram que a instituio deveria retomar sua sigla original, com a qual ganhou credibilidade nacional e internacional. Desse modo, a instituio passou a se chamar Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, nome que permanece at hoje. Mas, apesar de a instituio manter no nome a referncia ao histrico e artstico nacional e no ao cultural, um movimento novo comeou a se insinuar, em grande parte em funo de novos posicionamentos de organismos internacionais. importante frisar que, durante os anos que se seguiram Segunda Guerra Mundial, novos organismos internacionais foram criados, como a UNESCO, e certos debates, como o caso dos relativos ao tema do patrimnio, passaram a ser regidos tambm em funo de reflexes de ordem internacional. Nos anos 90, comearam a surgir com intensidade preocupaes relativas ao que os documentos da UNESCO chamavam de culturas tradicionais. Por um lado, levanta-se o temor do desaparecimento dessas culturas face mundializao das culturas que tenderiam a homogeneizar e ocidentalizar o planeta. Por outro lado, eram manifestadas preocupaes de que os produtores dessas culturas tradicionais viessem a ser saqueados por novas modalidades de pirataria na dinmica do capitalismo globalizado. Conhecimentos tradicionais32

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necessrios manipulao de ervas medicinais, msicas folclricas, danas tradicionais e outras manifestaes destas culturas se teriam convertido em fontes cobiadas por um mercado cada vez mais vido por objetos raros e exticos. Novas questes eram levantadas: como salvar essas culturas tradicionais? Como munir seus produtores de mecanismos de proteo contra a apropriao de seus acervos de conhecimentos tradicionais por parte de um mercado que se globaliza? Num mundo organizado por patentes, como regular direitos sobre a propriedade intelectual de criaes coletivas ou de autoria desconhecida expressa em msicas, rituais, folguedos e manifestaes culturais diversas? Como regulamentar juridicamente os direitos relativos aos conhecimentos tradicionais, uma vez que no h legislao sobre direitos coletivos? Como proteger comunidades que atualizam antigas tradies, uma vez que o mercado expande suas fronteiras delas se apropriando? Em outras palavras, quando uma empresa utiliza padres grficos de uma etnia indgena transformandoos em padres industriais de tecidos ou quaisquer outros suportes, seria correto ignorar as populaes que criaram estes padres? Na lgica do capitalismo industrial no seriam elas as inventoras dos respectivos padres e, portanto, detentoras legtimas do direito de patente sobre todas e quaisquer utilizaes futuras destes bens? O mesmo raciocnio no poderia aplicar-se a conhecimentos tradicionais sobre plantas e ervas medicinais, performances e rituais, tcnicas especficas de confeco de instrumentos ou equipamentos e assim por diante? Como adaptar o mecanismo das patentes criadas durante a fase do capitalismo industrial e relacionadas a invenes individuais para um direito de propriedade intelectual coletiva? As sociedades produtoras de culturas tradicionais deveriam aderir ao mecanismo das patentes? Haveria como aboli-las? Esses tm sido alguns temas presentes nos debates promovidos pela UNESCO, dos quais participam representantes de diferentes Estados-naes. Em Documentos produzidos nos anos 90 sob o ttulo Recomendaes para a proteo e salvaguarda de manifestaes culturais tradicionais, a UNESCO fazia algumas propostas aos pases membros da organizao. Como antdoto a problemas to graves, propunha-se que os pases membros adotassem algumas medidas, entre elas novas polticas de patrimnio capazes de proteger as chamadas33

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culturas tradicionais. Especificamente um destes documentos propunha que os pases seguissem a inspirao japonesa de proteger o conhecimento tradicional, as habilidades especficas que so passadas de geraes a geraes de forma ritualizada e por meio de mecanismos prprios. Observava-se que, no caso japons, a proteo ao patrimnio no se faz priorizando os resultados ou os produtos de tcnicas de construo ou de conhecimentos ancestrais, mas que, pelo contrrio, se valoriza o processo do fazer. Desse modo, se um prdio considerado importante para a cultura japonesa, de tempos em tempos se promove ritualmente uma desconstruo deste prdio e uma reconstruo do mesmo. A proteo mais adequada, segundo esta concepo, baseia-se na valorizao do processo e no no resultado final. Por outro lado, o Documento da UNESCO chamava a ateno para a importncia de proteger, no caso das culturas tradicionais, os mestres considerados patrimnios vivos de conhecimentos muitas vezes no documentados por meio da escrita. Dizia o texto: em sociedades tradicionais, quando morre um ancio toda uma biblioteca se queima e se perde para sempre. Era evidente o surgimento de um dado novo no campo do patrimnio. Se, nos primeiros anos de constituio dos patrimnios nacionais, predominara uma retrica que lastimava a perda de um mundo constitudo de prdios e de edificaes que davam lugar a novos cones das modernas sociedades urbano-industriais e se nestes anos era preciso salvar algo que testemunhasse momentos do longa trajetria de construo da civilizao ocidental, no final dos anos 90 discutia-se um outro sentido para uma mesma retrica da perda. Lastimava-se, agora, o desaparecimento daqueles que constituam os outros do mundo civilizado outros que expressavam culturas exticas que teriam sobrevivido a diversas fases do capitalismo mas que, com a globalizao, estariam irremediavelmente fadados dissoluo. As propostas salvacionistas da UNESCO tiveram boa repercusso no Brasil entre gestores do patrimnio, entre eles os segmentos da vertente culturalista do IPHAN e tambm de outras agncias do Ministrio da Cultura. Reunies foram realizadas, dentre as quais uma reunio em Fortaleza que congregou tcnicos de vrias agncias governamentais e durante a qual foi proposta a formulao de uma poltica voltada para o Patrimnio Intangvel. Uma das instituies que aderiu de imediato foi a ento Coordenao de Folclore e de Cultura34

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Popular ligada Funarte, instituio herdeira da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, atuante desde os anos 50, e que tinha longa experincia com pesquisa em folclore e em cultura popular. Das instituies do Ministrio da Cultura, era esta uma das que congregavam maior nmero de antroplogos. Concomitantemente, por ocasio dos festejos dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, o Ministrio da Cultura props a Antonio Augusto Arantes a criao de uma metodologia de inventrio das manifestaes culturais na regio do sul da Bahia, onde havia um projeto de criao de um Museu Aberto do Descobrimento. Gestores do patrimnio interessados na nova poltica do Patrimnio Intangvel articularam-se no projeto de criao de um programa de ao voltado para o Patrimnio Intangvel no Brasil; e, em 4 de agosto de 2000, foi promulgado o Decreto 3.551, instituindo o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro e criando o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial. A proposta do Registro significou essencialmente a criao de um selo distintivo oficial para os chamados bens culturais de natureza imaterial. Evidentemente, como todo o processo de patrimonializao, esta proposta inclui a idia de seleo, de construo de um acervo digno de ser memorializado em oposio a um outro conjunto de bens culturais que devem ser relegados ao esquecimento. A dinmica patrimonial implica prticas de colecionamento, e a prtica do Registro pode ser comparada prtica do tombamento, de acordo com a qual so necessrios critrios que possibilitem escolhas daquilo que dever ser preservado. Para o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial, foram criados quatro livros: o Livro do Registro dos Saberes (para o registro de conhecimentos e de modos de fazer); o Livro das celebraes (para as festas, os rituais e os folguedos); o Livro das formas de expresso (para a inscrio de manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas); o Livro dos lugares (destinado inscrio de espaos onde se concentram e se reproduzem prticas culturais coletivas). Prev-se, ento, que alguns bens culturais devam ser registrados nestes livros e que, como manifestaes culturais vivas, estes bens culturais sejam acompanhados pelos agentes do patrimnio, e suas transformaes documentadas.35

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Nas palavras da atual diretora do Departamento do Patrimnio do IPHAN, a arquiteta Marcia SantAnna,O registro corresponde identificao e produo de conhecimento sobre o bem cultural de natureza imaterial e equivale a documentar, pelos meios tcnicos mais adequados, o passado e o presente dessas manifestaes em suas diferentes verses, tornando tais informaes amplamente acessveis ao pblico. O objetivo manter o registro da memria desses bens culturais e de sua trajetria no tempo, porque s assim se pode preserv-los. Como processos culturais dinmicos, as referidas manifestaes implicam uma concepo de preservao diversa daquela prtica ocidental, no podendo ser fundada em seus conceitos de permanncia e autenticidade. Os bens culturais de natureza imaterial so dotados de uma dinmica de desenvolvimento e transformao que no cabe nesses conceitos, sendo mais importante, nesses casos, registro e documentao do que interveno, restaurao e conservao6 .

Paralelamente ao instrumento do Registro, o IPHAN criou, em parte com as contribuies do projeto piloto desenvolvido por Antonio Augusto Arantes no sul da Bahia, uma metodologia de inventrio que gerou uma proposta de Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC) instrumento para subsidiar as aes de registro e realizar um recenseamento amplo das manifestaes culturais no pas. Ana Gita de Oliveira, antroploga e tcnica do IPHAN, chama a ateno para o fato de que, a partir de 1995,[...] o IPHAN comeou a sistematizar os diversos modelos de inventrios existentes at ento e, pela primeira vez, arriscar a difcil tarefa de organizar um inventrio que fosse adequado natureza do patrimnio imaterial (...). Entre os anos de 1997 e 2000, tendo como fonte de inspirao as experincias realizadas na Fundao Pr-Memria e no desenvolvimento de trs experincias de inventrios de referncias culturais, no Serro/ MG, em Diamantina/MG e na Cidade de Gois/GO, se comeou a estruturar um modelo de Inventrio (...)7 .6 SantAnna, Marcia. A face imaterial do patrimnio cultural. In: ABREU, Regina & CHAGAS, Mrio. Memria e Patrimnio. Rio de Janeiro: ed. DPA, 2003. 7 OLIVEIRA, Ana Gita de. Diversidade cultural como categoria organizadora de polticas pblicas. In: TEIXEIRA, Joo Gabriel et al. Patrimnio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalizao. Braslia: Transe/Ceam, 2004.

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A metodologia de inventrio sistematizada pelo IPHAN comeou a ser posta em prtica por alguns tcnicos das agncias governamentais, entre eles os tcnicos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCP , sob a coordenao da antroploga Letcia Vianna. Esta experincia merece ser registrada, pois vem abrindo um importante mercado de trabalho para antroplogos. No caso do projeto do CNFCP, h uma equipe fixa e diversos consultores relacionados a temas especficos que foram selecionados para serem inventariados:[...] as diferentes celebraes relacionadas ao complexo cultural do boi, os diferentes modos de fazer relacionados ao artesanato em barro; as diferentes formas de expresso e modos de fazer relacionados musicalidade das violas e percusses; os diferentes modos de fazer relacionados aos sistemas culinrios a partir dos elementos mandioca e feijo8 .

A maior parte dos envolvidos nestas pesquisas so antroplogos ou estudantes de antropologia em fase de mestrado ou de doutorado recrutados em cursos de ps-graduao e que esto envolvidos com teses sobre temas correlatos. O objetivo das pesquisas duplo: tecer um inventrio dessas manifestaes culturais, escolhidas em parte por retratar certa tradio de estudos da instituio, e preparar dossis para possveis registros dentro do Programa Nacional de Patrimnio Imaterial. Concomitantemente aos inventrios, o mote dos registros de manifestaes culturais que passariam a ser distinguidas com um selo do Ministrio da Cultura vem desencadeando ampla mobilizao de profissionais da cultura e de agentes sociais em organismos estatais, ongs e instituies culturais. Com o incio da gesto de Gilberto Gil no Ministrio da Cultura, houve um incentivo muito grande para que o Programa do Patrimnio Imaterial entrasse em vigor, inclusive com editais de concursos de financiamentos com apoio da Petrobrs para pesquisas nesta rea. Pode-se falar em uma verdadeira corrida de pesquisadores, principalmente de antroplogos, que se sentiram estimulados a organizar dossis de pesquisas sobre as manifestaes culturais relacionadas aos grupos de seus interesses de pesquisa.8 Vianna, Letcia. Pluralidade cultural e identidade nacional: experincias recentes de polticas no Brasil. In: TEIXEIRA, Joo Gabriel et al. Op cit

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Para que uma manifestao cultural concorra ao registro, necessrio um amplo dossi com pesquisas consistentes, descries detalhadas e justificativas sobre as razes dos pedidos de registro. evidente que, para esta atividade especfica, os antroplogos renem os atributos necessrios. O que vem ocorrendo que antroplogos com maiores informaes e condies materiais de realizar tais dossis levam vantagem numa certa concorrncia para definir quais bens culturais sero registrados e recebero o ttulo de patrimnios culturais do Brasil. Os primeiros casos de registros de bens culturais exemplificam esse processo. O caso do primeiro bem cultural indgena registrado no Livro dos Saberes do patrimnio imaterial emblemtico. Trata-se do registro da arte kusiwa pintura corporal e arte grfica wajpi, ou seja, de ndios habitantes do Amap e estudados pela antroploga Dominique Gallois, do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo da USP. Apoiada pelo Museu do ndio por ocasio da elaborao de uma exposio desta etnia no museu, Dominique Gallois organizou um vasto dossi, resultado de mais de quinze anos de pesquisa, e o encaminhou, junto com o diretor do Museu do ndio, o tambm antroplogo Jos Carlos Levinho, ao IPHAN, solicitando o registro do kusiwa como patrimnio cultural do Brasil dentro do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial. Num certo sentido, pode-se dizer que por uma srie de motivos, entre eles a agilidade e o trabalho anterior acumulado, Dominique Gallois chegou frente no pedido de registro para a arte grfica do grupo que estuda, de modo que, em 20 de dezembro de 2002, o kusiwa foi registrado como patrimnio cultural do Brasil. Evidentemente, injunes polticas tambm concorreram para que este bem cultural recebesse o selo de patrimnio oficial pelo Governo Federal. Na ocasio, o Presidente Fernando Henrique Cardoso encerrava sua gesto, e era interessante que o Governo mostrasse resultados e que a ento gesto do IPHAN tornasse visvel a poltica que naquele Governo comeara a se implantar. Com senso de oportunidade e uma pesquisa consolidada sobre os waipi, o Museu do ndio, as lideranas indgenas waipi e a antroploga Dominique Gallois emplacaram o registro da bela arte grfica waipi. Entretanto, o que significa dar um selo oficial de reconhecimento a uma manifestao cultural se o pas feito de muitas manifestaes38

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culturais, todas igualmente significativas? A relao entre universidades e agncias estatais tm sido uma constante no meio daqueles que escrevem sobre o assunto do patrimnio. Os antroplogos comearam a ser chamados pelos tcnicos das instituies museais e de patrimnio para refletirem com eles sobre polticas pblicas, modos de funcionamento, ideologias, princpios e prticas de identificao, de preservao e de difuso dos acervos e dos bens culturais. Estes intercmbios entre o pesquisador e as agncias que configuraram o campo etnogrfico de suas pesquisas so extremamente interessantes, mas muitas vezes provocam confuses e mal-entendidos. A perspectiva acadmica, reflexiva, tem uma especificidade com relao ao trabalho de atuao numa rea que, independentemente das relativizaes que se possa fazer, funciona como instncia canonizadora, formando cones e smbolos da memria nacional. O dilogo, portanto, tem limites, e muitas vezes difcil precis-los. Faz parte do jogo das agncias do patrimnio a consagrao, por meio de aes de tombamentos, de bens mveis e imveis, listas de edificaes a serem preservadas ou de objetos a serem recolhidos. As polticas de memria so o resultado de dinmicas deliberadas de lembranas e esquecimentos. Valorizar objetos, entronizar personagens no panteo de uma construo discursiva da histria, restaurar um quadro, um prdio ou um bairro seguindo a opo de uma determinada poca ou padro arquitetnico bem diferente de refletir sobre os mecanismos que levaram uma sociedade a valorizar aqueles objetos e no outros, ou de estudar sobre as escolhas dos quadros a serem restaurados e daqueles fadados destruio, ou ainda de observar criticamente que a restaurao de um bairro ou de um complexo arquitetnico a partir de determinados padres estticos no suficiente para restaurar a autenticidade original destes espaos. Ressalta-se o papel das universidades, principalmente nos programas de ps-graduao, que vm gerando um nmero crescente de dissertaes e de teses e alimentando debates, simpsios e mesas redondas em todo o pas. De tema marginal ou menor nos estudos antropolgicos, os estudos de memria, patrimnio e cultura material vm ganhando visibilidade e inserindo-se no movimento contemporneo de uma Antropologia voltada para pensar a sociedade do observador ou, para usar a expresso de Marisa Peirano, de uma39

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Antropologia em que a construo da alteridade prxima, seno mnima. Este um campo sem dvida de interseo entre antroplogos e outros dos mais variados lugares e tendncias campo que se movimenta na confluncia entre a Academia e as agncias de governo, instituies, ongs e movimentos sociais, entre pesquisas reflexivas e paixes desenfreadas que fazem do patrimnio uma causa e uma bandeira de luta. Decorrente disso, pergunta-se: papel dos antroplogos hierarquizar as culturas? Os antroplogos nos Conselhos de Patrimnio ou nas agncias governamentais podem selecionar algumas manifestaes culturais em detrimento de outras? Como patrimonializar as diferenas sem trair o prprio conceito de diferena? Como criar colees de manifestaes culturais dignas de representar a nao brasileira, sabendo-se que, no mesmo movimento, estamos tambm praticando o descolecionamento, ou seja, criando colees de manifestaes culturais indignas de representar a nao brasileira? Cabe ao antroplogo este papel de certificador das culturas? Quais os significados para o trabalho antropolgico quando atuamos como mediadores entre culturas especficas e singulares e agncias do Governo Federal que retiram delas fragmentos para metaforizar uma outra totalidade, a nao totalidade que vem sendo construda por agentes especialmente treinados do aparelho de Estado? Como integrar o aparelho de Estado sem perder de vista a premissa bsica e fundante de toda a Antropologia, que a de trabalhar com a diferena e buscar traduzi-la sem hierarquizaes e etnocentrismos? Como lidar com nossos prprios valores, gostos, idiossincrasias quando temos, diante de ns, o poder de certific-los em detrimentos de outros? Por outro lado, como deixar de aproveitar oportunidades de certificar culturas que so nossos prprios objetos de estudo, uma vez que sabemos que elas podem ser boas estratgias para a auto-afirmao e a construo da auto-estima desses grupos? Como fazer isso sem estimular a guerra das culturas num planeta onde a noo de diversidade cultural vem ganhando o significado do multiculturalismo, ou seja, de culturas fechadas como mnadas ou totalidades que, em muitos casos, perdem quaisquer referncias ao objetivo do entendimento humano? Ainda refletindo sobre o caso do grafismo waipi e sem tirar o mrito e a beleza dessa arte grfica, como proceder diante de todas as demais40

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artes grficas das etnias indgenas no Brasil, uma vez que todas elas produzem artes grficas igualmente belas e culturalmente significativas? No estaramos tambm correndo o risco de engessar as manifestaes culturais, congelando-as a partir da imagem cristalizada no registro? Referncias Bibliogrficas ABA. Programa e Resumos. XXIV Reunio Brasileira de Antropologia. Nao e Cidadania. 13 a 15 de julho de 2004. Olinda (PE): 2004. ABA. Programa e Resumos. XXV Reunio Brasileira de Antropologia. Saberes e Prticas Antropolgicas desafios para o sculo XXI. 11 a 14 de junho de 2005. Goinia (GO): 2005. ABREU, Regina. A Fabricao do Imortal - Memria, Histria e Estratgias de Consagrao no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Rocco/Lapa, 1996. __________. Histria de uma coleo: Miguel Calmon e o Museu Histrico Nacional. In: Anais do Museu Paulista, 1994. __________. Sndrome de Museus. In: Encontros e Estudos 2, Funarte, MinC. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. Norfolk: Thetford Press, 1987. ARANTES, A. A. Produzindo o passado. So Paulo: Brasiliense, 1984. CARVALHO, Jos Murilo de. A Formao das Almas. O Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. CALDARELLI, Solange Bezerra. Atas do Simpsio Sobre Poltica Nacional do Meio Ambiente e Patrimnio Cultural Brasileiro. Universidade Catlica de Gois. Goinia. 1996. CHAGAS, M. H uma gota de sangue em cada museu: a tica museolgica de Mrio de Andrade. In: Cadernos de Sociomuseologia, n 13. Lisboa, ULHT: 1999. CLIFFORD, James. Colecionando Arte e Cultura. In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1995.41

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PATRIMNIO, LINGUAGENS E MEMRIA SOCIAL: PROBLEMAS, ESTUDOS E VISES NOCAMPO DA ANTROPOLOGIAJane Felipe Beltro1 Carlos Caroso2

Por que patrimnio? Patrimnio enquanto tema, na Antropologia, candente, especialmente porque proporciona o conhecimento de linguagens diferenciadas e remete memria social, atravs da qual se constroem e se reconstroem as identidades de grupos, de sociedades, de naes e de povos. As chamadas bienais para acolhimento de proposies para organizar grupos de trabalhos nas reunies brasileiras de Antropologia sempre despertam interesse de muitos pesquisadores, que respondem a estas apresentando um grande e diversificado nmero de propostas para organizar grupos de trabalhos, mesas redondas, simpsios, cursos, entre as mltiplas atividades do evento. A diversidade de seus contedos tem dois efeitos aparentemente contraditrios. Se, por um lado, estimula a concorrncia e desperta rivalidades entre grupos e indivduos, por outro traz luz uma dinmica no avano do conhecimento no campo das antropologias, sendo ambos os efeitos de suma importncia para que se compreenda o estado da arte e para que se enriquea o debate. Diante desta realidade, o Conselho Cientfico da Associao Brasileira1 Doutora em Histria pela UNICAMP. Professor Associado do Departamento de Antropologia/ UFPA. Pesquisador II do CNPq. 2 PhD. em Antropologia pela UCLA. Professor Associado do Departamento de Antropologia e Etnologia-FFCH/UFBA. Pesquisador I-D do CNPq. Diretor do Museu de Arqueologia e EtnologiaMAE/UFBA.

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de Antropologia (ABA) encontra grande dificuldade para decidir sobre a programao a ser observada durante os eventos. Por ocasio dos preparativos da 25a Reunio Brasileira de Antropologia (RBA), a escrita se manteve. Na Reunio que se realizou em Goinia, o Conselho da ABA teve uma atitude visionria, valorizando as questes relativas ao patrimnio e acolhendo, em sua programao, dois simpsios intitulados Memria e esquecimento: rastros da ditadura e reconstruo da memria social e Antropologia e Museus: revitalizando o dilogo, uma mesa redonda denominada Antropologia na cidade e polticas patrimoniais, uma oficina sob o ttulo O antroplogo face s novas polticas de patrimnio, trs grupos de trabalho chamados Antropologia, Memria e Narrativas; Educao patrimonial: perspectivas e dilemas; Patrimnio e cultura: processos de politizao, mercantilizao e identidades; e Patrimnio, linguagens e memria cultural, alm de um Colquio sobre Patrimnio Cidadania e Direitos Culturais. Este ltimo foi realizado aps a reunio na cidade de Gois, visando a promover uma apreciao das discusses iniciadas no mbito da reunio de Goinia e a abrir a discusso a novas perspectivas e olhares interdisciplinares, com a presena de antroplogos, arquelogos, muselogos e de outros profissionais que tm como objeto de suas preocupaes e ocupaes o patrimnio histrico-cultural. amplitude de espaos especficos destinados s discusses do tema, somou-se aquela ocorrida nos demais grupos de trabalho que tm relao com ou implicaes e repercusses sobre o tema patrimnio, muito particularmente saberes e prticas, o mote da reunio3 . Todo este conjunto de eventos permite-nos considerar que esta foi a reunio da ABA em que se conferiu maior importncia questo entre todos os eventos promovidos pela Associao, evidenciando pelo menos duas questes: 1) que os problemas e seu estudo ganham crescente importncia no meio acadmico-cientfico; e 2) que os antroplogos, coerentes com tradies de estudo, vem, nos bens patrimoniais, a representao de seu objeto de estudo, estando dispostos a discutir e a compartilhar com outros profissionais o conhecimento e as estratgias para sua proteo, guarda, conservao3 Cf. ABA. 25a Reunio Brasileira de Antropologia. Programao impressa em papel e cd-rom. Goinia, 2006 e ainda LIMA FILHO, Manuel Ferreira & BEZERRA, Mrcia. Os caminhos do Patrimnio no Brasil. Goinia, Alternativa, 2006 publicao lanada durante a 25a RBA.

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e retorno de conhecimento para as comunidades de onde esses bens provm, porque aqueles bens so representaes de culturas, de povos e de sociedades pretritas e contemporneas. Destarte, a crescente corrida ao tema, que se verifica a partir da ltima dcada do sculo XX, traz a possibilidade de tratar o patrimnio e as questes referentes ao mesmo de forma multifacetada e, principalmente, permite identificar a natureza, a formao e a preservao de acervos de bens simblicos. Seu emprego social, sua percepo e valorao, como proposto por ns, coordenadores do Grupo de Trabalho denominado Patrimnio, linguagens e memria social, ainda se fazem urgentes na discusso para encontrar caminhos para por em prtica os efeitos de discusses como esta que se trava no mbito da Reunio Brasileira de Antropologia. Os motivos que nos levaram a propor o Grupo de Trabalho4 para a programao na Reunio foram principalmente de trs ordens. Primeiro, por interessarem-nos as abordagens da configurao dos registros socialmente valorizados e as investigaes sobre os procedimentos relativos preservao aplicada aos itens e aos repertrios assim reconhecidos, pois somos responsveis pela guarda, preservao e curadoria de acervos etnogrficos pertencentes Universidade Federal do Par e Universidade Federal da Bahia. Nosso pensamento era compreender a pesquisa de carter antropolgico acerca das linguagens expressivas, da produo artstica, da criao esttica das instituies e das praxes relacionadas ao campo. Segundo, observando e valorizando a tradio antropolgica, os estudos arqueolgicos e de semiforos nos interessavam sobremaneira, tanto pelo emprego como pelo uso dos mesmos. Terceiro, e no menos importante que os dois motivos anteriores, reservamos espao especial para as polticas de patrimnio que envolvem preservao, guarda, conservao e estratgias de gesto de bens culturais, promoo de exposies, musealizao e concedemos especial ateno, aos estudos sobre polticas de preservao e sobre as relaes entre memria e imaginrio social, to caras aos objetivos do grupo.4 A proposta inicial do Grupo contou com a participao de Ordep Serra, do Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA. Contudo, as restries com relao participao de coordenadores oriundos de uma mesma instituio e Unidade da Federao, afora a restrio referente ao nmero de profissionais na coordenao de GT, fez Ordep debatedor com participao intensa no apenas do debate, mas da prpria coordenao dos trabalhos.

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Resposta ao desafio Lanado o desafio, recebemos as demandas oriundas do Brasil e do exterior. No processo de seleo, acolhemos dezesseis propostas para integrar a programao do Grupo com base no contedo dos ttulos e dos resumos encaminhados. Nem todos os trabalhos inscritos foram apresentados no evento, pois seus autores no se fizeram presentes. Apesar de seis ausncias, discutiu-se intensamente os dez artigos apresentados. A diversidade de questes e de problemas abordados nos trabalhos apresentados favoreceu a discusso, oferecendo suporte s propostas encaminhadas. A discusso acadmica foi feita em um nico dia, compreendendo trs sesses, de modo que os trabalhos foram organizados em conjuntos temticos5 . Para o primeiro conjunto, as comunicaes se organizaram sob o tema do Patrimnio, guarda e extroverso, sendo para este acolhidos os trabalhos apresentadas por Carlos Alberto Etchevarne (UFBA), Patrimnio arqueolgico da Bahia. Breves consideraes sobre o estado atual da questo; por Alejandra Saladino (UERJ) Apropriaes e valoraes do patrimnio arqueolgico brasileiro: a criao do museu de arqueologia de Itaipu; por Luiz Coimbra Nunes (UCG) e Hlida Joane Viana Leite (FCCM), Vinte anos de pesquisa arqueolgica pelo Ncleo de Arqueologia e Etnologia de Marab (FCCM); por Alexandre Fernandes Corra (UFMA), Museu Mefistoflico: significado cultural do tombamento da coleo Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro (1938); por Ordep Jos Trindade Serra (UFBA), Candombl e museus: a memria violentada; e por Andra Lcia da Silva de Paiva (UFRJ), Nos campos das memrias escravas: a necessidade de colecionar para patrimoniar. No segundo conjunto, articulado sob o tema Imagens, memrias e religiosidade, foram includos os trabalhos de Jos Cludio Alves de Oliveira (UFBA), Ex-votos da sala de milagres do Santurio de Bom Jesus da Lapa na Bahia: semiologia e simbolismo no patrimnio cultural; de Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha (UFBA), Teatros da memria, palcos de esquecimentos: culturas africanas e das disporas em exposies; de Xavier Gilles Vatin (UFBA), Patrimnio imaterial, memria social e pesquisa antropolgica: o exemplo do projeto Nzila; de Marcelo5 Os trabalhos e autores referidos no texto esto arrolados nas publicaes do evento indicadas ao final.

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Eduardo Leite (UNICAMP), Vestgios do sculo XIX acervos fotogrficos e (re) construo de identidades; e de Fabola Guimares Aud Ferreira (UCG), Proposta catalogrfica de imagens fixas e sua aplicao no Acervo Fotogrfico Etnolgico do IGPA/UCG. No terceiro e ltimo conjunto de apresentaes, em torno de Identidades, linguagens e patrimnio, foram includos os trabalhos de Rogrio Proena Leite (UFS), Patrimnio e gentrification: a consumio cultural da cidade; de Margarida do Amaral Silva (UCG) e Claudia Helena dos S. Arajo (UCG), A construo do conhecimento no-formal no contexto histrico e cultural da cidade de Gois; de Ana Cristina Elias (UCG), Oficinas de arte indgena sobre papel: espao de interculturalidade e humanizao na casa do ndio em Goinia; de Ana Laura Gamboggi (UAM-I), Futuro represado, futuro destrudo: smbolos em transformao, identidade e patrimnio num caso de deslocamento populacional no nordeste brasileiro; e de Jlio Cesar Schweickardt (FIOCRUZ), O pensamento mdico na belle poque amaznica. Poucas certezas, muitas dvidas... Algumas questes nortearam o debate, alm de tantas provocaes acadmicas inscritas nos artigos apresentados. Uma primeira questo que por si s levanta muita polmica se refere a colees constitudas por fora de ao repressiva, fundada em questes tnicoraciais, que em nada lembram o que compreendemos como pesquisa na Antropologia. Este caso da Coleo Museu de Magia Negra da Polcia Civil do Rio de Janeiro e da Coleo Nin