A vida nua como conceito ético-político - uma genealogia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Captura Críptica: direito, política, atualidade ______________________________ Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina Captura Críptica: direito, política, atualidade. Revista Discente do CPGD/UFSC Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) Curso de Pós-Graduação em Direito (CPGD) Campus Universitário Trindade CEP: 88040-900. Caixa Postal n. 476. Florianópolis, Santa Catarina – Brasil.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Captura Críptica:

direito, política, atualidade ______________________________

Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina

Captura Críptica: direito, política, atualidade. Revista Discente do CPGD/UFSC Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) Curso de Pós-Graduação em Direito (CPGD) Campus Universitário Trindade CEP: 88040-900. Caixa Postal n. 476. Florianópolis, Santa Catarina – Brasil.

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Expediente

Conselho Científico Prof. Dr. Jesús Antonio de la Torre Rangel (Universidad de Aguascalientes - México)

Prof. Dr. Edgar Ardila Amaya (Universidad Nacional de Colombia) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)

Profª Drª Jeanine Nicolazzi Phillippi (UFSC) Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel (UFPR)

Prof. Dr. José Roberto Vieira (UFPR) Profª Drª Deisy de Freitas Lima Ventura (IRI-USP)

Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho (UNISINOS)

Conselho Editorial Ademar Pozzatti Júnior (CPGD-UFSC) Carla Andrade Maricato (CPGD-UFSC)

Danilo dos Santos Almeida (CPGD-UFSC) Felipe Heringer Roxo da Motta (CPGD-UFSC)

Francisco Pizzette Nunes (CPGD-UFSC) Leilane Serratine Grubba (CPGD-UFSC) Liliam Litsuko Huzioka (CPGD/UFSC) Luana Renostro Heinen (CPGD-UFSC)

Lucas Machado Fagundes (CPGD-UFSC) Marcia Cristina Puydinger De Fázio (CPGD-UFSC)

Matheus Almeida Caetano (CPGD-UFSC) Moisés Alves Soares (CPGD-UFSC)

Renata Rodrigues Ramos (CPGD-UFSC) Ricardo Miranda da Rosa (CPGD-UFSC)

Ricardo Prestes Pazello (CPGD-UFSC) Vinícius Fialho Reis (CPGD-UFSC)

Vivian Caroline Koerbel Dombrowski (CPGD-UFSC)

Captura Críptica: direito política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito. – n.2., v.2. (jan/jun. 2010) – Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2010 –

Periodicidade Semestral

ISSN (Digital) 1984-6096 ISSN (Impresso) 2177-3432

1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito – Periódicos. Universidade Federal de Santa

Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Curso de Pós-Graduação em Direito.

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Murilo Duarte Costa Corrêa

O conceito de vida nua surge na literatura agambeniana em textos muito diversos; desde Homo sacer I (2007), originalmente publicado em 1995, sua formulação conceitual atravessa igualmente as preocupações mais contemporâneas de Giorgio Agamben, encontradas em Mezzi senza fine (1996), passando por O que resta de Auschwitz (1998), seguindo-se até um desenvolvimento ulterior em L’Aperto: l’uomo e l’animale (2002).

Nesse percurso, uma das chaves na genealogia da nuda vita agambeniana é o texto que Agamben escreve em homenagem a Gilles Deleuze, por ocasião de seu falecimento; L’immanenza assoluta é, depois, incorporado a um livro de Éric Alliez (2000) e republicado, mais tarde, em uma coletânea de artigos de Giorgio Agamben denominada La potenza del pensiero (2005).

Nele, Agamben revela aquilo que, disseminando-se por seus textos posteriores, permitiria esquadrinhar o pano de fundo de sua filosofia: o projeto de uma filosofia da vida como uma filosofia que vem. Na base de seu projeto, encontra-se a problematização, desde logo política, da vida como objeto do poder – da operação de poder que, a fim de engendrar uma produção da vida humana e politicamente predicada (bios), toma por ponto de inflexão o vivente a fim de aplicar-se sobre ele, excluindo de seu âmbito a vida animal (zoé). Tal conceito encontra-se presente em textos como L’immanenza assoluta (2005) e Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (2007). Eis o desenvolvimento que Agamben, passando por Foucault, retoma da fundação aristotélica da pólis grega.

Professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR). Contato: http://murilocorrea.blogspot.com

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No mesmo sentido, Agamben descartará os conceitos puramente biológicos de vida, como é o caso da concepção vitalista de Xavier Bichat (1822), que compreendia a vida como o conjunto de funções capazes de resistirem à morte, e retornará uma vez mais a Aristóteles, em De Anima, a fim de demonstrar que o isolamento de uma função orgânica que permite descer aos modos pelos quais a vida pode se expressar, rearticulando-a segundo uma série de atividades correlatas (nutrição, sensação, pensamento), afigura-se insuficiente para definir vida.

Ao redor desse núcleo conceitual, Agamben articulará toda a problemática de sua filosofia, que passa por temas de ordem política e teológica – ao empreender a releitura do conceito de soberania vinculado ao estado de exceção schmittiano (SCHMITT, 2006), a fim de demonstrar a implicação do poder sobre a vida no seio dos conceitos de soberania e de exceção –, ética – ao trabalhar o conceito de política como o “dar forma à vida de um povo” – e, a um só tempo, metafísica – ao perceber uma misteriosa simetria entre os fenômenos de poder e a tradição filosófica ocidental. Do entrecruzamento e da extensão dessas linhagens, surge a possibilidade de pensar a captura da vida nua pelo biopoder como o fenômeno estruturante da soberania política conhecida no Ocidente.

Conscientes de que esses fios encontram-se emaranhados sobre o canevás de uma filosofia da vida, que Agamben busca desentocar, não sem carregar algo dos demais fios conosco, puxamos a linhagem da vida nua para caracterizá-la como conceito ético-político. Interessa-nos, sobremaneira, a conceituação do corpo biopolítico do Ocidente como forma de vida, e sua articulação, um tanto ambivalente, com o conceito de vida nua.

Agamben refere-se ao conceito de vida nua de forma ambígua. Longe de constituir um paradoxo insolúvel, ou uma evidente inconsistência conceitual, a equivocidade pragmática do termo parece despertar uma sutil pregnância. Por vezes, encontraremos nos textos de Agamben uma referência aparentemente negativa ao conceito de vida nua; trata-se disso, precisamente, quando vai desvendar as relações de simetria entre o homo sacer e o soberano político (AGAMBEN, 2007), ou na ocasião em que Agamben descreve o Láger, e afirma que, no campo de concentração, “A vida nua a que o homem foi reduzido, não exige nem se adapta a nada: ela própria é a única norma, é absolutamente imanente” (AGAMBEN, 2008, p. 76).

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Ao mesmo tempo, é possível encontrar referências positivas ao conceito de vida nua. Uma das mais marcantes delas encontra-se ao final de Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Refutando momentaneamente a tese foucaultiana de uma nova economia do corpo e dos prazeres como formas de subjetivação, Agamben escreve que seria preciso “fazer do próprio corpo biopolítico, da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma forma de vida toda vertida na vida nua, um bíos que é somente a sua zoé” (AGAMBEN, 2007, p. 194).

Outra referência a uma positividade imanente ao conceito de vida nua pode ser encontrada no primeiro ensaio de Mezzi senza fine (1996), intitulado Forma-di-vita. Revisitando a recorrente distinção grega entre zoé (o simples fato de viver, comum a todo vivente) e bíos (a forma ou maneira de viver própria de um singular ou de um grupo), Agamben forja o conceito que dá nome ao ensaio – forma-di-vita:

(...) una vita che non può mai essere separata dalla sua forma, una vita in cui non è

mai possibile isolare qualcosa come una nuda vita. [...]. Una vita che non può

essere separata dalla sua forma, è una vita per la quale, nel suo modo di vivere, ne

va del vivere stesso, e nel suo vivere, ne va innanzitutto del suo modo di vivere.

Che cosa significa questa espressione? Essa definisce una vita – la vita umana – in

cui i singoli modi, atti e processi del vivere non sono mai simplicimente fatti, ma

sempre e innanzitutto possibilitá di vita, sempre e innanzitutto potenza.”

(AGAMBEN, 1996, p. 13-14).

Utilizando-se dos hífens para demarcar a inseparabilidade ontológico-política do conceito de forma-di-vita, Agamben dá a ver um sentido positivo da vida nua. Olhando atentamente, o corpo biopolítico pode ser objeto de uma afirmação cujo conteúdo é a de uma forma de vida “toda vertida na vida nua, um bíos que é somente a sua zoé” (AGAMBEN, 2007, p. 194). Ao mesmo tempo, forma-de-vida é a vida na qual já não se pode isolar qualquer coisa como uma vida nua – uma vida que não pode ser separada de sua forma.

Nesse ponto, intervém a vida nua como conceito ético-político; se, de um lado, a vida humana é assim predicada por sua forma, persiste uma negatividade de fundo, intrínseca àquilo que Agamben chama macchina antropologica.

O que define a máquina antropológica – antiga ou moderna – é a contradição que, segundo Agamben, estaria em obra em nossa cultura

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(AGAMBEN, 2002, p. 42). Nela, está em jogo a produção do humano através da oposição “homem/animal”, “humano/inumano”; eis o que elucida o mecanismo de captura da vida nua pelo biopoder: tomando por base essas oposições, a máquina funcionaria necessariamente por meio de uma exclusão (que, segundo Agamben, é sempre já uma captura) e uma inclusão (que é sempre já uma exclusão), nessa articulação entre dentro e fora, exclusão e inclusão, que é, no fundo, uma zona de indeterminação, um espaço de exceptio. O que deve ser obtido não é nem uma vida humana, nem uma vida animal, mas propriamente uma vida separada e excluída de si mesma, ou, como diz Agamben, “soltanto una nuda vita” (AGAMBEN, 2002, p. 43).

Esse isolamento da vida nua por um dispositivo antropológico, que recorta e articula a forma humana sobre o suporte biológico do ser humano implica, pois, a sacralização da parcela de positividade intrínseca ao conceito de vida nua. Isolada da vida nua, a forma de vida humana é puramente atual – isto é, absolutamente impotente. Para dotá-la de um princípio de agitação, é necessário, antes de tudo, desativar os dispositivos de captura da vida pelo mecanismo biopolítico. Em um mesmo gesto filosófico, pensar a forma de vida inseparável da vida nua, isto é, como forma-di-vita, cujos modos de existência tornam-se variáveis e potentes unicamente ao passo em que a variação contínua da vida nua aplica-se à inoperosidade (NANCY, 1990) das formas de vida.

Na medida em que se afirma um bíos que é unicamente sua zoé, como Agamben sugere ao final do primeiro volume do tríptico inacabado Homo sacer, desfaz-se a captura da nudez da vida que sustentava as formas de vida puramente atuais. Justamente aí, onde pudemos desentocar a vida nua como uma biopotência, como princípio de uma variação contínua das formas de existência, dela já inseparáveis, podemos extrair – em proximidade àquilo que Deleuze referia com suas hecceidades, processos de individuação e com o conceito de uma vida... (DELEUZE, 2003, p. 359-363) –, uma forma de vida já não mais separada daquilo que uma vida... pode. A um só tempo, resta esclarecida, ao menos por ora, a dimensão ético-política do conceito de vida nua, e a atualidade do problema de se pensar sua afirmação como uma tarefa, não apenas da política que vem, mas de um devir que desafia à própria metafísica. Nesse sentido, Agamben nos fala de uma filosofia da vida que vem (2005), como Deleuze convida a pensar uma vida... como a própria imanência – pois a subjetivação, a forma-homem, é o que pôde constituir, até hoje, a mais bem-acabada obra do dispositivo biopolítico.

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Referências

ALLIEZ, Éric. Deleuze: filosofia virtual. São Paulo: Editora 34, 2000.

AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica Torino: Bollati Boringhieri, 1996.

______. L’Aperto: l’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.

______. Estado de exceção. Homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. L’immanenza assoluta. In: ______. La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2005, p. 377-404.

______. O poder soberano e a vida nua. Homo sacer I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

______. O que resta de auschwitz: o arquivo e a testemunha. (Homo sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

BICHAT, Marie François Xavier. Recherches phssiologiques sur la vie et la mort. 4. ed. Paris: Béchet Jeune et Gabon, 1822.

DELEUZE, Gilles. Deux régimes des fous. Textes et entretiens (1975-1995). Édition Préparée par David Lapoujade. Paris : Les Éditoins de Minuit, 2003.

NANCY, Jean-Luc. La communauté desœuvrée. Paris : Bourgois, 1990.

SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.