A vida presente: inauguração da vida futura

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Capítulo 1 – A vida presente: a inauguração da vida futura “Cristo não morreu nem ressuscitou por causa de si próprio, mas por nossa causa; portanto, sua ressurreição é a substância da nossa; e o que foi efetuado nele deve ser levado à conclusão em nós também... [...] a sua ressurreição é a base da nossa; portanto, se a sua for eliminada, então não nos ficará nada.” João Calvino 1 O que a vida presente tem a ver com a vida futura? Talvez seja essa a pergunta que resume a primeira parte deste estudo. Para N.T. Wright quando nos debruçamos sobre escatologia é importante ter conteúdo para responder duas perguntas: o que esperamos? E o que faremos enquanto isso? 2 O primeiro capítulo relaciona-se com ambas as perguntas, pois ao afirmar que a vida presente é a inauguração da vida futura, afirmamos algo sobre o futuro e ao mesmo tempo definimos alguma agenda para o presente, o que alguns reformadores chamaram de “antecipação ou antegozo” 3 da vida eterna. Esse é fio que liga este capítulo com os dois subsequentes. Como foi dito pelo próprio Jesus na sua oração sacerdotal em João 17.3, “e a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” Conhecimento este que é inaugurado nesta vida e concluído no novo céu e nova terra (Ap. 21.3,7). 1 CALVINO, João, 1996, p.456. 2 WRIGHT, 2009, do prefácio. 3 Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

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Futuro e presente são inseparáveis. O cristão tem uma maravilhosa esperança futura, e biblicamente, ele já antecipa os resultados desta esperança no presente. O que sabemos acerca do futuro produz impacto direto em nossa vida presente.

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Capítulo 1 – A vida presente: a inauguração da vida futura

“Cristo não morreu nem ressuscitou por causa de si próprio, mas por nossa causa; portanto, sua ressurreição é a substância da nossa; e o que foi efetuado nele deve ser levado à conclusão em nós também... [...] a sua ressurreição é a base da nossa; portanto, se a sua for eliminada, então não nos ficará nada.”

João Calvino1

O que a vida presente tem a ver com a vida futura? Talvez seja essa a

pergunta que resume a primeira parte deste estudo. Para N.T. Wright quando nos

debruçamos sobre escatologia é importante ter conteúdo para responder duas

perguntas: o que esperamos? E o que faremos enquanto isso?2

O primeiro capítulo relaciona-se com ambas as perguntas, pois ao afirmar que

a vida presente é a inauguração da vida futura, afirmamos algo sobre o futuro e ao

mesmo tempo definimos alguma agenda para o presente, o que alguns

reformadores chamaram de “antecipação ou antegozo”3 da vida eterna. Esse é fio

que liga este capítulo com os dois subsequentes. Como foi dito pelo próprio Jesus

na sua oração sacerdotal em João 17.3, “e a vida eterna é esta: que te conheçam a

ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” Conhecimento este

que é inaugurado nesta vida e concluído no novo céu e nova terra (Ap. 21.3,7).

Por este exato motivo, entendemos que a vida presente e a vida futura são

inseparáveis na esfera objetiva e subjetiva da fé cristã. Se perdermos esta

compreensão do entrelaçamento entre presente e futuro não seria exagero dizer que

a vida presente se resumiria na indiferença e o futuro em mera curiosidade.

Afirmamos o contrário junto à maioria dos teólogos contemporâneos que o

presente e o futuro sempre se encontram. A famosa frase de George E. Ladd

esclarece objetivamente este raciocínio: “A vitória da eternidade foi conquistada na

vitória da história”.4 Outro grande responsável por se pensar assim na teologia

contemporânea é Wolfhart Pannenberg: “o domínio de Deus não está restrito

apenas ao futuro. O futuro e o presente são entrelaçados e inseparáveis na

1 CALVINO, João, 1996, p.456.2 WRIGHT, 2009, do prefácio.3 Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.4 LADD, George. The Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company, 1996, p. 333.

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pregação de Jesus.”5 O teólogo brasileiro Franklin Ferreira diz o mesmo: “o reino de

Deus envolve tanto seu cumprimento na história como sua consumação ao fim da

história”6. O Reino de Deus é exatamente esta realidade final de restauração de

todas as coisas que já começou e será consumada na segunda aparição de Jesus.

Nas palavras de Al Wolters: “a restauração da criação em Cristo e a vinda do reino

de Deus são uma e a mesma coisa.”7

Já o escritor C.S. Lewis nos ajuda a pensar nas dimensões subjetivas que

essa esperança produz no crente e como isso afeta o seu ambiente: “se você

estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram

exatamente os que mais pensavam no outro mundo”.8

Por esta causa, este capítulo se presta a responder duas perguntas, a

primeira: onde objetivamente começa a vida presente que é a inauguração das

realidades da vida eterna? E a segunda: como ocorre subjetivamente a intervenção

das realidades futuras na vida presente?

Já vimos que o pilar que sustenta a escatologia cristã é a doutrina da

ressurreição de Jesus Cristo que, por conseguinte, é a sustentadora da doutrina da

nova vida. Em outras palavras, se não possuirmos convicções claras sobre o

significado da ressurreição de Jesus não poderemos falar nem da vida presente e

muito menos da vida futura.

Como enxergar a ressurreição de Jesus? O ponto essencial da nossa reflexão

neste momento está na opção que se faz por um evento histórico/factual ou

“espiritual/analógico” da ressurreição.

A ressurreição histórica de Jesus Cristo9

A ressurreição de Jesus para a fé bíblico-reformada é um fato histórico.

Todavia, nem todos os “cristãos” acreditam que Jesus ressuscitou literalmente dos

mortos. Muitos livros já foram escritos sobre a suposta historicidade de Jesus e de

5 PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática. v. 3. Santo André, Academia Cristã/Paulus, 2009, p. 58.6 FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática; uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo, Vida Nova, 2007, p. 1013-1045.7 WOLTERS, Albert. Criação Restaurada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 83.8 LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.1399 Há dois estudiosos ainda vivos com material substancioso e proveitoso para uma defesa bíblica e histórica sobre a ressurreição de Jesus, o primeiro é do alemão PANNEMBERG, Wolfhart. Jesus: God and Man. Philadelphia: Westminster Press, 1968; e o segundo livro do bispo anglicano WRIGHT, N. T. The Ressurrection of the Son of God, Philadelphia: Fortress Press, 2003.

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seus atos10 e alguns autores têm negado a possibilidade e até mesmo a

plausibilidade da historicidade da ressurreição.

A conclusão que chegam estes estudiosos é que o Jesus mais interessante –

e eles o reputam assim inclusive para a Igreja Primitiva –, não é o histórico, (que é

irracional) mas o “Cristo da fé”, que é espiritual. Jesus era apenas o grande

exemplo, e a religião que ele ensinou era uma nova proposta de revisão ética,

política e social. Logo, a ressurreição de Jesus deve ser vista por um ponto de vista

espiritual, como um exemplo inspirador/motivador e jamais entendido pela

“limitação” histórica.11

Nada mais anti-cristão e anti-bíblico pode ser afirmado que isso. As Escrituras

– e tendo em vista aqui a Igreja Primitiva – falam abertamente da ressurreição

histórica de Jesus. O texto mais claro é 1Co 15.3-8:

3 Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, 4 e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. 5 E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. 6 Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria sobrevive até agora; porém alguns já dormem. 7 Depois, foi visto por Tiago, e mais tarde, por todos os apóstolos 8 e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo.

É possível que ainda paire alguma dúvida para aqueles que creem nas

Escrituras como Palavra de Deus que a ressurreição de Jesus é uma realidade

meramente “espiritual” ou inventada pela Igreja Primitiva? De maneira alguma! É um

fato que o apóstolo faz questão de asseverar com muitas testemunhas oculares. E o

assunto ainda é mais sério. Qual a razão de tanto empenho de Paulo em lutar por

uma ressurreição histórica de Jesus? As razões do apóstolo são expressas nos

versos 12-19 do mesmo capítulo:

12 Ora, se é corrente pregar-se que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? 13 E, se não há ressurreição de mortos, então, Cristo não ressuscitou. 14 E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé; 15 e somos tidos por falsas

10 Em busca do Jesus histórico, e recentemente um grupo de 75 estudiosos de diversas orientações religiosas reuniu-se nos Estados Unidos para fundar o "Simpósio de Jesus" ( The Jesus Seminar ), que os reúne regularmente duas vezes ao ano para levar adiante a "busca pelo verdadeiro Jesus".11 Para uma pesquisa mais ampla cf. artigo do Dr. Augustus Nicodemus sobre o assunto em: http://www.monergismo.com/textos/cristologia/quem_jesus_realmente_augustus.htm

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testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, ao qual ele não ressuscitou, se é certo que os mortos não ressuscitam. 16 Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. 17 E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados. 18 E ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram. 19 Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.

Está claro para o apóstolo que sem a evidência histórica da ressurreição de

Jesus perde-se o empenho para pelo o menos quatro coisas: (1) a proclamação do

evangelho, (2) a fé, (2) uma vida renovada e o pior, (4) para alguma forma de

esperança futura. E valendo-nos da seriedade das palavras do apóstolo, ter certeza

da ressurreição histórica de Jesus nos assegura os dois últimos itens relacionados à

ressurreição, a saber, a renovação da vida presente e a esperança futura. Estes são

os dois elementos a serem estudados no momento.

Ressurreição: o início de uma nova vida

Qual é o efeito central que a ressurreição histórica de Jesus Cristo traz para o

cristão? A partir de uma breve análise de Rm 6.4 concluiremos que a ressurreição

de Jesus é a substância que dá início à nova vida do cristão.

O argumento de Paulo a respeito da nova vida fundamentada sobre a

ressurreição norteia a primeira parte do capítulo seis de Romanos (Rm 6.1-14).

Porém esse argumento é indexado com precisão no versículo 4:

“Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi

ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em

novidade de vida.”

Primeiramente, o termo “pois” se refere ao assunto geral do capítulo 6: a

nossa morte com Cristo. Hendriksen ressalta esse ponto com clareza: "quando

Cristo morreu na cruz, seus verdadeiros seguidores morreram lá com ele.”12 Cottrell

acrescenta que “a participação em sua morte é o suficiente para agora: Ele quebrou

o poder escravizante do pecado sobre nós. Por causa de Cristo, temos, pela

primeira vez, uma escolha real: podemos escolher não pecar!”13 A morte de Jesus

tem um poder mortífero em referência ao pecado.

12 HENDRIKSEN, William. Comentário no livro de Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, p. 198.13 COTTRELL, Jack. Romans: College Press NIV commentary, v. 1. Joplin, Mo.: College Press Pub, 1998, p.234.

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Na sequencia, vemos a relação entre a morte e a ressurreição, a primeira

conectada com o nosso passado, “fomos”, e a segunda relacionada com o nosso

projeto de futuro, “seremos” (v.5b), “viveremos” (v.8b). Paul J. Achtemeier esclarece:

“a nossa participação na morte de Cristo é descrita no passado e a nossa

participação na ressurreição é descrita exclusivamente no tempo futuro.”14

É neste contexto entre o que Cristo fez com o nosso passado e o que ele fará

com o nosso futuro que Paulo encaixa uma série de imperativos no tempo presente,

“andemos nós em novidade de vida” (v.4) “considerai-vos mortos para o pecado”

(v.11), “não reine o pecado no vosso corpo” (v.12), “nem ofereçais ao pecado”,

“oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos” (v.13). Sem as doutrinas

da morte e da ressurreição não pode haver exortação. Sem esta vívida participação

do crente na crucificação tanto quanto na ressurreição o evangelho se torna apenas

um código de regras sem sentido.

Ao contrário de imperativos moralistas, a novidade que podemos usufruir

nesta vida é fruto da intervenção direta de Jesus Cristo em relação ao nosso

passado (morte) e do que ele ainda fará plenamente em nós (ressurreição final). E é

por causa da participação e aceitação do crente na morte e ressurreição de Cristo

que o mesmo crente pode ter boas notícias de transformação imediatas.

Cremos que a ressurreição que Paulo se refere não é mero símbolo de

“mudança espiritual”15, mas é a própria ressurreição final do corpo, ou a vida eterna

com Cristo. A base para esse argumento está no verso 8: “Ora, se já morremos com

Cristo, cremos que também com ele viveremos.” Concordamos com James Dunn

sobre este ponto quando afirma que “fundamental é a afirmação escatológica que,

com a morte de Cristo toda uma época já passou e uma nova era começou.”16

Um dos termos preferidos nas Epístolas de Paulo17 para se tratar dos

assuntos públicos e comuns da vida – e aqui no verso 4 é melhor entendido como

estilo de vida18 –, é περιπατέω – “andar”. Aqui em específico é um imperativo

verbal aoristo, denotando uma ação forte e pontual. O significado dentro do contexto

14 ACHTEMEIER, Paul J. Romans: Interpretation, a commentary to teach and preaching. Atlanta: John Knox Press, 1985, p.103.15 COTTRELL, 1998, p. 236.16 DUNN, James. Romans 1-8: Word Biblical Commentary. Dallas: Versão digital incorporada do Logos Bible Software, vol. 38A, 2003, p.313.17 Cf. Rm 8:4; 13:13; 14:15, 1 Coríntios 3:03, 7:17, 2 Coríntios 4:2; 5:7; 10: 2-3; 12:1818 DUNN, 2003, p. 314: “Ele utiliza mais de 30 vezes, neste sentido, sem dúvida, sob a influência de uma expressão semelhante no OT.”

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escatológico do cap. 6 é que o Jesus ressurreto é o modelo integral de ser humano

a ser buscado e antecipado por nós antes da consumação eterna.

A nossa vida presente é resultado do que Deus planejou para nós na

realidade escatológica, fomos predestinados para sermos conforme a imagem do

seu filho (Rm 8.29) que segundo o apóstolo João, acontecerá plenamente na sua

segunda manifestação (parousia), pois “quando ele se manifestar seremos

semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2).

Como é claro nas Escrituras e principalmente em Paulo, a consumação da

nossa vocação – ser igual a Cristo –, não deve nos desanimar com o aparente

fracasso da vida presente, mas nos encorajar para remi-lo! É porque sabemos que

seremos ressuscitados totalmente com Cristo no futuro que nos empenhamos e

devemos nos empenhar na renovação da nossa vida comum.

Analisamos a razão objetiva que nos oferece o início da vida presente que

inaugura as realidades eternas, a ressurreição de Cristo, entretanto, o que produz

subjetivamente esta vida inaugural na vida do crente? O que Paulo argumenta junto

com os outros autores no Novo Testamento que torna possível a prática

escatológica na vida presente? Qual fator torna real e aplicável a ressurreição de

Cristo movendo-nos subjetivamente para esta vida de novidade? É exatamente o

que Paulo e outros chamam de o Espírito Santo.

Mas antes de analisar as referências ao Espírito Santo como realizador

subjetivo da nova vida, vejamos qual é a sua relação com a escatologia bíblica.

O Espírito Santo na escatologia no Antigo e Novo Testamentos

A escatologia está tão presente no Antigo Testamento quanto no Novo

Testamento. Precisamente no A.T., os principais temas ou títulos escatológicos não

nasceram ao mesmo tempo, antes, assumiram formas variadas em tempos diversos

como é destacado pela noção reformada de revelação progressiva19. E devido a este

enriquecimento escatológico no A.T. através da progressão do cânon, a conclusão

básica que tiramos dele é que o crente do Antigo Testamento aguardava, no futuro,

algumas realidades escatológicas.

A maioria dos teólogos reformados enumeram 7 temas que permeiam a

expectação do crente veterotestamentário: 1. O Redentor vindouro; 2. O Reino de

19 HOEKEMA, 1997, p.67.

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Deus; 3. A Nova Aliança; 4. A Restauração de Israel; 5. O Derramamento do

Espírito; 6. O Dia do Senhor e por último 7. Os Novo Céu e Nova Terra.

O crente do Antigo Testamento não tinha a ideia clara sobre como ou quando

estas expectações seriam cumpridas. Esses eventos poderiam se cumprir de uma

só vez, ou nos “últimos dias”, “naqueles dias”, ou no “Dia do Senhor”. A certeza que

possuímos é que a fé do crente da antiga aliança era completamente escatológica.

Obviamente o Espírito Santo se encaixa visivelmente na expectação do

derramamento do Espírito baseado na profecia de Joel 2. 28-32, que diz:

28 E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; 29 até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias. 30 Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça. 31 O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR. 32 E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, como o SENHOR prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar.

Especificamente nesta profecia de Joel vemos qual era a expectação do povo

de Israel, que em dias específicos o próprio Deus derramaria o seu Espírito sobre o

seu povo e sobre toda a carne independente (ao que parece) das etnias e diferenças

sociais ou basicamente não-judeus.

O profeta Joel prediz o derramamento do Espírito que ocorrerá num tempo

que ele designa simplesmente como “naqueles dias”20 (ἐν ται ς ἡμέραις), mas

que Pedro, em sua citação desta passagem no dia de Pentecostes (At 2.17),

denomina “nos últimos dias” (ἐν ταῖς ἐσχάταις ἡμέραις). O que Pedro faz

ao modificar as palavras do profeta Joel é dizer que parte de sua profecia se

cumpria naquele exato momento. Em outras palavras, o Espírito Santo indica a

vinda de uma nova era, os últimos dias, ou que a era escatológica dos profetas foi

inaugurada.

Com relação à obra do Espírito Santo e sua função de cumprimento

escatológico podemos salientar mais duas coisas21:

20 Estamos trabalhando com a Septuaginta (LXX).21 Esta construção foi baseada em: HOEKEMA, 1997, p. 22-34.

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1. O cumprimento das profecias do A.T. não tem aspecto único, mas

duplo: a era do messias e a era do futuro.

O leitor do Novo Testamento perceberá que o apóstolo Pedro interpreta a

profecia de Joel em dois momentos, do verso 28-29 a era dos “últimos dias” e a

partir de 30-32 “o Dia final”, ou o “Último Dia”.

Outro exemplo visível deste princípio é o uso do termo “últimos dias” por

outros escritores do N.T. se referindo ao tempo em que estamos vivendo (2Tm.3.1,

Hb.1.2, 2Pd. 3.3, Ap. 1.1, 22.622) e o “ultimo dia”, “Dia do Senhor”, ou “naquele dia”,

“dia da visitação”, “Dia de Deus”, “Dia do juízo” (Jo.12.48, Lc.10.12, 2Tm.4.8,

1Pe.2.12, 2Pe.2.9, 3.10). A ideia principal desses textos é a de que agora, há uma

diferenciação de que a consumação acontece em dois estágios e o Espírito é o

agente mediador destas duas etapas.

Em resumo, a escatologia do Novo Testamento olha para trás, para a vinda

de Cristo e afirma: nós estamos agora nos últimos dias pelo Espírito Santo. Mas a

mesma escatologia olha para frente para sua consumação final, que ainda está por

vir, e por isso ouvimos que o último dia está chegando.

Para Hoekema23, o papel que o Espírito Santo desempenha na escatologia

ilustra mais a tensão entre o que nós já temos e o que ainda esperamos. Neste

sentido, o Espírito Santo é aquele que nos capacita subjetivamente no período de

inauguração da vida futura.

É importante notar este fato, pois o Espírito Santo é derramado após a

ascensão de Jesus. Em primeiro lugar, a ressureição de Jesus Cristo inicia

objetivamente a nossa esperança da vida futura em nosso presente. E em segundo

lugar, o Espírito Santo, realidade pós-pascal, produz subjetivamente essa vida

inaugural do futuro no seu povo.

Um dos textos clássicos do Antigo Testamento que salienta a renovação que

seria operada pelo Espírito no povo de Deus é a profecia de Ezequiel 36.25-27:

25 Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos

22 Especialmente em Apocalipse 1.1, 22.6, João modifica o termo “últimos dias” de Daniel 2, por “que em breve devem acontecer”, pois sua intenção é registrar o cumprimento dos últimos dias no tempo em que a igreja está vivendo. Esta informação foi tirada da palestra do prof. Carl J. Bosma no dia 19/08/2009 sobre o livro de Apocalipse na Igreja Presbiteriana Chácara Primavera, Campinas.23 HOEKEMA, 1997, p.76.

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purificarei. 26 Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. 27 Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis.

A profecia de Ezequiel e a profecia de Joel estão afinadas com o princípio

duplo de cumprimento que é visto no Novo Testamento. O versículo 28, seguinte da

profecia de Ezequiel é, “Habitareis na terra que eu dei a vossos pais; vós sereis o

meu povo, e eu serei o vosso Deus”, profecia que se cumpre apenas no Novo céu e

Nova terra em Apocalipse 21.3, em que lemos: “Deus habitará com eles. Eles serão

povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles.” A partir dessas referências

concluímos que a presença renovadora do Espírito Santo é o interlúdio entre a

expectação profética do A.T. e a glória final registrada no N.T.

É por este motivo que quando migramos do Antigo Testamento para o Novo

Testamento, nós passamos de um clima de predição para o de cumprimento. As

coisas que Deus tinha predito pelos lábios de seus profetas ele trouxe agora, pelo o

menos em parte à realização.

2. As bênçãos da era presente são a garantia de bênçãos maiores no porvir.

A primeira vinda de Cristo é a garantia da segunda vinda, segundo o registro

de Lucas em Atos 1.11. Vale-se do mesmo argumento o autor de Hebreus no

capítulo 9.27,28. Paulo em Tito 2.11-13 registra um dos textos mais claros a este

respeito para nos mostrar que o cristão vive entre as duas eras, representadas pelas

duas aparições de Cristo. E novamente se conclui que a obra do Espírito funciona

subjetivamente dando-nos a garantia desta maravilhosa esperança da segunda

aparição de Jesus Cristo.

O Espírito Santo: transformador e garantia da vida futura no presente

Como já foi percebido, o Espírito Santo tem visceral ligação com as

realidades escatológicas. Isso se torna claro quando lemos no Novo Testamento que

os crentes em Cristo estão na nova era predita pelos profetas do Antigo Testamento.

No entanto, os benefícios desta era que foram cumpridos no Antigo Testamento são

provisórios e ainda aguardam por uma consumação.

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O Espírito Santo é quem torna a relação da vida futura com a vida presente

possível. Pois o mesmo é quem opera virtude na vida dos crentes entre a era

messiânica (primeira vinda) até a consumação de todas as coisas (segunda vinda).

Por esta razão observaremos agora duas influências que o Espírito produz entre

essas duas eras.

Uma nova vida transformada pelo Espírito

Esta nova era, chamada de últimos dias é um tempo em que não apenas o

Espírito Santo é marcante, é uma época na qual vivemos de fato “no poder do

Espírito”. Há um contraste entre viver na “carne” e viver “no Espírito”. Note com qual

rigor Paulo assevera este ponto: “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito,

se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, se alguém não tem o Espírito de

Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9).

Não há espaço na teologia cristã reformada para o esforço humano alienado

da presença renovadora do Espírito, como bem salienta Benjamin Warfield, "O

cristianismo não é meramente um programa de conduta; é o poder de uma nova

vida.”24

Em Gálatas 5.16, 25 vemos o mesmo apelo rígido de Paulo em relação a se

viver sobre a influência e poder do Espírito: “Digo, porém: andai no Espírito e jamais

satisfareis à concupiscência da carne. [...] Se vivemos no Espírito, andemos também

no Espírito.” Um famoso teólogo reformado, Herman Ridderbos nos ajuda

consideravelmente no assunto:

Carne e Espírito representam dois modos de existência; por um lado, o da velha era que é caracterizada e determinada pela carne, e pelo outro lado, o da nova criação que é do Espírito de Deus. [...] Por esta razão a Igreja não está mais na carne, i.e., sujeita ao regime da primeira era e dos poderes malignos que nela reinam, mas está no Espírito, trazida para sob o domínio da liberdade em Cristo (Rm 8.2, 9, 13; 2Co.3.6; Gl.3.21).25

Esta é a essência da influência do Espírito nas epístolas de Paulo: poder de

Deus. Encontramos várias menções deste princípio, como 1Co 2.4-5: “A minha

24 Esta frase foi tirada de um artigo do autor no periódico: The Church, the People, and the Age. Editado por Robert Scott and George W. Gilmore, 1914. Mais informações no link: http://homepage.mac.com/shanerosenthal/reformationink/bbwourtimes.htm . Tradução nossa.25 RIDDERBOS, Herman. A Teologia de Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.87

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palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria,

mas em demonstração do Espírito e de poder”... e no verso 5 Paulo explica a razão

de o seu evangelho não se apoiar no esforço humano, [...] para que a vossa fé não

se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus.”

Baseado nisso, é digno de toda a refutação as teorias de que o ser humano

traz o reino de Deus pelas suas próprias forças ou de que mesmo a santificação

dependa exclusivamente da ação humana deliberada. Paulo afirma: “Porque o reino

de Deus consiste não em palavra, mas em poder.” (1Co 4.20). Esse é mesmo poder

no qual Paulo confia as suas orações: “Ora, àquele que é poderoso para fazer

infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder

que opera em nós” (Ef.3.20).

Sem dúvida a nova vida que nós queremos é a vida de Jesus Cristo

ressuscitado, para a qual também fomos criados, como já vimos anteriormente. O

Espírito tem o papel de tornar a imagem de Jesus no crente uma realidade. E sem

dúvida, neste sentido o papel do Espírito Santo na escatologia ilustra a tensão entre

o que já somos e o que esperamos ser26. Pois afirma a totalidade daquilo que

seremos e ao mesmo tempo nos incentiva a ser, ainda que provisoriamente.

Há dois textos em Paulo que refletem essa cooperação entre o crente e o

Espírito na busca pela imagem do Cristo (futura) no tempo presente. O primeiro é

2Co 3.18: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho,

a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria

imagem, como pelo Senhor, o Espírito.” Note a relação entre contemplar o que é

nosso alvo (ação humana) e a ação do Espírito em nosso favor para esse fim

glorioso já sendo aplicada nesta vida.

O outro texto que corrobora para o fato de buscarmos o novo homem nesta

vida como inauguração do homem futuro está em Col 3.1-4:

1 Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. 2

Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; 3 porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. 4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória.

26 HOEKEMA, 1997, p. 94.

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A ligação é muito clara: ressuscitamos com Cristo, e por este motivo

investimos os nossos esforços mentais no que ele é – e que nós também haveremos

de ser – como forma de aguardar sua segunda aparição. Porque nos tornamos

participantes de Cristo, da sua morte e de sua vida, assim vivemos pelo Espírito

Santo (pensando nas coisas do alto) até que o nosso Redentor se manifeste

novamente.

Geerhardus Vos, em seu clássico livro sobre a peculiaridade escatológica do

Espírito, Pauline Eschatology, resume a ideia de que o Espírito Santo é o operador

da vida futura nesta vida:

O Pneuma [Espírito] era na mente do Apóstolo, antes de tudo, o elemento da esfera escatológica ou celestial que caracteriza o modo de vida e existência no mundo porvir e, consequentemente, daquela forma antecipada na qual o mundo porvir é mesmo agora realizado.27

Sob o pressuposto de que o Espírito Santo é o realizador das realidades

futuras no dia-a-dia da pessoa regenerada, surge a pergunta: qual é a dimensão

desta transformação? Será que o Espírito Santo tem apenas a função de nos

resgatar dos pecados “espirituais”, aqueles que se referem exclusivamente a Deus,

ou o mesmo Espírito produz renovação da totalidade da realidade humana, como a

sua vida pública, negócios, arte, cultura, profissão e etc? Cremos na segunda

proposta.

Uma renovação integral

A teologia reformada defende a integralidade do ser humano no processo da

redenção28. A partir desta premissa, refutamos todo o formato fragmentado de

dualismo na tentativa de enjaular a fé cristã apenas na dimensão religiosa-

espiritual29. Baseados na esperança da redenção em Cristo, o ser humano todo, em

todas as suas dimensões e esferas sociais, desfruta de um antegozo visível e

redentor da vida gloriosa futura (Ef. 1.7-9; Col 1.16-20).

27 VOS, Geerhardus. The Pauline Eschatology. Princeton: Univ. Press, 1930, p.58.28 Duas obras que recentemente foram lançadas para nos oferecer uma cosmovisão reformada integral são: WALSH, Brian; MIDDLETON, Richard. A Visão Transformadora. São Paulo: Cultura Cristã. 2010 e A Criação Restaurada de Al Wolters já citada neste trabalho.29 Para um estudo aprofundado das raízes deste dualismo, como vencê-lo e ter uma cosmovisão ampla da fé cristã cf. PEARCEY. Nancy. Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 33-168.

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Neste sentido, o conceito reformado de renovação integral encaixa

perfeitamente na apresentação paulina do “fruto do Espírito” de Gálatas 5.22-24,

pois “o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, gentileza30, bondade,

fidelidade, mansidão, domínio próprio.” E Paulo continua dizendo... Contra estas

coisas não há lei. E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas

paixões e concupiscências.”

A Igreja Cristã em grande medida lê a descrição destas 9 virtudes

mencionadas por Paulo exageradamente sob o aspecto individualista ou espiritual

criando certo dualismo entre a vida pública e a vida espiritual, como se a

espiritualidade cristã estivesse presa em uma jaula de éticas do indivíduo para com

a sua própria interioridade. Qual é a abrangência da nova vida que o Espírito Santo

deseja efetuar subjetivamente no seu povo?

Alguns exegetas reformados inferem do texto princípio de que a obra do

Espírito Santo nos move para uma transformação em todas as dimensões humanas

possíveis. Pois na descrição de Paulo percebemos uma tríade de transformação:

espiritual, social e individual.31 A maioria dos comentaristas concorda que cada

grupo de três virtudes não se relaciona exclusivamente ao seu grupo, mas que se

trata justamente de entender a ação do Espírito no ser humano de maneira total.

Temos primeiramente 3 virtudes para a dimensão do relacionamento entre o

crente e Deus: amor, alegria e paz, somadas às 3 virtudes para a dimensão do

relacionamento entre o crente e o mundo: longanimidade, benignidade e bondade. E

por último, Paulo considera as 3 virtudes para a dimensão do relacionamento entre o

homem e sua interioridade: a busca pela fidelidade, mansidão e domínio próprio. A

vida presente restaurada por Cristo, pelo Espírito tem dimensões integrais!

Alguns estudiosos32 afirmam que a frase “contra estas coisas não há lei” é

para efeito retórico e não se refere jamais com alguma prática rígida moralista ou

legalista das virtudes do Espírito, mas que a declaração em si, na verdade, pode ter

sido proverbial nos dias de Paulo para as ações que ultrapassam todas as

30 Segundo a melhor tradução grega no léxico conhecido como BDAG. Cf. BAUER, W. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature. 3. ed. Chicago, University of Chicago Press, 1986, p.457.31 Dentre alguns comentaristas reformados que partilham desta opinião temos: HENDRIKSEN, William. Comentário na carta aos Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, p.321-325; BURTON, Ernest De Witt. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians. New York: C. Scribner's sons, 1920, p. 312-315; 32 LONGENECKER, Richard N. Galatians: Word Biblical Commentary. vol. 41. Dallas: Word Books, 1990, p. 258. BURTON, 1920, p. 312.

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prescrições legais e são, portanto, para além de qualquer contabilidade legal. Ou em

outras palavras, como afirma Burton sobre os 9 frutos do Espírito, “esta é a

verdadeira lei em todos os sentidos da palavra!”33

Isso casa bem com o fato de a renovação cristã ser sinérgica; há cooperação

humana interligada com a ação da verdadeira Lei do Espírito que é escrita em

nossos corações (cf. Ez 36.27). Não é algo puramente humano, pois é o fruto “do

Espírito”. Ernest Burton salienta a diferença entre a terminologia “obras” da carne e

“fruto” do Espírito, por que não obras do Espírito?

A escolha da palavra aqui em detrimento de ἔργα (v. 19) é, talvez, em parte devido à associação da palavra ἔργα com a frase ἔργα νόμου (ver ἔργα sozinho usado neste sentido, Rom. 3:27, 4:2, 9:11, 11:6), em parte para a sua preferência por um termo que sugere que o amor, alegria, paz, etc, são o produto natural de uma relação vital entre o cristão e do Espírito. (grifo nosso)34

Neste sentido, viver de acordo com o fruto do Espírito não é uma dinâmica na

qual o crente é puramente passivo, pois o verso seguinte nos exorta: “Se vivemos no

Espírito, também andemos no Espírito”. É por definição, então, esforço humano

mergulhado na graça do Espírito Santo, tendo como resultado transformação total!

Partindo do conceito de restauração integral, Al Wolters nos propõe uma

ilustração da transformação total proporcionada pelo Espírito Santo e pelo crente:

O casamento não deve ser evitado pelos cristãos, mas santificado. As emoções não devem ser reprimidas, mas purificadas. A sexualidade não deve simplesmente ser evitada, mas redimida. Os políticos não devem ser declarados inalcançáveis pela lei, mas reformados. A arte não deve ser pronunciada mundana, mas reivindicada para Cristo. Os negócios não devem mais ser relegados ao mundo secular, mas ser feitos novamente de acordo com os padrões que honram a Deus.35

Um futuro garantido pelo Espírito Santo

33 Ibid.34 BURTON, p. 313.35 WOLTERS, 2006, p.81.

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A partir do conhecimento de que é o Espírito Santo que opera em nós os

efeitos da ressurreição de Jesus, veremos outro aspecto que é particular do Espírito

em relação à esperança cristã.

O termo “primícias” que Paulo faz menção em Rm 8.23, faz sentido para nos

assegurar de que o futuro já é nosso, pois “também nós, que temos as primícias do

Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a

redenção do nosso corpo”.

Significa que pela ação do Espírito nós estamos assegurados do novo modo

de existência da era porvir. Em analogia com as “primícias” ou os primeiros frutos da

colheita do povo acostumado com a prática do plantio (Dt.18.4), Paulo nos dá uma

prova antecipada das bênçãos muito maiores que hão de vir. É pelo fato de Paulo

nos chamar de as “primícias do Espírito” que não devemos duvidar de nosso firme e

certo futuro.

Ademais, o Novo Testamento trás mais luz e conforto para os nossos

corações, em especial em Ef. 1.13,14 e 4.30:

Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória. [...] E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção.

Nós fomos selados para o dia da redenção por intermédio do Espírito Santo.

O termo “selados” no grego (ἐσφραγίσθητε) é um verbo aoristo passivo, ou

seja, nós fomos literalmente “marcados”36 com o Espírito de uma vez por todas para

o dia da redenção! Não há razão nenhuma para duvidar de que nós estaremos

presentes do dia da redenção, pois é como se o Espírito já registrasse o nosso

passaporte para a eternidade.

Já a palavra traduzida por “penhor” (ἀρραβὼν), literalmente “a primeira

parcela”, ou “promessa de pagamento”37, enfatiza um dos grandes labores do

Espírito em nós nesta vida, o papel de garantir a parcela final para a nossa salvação

36 BAUER, W, 1986, p.980.37 Ibid, p. 134. Este léxico também traz as seguintes variações para a tradução da palavra (ἀρραβὼν): pagamento de parte do preço de compra com antecedência, primeira parcela do depósito, promessa do pagamento.

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no futuro por já ter antecipado a primeira. O Espírito como nossa “promessa de

pagamento” implica a certeza do cumprimento derradeiro.38

O mesmo Deus que nos entregou a primeira parcela de sua vida futura aqui

no presente, a saber, o dom do Espírito Santo, prometeu que vai nos dar a herança

final, na qual o nosso coração espera ansiosamente. Essa herança é a nossa

ressurreição do corpo à semelhança de Cristo no novo mundo restaurado de Deus,

o novo céu e nova terra. Note como Ridderbos relaciona a transformação do nosso

corpo nesta vida nos moldes da nossa vida futura:

Se é verdade que Paulo nos conta que o Espírito já está operando em nós agora, transformando-nos na imagem de Cristo, conclui-se que esta renovação progressiva é um tipo de antecipação da ressurreição do corpo. Dessa forma, o Espírito Santo é o elo de ligação entre o corpo presente e o corpo ressurreto.39

A vida cristã na compreensão escatológica dos “últimos dias” – o tempo em

que agora vivemos – é uma vida de antecipação das realidades totais do novo

mundo ansiado. Saber do que acontecerá conosco no final de todas as coisas deve

nos mover, no tempo em que vivemos, motivados pela ressurreição e pelo poder do

Espírito, para uma vida radicalmente transformadora, tanto nas dimensões pessoais

quanto sociais.

A escatológica cristã é essencialmente prática. É o mesmo que dizer que o

futuro já chegou, mas ainda não em sua totalidade. Por isso, podemos ser otimistas

quanto ao poder transformador nesta vida, mas de maneira alguma iludidos em uma

humanidade ou sociedade totalmente restaurada nesta vida pelas nossas próprias

forças. A nossa vida presente é uma grande inauguração e pré-desenvolvimento do

futuro, mas Deus ainda nos reserva muito mais do que pensamos ou podemos

imaginar.

38 Cf. também a exposição de HOEKEMA, 1997, p .84.39 RIDDERBOS, 2004, p. 551.