A vida privada de Stálin - Editora Zahar from MARCOU... · Neste livro, procuro descrever a vida...

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  • Lilly Marcou

    A vida privada de Stlin

    Traduo:Andr Telles

  • Mame, lembra-se do nosso czar? Claro! Pois bem, de certa forma sou o novo czar Pondo tudo na balana, voc teria feito melhor virando padre.

    Dilogo entre Stlin e a me

    Portanto quem julgar necessrio, em seu novo governo, contro-lar os inimigos, atrair os amigos, vencer por fora ou astcia, ser amado e temido pelo povo, acompanhar os soldados e ser por eles respeitado, arruinar os que podem ou inclinam-se a prejudicar- nos, modernizar mediante novos recursos os antigos costumes, ser rigoroso e benevolente, altivo e liberal, destruir uma milcia infiel, criar uma nova, manter-se amigo dos reis e prncipes, de maneira que eles o adulem voluntariamente ou no o prejudi-quem sem inquietude, este no pode escolher exemplos mais recentes do que os feitos do duque de Valentinois.

    Maquiavel, O prncipe

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    Prlogo

    O homem Stlin acabou ofuscado pelo mito, cujo espectro determina toda a perspectiva do sculo XX. Neste livro, procuro descrever a vida privada desse homem, aludindo aos fatos histricos apenas quando ne-cessrios inteligibilidade do itinerrio pessoal do indivduo ou quando permitem desvelar, nuanar ou transformar as interpretaes julgadas definitivas. Por muito tempo a aura de monstro abjeto impediu que desvendssemos o enigma de um carter. Decerto tranquilizador pensar que o homem sob cujo regime tais horrores foram cometidos no pode ser seno um demnio: maneira de desculpar as pessoas que o cercavam, preservar o otimismo la Rousseau quanto inocncia da natureza hu-mana e banir dessa humanidade comum o nico responsvel pelos crimes perpetrados. Essa demonizao de Stlin, contudo, no passa de preguia intelectual, como sua deificao o fora ontem: fazendo-o existir em carne e osso, humano, demasiado humano, nem por isso ele se torna menos vulnervel ao julgamento da Histria.

    No ignoro que tentar captar a personalidade do homem Stlin, a partir de arquivos inditos e conversas com os sobreviventes da linhagem familiar e do crculo mais ntimo, poder parecer obsceno aos olhos de alguns. O qu?! Falar das emoes desse tirano sem levar em conta sua res-ponsabilidade nos milhes de mortes pelas quais ele culpado? Mergulhar sem ideias pr-consebidas nos ignbeis segredinhos da histria privada, deixando em segundo plano uma das maiores tragdias do sculo? A estes, fao questo de responder antecipadamente que minha proposta aqui no promover um novo julgamento dos anos de terror stalinista: a causa justa, e subscrevo-a. Acontece apenas que estou convencida de que, no

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    caso de um personagem dessa dimenso, no h ignbeis segredinhos: toda e qualquer prova material que venha a surgir deve ser despejada no dossi da Histria.

    exceo de numerosos e abalizados estudos dos sovietlogos ociden-tais, a abertura dos arquivos soviticos estimulou a publicao de livros que escapavam a qualquer rigor deontolgico. A liberdade de expresso, em se tratando de um tema tabu, era confundida com o direito de falar qualquer coisa. Proliferaram ento publicaes fantasiosas e rocamboles-cas, que ainda pululam nas bancadas dos livreiros ambulantes pelas ruas de Moscou. Cumpria esperar por uma nova gerao de historiadores que esmiuassem os documentos com a nica preocupao de apreender a verdade, para reconstituir uma histria que deixara de ser prisioneira dos arquivos fechados.

    Em breve completaro trinta anos que estudo a vida de Stlin, e cin-quenta que o enigma Stlin me obceca. Nenhuma explicao jamais me convenceu inteiramente, ainda que eu concorde com as grandes biografias a ele dedicadas por Isaac Deutscher ou Robert C. Tucker, que muito me ensinaram e ajudaram a empreender minha prpria reflexo. Portanto, o esboo biogrfico que hoje apresento constitui a sntese de anos de estudos que nem por isso deixaram de resultar num saber sem-pre fragmentado e parcial, to vasto o tema. Ele no pretende elucidar todas as questes tericas e histricas que o caso Stlin coloca para os pesquisadores. Procurar estudar a pessoa, sem cair no psicologismo, no tem como inteno qualquer tipo de reabilitao operao impossvel, parece-me, at para as geraes vindouras. Alimenta apenas a modesta ambio de, por meio das fontes primrias, inditas em sua maioria, apreender a complexidade, as contradies e os paradoxos do persona-gem. Mergulhando nos arquivos de Stlin, busquei criar um vazio com relao a um saber por demais engessado, no intuito de captar o que h de novo, iluminar as zonas de sombra, fazer a mediao entre verdade e rumor, dirimir certas controvrsias e revelar aspectos ignorados ou des-

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    conhecidos.* Se por um lado o retrato pessoal ganha propores humanas, por outro ele s faz endurecer os traos de carter daquele que sempre co-locou acima de tudo seu credo revolucionrio, a razo de Estado, o poder absoluto, a certeza de que ele e seus mtodos fariam a felicidade de todos.

    Aos crimes, ao terror e aos erros com que Stlin e seu reinado so confun-didos h cerca de quarenta anos, esqueceram-se recentemente de acres-centar a esperana, o entusiasmo, o herosmo, o esprito de sacrifcio de que essa histria impossvel foi porta-voz. O arroubo e a admirao despertados pela URSS e seu lder carismtico nos anos 930 e 940 po-dem ter outras explicaes que no a enganao, a mentira, o medo e a manipulao Complexa e paradoxal, a URSS oferecia, aos que dela se aproximavam, um leque de sucessos e fracassos, de magia e tragdias ao mesmo tempo. Numerosos foram os que apreenderam esse carcter d-plice de uma realidade indita para a poca. O Estado inovador fascinava; a utopia em vias de tornar-se realidade entusiasmava; o voluntarismo, transformado em valor fundamental, era contagiante.

    Nem o relatrio secreto de Kruchtchev, nem a glasnost de Gorba-tchev foram capazes de arrefecer, nas profundezas da memria coletiva da ex-sociedade sovitica, a ideia de que a poca stalinista foi igualmente motivo de glria e orgulho nacional para os povos da URSS. E de que o homem que a encarnou no o nico responsvel pelo terror que a sacu-diu. Para todos, ele continua um gigante que marcou duradouramente o

    * Recusei-me a entrar numa polmica sobre afirmaes difusas, no aliceradas nos ar-quivos, como as de Victor Suvorov, que, por ter sido anteriormente agente dos servios secretos militares soviticos, julgou-se capaz de convencer o pblico com revelaes segundo as quais Stlin teria ajudado Hitler a tomar o poder e deflagrado a Segunda Guerra Mundial, e preparava um ataque, s vsperas da invaso nazista da URSS, no intuito de conquistar a Europa. (Cf. Victor Suvorov, Le brise-glace, Paris, Orban, 989.) Da mesma forma, recusei-me a participar de outra controvrsia antiga e atual ao mesmo tempo sobre Stlin como agente da Okhrana, que nenhum arquivo confirma e que Robert C. Tucker recusou de maneira cientfica em sua grande biografia Staline rvolutionnaire, 879-929, essai historique et psychologique (Paris, Fayard, 975, p.93-6).

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    sculo com seus crimes e suas vitrias. Nem epifenmeno, como pensava Roy Medvedev; nem termidoriano, como julgava Trtski, porque Stlin pretendia-se herdeiro fiel do legado leninista; nem causa de todos os males, como o acusava Kruchtchev, porque havia uma relao simbitica entre ele e seu mundo.