A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER NOS ROMANCES DE MARIA … · A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER NOS ROMANCES DE...
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A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER NOS ROMANCES DE MARIA VALÉRIA REZENDE
Mateus Savaris Panizzon (UNESPAR)
Jeniffer Thalia do Prado da Costa (UNESPAR)
Resumo
Este trabalho tem como foco refletir sobre a violência contra a mulher nos romances
O voo da guará vermelha (2014) e Outros Cantos (2016), ambos da premiada
escritora brasileira Maria Valéria Rezende. Com efeito, buscar-se-á analisar cenas
em que ocorre a violência física e psicológica contra as personagens femininas nas
obras, como objetivo de identificar de que forma isso acarreta na construção
identitária delas. As personagens femininas dos romances representam situações
acerca da condição feminina que, por séculos, sob o domínio patriarcal, viveu à
sombra e a mercê do homem, vítimas tanto da violência física quanto da simbólica,
como atestam as cenas dos romances que expõem episódios de espancamento.
Palavras-chave: Sociedade patriarcal; violência contra a mulher; Maria Valéria Rezende. Introdução
A escritora brasileira Maria Valéria Rezende tem se destacado na literatura de
autoria feminina contemporânea desde a sua estreia, em 2001, com a obra Vasto
Mundo, e tem sido bastante premiada. Os romances O Voo da guará vermelha
(2014) e Outros Cantos (2016), apesar de representarem a época contemporânea,
apresentam, em determinados momentos, fortes resquícios do patriarcado, ao
colocar em cena personagens femininas marcadas pela violência masculina. Em
Outros cantos, apresenta-se uma condição feminina pautada em preceitos
sertanejos, logo que a história passa, em sua grande parte, no sertão de uma cidade
denominada como Olho D’Água, em que a mulher é vista como um elemento do lar.
Já em O voo da guará vermelha, trata-se de um caso específico, a prostituição.
Desse modo, Irene, que é uma prostituta de meia idade, soropositiva, acaba exposta
a diversos tipos de violência devido, em grande parte, à fragilidade de sua condição
e à extrema miséria que a cerca.
As poucas condições que – personagens prostitutas fictícias e reais –
possuem, levam-nas à extrema vulnerabilidade diante do trabalho que realizam por
necessidade, na maioria das vezes, e vão “aos poucos, perdendo seu ‘corpo’ e seu
‘destino’, pois passam a desconstruir as relações de proteção e direito individual e
coletivo, surgindo, nesse cenário, os fatores de risco” (MOREIRA; MONTEIRO,
2012, p.03).
A partir de um sistema patriarcal vigente e seguido à risca pelas famílias
tradicionais, o poder masculino, entendido como “dominação da classe masculina
sobre a classe feminina”, levou várias mulheres a repressão dentro de seus próprios
lares e até mesmo nas ruas, visto que elas eram tidas “como [sendo] ‘o proletário’ do
homem” (TOURAINE, 2011, p. 16). Diante disso, a mulher foi considerada, por muito
tempo, inferior ao homem, o que desencadeou uma série de violência física e
psicológica. A violência contra a mulher reforça a premissa do sistema patriarcal, em
que, nele, o homem tem poder e direitos sobre o corpo feminino, o que se pode
observar nas obras analisadas.
Uma flor arrancada do jardim: a violência contra a mulher
Os romances Outros Cantos e O voo da guará vermelha apresentam, em seu
enredo, a condição feminina das personagens no ambiente em que estão inseridas,
em que ambas sofrem a violência física. No primeiro, a personagem principal, Maria,
se depara com uma cena de espancamento de um casal na residência deles. Então,
no intuito de fazer com que aquilo cesse, ela resolve interferir, adentrando no
recinto. Já na segunda obra, a vida da personagem Irene torna-se um pesadelo
quando decide ganhar mais uns “trocados” para poder ver seu menino crescer,
outrora cuidado por uma senhora. Irene aceita se relacionar com um novo cliente,
este que não aparentava perigo, mas ele a espanca até a morte.
No romance Outros Cantos, a personagem Maria decide fazer uma
caminhada pelo sertão, a fim de explorar mais o ambiente no qual estava inserida.
Quando estava decidida a voltar para a casa, ela escuta “os gritos desesperados de
uma mulher, palavras entrecortadas por ais e gemidos, ‘Para, pelo amor de Deus,
não me machuque, não me mate que eu não fiz nada’, acompanhados pelo som de
pancadas e outros gemidos em tom mais grave” (REZENDE, 2016, p. 124). Ao se
aproximar da casa de onde vinham os gritos, Maria ouve, novamente, a súplica da
mulher pela vida. Em um momento de impulso, a narradora-personagem invade a
residência do casal para defender a mulher que estava sofrendo as agressões,
pediu para que o homem parasse imediatamente, e, nesse momento, a esposa
agredida argumenta contra ela: “Não se meta, sua enxerida, fora daqui. É meu
marido, eu sou a mulher dele, ele me bate quando quiser, e você não se meta nisso”
(REZENDE, 2016, p. 125). Desse modo, percebemos a submissão da mulher, nesta
cena, até mesmo em um momento de violência física, em que ela aceita a condição
a qual está submetida e acredita que as agressões são naturais, provenientes da
estrutura familiar que está inserida. Essa estrutura familiar, presente no romance, se
dá pelo fato de que todas as famílias representadas nele fazem parte de um sistema
patriarcal, em que “as mulheres são desestabilizadas por uma ‘estrutura’ social, por
relações de poder e instituições que lhes impõem normas” (TOURAINE, 2011, p.
34), e essas normas também regem o comportamento feminino dentro do lar, o que
expõe a mulher a uma violência exacerbada e a faz aceita-las por conta da suposta
superioridade do homem que lhe é imposta. Esta estrutura social se confirma
quando Maria volta para casa e conta a Fátima, mulher que vive sob os preceitos
sertanejos idênticos aos da outra que foi espancada, o que acabou de presenciar e
ela repete o ditado popular de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a
colher”. Ao tentar protestar, Fátima é enfática ao reiterar os pressupostos que regem
a dominação masculina: “É costume, ninguém morre disso não. O meu homem
nunca me bateu, é doce como mel, mas a gente não tem nada a ver com o que se
passa dentro da casa dos outros. Aprenda” (REZENDE, 2016, p. 125). Diante disso,
Maria, que não fazia parte daquele ambiente e não seguia as normas estabelecidas
pela comunidade, estranhou e reprovou totalmente aquela situação: “Calei-me, e ali
fiquei, escorada na parede, um nó doloroso apertando minha cabeça e meu
coração” (REZENDE, 2016, p. 125). As agressões vividas por aquela mulher só
reforçavam ainda mais o machismo que dominava aquele ambiente.
Já no romance O voo da guará vermelha, a violência sofrida por Irene
acontece quando a mesma decide ganhar mais dinheiro para ver seu filho crescido.
Irene aceita se prostituir com um homem que aparentava ser “bom moço”, mas faz
da vida dela um pesadelo, quando o mesmo acomete à moça uma série de
agressões: “Irene vê-se rosada, (...) rosados o espelho e os ladrilhos da parede
refletida, que o véu de sangue injetado lhe torna vermelha a vista do único olho
aberto. O outro é uma mancha roxa. O roxo por toda parte, no peito, nas costas,
coxas” (REZENDE, 2014, p.155). Ela apanha sem tentar se defender, na eterna
espera de que Rosálio, seu cliente fiel e amado, a salve, porém, ele a encontra e a
pega em seus braços já sem vida. É perceptível que, tanto na mulher “do lar”, como
na “mulher da vida”, a figura feminina “é vítima não só de um agressor, mas de uma
prática cultural” (GOMES, 2013, p.05) que há muito fora imposta.
Considerações finais
As personagens femininas, das obras em questão, que sofrem a violência
física constituem-se em espaços distintos, pois enquanto temos uma que está
reclusa ao ambiente doméstico sendo agredida pelo marido, a outra também sofre
uma série de agressões no espaço urbano, por um homem desconhecido. Portanto,
“o femicídio pode ser interpretado como parte da cultura patriarcal, ou como um
aprisionamento simbólico da mulher a essa cultura” (GOMES, 2013, p.6-7), que
sempre vai julgá-la conforme as normas que regem a conduta do que ela deve
adotar durante toda a sua vida. Referências GOMES, Carlos Magno. Marcas da violência contra a mulher na literatura.
Revista Diadorim/Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de JANEIRO.
Volume 13, Julho 2013. [http.//www.revistadiadorim.letras.ufrj.br]
MOREIRA, Isabel Cristina Cavalcante Carvalho; MONTEIRO, Claudete Ferreira de Souza. A violência no cotidiano da prostituição: invisibilidades e ambiguidades.
Rev. Latino-Am. Enfermagem [Internet]. set.-out. 2012 [acesso em: 18 de mar. de
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REZENDE, Maria Valéria. Outros cantos. Rio de Janeiro: Al- faguara, 2016.
REZENDE, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. Rio de Janeiro: Objetiva,
2014. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. TOURAINE, A. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás. 3ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2011.