A Vingança Do Riso - Daniela Mussi (Blog Convergência)

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Texto de Daniela Mussi sobre o riso.

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A vingana do riso

janeiro 11th, 2015Comentrios desativadosDaniela Mussi,de Paris

As definies que tendem a fazer do cmico uma relao abstrata percebida pelo esprito entre as ideias, contraste intelectual, absurdo sensvel, etc., mesmo convenientes realmente todas as formas do cmico, no explicam em nada por que o cmico nos faz rir. De onde viria, com efeito, esta relao lgica particular, to evidente, que nos contrai, nos dilata, nos sacode, enquanto todas as outras deixam nossos corpos indiferentes? () Para compreender o riso, preciso devolv-lo ao seu habitat natural, que a sociedade; preciso, sobretudo, determinar sua funo til, que uma funo social. (Henri Bergson.Le rire, 1900)Oh juventude heroica do mundo! Com que alegria prdiga ela versa seu sangue na terra miservel. () Destas guerras, eu sei, os chefes de Estado, que so seus autores criminosos, no ousam aceitar a responsabilidade; cada um se esfora furtivamente para empurrar a carga ao adversrio. (Romain Rolland. Au-dessus de la mle, 1914)

Sobre o risoNa virada do sculo XIX para o XX, Henri Bergson dedicou alguns artigos, depois reunidos em um livro, ao tema do riso. Pormenorizado para a maioria dos filsofos, o cmico ganhava importncia para o filsofo francs por sua natureza especfica e verdadeiramente humana: no h nada cmico fora daquilo que verdadeiramente humano. Uma paisagem pode ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; ela no ser nunca risvel (BERGSON, 1919, p. 3). A capacidade de rir e de fazer rir revelaria um momento particularmente sublime, capaz de diferenciar a humanidade de qualquer outra espcie animal e, justamente por isso, deveria adquirir importncia central na reflexo filosfica.

Para entender o riso, dizia Bergson, seria preciso, ainda, compreender ainsensibilidadeque o acompanha (idem, p. 4-5). O filsofo colocava o riso ao nvel da inteligncia pura, em que toda realidade pode ser estranhada, o momento em que todo e qualquer drama pode se converter em comdia. Por isso, dizia, no h maior inimigo para o riso do que a emoo (p. 4-5). A emoo faz as pessoas mesclarem sua inteligncia ao unssono da vida, onde todos os acontecimentos se prolongam em ressonncia sentimental e, assim, a perderem a capacidade de se diferenciar da prpria realidade e, portanto, de rir dela. Assim, com o avanar da inteligncia, o choro se extinguiria, mas o riso no (idem, ibidem). A equivalncia entre riso e inteligncia, para Bergson, se associava ao convite ao espectador para exercitar um olhar desinteressado, indiferente, o nico capaz de transformar os dramas em comdia (idem, p. 5).

Esta anestesia momentnea do corao, porm, seria ainda insuficiente para o alcance do riso, j que no possvel gozar o cmico em uma situao de isolamento (idem, p. 6). Para Bergson o riso humano e inteligente, mas tambm, e principalmente, coletivo. O carter relacional do cmico, destacado pelo filosfico, revelava as dimenses proporcional e funcional deste. Afinal, a inteligncia uma condio essencial para o riso, mas no suficiente. preciso olhar para o pblico que ri ou que no ri para entender o cmico, localiz-lo socialmente, culturalmente e politicamente.

Charlie HebdoA reflexo proposta por Bergson, em oposio a uma leitura psicolgica ou obscurantista, do riso ajuda a pensar o papel de uma srie de atividades culturais, a dimension-las quanto ao seu pblico e contexto social e poltico. Surgida em 1960, a revista satrica parisienseHara Kiri journal bte et mechant [Hara Kiri. Revista estpida e malvada]fez parte do ambiente cultural que preparou as lutas de maio de 1968: fortemente libertrio, antipoltico (no sentido de antiestatal e fortemente crtico aos partidos e instituies) e anticlerical. Muitos de seus colaboradores possuam vnculos polticos com organizaes de esquerda e libertrias. Seu carter polmico rendeu algumas proibies ao longo dos anos 1960 e uma proibio permanente em 1970, quando a revista publicou uma capa em que satirizava a morte de Charles De Gaulle.

A censura estatal revista daHara Kirifoi o contexto em que surgiu aCharlie Hebdo. Para sobreviver editorialmente, esta emprestou o nome de outra revista da poca, aCharlie Mensuel, nascida em 1969 e tambm dedicada caricatura libertria, responsvel por introduzir pela primeira vez na Frana as tirinhas e personagens dePenauts, do americano Charles Schulz. A partir de ento, a Charlie Hebdo circulou at 1981, quando foi fechada por falta de recursos para ser retomada em 1992.

Esta nova gerao da Charlie Hebdo envolveu a participao de antigos e novos cartunistas. Esse foi o contexto da entrada do cartunista Stphane Charbonnier na revista Charlie Hebdo. Charb, como conhecido, ento com vinte e poucos anos, vinha de uma trajetria no interior do Partido Comunista Francs, cuja afinidade parece ter mantido at o final da vida. Em todo o caso, esta retomada no pode se manter alheia queda do Muro de Berlim e ao fim da Unio Sovitica. Apesar da vitria popular sobre o estalinismo, a rpida restaurao capitalista e a crise das organizaes de esquerda e ativistas radicais ao redor do mundo impactou profundamente tambm aCharlie Hebdo.

A escalada do anticlericalismo de sua linha editorial acompanhada de um forte elitismo, um isolamento crescente que se expressa na relao com seu pblico: cada vez mais invisvel, no identificvel.Charliediz rejeitar qualquer ponto de vista, ao mesmo tempo em que certas presses ideolgicas e administrativas ganham espao na revista, especialmente depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque. Seus representantes no aceitam falar de islamofobia, j que suas charges que retratam a religio mulumana so, nas palavras de Philippe Val, em uma entrevista na televiso, ideias fortes para fazer rir.

O humor contra os poderososSe retomamos as ideias de Bergson a respeito do riso, podemos facilmente justificar o humor deCharlie Hebdo. Ele se insere em uma tradio bastante especfica, fortemente libertria e erudita, em busca incessante por um ambiente no qual todo riso possa ser possvel. Porm, como notara Bergson, o riso no pode ser todo riso, j que nunca infinito (idem, p. 7). Ele se insere em um ambiente circular, limitado pelo pblico para o qual se direcionava. O riso funciona como um eco, reverberado em uma plateia precisa. Justamente por isso, em termos sociais sua funo sempre diferencial, conflitiva.

O que ecoava a revistaCharlie Hebdo? Quem ria de seu contedo? Quem no ria? E por que? Boas respostas a estes problemas precisam evidenciar contradies, j que o riso no seno o sintoma humano, como notou Bergson, da conformao estratificada dos grupos sociais. O riso/falta de riso deCharlieno divide a sociedade em dois, como pensam alguns, mas revela uma srie de cises e sobreposies sociais, culturais e polticas, inclusive aquelas pertinente aos seus colaboradores.

O assassinato da quase totalidade de sua atual equipe de redao no ltimo dia 7 de janeiro um momento trgico da profunda crise vivida pelos pases europeus e, de certa forma, por todos os pases capitalistas. Uma crise que revela o real racismo, a islamofobia e o antissemitismo como armas de Estado contra o povo em todos estes pases. Em nome deCharlie, os governos francs espanhol, alemo, italiano e britnico se reuniro hoje ao representante do Estado racista de Israel, que h menos de um ano implementou uma das maiores carnificinas da histria da Palestina. Em nome deCharlie, todos os jornais falam em antissemitismo, mas no em islamofobia. Em nome deCharlie, os chefes de Estado europeus podem reivindicar para si a bandeira da liberdade, com a qual nunca realmente se comprometeram, seja com os imigrantes, seja diante das massas trabalhadoras que h anos pagam com seus direitos por uma crise que no sua.

O governo francs, combinado grande mdia e ao policiamento massivo, buscam, desde o dia dos ataques, um unssono argumento no qual as emoes derrotam a inteligncia e convertem a morte de Charlie em um espetculo melodramtico macabro. Para que o riso vingue a morte, o humor dever novamente voltar-se contra os poderosos e a stira poltica reencontrar seus verdadeiros inimigos: Hollande, Le Pen, Merkel, Rajoy, Cameron, Netanyahu e Abbas.

RefernciasBERGSON, Henri.Le rire. Essai sur la signification du comique. Paris: Librarie Flix-Alcan, 1919.

ROLLAND, Romain.Au-dessus de la mle. Librairie Paul Ollendorff,1915.