A Violência na Adolescência: Um Problema de Saúde Pública *

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ANÁLISE A Violência na Adolescência: Um Problema de Saúde Pública * Maria Cecília de Souza Minayo ** * Conferência proferida no Fó- rum de debate sobre a Adoles- cência. Academia Nacional de Medicina RJ. ** Professora Visitante da Ensp—Fiocruz. Este artigo trata da problemática da violência na adolescência, fenômeno extremamente grave hoje, do ponto de vista social e de saúde pública. Procura-se mostrar que a "adolescência" como etapa biológica da vida possui, na sua configuração, um peso social fundamental. Não existe adolescência em geral, assim como não há violência em geral. Tomando como base a classificação da Organização Mundial da Saúde, constata-se que as "causas externas" constituem a primeira causa de morte na faixa etária de 5 a 14 anos (46,5%) e dos jovens de 15 a 29 anos (64,4%), no conjunto das causas de mortalidade desses grupos de idade. INTRODUÇÃO Então comecei a questionar a possibilidade de falar dos jovens do mundo, ou da juventude con- temporânea: o que existe de comum no adoles- cente camponês, seminu, desnutrido, estranho em sua terra, na terra de seus antepassados, errante e náufrago de sua própria cultura, com o jovem de Boston, Los Angeles ou com o adolescente dos subúrbios da cidade do México, Bogotá e Buenos Aires? Que tinha em comum esse garoto de cabelo comprido, moreno, fraco e adormecido para sempre no anfiteatro de Manágua (com as mãos crispadas pelo último disparo e um infindá- vel sorriso de incredulidade ante a morte) com aquele outro jovem que vi entrar no hospital de Nova York, para ser tratado de um problema de superalimentação (excesso de proteínas, vita- minas, etc )? Muito pouco. Realmente muito pou- co. André Vernot É muito importante que, num Fórum de debate sobre a saúde do adolescente, a questão da violência

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ANÁLISEA Violência na Adolescência: Um Problema deSaúde Pública *

Maria Cecília de Souza Minayo **

* Conferência proferida no Fó-rum de debate sobre a Adoles-cência. Academia Nacional deMedicina — RJ.

** Professora Visitante daEnsp—Fiocruz.

Este artigo trata da problemática da violência naadolescência, fenômeno extremamente grave hoje, doponto de vista social e de saúde pública.Procura-se mostrar que a "adolescência" como etapabiológica da vida possui, na sua configuração, umpeso social fundamental. Não existe adolescência emgeral, assim como não há violência em geral.Tomando como base a classificação da OrganizaçãoMundial da Saúde, constata-se que as "causasexternas" constituem a primeira causa de morte nafaixa etária de 5 a 14 anos (46,5%) e dos jovensde 15 a 29 anos (64,4%), no conjunto das causasde mortalidade desses grupos de idade.

INTRODUÇÃO

Então comecei a questionar a possibilidade defalar dos jovens do mundo, ou da juventude con-temporânea: o que existe de comum no adoles-cente camponês, seminu, desnutrido, estranho emsua terra, na terra de seus antepassados, errantee náufrago de sua própria cultura, com o jovemde Boston, Los Angeles ou com o adolescentedos subúrbios da cidade do México, Bogotá eBuenos Aires? Que tinha em comum esse garotode cabelo comprido, moreno, fraco e adormecidopara sempre no anfiteatro de Manágua (com asmãos crispadas pelo último disparo e um infindá-vel sorriso de incredulidade ante a morte) comaquele outro jovem que vi entrar no hospital deNova York, para ser tratado de um problemade superalimentação (excesso de proteínas, vita-minas, etc )? Muito pouco. Realmente muito pou-co.

André Vernot

É muito importante que, num Fórum de debatesobre a saúde do adolescente, a questão da violência

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seja colocada, embora essa abordagem no campo dasaúde seja ainda hoje muito limitada. A análise damorbi-mortalidade é feita através da Classificação In-ternacional das Doenças da Organização Mundial daSaúde (CDD — 9, 1975) como "causas externas": cau-sas não-naturais — lesões e envenenamentos — queafetam as pessoas, bem como todos os tipos de aciden-tes e violências que originam essas lesões.

A mortalidade por causas externas constitui-sehoje no terceiro grupo de causas no conjunto da morta-lidade geral no Brasil, portanto como um grave proble-ma de Saúde Pública. É esse mesmo grupo de causasque explica, respectivamente, 46,5% das mortes nafaixa etária de 5 a 14 anos e 64,4% da morte dosjovens de 15 a 29 anos (Szwarcwald, 1989), sendonesses segmentos etários a primeira causa de morte.São dados estarrecedores que apresentamos em tabelas,a seguir, como pano de fundo para uma reflexão maisreveladora.

Evidentemente que esse grupo de causas não con-segue dar conta de todos os tipos de violência quenossa consciência social conhece. No entanto, consti-tuem parâmetros importantes para pensarmos, do pontode vista da saúde, tanto a "previnibilidade" comoa "previsibilidade" das ações, como chama a atençãoMefio Jorge (1988).1) A etapa da vida humana de maior risco de mortes

por causas violentas é a d e 1 0 a 19 anos, portantoa adolescência.

2) Os meninos estão sempre mais vulneráveis que asmeninas, numa relação de 10 para 1 a 2.

3) Os homicídios e acidentes de trânsito concorrementre si como motivos para a morte dos adolescentese, curiosamente, os suicídios — que nas nossas esta-tísticas não possuem um grau de significância consi-derável — também ocorrem com maior freqüênciano grupo masculino de 10 a 14 anos.

4) Dentro dos dois sexos, a mortalidade por causasexternas é crescente nas faixas de mais idade.

5) A mortalidade por homicídio na adolescência, noBrasil, tem sua relevância maior no eixo Rio—SãoPaulo, as duas maiores metrópoles do país, e é preo-cupante e crescente em Recife.

6) A magnitude da mortalidade por causas externasem adolescentes é extremamente alta nos municípiosdas capitais dos estados das regiões Sudeste e Sule é muito mais significativa nas áreas urbanas queno interior.

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Como se pode ver, os quadros e tabelas de morta-lidade sobre o tema que aqui nos preocupa já podemser montados com uma certa precisão, embora todosos epidemiologistas se queixem das dificuldades queencontram para estabelecer a fidedignidade dos dados.Do ponto de vista da morbidade e do custo social,pouco se tem conseguido. Vários autores calculam quea morbidade gerada pela violência chega a ser 200a 400 vezes maior do que a mortalidade (Mello Jorge,1988, 16).

DESVENDANDO OS DADOS

Posto o problema, permito-me dar mais um passoe dizer que esses dados estarrecedores ainda não reve-lam com toda a crueza as contradições e conflitosque os permeiam. Como costuma acontecer com dadosaglomerados, esses não nos permitem saber: quem estámorrendo, quem está ficando inválido e doente pelas"causas externas"? Como isso está ocorrendo? O "on-de" está relativamente descrito. Ou seja, embora nocampo a violência das relações de poder, de proprie-dade e de sobrevivência esteja ceifando muitas vidasde crianças e jovens, é nas cidades, particularmentenas grandes metrópoles, que a morbi-mortalidade porcausas externas se constitui no problema n° 1 de SaúdePública para a adolescência.

É por isso que neste trabalho darei ênfase aoshomicídios de adolescentes e afirmarei que a vítimapreferencial desse quadro de violência é o jovem não-branco, pobre, sexo masculino, idade média 15-18anos, residente nas periferias ou favelas urbanas, assas-sinado, geralmente, por projétil de arma de fogo edenominado "marginal" nos registros policiais.

Para conseguir esse perfil e começar a analisarcom mais profundidade os dados estatísticos, foi neces-sário fugir do convencional e buscar noutra literatura(que hoje está crescendo no país) a chave do problema.Os dados estão no Dossiê do Menor realizado paraa Defense for Children International, órgão das NaçõesUnidas com sede em Genebra, que contém uma investi-gação extra-oficial sobre o extermínio dos meninosde rua no período de janeiro de 1987 a julho de 1988nos municípios da Baixada Fluminense (Nova Iguaçu,Caxias, Nilópolis e São João de Meriti) e Volta Redon-da, com dados fornecidos pela Prefeitura, InstitutosMédico-Legais e delegacias de polícia. Esses dadosestão também na coletânea organizada pelo Ceap (Cen-tro de Articulação de Populações Marginalizadas) quereúne informações e análises relativas ao extermíniode crianças e jovens nas principais regiões metropoli-tanas do país. Encontram-se, ainda, na pesquisa doIbase (Instituto Brasileiro de Pesquisas Sociais e Eco-

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nômicas) Crianças e Adolescentes no Brasil: A VidaSilenciada, que analisa e compara os dados de mortali-dade nesse grupo social através de informes dos Insti-tutos Médico-Legais, Imprensa e Ministério da Saúde,para 16 regiões do Brasil. O recente livro-denúncia,uma verdadeira "etnografia" do sofrimento das crian-ças e jovens brasileiros A Guerra dos Meninos coroaum grito da minoritária consciência nacional sobre oprocesso crescente e galopante do "necrose" da socie-dade que está se suicidando na morte dolorosa e impu-ne da juventude pobre do país.

Quero deixar bem claro que este trabalho certa-mente não trará nenhuma novidade, apenas tentaráreforçar algumas linhas de raciocínio que felizmenteatravessam hoje o pensamento intelectual do país. Essepensamento questiona o saber neutro e articula a ciên-cia à vida e, ao fazê-lo, põe o dedo na ferida sangranteda sociedade, a partir do altar de qualquer cátedrae de qualquer saber técnico, para torná-lo compro-metido com as mudanças sócio-econômicas, políticase culturais do país. Vamos aos indicadores:

Dados levantados no período de 1984 a 1989em Institutos Médico-Legais em dezesseis estados bra-sileiros pelo Ibase registraram 1.397 assassinatos demenores de 18 anos. Essa fonte junto com o estudode manchetes e notícias de jornais apontam para umatendência ascendente no processo de extermínio dessesadolescentes e crianças no período de 1984 a 1989.O crescimento em valores absolutos foi da ordem de157% para os dados colhidos nos IMLs e 21 vezespara notícias de imprensa. Em 1987 e 1988 há umaumento particularmente significativo nos registros(Nascimento, 1990, 28).

A mesma pesquisa assinala que, dos 1.397 casosde homicídio registrados nos Institutos Médico-Legais,87% são de jovens do sexo masculino, 74% possuemidade entre 15 e 18 anos, 12% são brancos, 52%declaradamente negros e 36% sem informação. Essesperfis são constantes ao longo do período de 1984a 1989. Os motivos registrados como provocadoresde morte dos menores que emergem são: roubo, tóxico,ação de esquadrões e justiceiros, estupros e outros.Esquadrões aparecem como o principal autor dos assas-sinatos desses adolescentes, sendo responsável por25% das mortes.

Uma investigação mais circunstancial das mortesreúne informações que se somam coerentemente entredados dos Institutos Médico-Legais, da imprensa edos movimentos sociais. Elas revelam que a maioriados jovens assassinados são encontrados em áreas dis-tantes das periferias urbanas, com mãos amarradas poralgemas ou fio de nylon, marcas de queimaduras decigarro, hematomas, várias perfurações de bala, sempre

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à queima-roupa. Geralmente são assassinatos após se-qüestro e torturas.

Ao evidenciar aqui esses dados, minha intençãonão é desconhecer o quadro geral das causas externas,sobretudo os acidentes de veículos automotores queceifam impiedosamente as vidas de nossas criançase jovens. Estão pouco estudadas as especificidadesdos grupos sociais vitimados pela brutalidade nas rela-ções sociais que se expressam de forma violenta notrânsito. Sabemos que as maiores vítimas são pedes-tres , em segundo lugar vêm os passageiros e em tercei-ro, os motoristas. Isso nos induz a pensar que sãotambém os adolescentes pobres os principais danifica-dos. Prefiro, porém, voltar aos dados de homicídios,pela consciência de que aí hoje se expressa um dosproblemas sociais mais profundos da sociedade brasi-leira: desfecho desesperado da cronificação da desi-gualdade e da exclusão.

Quem são esses adolescentes? Assim descreve fe-nomenologicamente o grande médico-pediatra-educa-dor, Lauro Monteiro Filho:

A população já conhece (e desconhece) estes me-ninos. Estão em todos os bairros, andam andrajo-sos, em bando. Praticam pequenos furtos, pedem,vendem frutas e balas e se oferecem para passarflanela nos vidros dos carros e nos sapatos. Noseu dia-a-dia são explorados por marginais deso-cupados (e por policiais: acréscimo nosso). Dor-mem aglomerados uns aos outros, junto a respira-douros de transformadores de luz e metrô ouem qualquer lugar que possam encontrar parafugir do frio e da violência da noite. Comemo que conseguem. Urinam e evacuam onde po-dem. As pessoas os temem, os desprezam e osignoram. Alguns vivem longe de suas famílias,há anos. Outros estão nas ruas, obtendo algumganho para levar para casa (...) Têm em média14 anos, 80% são do sexo masculino e 80%são negros e pardos. São franzinos — 70% estãoabaixo da media brasileira em peso e 60% emaltura, 80% têm pais ausentes, desconhecido oumorto. Apesar da desenvoltura em que vivem,muitos chupam dedo (e até chupeta) têm pesadeloe medo de escuro (...) Que adultos estão sendoforjados sob tamanho abandono social, sofrimen-to físico e emocional? Cada criança dessas éuma demonstração da inoperância do Estado edo egoísmo da Sociedade.*

Dimenstein dá alguns elementos que complemen-tam essa configuração. Esses adolescentes são a pontamais frágil e reveladora da face necrosada da criseCadernos de Saúde Pública, RJ, 6 (3): 278-292, jul/set, 1990

*Jornal do Brasil, Rio de Janei-ro, 1o caderno, 20/5/90) .

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social brasileira. Muitos deles não têm e nem nuncativeram qualquer documento de identificação civil, ge-rando poucas estatísticas. Qualquer tentativa de enu-meração tem que ser subestimada, revelando o descasooficial com o problema. Há informação de que os me-nores mortos estão indo para os cemitérios clandes-tinos, portanto sem passar pelos Institutos Médico-Legais. Cada vez mais, diz Dimenstein, cresce a crimi-nalidade infantil, e cada vez mais as crianças sãovítimas de extermínios, que banalizam a pena de mortecom julgamento e execução sumárias. O assassinato,porém, é apenas o grau mais elevado de um processode rejeição do menor, suspeito de ser infrator. Antesdo extermínio, há uma fase intermediária, caracte-rizada pela rotina da tortura, dos maus tratos nasdelegacias, nas ruas e nos chamados centros de recu-peração como Funabem e Febem (Dimenstein, 1990,11-14).

A DINÂMICA SOCIAL NA VIOLÊNCIA E NAADOLESCÊNCIA

A situação aqui colocada tem uma mola propulso-ra: 44% das crianças e adolescentes no Brasil, segundodados da Unicef, vivem em famílias com uma rendaper capita de meio salário mínimo. Desse total, metadevive em famílias com um quarto de salário mínimoper capita. São 29 milhões de crianças e adolescentesem situação de miséria absoluta, filha da violênciaestrutural, campo propício para a experiência da delin-qüência.

Muito se tem falado da relação entre o urbanoe a violência, entre as periferias urbanas, favelas ea delinqüência. Na nossa consciência distorcida, inclu-sive, existe uma relação linear entre esses termos.Desconhecemos que esses espaços são locais de mora-dia das classes trabalhadoras. Em sua grande maioria,esse grupo social vive dentro dos mais estritos códigosda moral social que elege a vida de trabalho e defamília como ideal. Sua adesão às normas ocorre, ape-sar de sofrer a mais profunda discriminação e exclusãoem termos de renda e benefícios da vida urbana, trans-formando-se em testemunhos vivos do processo desi-gual de distribuição da riqueza no país.

Foi na década de 50 que o fenômeno da urbaniza-ção no Brasil atingiu seu pleno ritmo de expansão.Para muitos trabalhadores, a concentração da proprie-dade da terra, a política agroindustrial intensiva paraexportação, a limitação de créditos e serviços tornaramquase impossível a vida no campo, detonando o desem-prego agrícola e a degradação progressiva dos recursosindispensáveis à subsistência rural.

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Esse processo provocou no país, do interior paraos centros urbanos, um fluxo migratório que, alémde todas as questões materiais, se alimentou de umafalsa imagem promissora das cidades para os trabalha-dores, onde repousariam as esperanças de trabalho,educação para os filhos, moradia, mobilidade social,prosperidade, entendida, esta última, pelo ideal deconsumo.

O resultado desse processo migratório intenso seconfigura hoje nas nossas favelas e periferias sob umaausência quase total de serviços básicos, onde umagrande porção da população trabalhadora constitui-seem exército de reserva, privada dos mais comezinhosdireitos de cidadania. Convivem sob o signo da maisprofunda violência estrutural da desigualdade econômi-ca, e aí grassam fome, doenças próprias da pobrezae dificuldade de acesso à educação, à saúde e ao traba-lho. A maioria da população que habita esses espaçossão jovens de 2a e 3a geração dos imigrantes comum "possível social" restrito entre as atividades debiscate, subemprego e a delinqüência. A face do Esta-do que essa população jovem conhece é o braço duroe repressivo da força policial, que, inclusive, recrutano seu próprio meio os elementos que os coíbem. Suasrelações familiares são geralmente marcadas pela rup-tura e pelo conflito, pelas dificuldades da transiçãocultural devido ao fato da cosmologia rural paternanão mais responder à realidade atual. Em seu lugar,os jovens vão reconstruindo com elementos da tradiçãouma subcultura de classes, marcada pelas contradiçõese conflitos que vivenciam. Além dos aspectos de mu-dança no modo de ver o mundo, há um uso competitivodo espaço físico no lar sempre restrito, há pouca possi-bilidade de assistência material e afetiva dos pais,pelos baixos salários e condições de trabalho, o quegeralmente obriga as crianças e os jovens precocementea assumirem sua manutenção e, muitas vezes, a dafamília.

Como mostra Zaluar, em seu trabalho A Máquinae a Revolta, entre a vivência com o salário mínimo,a ética do trabalho legal e a delinqüência das quadrilhasque promete vida mais fácil e dinheiro no bolso, estáa opção de muitos adolescentes que engrossam hojenossas estatísticas de mortes violentas.

A culpa é do "urbano"? A culpa é do "processomigratório"? A culpa é das "famílias"? Onde estáo culpado?

Parece-me que seria ingênuo desconhecer que portrás de toda essa situação existe um processo de forma-ção social que hoje revela de forma gritante, comonum flash, a cronificação da situação de miséria quese contrapõe à opulência de uma minoria privilegiada;de exclusão social que privilegia com equipamentos

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urbanos e direitos apenas uma parcela da população;de discriminação ideológica violenta que escolhe,consciente ou inconscientemente, quem deve ser equem não é na sociedade brasileira. Os jovens candida-tos ao extermínio só têm para si o hoje e o agora,um hoje e um agora marcados pela dor, pela perseguiçãoe pelo medo.

A VIOLÊNCIA E A ADOLESCÊNCIA ENQUANTOPROCESSO SOCIAL

O desenvolvimento dessa reflexão até agora nosleva a alguns pontos, a meu ver, importantes paraa articulação entre violência e o fenômeno da ado-lescência.

Muitos cientistas têm abordado a adolescênciacomo fenômeno biológico, uma etapa da vida humana,relativamente demarcável, na qual o corpo da criançafaz sua maravilhosa transformação para a vida adulta.Gostaria aqui de romper o mito de que todos os indiví-duos passariam por fases naturais, divididas em infân-cia, adolescência, vida adulta e velhice. Ainda quedo ponto de vista biológico possamos dar esses cortes,é necessário destacar o forte conteúdo social atribuídoa essas etapas, refletindo a própria organização e com-plexidade das diferentes culturas.

Mautner tenta sintetizar a configuração ideológicada adolescência na sociedade ocidental nos seguintestermos:

um período de fermentação, de escolha, um pe-ríodo onde não se cobram maiores compromissos.O adolescente ainda não casou, ainda não temfilhos, não se comprometeu com uma profissão,não é completamente responsável pelo estilo devida que tem e nem dispende os esforços necessá-rios para manter aquele estilo. Ele ainda podemudar de maneira de viver. Ele ainda está elabo-rando valores. (Mautner, s/d., 33).É muito difícil pensar, conclui a autora, que al-

guém ou algum grupo possua tantos privilégios. Maisque isso, parece-me idealista falar da adolescência emabstrato como está sendo freqüentemente colocado nasabordagens biopsíquicas, onde os caracteres funcionaise subjetivos são pensados com paradigmas generali-zantes, retirados certamente das concepções dominan-tes de "ser humano", de "indivíduo e de "normasocial".

Haveria alguma possibilidade de semelhança entrea configuração citada por Mautner e aquela que aquiconcluímos sobre os adolescentes que hoje engrossamnossas estatísticas de homicídio? Sem ir ao extremo,que haveria de comum entre os citados por Mautnere os filhos dos trabalhadores que muito cedo ingressam

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nas fábricas, no comércio ou assumem as atividadesagrícolas para sobreviverem? Até sua configuraçãobiológica se diferencia, como nos faz notar Monteiro,na sua tentativa de descrição dos meninos de rua.(Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1° Caderno,20/5/90).

Numa formação social como a nossa, marcadapela divisão de classes e por uma complexa rede deorganização social, a adolescência tem que ser com-preendida dentro das especificidades históricas, socio-econômicas, políticas e culturais. Ao tomar a questãoda violência associada à adolescência no Brasil, essasvariáveis são fundamentais, mesmo porque, se nãoexiste "adolescência em geral", não há também "vio-lência em geral".

Para efeitos operacionais, costumamos classificara violência brasileira em três categorias:

a) a violência estrutural, como aquela que nasce nopróprio sistema social, criando as desigualdades esuas conseqüências, como a fome, o desemprego,e todos os problemas sociais com que convive aclasse trabalhadora. Estão aí incluídas as discrimi-nações de raça, sexo e idade. Cuidadosamente vela-da, a violência estrutural não costuma ser nomeada,mas é vista antes como algo natural, a-histórico,como a própria ordem das coisas e disposições daspessoas na sociedade.

b) a violência revolucionária ou de resistência, comoaquela que expressa o grito das classes e gruposdiscriminados, geralmente de forma organizada,criando a consciência da transformação. Do pontode vista dos dominantes, as formas de resistênciae denúncia são vistas como insubordinação, desor-dem, irracionalidade e disfunção. O debate sobrea legitimidade ou não da violência revolucionáriatem atravessado a filosofia da história.

c) a delinqüência seria uma terceira forma de violênciapresente em nossa sociedade. Compreende roubos,furtos, sadismos, seqüestros, pilhagens, tiroteios en-tre gangs, delitos sob o efeito do álcool, drogasetc. Essa é a forma mais comentada pelo senso co-mum como violência. E importante entender quea delinqüência não é um fenômeno natural e muitomenos pode ser explicada pela conduta patológicados indivíduos e muito menos ainda como atributodos pobres e negros. O aumento da criminalidadese alimenta das desigualdades sociais, da alienaçãodos indivíduos, da desvalorização das normas e valo-res morais, do culto à força e ao machismo, dodesejo do lucro fácil e da perda das referências cul-turais.

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Qualquer forma de violência, porém, tem que servista em rede. O assassinato de adolescentes suposta-mente delinqüentes tem que ser articulado com a vio-lência estrutural que lhes limita o "possível social";com a violência do Estado cuja face repressiva é quasea única que esses jovens conhecem; com a violênciaorganizada dos grupos de narcotráfico que lhes ofere-cem vantagens imediatas; com a violência individualde cada um que tenta se defender, numa sociedadeonde os direitos humanos e civis são quase um sonhoa conquistar.

CONCLUSÕES

Para nós, profissionais de saúde, é muito impor-tante refletir os limites e a amplitude do tema daviolência no campo em que militamos, enquanto cien-tistas e enquanto técnicos dedicados aos serviços. Deum lado, cresce no país a necessidade de adequarmosas instituições, os recursos humanos e as prioridadespara atender às mudanças no quadro geral da mortali-dade, entre elas, a forte incidência da mortalidadepor causas externas na realidade do setor.

Em relação à adolescência, é necessário ter emconta o fato estarrecedor das causas externas no perfilde mortalidade nas faixas etárias de 10 a 19 anose, nessa configuração, o peso dos homicídios e aciden-tes de trânsito. Nos homicídios, as vítimas são prefe-rencialmente os jovens de 10-19 anos, sexo masculino,negros e pobres. Os acidentes de trânsito matam osjovens de todas as faixas de renda, mostrando a cruel-dade das relações sociais, instrumentais, machistas edesrespeitosas, que se exercem no anonimato das ruas.

O quadro social que aqui analisamos mostra-nosque, além da militância técnica, somos chamados, co-mo profissionais de saúde, a agir dentro de uma posturade "previnibilidade" e "previsibilidade". Os principaisdeterminantes que matam e adoecem nossos adolescen-tes estão fora dos procedimentos estritamente médicos.Mas não nos eximem de uma atitude ativa e solidáriacom os movimentos sociais que se organizam na buscade mudanças muito profundas no país. Porque todossabemos que a violência na adolescência ou contraa adolescência tem a cara adulta da violência socialbrasileira.

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The present article deals with the problem of violencein adolescence, an extremely serious problem from thesocial and public health point of view.On attempt is made to show that "adolescence" asa biological stage of our lives, has a fundamentalsocial weight in its configuration. There is no generaladolescence, just as there is no general violence.Based on the classification of the World HealthOrganization, it was found out that "external causes"constitute the major death cause in age groups of 5-14(46,5%) and 15-29 (64,4%)in the overall death causesamong these age groups.

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