A' VENDA EM TODOS OS KIOSQOES E ROAS o. GAZETA DO...

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/ A' VENDA EM TODOS OS KIOSQDES E RDAS NO PRÓPRIO DIA 20 REIS-DEPOIS 40 REIS GAZETA DO REALISMO (ÓRGÃO DA ULTIMA BOHEMIA) ~»BB^ 'V ) V I S,V 1 ,.X,S, A M, ( ;^ 1 ,„, I ,,,,S,, 1 OK,XOS OS REDACTORES ALPHONSE DAUDET, CATULLE MENDES, ÉMILE :,*V, BRNRST PETOBAD K GUSTAVE PLÀUBgãf EM RELAÇÕES TELEPHONICAS COM OS GOLLABORÀDORES " LBERT W0LFF| EDM0ND ° E G0UC0URT - ERNEST DflUDET ~ " S «**. "LM CURET.E, L ÉON O.ERX, W.LK.E COLL.NS, ETC. PORTO, 23 DE DEZEMBRO EMQUANTO O PANNO NÃO SOBE Gomo os preâmbulos mais curtos são sem- pre os melhores, em duas palavras aqui eslâ como o caso se passou: Tínhamos acabado de jantar, no Louvre, os cinco que de Paris se transportaram ao Porto e.\ i(o para redigir o periódico que tens sob os olhos, leitor severo, pui i dares ares de entendido, tu que não quere- ríamos para copista e que tomamos pari juiz Saturamos em tumulto e em tumulto entra- mos no café, a essa hora em que os frequen- tadores costumam começar a reunir-se ai li. Caixeiros d'escriptorio, estudantes e empre- gados publicos confraternisam. As conversas, tumultuosa^, sujas de obscenidades, arras- tam-se era escândalos, atirados á v das curiosiiíatfes Gargalhadas dulas rebentam, sobem, descem, esfusiam co- mo um fogo de artificio que arde. A p na de arremeço, e por entre o murmur, conversas rèsaltara as pancadas séccas das pedras do gamão no tabolleiro. Do bilhar des- ce até ã salta o ruido das bolas de marfim que se entrechocam. Vendedores de almanachs escoam-se por entre as mesas, pedindo na sua melopea na- sal, li no ar embaciado do fumo do tabaco, que se eleva como uma névoa cada vez mais rareíeila até se perder no estuque grelado em que as sombras das campanulas dos lus- tres oscillam, passam a espaços notas vivas de S s (pio geme o piano. Rodeamos uma das jardineiras do centro da salla, pegajosa de Kermann entornado em que flocos da cinza verde dos nossos charutos poisavam. O Casimiro, que, barbeado co, as pontas da .-ia vala azul cahidas sobre o peito lustroso da camisa, corria em todos os sentidos, grilando promptos á direita e à es- querda, com o seu comprado sorriso obse- queador. passou a loalha paio mármore sujo e collocou deante de nós as chávenas doura- das e òs cálices tremulo-. Bas tomaoo i móka, servido aos go- les o nosso Doppelkiimmel, fumados os nos- sos londrès; rebentou emtodaalinbaafusilaria dos nossos ditos, e os epigrammas saftando projectavam-se em tons as direcções, como um vinho espumoso que faz hastilhas ,! prisão facetada. Mendes cahíra em éxtaze. Feydeau discutia tudo e de todos. Diu- del àpoStròphava Ffaub rri qu i sorria. E Zola acabara por declarar q ie aquelle Dumasitò que danle e ridículo. I,|: " Iguna que vinham en- lo, I!.. ura loiro irrúiriá com o desdém d'um nababo, M.. celebre pelo nome pittoresco de Kilometro 39, de que usa urbi et orbi. Quando, de repente, não se sabe como, o pallido baronete, de L..., que entre- gara á portão se:i tilbury anvernisado ao peqaeaogroom, negro, deixou catar esta blas- pbemia. —A Bohemia está m »rl i! Miirger morreu no hospital e na rui Lourcine o cadáver de Nerval ainda pende 11 ( | 0 lampeão. Houve u n —Como! urbirílades elle para Mil a dizer?! A Bmedoia existe a existirá, emquanto no altar da vida a ilide com- mungar a alegria. Crusavam seas inlerpellaeõese Feydeau que acabara de limpar o seu monóculo de cristal á baliste perfumida, oaiieau d'amow que lhe dera a con de X.. ., clamou, colérico: —Prove-seja aos incre hl >< que ainda te a fé. Vou fulminar aqui mesmo a burguesia que se corrompei Chamaram Mendes que chegou d'alli a pou- andava via- jando: —E eu, disse, vou fiz tmelius de mi- lhares d: !fn >. p, v ,bjrgo ca- bem aos pés di Patti. —Pois nó3, gritaram a ura tempo os três restantes, escreveremos um conto, iriuinphal como uma symphonia de Wagner e fresco como uma pétala de rosa beijada do orvalho da ma- nhã. Feydeau puchou da sua carteirasita que no Oleou, n'umi festa |e caridade, comprara a M."o Croizette por mii francos. Arrancou- lhe alguns velino?, e depois de ter escri- pto, passou a sua lapiseira de oiro ao que se lhe seguia. A' hora dos plianUsmas de RadclilTe estava tudo ledo. E Léon Dierx, que chegara do seu cercle, informado do que occorrera, im- provisou alli logo os <>us versos, d'uma iro- nia crua. vibrante de verdade. Decidiu-se então fundar um jornal, quer dizer, desfral- dar uma bandeira. E ao outro dia espalharam-se esses prospe- ruidosos que fizeram relrahir os capitães e desccl ' a titulas na fíuurse da Cilé e nosgibiiieles dos banqueiros inglezes. SSntia-se que alguma coisa de grav principiar e as chi:, lin à ,,.„. car notas mysteriosas em cifra. PALAVRAS D'UM BOHEMIO E aqui está comi tens hoje deante de li. leitor rheumatico, a prova de que essa feli- cidadeio ' iraparay ild i p i^uir moqidade ainda uào fatw Se todo a esta terra da pátria, que iil o mostra o appirecimenl) d'esle quarto de folha d,' ia, ain la humi lo da como a bôcca de bebé dos lábios da m palpitante do sopro do enthusiasmo como um iosò pivii.: j„| Alphonse D-i Ku não venho cantar as virgens gloriosas. As brizas muzicaes, os lírios e as r A voz da cotovia e a In/, da madrugada' rudo o que ás vezes diz a sua doce amada. um astro do asphalto, um mimoso caixeiro Com olhos de malandro c rosto prazenteiro renho decantar as Desdémona»crueís Que tem a cada esquina adoradores Seis: —i m grande batalhão de sublimes otMlos. Armados de punhaes, em rralda e de cdiinellos Eu sou um bom rapa/: de naek 6 de bigode, Prompto para uma cHarge e pio.,,pi,, pra 0 pagode. Amante do vermelho e amante do imprevisto, do do ba e do Cluisto, De tudo qua ixcentrii sagrado: Desde, \fími Pinson a um l iuro embriagado ro a casta rapariga, A quem n ,, ;i |j,, a >, loueo damor e louco de prazer. Eu faço um bom soneto á formosa mulher Que me esmagar est'alma a ponta-pés ruidosos Ha muito que umrreu o triste romantismo Coitado; duma dòr atroz de rlii-iimad-mm' He tanto andar ao vento e a chova a suspirar mste como um jumento e mau como um jaguar Por uns olhos febris que vira dia. ' Ao romper da manhã, á voz da cotovia. O tempo passou dos ais , das campinas nas vjrginaes paixões, dos anjos e bonirtas; De mil cousas emlini que não valem talvez Mesmo um pastel de nata ou um copo de Xerez 1 '«do qner amor apimentado ''• »*" do rftfc amaueirado, as Vénus de Zola; Guerreia-se a realeza e o velho Jenovabj Abre-se um lupanar no cor ente ita-se no azul allociuadamente. E no meio do can-can. augusto e infernal Chamado Vida Humana ou Farea Social Entre o rumor do nmndo-o furte cyclone-p Ouflj-se de quando em quando a phrase de Cainhronne Cahir sobre os une vSo borribardeando os ilancos uva- de i>»Hs-iio,is e de lifctóe? brancosi * * * loWgfcUfe:-e louras trancas las raindas creanças A alegria vibrante e o? sonhos ,,,/ li*,* "' :'" -i IH-II.í olhar Mthusiasmâdo entlo, não alexandrinos j MDI10J ' diainaulinos. Dar assim expansão á luz ir aos doces trovador modos theatraes e p ; ,t es [uadras 3em nexo, anèniicas e doentes Istar um coração, qoè adoro Com vagas um dia e um sorriso e n'outro , ij 0 to o meu desejo a labrita pus festins de Aspazial i vinde vér pallido clarão dos sonhos do URU Que in '"'"• li " to Chiado IU da Nova Muza-a [||lw Inimigi E dos bard impor uns Hl0s Na fyra de \ idal, de I Eu amo a grande luz da mnza A' VENDA EM TODOS OS KIOSQOES E ROAS o. NO PROPRIO DIA 20 REIS-DEPOIS 40 REIS GAZETA DO REALISMO (ORGÃO DA ULTIMA BOHEMIA _ RRDRJID0 NO CMUSBOMM, AONDE. ENÃRE AS DEÍ E AS ONZE, SÃO V, S ,VE.S. NA SOA MAGNANIMIDADE, AOS RROEANOS OS REDACTORES ALPHONSE DAUDET, CATDLLE MENDES, ÉMILE ;^A, ERNEST PEYOEAD E CUSTAVE FLAUBERT EM RELAÇÕES TELEPHONES COM OS COLLABORÀDORES ALBERT W0LFF ' EDM0 " D GOUCOURT, ERNEST DAUDET, FRANÇOIS COPPÉE, JULES CLARETIE, LÉON DIERX, W.LKIE COLL.NS, ETC. PORTO, 23 DE DEZEMBRO EMQUANTO 0 PANNO NÃO SOBE Como os preâmbulos mais curtos são sem- pre os melhores, em duas palavras aqui está como o caso se passou: Tínhamos acabado de jantar, no Louvre, os cinco que de Paris se transportaram ao Porto expressamente para redigir o periódico que tens sob os olhos, leitor severo, para te dares ares de entendido, tu que não quere- ríamos para copista e que tomamos para juiz. Sahiramos em tumulto e em tumulto entra- mos no cafe, a essa hora em que os frequen- tadores costumam começar a reunir-se alli. Caixeiros d'escriptorio, estudantes e empre- gados públicos confraterni.sam. As conversas, tumultuosas, sujas de obscenidades, arras- tara-se em escândalos, atirados á voracidade das curiosidades doehtès. Gargalhadas estri- dulas rebentam, sobem, descem, esfusiam co- mo um fogo de artificio que arde. A peauenps ixitenuatjo a Date, "linpa- da de arremeço, e por entre o inurmurio das conversas résaitam as pancadas séccas das pedras do gamão no tabolleiro. Do bilhar des- ce alé á salla o ruido das bolas de marfim que se entrechocam. Vendedores de almanachs escoam-se por entre as mesas, pedindo na sua melopea na- sal. E no ar embaciado do fumo do tabaco, que se eleva como uma névoa cada vez mais rarefeila até se perder no estuque gretado em que as sombras das campanulas dos lus- tres òscillam, passam a espaços notas vivas de seguiclillfis que geme o piano. Rodeamos uma das jardineiras do centro da salla, pegajosa de Kermann entornado em que flocos da cinza verde dos nossos charutos poisavam. 0 Casimiro, que, barbeado de fres- co, ás pontas da gravata azul cahidas sobre o peito lustroso da camisa, corria em todos os sentidos, gritando promptos á direita e à es- querda, com o seu comprado sorriso obse- queador, passou a toalha pelo mármore sujo e collocou deante de nós as cliavenas doura- das e os cálices trémulos. Mas tomado o nosso móka, servido aos go- les o nosso Doppél-kummel, fumados os nos- sos lohdrès, rebentou erntodaalinhaafusilaria dos' nossos ditos, è os epigrammas saltando projectavam-se em todas as direcções, como um vinlio espumoso que faz bastilhas da sua prisão facetada. Mendès cahira em extaze. Feydeau discutia à tort et à tràvers de tudo e de todos. Daú- del aposlrophava Flaubert que sorria. E Zola acabara por declarar que ia afinal desfazer aquell'e Domasito que estava sendo petulante e ridículo. Juntaram se a nós alguns que vinham en- trando, R., um loiro que se arruina com o desdem d'um nababo, M., celebre pelo nome pittoresco de Kilometro 39, de que usa urbi et orbi. Quando, de repente, não se sabe como, o pallido baronete de L..., que entre- gara á portão seu tilbury envernisado ao seu pequeuotfnxm negro, deixou cabir esta blas- phemia. A Bohemia está morta! Miirger morreu no hospital e na rua Lourcine o cadaver de Nerval ainda pende da travessa de ferro do lampeão. Houve um tolle gerai. —Como?!Q.ie birbiril ijeseslava elle para alli a dizer?! A B>lu.nia existe e existirá ernquanto no altar da vida a mocidade com- mungar a alegria. Crusavam seas inierpellações e Feydeau que acabara de limpar o seu mouoculo de cristal â batiste perfumada, cacleau d'amour que lhe dera a condessiuha de N..., clamou, colérico: —Prove-sejá aos incrédulos que ainda exis- te a fé. Vou fulminar aqui mesmo a burguesia que se corrompei Chamaram Mendés que chegou d'alli a pou- co do pai», d •: MQhu r'<"'Dude andava via- jando: —E eu, disse, vou fazer, ãlkta Jrjnos,. vo.- rneliios. mtdaote-N, o,.ino as camélias de mi- lhares de rublos qii ern S. Pmersbargo ca- bem aos pés da Patti. —Pois nós, gritaram a ura tempo os tres restantes, escreveremos um conto, triumphal como urna syrnphonia de Wagner e fresco como uma pétala de rosa beijada do orvalho da ma- nhã. Feydeau púchou da sua carteirasita que no 0 léon, n uma festa de caridade, comprara a M Croizette por mii francos. Arrancóu- lbe alguns velinos, e depois de ter escri- plo, passou a sua lapiseira de oiro ao que se lhe seguia. A' hora dos phantasmas de Radcliffe estava tudo leito. E Léon Dierx, que chegara do seu cercle, informado do que occorrera, im- provisou alli logo os seus versos, d'uma iro- nia criia, vibrante de verdade. Decidiu-se então fundar um jornal, quer dizer, desfral- dar uma bandeira. . E ao outro dia espalharam-se esses prospe- ctos ruidosos que fizeram retrahir os capitães e descer a colação dos títulos na Bourse da Cité e nos gabinetes dos banqueiros inglezes. SSntia-se que alguma coisa de grave ia principiar e as chancéllarias começaram a tro- car notas misteriosas em cifra. PALAVRAS D'UM BOHEMIO E aqui está com) tens boje deante de li, leitor rlieumalico, a prova de que' essa feli- cidade i.ucorap travei de possuir mocidade ainda não falta de todo a esta terra da patria, que tal o mostra o app irecimento d'esle quarto de folha de impressão ainda húmido da tinta como a bôcca de bebé dos lábios da mãe e palpitante do sopro do entbusiasmo como um glorioso pavilhão despregado no Azul. Alphonse Daudct Eu não venho cantar as virgens gloriosas As brizas muzicaes, os lírios e as rosas.' A voz da cotovia e a luz da madrugada' Tudo o que ás vezes diz á sua (Jòce amada, ura astro do asphalto, um mimoso caixeiro Com olhos de malandro e rosto prazenteiro Nem venho decantar as Desdêmona»cruéis. Que têm a cada esquina adoradores fieis: —Cm grande batalhão de sublimes Othellos. Armados de punhaes. em fralda e de chineilos Eu sou um bom rapaz de frank e de bigode, Prompto para uma charge e prompto p'ra o pagode. Amante do vermelho e amante do imprevisto Costa,.do do banzé, dos gatos e do Christo, De tudo quanto seja excêntrico e sagrado: Desde, .l/mu Pinson a um touro embriagado Por isso. eu tanto adoro a casta rapariga, A quem não posso vòr os seios mis e a liga, Como, ioueo d'amor e loueo'dc prazer. Eu faço um bom soneto á formosa mulher (Jue me esmagar esfaima a imnta-pés ruidosos E entornar dentro na mim venenosos. Ha muito que morreu o triste romantismo Coitado, duma dór atroz de rheuinatismo' De tanto andar ao vento e á chuva a suspirar l riste como um jumento e mau como um jaguar Por uns olhos febris que vira em certos dia ' Ao romper da manhã, á voz da cotovia. ' O tempo ja passou dos ais e das campinas. Das virginaes paixões, dos anjos e boninas: De nnl cousas emlim que não valem talvez Mesmo um pastel de nata ou um copo de Xerez Hoje so tudo quer um amor apimentado l'< sorrisos sensuaes. do rhic amaneirado, Que taz endoudecer as Venus de Zola- Guerreia se a realeza e o velho Jehovah: Abre-se um lupanar no coração da gente E esearra-.se no azul allncinadamente. E no meio do can-can. augusto e infernal. Chamado \ ida Humana ou Parca Social Entre o ruuior do inundo-o forte cvrlone— Ouft-se de quando em quando a phràse de Cambronne Cahir sobre os que vao bombardeando os flancos Com salvas de bons-bons e de lilazes brancos! * * * O deusas do lligh-lifeeu amo as louras tranças Os seios immortaes das pallidas creancas ' A alegria vibrante e os sonhos do boulevard E ao ver um rosto hello e ao vòr um hello olhar Enthusiasmado então, não vou em alexandrinos Sonoros e fataes. claros e diamantinos, ' Dar assim expansão á luz dos mous amores (.orno vejo fazer aos dóces trovadores Com modos theatraes e phrases impudentes, Em quadras sem nexo. aneniiras e doentes Gosto de conquistar um corarão, qne adoro Com vagas sensações em cartas de namoro. Pedindo pouco a pouco aquillo (pie desejo: Um dia 6 um sorriso e n'outro dia um beijo Depois uma entrevista e em seguida então Entrego o meu desejo á In brita expansão Dos bons festins de Aspazia! ó deusas, vinde vér U pallido clamo dos sonhos do prazer Que irrompe, como um sol éspiritiialisado Dos dandys do Suisso e dos c.rivés do Chiado Eu sou da Nova Muza-a (ilha da Sriencia Inimiga cruel da negra decadência E dos bardos gentis, dos pallidos românticos Que inda andam a compor uns imiocentes cânticos Na lyra de Vidal, de Lemos, de Cordeiro Eu amo a grande luz da inuza de Junqueiro

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A' VENDA EM TODOS OS KIOSQDES E RDAS NO PRÓPRIO DIA 20 REIS-DEPOIS 40 REIS

GAZETA DO REALISMO (ÓRGÃO DA ULTIMA BOHEMIA)

~»BB^ 'V)VIS,V1,.X,S,AM,(;^1,„,I,,,,S,,1OK,XOS OS REDACTORES

ALPHONSE DAUDET, CATULLE MENDES, ÉMILE :,*V, BRNRST PETOBAD K GUSTAVE PLÀUBgãf

EM RELAÇÕES TELEPHONICAS COM OS GOLLABORÀDORES

"LBERT W0LFF| EDM0ND °E G0UC0URT- ERNEST DflUDET~ "™S™ «**. "LM CURET.E, LÉON O.ERX, W.LK.E COLL.NS, ETC.

PORTO, 23 DE DEZEMBRO

EMQUANTO O PANNO NÃO SOBE

Gomo os preâmbulos mais curtos são sem- pre os melhores, em duas palavras aqui eslâ como o caso se passou:

Tínhamos acabado de jantar, no Louvre, os cinco que de Paris se transportaram ao Porto e.\ i(o para redigir o periódico que tens sob os olhos, leitor severo, pui i • dares ares de entendido, tu que não quere- ríamos para copista e que tomamos pari juiz

Saturamos em tumulto e em tumulto entra- mos no café, a essa hora em que os frequen- tadores costumam começar a reunir-se ai li. Caixeiros d'escriptorio, estudantes e empre- gados publicos confraternisam. As conversas, tumultuosa^, sujas de obscenidades, arras- tam-se era escândalos, atirados á v das curiosiiíatfes Gargalhadas dulas rebentam, sobem, descem, esfusiam co- mo um fogo de artificio que arde.

A p na de arremeço, e por entre o murmur, conversas rèsaltara as pancadas séccas das pedras do gamão no tabolleiro. Do bilhar des- ce até ã salta o ruido das bolas de marfim que se entrechocam.

Vendedores de almanachs escoam-se por entre as mesas, pedindo na sua melopea na- sal, li no ar embaciado do fumo do tabaco, que se eleva como uma névoa cada vez mais rareíeila até se perder no estuque grelado em que as sombras das campanulas dos lus- tres oscillam, passam a espaços notas vivas de S s (pio geme o piano.

Rodeamos uma das jardineiras do centro da salla, pegajosa de Kermann entornado em que flocos da cinza verde dos nossos charutos poisavam. O Casimiro, que, barbeado dè co, as pontas da .-ia vala azul cahidas sobre o peito lustroso da camisa, corria em todos os sentidos, grilando promptos á direita e à es- querda, com o seu comprado sorriso obse- queador. passou a loalha paio mármore sujo e collocou deante de nós as chávenas doura- das e òs cálices tremulo-.

Bas tomaoo i móka, servido aos go- les o nosso Doppelkiimmel, fumados os nos- sos londrès; rebentou emtodaalinbaafusilaria dos nossos ditos, e os epigrammas saftando projectavam-se em tons as direcções, como um vinho espumoso que faz hastilhas ,! prisão facetada.

Mendes cahíra em éxtaze. Feydeau discutia tudo e de todos. Diu-

del àpoStròphava Ffaub rri qu i sorria. E Zola acabara por declarar q ie aquelle Dumasitò que danle e ridículo.

■I,|:" Iguna que vinham en- lo, I!.. ura loiro irrúiriá com o

desdém d'um nababo, M.. celebre pelo

nome pittoresco de Kilometro 39, de que usa urbi et orbi. Quando, de repente, não se sabe como, o pallido baronete, de L..., que entre- gara á portão se:i tilbury anvernisado ao peqaeaogroom, negro, deixou catar esta blas- pbemia.

—A Bohemia está m »rl i! Miirger morreu no hospital e na rui Lourcine o cadáver de Nerval ainda pende 11 „ (|0

lampeão. Houve u n —Como! urbirílades elle para

Mil a dizer?! A Bmedoia existe a existirá, emquanto no altar da vida a m» ilide com- mungar a alegria.

Crusavam seas inlerpellaeõese Feydeau que acabara de limpar o seu monóculo de cristal á baliste perfumida, oaiieau d'amow que lhe dera a con de X.. ., clamou, colérico:

—Prove-seja aos incre hl >< que ainda te a fé. Vou fulminar aqui mesmo a burguesia que se corrompei

Chamaram Mendes que chegou d'alli a pou- ■ • andava via-

jando: —E eu, disse, vou fiz

tmelius de mi- lhares d: !fn >. p, v,bjrgo ca- bem aos pés di Patti.

—Pois nó3, gritaram a ura tempo os três restantes, escreveremos um conto, iriuinphal como uma symphonia de Wagner e fresco como uma pétala de rosa beijada do orvalho da ma- nhã.

Feydeau puchou da sua carteirasita que no Oleou, n'umi festa |e caridade, comprara a M."o Croizette por mii francos. Arrancou- lhe alguns velino?, e depois de ter escri- pto, passou a sua lapiseira de oiro ao que se lhe seguia.

A' hora dos plianUsmas de RadclilTe estava tudo ledo. E Léon Dierx, que chegara do seu cercle, informado do que occorrera, im- provisou alli logo os <>us versos, d'uma iro- nia crua. vibrante de verdade. Decidiu-se então fundar um jornal, quer dizer, desfral- dar uma bandeira.

E ao outro dia espalharam-se esses prospe- ruidosos que fizeram relrahir os capitães e

desccl' a titulas na fíuurse da Cilé e nosgibiiieles dos banqueiros inglezes.

SSntia-se que alguma coisa de grav principiar e as chi:, lin à ,,.„. car notas mysteriosas em cifra.

PALAVRAS D'UM BOHEMIO

E aqui está comi tens hoje deante de li. leitor rheumatico, a prova de que essa feli- cidadeio ' iraparay ild i p i^uir moqidade ainda uào fatw Se todo a esta terra da pátria, que iil o mostra o appirecimenl) d'esle quarto de folha d,' ia, ain la humi lo da como a bôcca de bebé dos lábios da m palpitante do sopro do enthusiasmo como um

iosò pivii.: j„|

Alphonse D-i

Ku não venho cantar as virgens gloriosas. As brizas muzicaes, os lírios e as r A voz da cotovia e a In/, da madrugada' rudo o que ás vezes diz a sua doce amada. um astro do asphalto, um mimoso caixeiro Com olhos de malandro c rosto prazenteiro

renho decantar as Desdémona»crueís Que tem a cada esquina adoradores Seis: —i m grande batalhão de sublimes otMlos. Armados de punhaes, em rralda e de cdiinellos Eu sou um bom rapa/: de naek 6 de bigode, Prompto para uma cHarge e pio.,,pi,, pra 0 pagode. Amante do vermelho e amante do imprevisto,

■do do ba e do Cluisto, De tudo qua ixcentrii sagrado: Desde, \fími Pinson a um l iuro embriagado

ro a casta rapariga, A quem n ,, ;i |j,,a

>, loueo damor e louco de prazer. Eu faço um bom soneto á formosa mulher Que me esmagar est'alma a ponta-pés ruidosos

Ha muito que umrreu o triste romantismo Coitado; duma dòr atroz de rlii-iimad-mm' He tanto andar ao vento e a chova a suspirar mste como um jumento e mau como um jaguar Por uns olhos febris que vira dia. ' Ao romper da manhã, á voz da cotovia. O tempo já passou dos ais ,■ das campinas nas vjrginaes paixões, dos anjos e bonirtas; De mil cousas emlini que não valem talvez Mesmo um pastel de nata ou um copo de Xerez

1 '«do qner amor apimentado ''• »*" do rftfc amaueirado,

as Vénus de Zola; Guerreia-se a realeza e o velho Jenovabj Abre-se um lupanar no cor ente

ita-se no azul allociuadamente. E no meio do can-can. augusto e infernal Chamado Vida Humana ou Farea Social Entre o rumor do nmndo-o furte cyclone-p Ouflj-se de quando em quando a phrase de Cainhronne Cahir sobre os une vSo borribardeando os ilancos

uva- de i>»Hs-iio,is e de lifctóe? brancosi

* * *

loWgfcUfe:-e louras trancas las raindas creanças

A alegria vibrante e o? sonhos ,,,/■ li*,* "'■:'"■ -i IH-II.í olhar Mthusiasmâdo entlo, não alexandrinos jMDI10J ' diainaulinos. Dar assim expansão á luz

ir aos doces trovador modos theatraes e p ;,tes [uadras 3em nexo, anèniicas e doentes

Istar um coração, qoè adoro Com vagas

um dia e um sorriso e n'outro , ij0

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A' VENDA EM TODOS OS KIOSQOES E ROAS o. NO PROPRIO DIA 20 REIS-DEPOIS 40 REIS

GAZETA DO REALISMO

(ORGÃO DA ULTIMA BOHEMIA

_ RRDRJID0 NO CMUSBOMM, AONDE. ENÃRE AS DEÍ E AS ONZE, SÃO V,S,VE.S. NA SOA MAGNANIMIDADE, AOS RROEANOS

OS REDACTORES

ALPHONSE DAUDET, CATDLLE MENDES, ÉMILE ;^A, ERNEST PEYOEAD E CUSTAVE FLAUBERT

EM RELAÇÕES TELEPHONES COM OS COLLABORÀDORES

ALBERT W0LFF' EDM0"D GOUCOURT, ERNEST DAUDET, FRANÇOIS COPPÉE, JULES CLARETIE, LÉON DIERX, W.LKIE COLL.NS, ETC.

PORTO, 23 DE DEZEMBRO

EMQUANTO 0 PANNO NÃO SOBE

Como os preâmbulos mais curtos são sem- pre os melhores, em duas palavras aqui está como o caso se passou:

Tínhamos acabado de jantar, no Louvre, os cinco que de Paris se transportaram ao Porto expressamente para redigir o periódico que tens sob os olhos, leitor severo, para te dares ares de entendido, tu que não quere- ríamos para copista e que tomamos para juiz.

Sahiramos em tumulto e em tumulto entra- mos no cafe, a essa hora em que os frequen- tadores costumam começar a reunir-se alli. Caixeiros d'escriptorio, estudantes e empre- gados públicos confraterni.sam. As conversas, tumultuosas, sujas de obscenidades, arras- tara-se em escândalos, atirados á voracidade das curiosidades doehtès. Gargalhadas estri- dulas rebentam, sobem, descem, esfusiam co- mo um fogo de artificio que arde.

A peauenps ixitenuatjo • a Date, "linpa- da de arremeço, e por entre o inurmurio das conversas résaitam as pancadas séccas das pedras do gamão no tabolleiro. Do bilhar des- ce alé á salla o ruido das bolas de marfim que se entrechocam.

Vendedores de almanachs escoam-se por entre as mesas, pedindo na sua melopea na- sal. E no ar embaciado do fumo do tabaco, que se eleva como uma névoa cada vez mais rarefeila até se perder no estuque gretado em que as sombras das campanulas dos lus- tres òscillam, passam a espaços notas vivas de seguiclillfis que geme o piano.

Rodeamos uma das jardineiras do centro da salla, pegajosa de Kermann entornado em que flocos da cinza verde dos nossos charutos poisavam. 0 Casimiro, que, barbeado de fres- co, ás pontas da gravata azul cahidas sobre o peito lustroso da camisa, corria em todos os sentidos, gritando promptos á direita e à es- querda, com o seu comprado sorriso obse- queador, passou a toalha pelo mármore sujo e collocou deante de nós as cliavenas doura- das e os cálices trémulos.

Mas tomado o nosso móka, servido aos go- les o nosso Doppél-kummel, fumados os nos- sos lohdrès, rebentou erntodaalinhaafusilaria dos' nossos ditos, è os epigrammas saltando projectavam-se em todas as direcções, como um vinlio espumoso que faz bastilhas da sua prisão facetada.

Mendès cahira em extaze. Feydeau discutia à tort et à tràvers de tudo e de todos. Daú- del aposlrophava Flaubert que sorria. E Zola acabara por declarar que ia afinal desfazer aquell'e Domasito que estava sendo petulante e ridículo.

Juntaram se a nós alguns que vinham en- trando, R., um loiro que se arruina com o desdem d'um nababo, M., celebre pelo

nome pittoresco de Kilometro 39, de que usa urbi et orbi. Quando, de repente, não se sabe como, o pallido baronete de L..., que entre- gara á portão seu tilbury envernisado ao seu pequeuotfnxm negro, deixou cabir esta blas- phemia.

A Bohemia está morta! Miirger morreu no hospital e na rua Lourcine o cadaver de Nerval ainda pende da travessa de ferro do lampeão.

Houve um tolle gerai. —Como?!Q.ie birbiril ijeseslava elle para

alli a dizer?! A B>lu.nia existe e existirá ernquanto no altar da vida a mocidade com- mungar a alegria.

Crusavam seas inierpellações e Feydeau que acabara de limpar o seu mouoculo de cristal â batiste perfumada, cacleau d'amour que lhe dera a condessiuha de N..., clamou, colérico:

—Prove-sejá aos incrédulos que ainda exis- te a fé. Vou fulminar aqui mesmo a burguesia que se corrompei

Chamaram Mendés que chegou d'alli a pou- co do pai», d •: MQhu r'<"'Dude andava via- jando:

—E eu, disse, vou fazer, ãlkta Jrjnos,. vo.- rneliios. mtdaote-N, o,.ino as camélias de mi- lhares de rublos qii • ern S. Pmersbargo ca- bem aos pés da Patti.

—Pois nós, gritaram a ura tempo os tres restantes, escreveremos um conto, triumphal como urna syrnphonia de Wagner e fresco como uma pétala de rosa beijada do orvalho da ma- nhã.

Feydeau púchou da sua carteirasita que no 0 léon, n uma festa de caridade, comprara a M "° Croizette por mii francos. Arrancóu- lbe alguns velinos, e depois de ter escri- plo, passou a sua lapiseira de oiro ao que se lhe seguia.

A' hora dos phantasmas de Radcliffe estava tudo leito. E Léon Dierx, que chegara do seu cercle, informado do que occorrera, im- provisou alli logo os seus versos, d'uma iro- nia criia, vibrante de verdade. Decidiu-se então fundar um jornal, quer dizer, desfral- dar uma bandeira. .

E ao outro dia espalharam-se esses prospe- ctos ruidosos que fizeram retrahir os capitães e descer a colação dos títulos na Bourse da Cité e nos gabinetes dos banqueiros inglezes.

SSntia-se que alguma coisa de grave ia principiar e as chancéllarias começaram a tro- car notas misteriosas em cifra.

PALAVRAS D'UM BOHEMIO

E aqui está com) tens boje deante de li, leitor rlieumalico, a prova de que' essa feli- cidade i.ucorap travei de possuir mocidade ainda não falta de todo a esta terra da patria, que tal o mostra o app irecimento d'esle quarto de folha de impressão ainda húmido da tinta como a bôcca de bebé dos lábios da mãe e palpitante do sopro do entbusiasmo como um glorioso pavilhão despregado no Azul.

Alphonse Daudct

Eu não venho cantar as virgens gloriosas As brizas muzicaes, os lírios e as rosas.' A voz da cotovia e a luz da madrugada' Tudo o que ás vezes diz á sua (Jòce amada, ura astro do asphalto, um mimoso caixeiro Com olhos de malandro e rosto prazenteiro Nem venho decantar as Desdêmona»cruéis. Que têm a cada esquina adoradores fieis: —Cm grande batalhão de sublimes Othellos. Armados de punhaes. em fralda e de chineilos Eu sou um bom rapaz de frank e de bigode, Prompto para uma charge e prompto p'ra o pagode. Amante do vermelho e amante do imprevisto Costa,.do do banzé, dos gatos e do Christo, De tudo quanto seja excêntrico e sagrado: Desde, .l/mu Pinson a um touro embriagado Por isso. eu tanto adoro a casta rapariga, A quem não posso vòr os seios mis e a liga, Como, ioueo d'amor e loueo'dc prazer. Eu faço um bom soneto á formosa mulher (Jue me esmagar esfaima a imnta-pés ruidosos E entornar dentro na mim venenosos.

Ha muito que morreu o triste romantismo Coitado, duma dór atroz de rheuinatismo' De tanto andar ao vento e á chuva a suspirar l riste como um jumento e mau como um jaguar Por uns olhos febris que vira em certos dia ' Ao romper da manhã, á voz da cotovia. ' O tempo ja passou dos ais e das campinas. Das virginaes paixões, dos anjos e boninas: De nnl cousas emlim que não valem talvez Mesmo um pastel de nata ou um copo de Xerez Hoje so tudo quer um amor apimentado l'< sorrisos sensuaes. do rhic amaneirado, Que taz endoudecer as Venus de Zola- Guerreia se a realeza e o velho Jehovah: Abre-se um lupanar no coração da gente E esearra-.se no azul allncinadamente. E no meio do can-can. augusto e infernal. Chamado \ ida Humana ou Parca Social Entre o ruuior do inundo-o forte cvrlone— Ouft-se de quando em quando a phràse de Cambronne Cahir sobre os que vao bombardeando os flancos Com salvas de bons-bons e de lilazes brancos!

* * *

O deusas do lligh-lifeeu amo as louras tranças Os seios immortaes das pallidas creancas ' A alegria vibrante e os sonhos do boulevard ■ E ao ver um rosto hello e ao vòr um hello olhar Enthusiasmado então, não vou em alexandrinos Sonoros e fataes. claros e diamantinos, ' Dar assim expansão á luz dos mous amores (.orno vejo fazer aos dóces trovadores Com modos theatraes e phrases impudentes, Em quadras sem nexo. aneniiras e doentes Gosto de conquistar um corarão, qne adoro Com vagas sensações em cartas de namoro. Pedindo pouco a pouco aquillo (pie desejo: Um dia 6 um sorriso e n'outro dia um beijo Depois uma entrevista e só em seguida então Entrego o meu desejo á In brita expansão Dos bons festins de Aspazia! ó deusas, vinde vér U pallido clamo dos sonhos do prazer Que irrompe, como um sol éspiritiialisado Dos dandys do Suisso e dos c.rivés do Chiado Eu sou da Nova Muza-a (ilha da Sriencia Inimiga cruel da negra decadência E dos bardos gentis, dos pallidos românticos Que inda andam a compor uns imiocentes cânticos Na lyra de Vidal, de Lemos, de Cordeiro Eu amo a grande luz da inuza de Junqueiro

s

2 GAZETA DO REALISMO

E não esse Ideal, tão pequeno e desfeito, Que até parece andar só doente do peito. Emigrado do sol e roido das estreites. Por isso, abandonae esses poetas,«6 bellas, Correi a ponta-pés o amor sentimental Que vende a dois tostões artigos de moral, Caatharidas, mercúrio e mais estrichnina, Como remédios bons contra a podridão una Que ha muito vae minando a pança dos burguezes, Em dramas de explendor e em baixos entremezes.

Mas cantar a Parvónia :- eis a ideal conquista Das verdes podridões da Eschola Realistai

Calulle Mendes.

ACTUALIDADES (PROFISSÃO DE FÉ)

A sociedade aclual tem predilecção pelo deboche, pelo horrendo.

Os vicios são o penchant da geração mo- derna.

0 oxigénio da alma perdeu as suas proprie- dades vivificantes na atmosphera carregada do carbone da immoralidade.

As tragedias abundam: famílias burguezas, epiledicas de crápula, caminham rapidamente â conquista d'um ideal de podridão e de lodo; a luxuria está p^ndo o paradoxo de mais alta aspiração.

Percorramos os boulevards. Entremos nos cafés, nos theatro», nas cas

O que vemos? O que encontramos? Disfarces preienciosos d'uma miséria real;

phrazes charlainnescas d'um ridículo atroz, d'uma nudez iuexcedivel; desejos desenfreados, apoplelicos; mulheres apbrodisiacas, pallidas, de olhos prelos magníficos, calcinadas de belle- za, entregue? a uma devassidão impudente; creanças de perfis meigos, delicados, lançadas em fujuugueirns ás immundicies devassas.

A si iedade actual é a apotneoseda immora- lidade e da in/rujicf. está minada de costu- mes que excilam nevroses, que produzem ui- lucinações mentaes.

A mulher, o luxo eo dinheiro são le sunge doré dos burguezes. Estes sentem attracções diabólicas pelo con-can, a dança da moda.

As espinhas dorsaes enfraquecem-lhes; a im- potência é geral.

A corrupção elegante é já o ideal dos ra- pazes de 15 annos. Depois apparecem a syphilis, a tuberculose, a escrophula; a fra- queza dos músculos, a perda de faculdades intellectuaes, a melancholia, o ledio da vida, a tristeza idiota.

A miséria, o esterquelineo, a baixeza, eis ahi o que espera toda essa multidão que vive na indecencia, no desaforo, ante um mundo que lhe fornece occasiões varias, d'um viver cons- purcado em que as suas almas pervertidas encontram satisfações deslumbrantes, luclas, orgias hediondas.

Mulheres de 18 annos, frescas, apetitosas, d'uma grande correcção de linhas, de cútis macia, de traços esculpturaes e scintillantes, formosas cocottes, vivem descuidosas e sem consciência da sua degradação infame no troi- sièine dessous- podre da nossa sociedade.

A sua juventude não é eterna: a formosu- ra abandona-as, como um vestido que se des- pe; a sua vida libertina traz-lhes moléstias hediondas e, ou morrem nos hospitaes, ou por ahi vagueiam esfarrapadas pelas ruas, perpetrando descaros.

Estas mulheres, outr'ora radiantes de for- mosura, cheias d'um fogo sublime, eram ata- ca inebriante dos rapazes do bom tom : bebiam cognac, fumavam brecas; hoje, corridas pelo vicio, embebedam-se com aguardente de fi- gos e gastam cigarros dos de doze fortes, não tendo já préstimo nem moral, nem immoral.

Janotas, de flor na bt.ulounière, de sapatos de polimento com os seus grandes laços de seda, piscam surrateiramente o olho às visi- tantes do Paradou, que frequentam as lojas

da rua de Santo António e os passeios públi- cos em dias de musica.

Estes janotas teem todos os defeitos. Eça de Queiroz conseguiu .já caracterisal-os em dous dos seus romances e deu nos assim dous typos, dous caracteres dillerentes, que symbolisam perfeitamente o liujh-life barato, que recorre a todos os crimes, a todas as desvergonhas para viver n'um luxo infame e vicioso, que degrada a humanidade e prejudi- ca a civilisàção: o primo Bazilio e um tal Liba ninho, que não tem duvida nenhuma...

Ernest Feydeau.

AS ANDOEINHAS (VERSOS PARNASIANOS)

Elias iam coitando o azul da immensidade, N"uma doce expansão, ingénua e virginal, Lançando pelo espaço o aroma da saudade Cobrindo os corações n'tun manto de ideal.

Diziam-Ihes adeus oceultos na penumbra ()> melros joriaes e os doces rouxinoes, —Estes cheios da dòr, que o seu cantar ressumbra, Aquelles com a alma alegre dos beroes.

sentado junto ao mar um bardo romanesco, Que tirava da lyra as mais límpidas notas, Tomou aquelle bando audaz e pittoresco Por uma caravana inútil de gaivotas.

O sol então lançava um luminoso feixe De clarões immortaes dum brilho glorioso... E Bobr* o mar somente o olhar meigo d'um peixe Mandava áquelle bando um cântico saudoso.

E ellas iam cortando o azul da immensidade N'unia doce expansão, ingénua e virginal, Lançando pelo espaço •> aroma da saudade, Cubrindo os corações n'um manto de ideal.

li

Moio di» mesmo cm ponto. A gente buliçosa Percorre vivamente o Vasto maradam, —Como um jardim aonde a brisa da manhã Desfolhasse uma a uma as pétalas da rosa.

l'm sabbado feliz! Km frente do hospital EUas surgem num bando alegre e victoiioso. Como quem receiou fugir á bachanal, Aos extasis da luz dulcíssima do gozo:

Como quem receou que um intimo soffrer Lhes fizesse soltar gritos dilacerantes. Como nunca jamais nas horas de prazer Os soltaram por sob os magros estudantes.

E mostrando a biqueira envemisada e fina, Como somente as ha nos velhos entremezes Convidavam assim á sensação divina A ingénua multidão dos crédulos burguezes.

E o immenso labirintho enorme da cidade. Um instante depois, levava-as uma a umá Aos seus antros cruéis, aonde a claridade Não bate n'um lençol álvissimo d'espuma.

I.èon Dierx.

ROMAJNTICISMO *

Esboço de um capitulo inédito da 3." serie dos Rou- gon-Macquard(').

(THEMA PARA AMFI.IKlCAÇUEg)

Sahia-se. Tinham dado n'aquelle momento as onze horas em todas as torres da cidade e as badaladas cabiam no silencio da noite te- nebrosa, pondo no ar humido uma vibração tremula que ia agonisando. Tinha chovido e uma névoa viscosa embaciava de suor os vi- dros das canuagens à espera na porta do theatro.

(•) Nota do revisor:—Com effeito, depois deiNV/íw. o que não será pennittido?

Gente descia a calçada, aconchegada nos seus paletots e contemplando com um ar cons- ternado as espiraes de fumo azul que se ele- vavam dos seus charutos. Garotos, tiritando, apregoavam os jornaes da noite. Cocheiros lançavam em voz rouca reclames á multidão que se apinhava no perystillo. D'onde a onde, pesadamente batiam portinholas arremessadas com estrondo. E uma cocotie, d'uma gentileza venal, saltava com risadinhas as poças que no pavimento da rua junctara a agua cabida.

Recordava com saudade o que no theatro vira. Nos camarotes damas d'uma aristo- cracia alta expunham à luz branca do gaz e ao olhar ardente dos elegantes que da platea as fitavam com as costas voltadas para o pal- co e?paduas mias d'uma pallide.z baça; nos cabellos, d'uns tons quentes e dourados, bri- lhavam camélias vermelhas; e a mão, cal- çada de fina luva branca que apertava junto ao cotovello, descançava-lhes abandonada no velludo escarlate do rebordo dos camarotes.

Era dia de beneficio, um sabbado. Na plateia corriam vagos frémitos que iam

acordar nos corações, sensações enlhusiasma- das, d'um grande brilho vivaz.

Aposlrophes violentas, terriveis, cortavam por vezes a atmosphera enfurnada da salla. E ella, do seu logar da geral, quando olhava toda aqnella vida, sentia-se enlevada em en- thusiasmos desconhecidos.

Ao sahir do theatro, sentia ainda no magro seio uma sensação estranha, como que es- quecendo por vezes a sua profissão miserável. Dobrara a esquina e olhara muito para um janota que ia trauteando a Penhora Angot. —Elle nem sequer reparara! Como era infe- liz! E lá se tinha ido um crusado ao vento!

Entrou em rasa muito zangada, e, vendo a tristeza do seu quarto, d'um aspecto miserá- vel, alumiado por a luz mortiça do candieiro barato, relles, teve um calafrio, ao contemplar a imagem fria e austera da desgraça.

A cama estava por fazer, e viam-se remen- dados os lençoes d'uma côr trigueira, desa- graduvel. Respirnva-se alli um cheiro que o olfacto repellia. A moça viera dizer-lhe se queria cear.

E elki, ;i desgraçada:—Que fosse para o diabo!

E foi encoslar-se ao peitoril da janella, fa- zendo de vez em quando para baixo para a rua psiu, psiu aos frequentadores do bairro que iam passando, apressados.

Mas ninguém entrou e, como ella se dispu- nha a fechar a janella, um ruido de tamancos acordou os echos esquecidos do bairro e uma troça de operários relassos passou, tocando guitarra.

E as notas sentimentaes do fado de Coim- bra, d'uma melodia fácil, foram-se entornan- do no silencio, como um frio de tristeza que escorre- Aquella musica despretenciosa com- moveu-a, sentiu uma vaga necessidade de la- grimas e os seus olhos doces e profundos tor- naram-se húmidos. Como ella era desgraçada, santo Deus! Como era miserando o seu isola- mento inexorável! Os sentimentos castos, as alegria? puras, o ineffavel prazer de ser espo- sa e mãe, tudo um momento leviano perdera e nunca mais, nunca mais !

E a onda das lagrimas subia, subia como um rio que galga os diques e suja do seu vo- mito as terras incultas. Oh ! era demais !

Recolheu para dentro e rompeu n'um largo choro, amargo e inextinguível como o mar.

Mas pancadas pesadas, surdas, soaram na larga porta de carvalho.

—Quem seria ?, pensou, enxugando á pres- sa os olhos. E, chamando a creada:

—Que fosse abrir, que se não demorasse. A creada veiu ; tinha um corpo roliço, gros-

so, com umas proeminências sem côr; na ca- beça um lenço branco que atava na nuca; um vestido de chita. d'uns tons petulantes, cahia- lhe em pregas até os calcanhares.

—Que era?, perguntava. — Que tinham batido, que fosse abrir. E,

com um largo gesto zangado, de maus figu- dos:

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2 GAZETA DO REALISMO

E não esse Ideal, tão pequeno e desfeito, Que até parece andar só doente do peito. Emigrado do sol e roido das estrcllas. Por isso, abandonae esses poetas,-ó bellas, Correi a ponta-pés o amor sentimental Que vende a dois tostões artigos de moral, Cantharidas, mercúrio e mais estrichnina, Como remédios bons contra a podridão lina Que ha muito vae minando a pança dos burguezes, Em dramas de explendor e em baixos entremezes.

Mas cantar a Parvónia eis a ideal conquista Das verdes podridões da Eschola Realistai

Catulle Mendes.

ACTUALIDADES

(PROFISSÃO 1)E FÉ)

A sociedade actual tem predilecção pelo deboche, pelo horrendo.

Os vícios são o penchant da geração mo- derna.

0 oxigénio da alma perdeu as suas proprie- dades vivificantes na atmosphera carregada do carbone da immoralidade.

As tragedias abundam: famílias burguezas, epileeticas de crapula, caminham rapidamente á conquista d'um ideal de podridão e de lôdo; a luxuria está s^ndo o paradoxo de mais alta aspiração.

Percorramos os boulevards. Entremos nos cafés, nos theatros, nas casas.

O que vemos ? 0 que encontramos? Disfarces pietenciosos d'uma miséria real;

pbrazes charlalnnescas d'um ridículo atroz, d'uma nudez inexcedivel; desejos desenfreados, apopleticos: mulheres aphrodisiacas, pallidas, de olhos prelos magníficos, calcinadas de belle- za, entregues a uma devassidão impudente; creanças de perfis meigos, delicados, lançadas em formigueiros .ás im/nundicies devassas.

A sociedade actual é a apolheose da immora- lidade e da intrujice; está minada de costu- mes que excitam necroses, que produzem al- lucinações mentaes.

A mulher, o luxo eo dinheiro são le songe doré dos burguezes. Estes senlem attracções diabólicas pelo can-can, a dança da moda.

As espinhas dorsaes enfraquecem-lhes; a im- potência é geral.

A corrupção elegante é já o ideal dos ra- pazes de 15 annos. Depois apparecem a syphilis, a tuberculose, a escrophula; a fra- queza dos musculos, a perda de faculdades intellectuaes, a melancholia, o ledio da vida, a tristeza idiota.

A miséria, o esterquelineo, a baixeza, eis ahi o que espera toda essa multidão que vive na indecencia, no desaforo, ante um mundo que lhe fornece occasiões varias, d'um viver cons,- purcado em que as suas almas pervertidas encontram satisfações deslumbrantes, luclas, orgias hediondas.

Mulheres de 18 annos, frescas, apetitosas, d'uma grande correcção de linhas, de cutis macia, de traços esculpturaes e scinlillantes, formosas cocottes, vivem descuidosas e sem consciência da sua degradação infame no troi- sième dessous. pôdre da nossa sociedade.

A sua juventude não é eterna: a formosu- ra abandona-as, como um vestido que se des- pe; a sua vida libertina traz-lhes moléstias hediondas e, ou morrem nos hospitaes, ou por ahi vagueiam esfarrapadas pelas ruas, perpetrando descaros.

Estas mulheres, outr'ora radiantes de for- mosura, cheias d'um fogo sublime, eram a ta- ça inebriante dos rapazes do bom tom: bebiam cognac, fumavam brecas; hoje, corridas pelo vicio, embebedam-se com aguardente de fi- gos e gastam cigarros dos de doze fortes, não tendo já préstimo nem moral, nem immoral.

Janotas, de flôr na boutonnière, de sapatos de polimento com os seus grandes laços de seda, piscam surrateiramente o olho às visi- tantes do Paradou, que frequentam as lojas

da rua de Santo Antonio e os passeios públi- cos em dias de musica.

Estes janotas teem todos os defeitos. Eça de Queiroz conseguiu -já caracterisal-os em dous dos seus romances e deu nos assim dous lypos, dous caracteres diflerentes, que symbolisam perfeitamente o high-life barato, que recorre a todos os crimes, a todas as desvergonhas para viver n'um luxo infame e vicioso, que degrada a humanidade e prejudi- ca a civiiisàção: o primo Bazilio e um tal Liba ninho, que não tem duvida nenhuma...

Ernest Feydeau.

AS ANDOKIOTAS

(versos parnasianos)

Elias iam coitando o azul da immensidade, N'uma doce expansão, ingénua e virginal, Lançando pelo espaço o aroma da saudade Cubrindo os corações n'um manto de ideal.

Diziam-lhes adeus occultos na penumbra Os melros joviaes e os doces rouxinoes, —Esles cheios da dôr, que o seu cantar ressumbra, Aquelles com a alma alegre dos heroes.

Sentado junto ao mar um bardo romanesco, Que tirava da lyra as mais límpidas notas, Tomou aquelle bando audaz e pittoresco 1'or uma caravana inútil de gaivotas.

O sol então lançava uni luminoso feixe De clarões immortaes d'um brilho glorioso... E sobre o mar somente o olhar meigo d'um peixe Mandava áquelle bando um cântico saudoso.

E ellas iam cortando o azul da immensidade N'uma doce expansão, ingénua e virginal, Lançando pelo espaço <> aroma da saudade, Cubrindo os corações n'um manto de ideal.

V 11

Moio dia, mesmo em ppnto. A gente buliçosa Percorre vivamente o vasto macadam, —Como um jardim aonde a brisa da manhã Desfolhasse unia a uma as pétalas da rosa.

Um sabbado feliz! Em frente do hospital Elias surgem n'um bando alegre e victorioso. Como quem receiou fugir á bachanal, Aos extasis da luz dulcíssima do gozo;

Como quem receou que um intimo sotTrer Lhes fizesse soltar gritos dilacerantes, Como nunca jamais nas horas de prazer Os soltaram por sob os magros estudantes.

E mostrando a biqueira envernisada e fina, Como somente as ha nos velhos entremezes Convidavam assim á sensação divina A ingénua multidão dos crédulos burguezes.

E o immenso labirintho enorme da cidade. Um instante depois, levava-as uma a umá Aos seus antros cruéis, aonde a claridade Não bate n'um lençol alvíssimo d'espuma.

I.éon Dierx.

R0MANTIC1SM0

Esboço de um capitulo inédito da 3.» serie dos Rou gon-Macquard (•).

(thema para ampi.ificaçòes)

Sahia-se. Tinham dado n'aquelle momento as onze horas em todas as torres da cidade e as badaladas cabiam no silencio da noite te nebrosa, pondo no ar húmido uma vibração tremula que ia agonisano'o. Tinha chovido e uma névoa viscosa embaciava de suor os vi dros das canuagcns á espera na porta do theatro.

(•) Nota do revisor:— Com effeito, depois deAona o que não será permittido?

Gente descia a calçada, aconchegada nos seus paletots e contemplando com um ar cons- ternado as espiraes de fumo azul que se ele- vavam dos seus charutos. Garotos, tiritando, apregoavam os jornaes da noite. Cocheiros lançavam em voz rouca réclames á multidão que se apinhava no perystillo. D'onde a onde, pesadamente batiam portinholas arremessadas com estrondo. E uma cocotte, d'uma gentileza venal, saltav? com risadinhas as poças que no pavimento da rua junctara a agua cahida.

Recordava com saudade o que no theatro vira. Nos camarotes damas d'uma aristo- cracia alta expunham á luz branca do gaz e ao olhar ardente dos elegantes que da platea as fitavam com as costas voltadas para o pal- co espaduas nilas d'uma pallidez baça; nos cabellos, d'uns tons quentes e dourados, bri- lhavam camélias vermelhas; e a mão, cal- çada de fina luva branca que apertava junto ao cotovello, descançava-lhes abandonada no velludo escarlate do rebordo dos camarotes.

Era dia de beneficio, um sabbado. Na plateia corriam vagos frémitos que iam

acordar nos corações, sensações enthusiasma- das, d'um grande brilho vivaz.

Apostrophes violentas, terríveis, cortavam por vezes a atmosphera enfurnada da salla. ! eila, do seu logar da geral, quando olhava toda aqnella vida, sentia-se enlevada em en- thusiasmos desconhecidos.

Ao sahir do theatro, sentia ainda no magro seio uma sensação estranha, como que es- quecendo por vezes a sua profissão miserável. Dobrara a esquina e olhara muito para um janota que ia trauteando a Senhora Angot.

Elie nem sequer reparara! Como era infe- liz! E lá se linha ido um crusado ao vento!

Entrou em casa muito zangada, e, vendo a tristeza do seu quarto, d'um aspecto miserá- vel, alumiado por a luz mortiça do candieiro barato, relies, teve um calafrio, ao contemplar a imagem fria e austera da desgraça.

A cama estava por fazer, e viam-se remen- dados os lençoes d'uma côr trigueira, desa- gradável. Respirava-se ■ alli um cheiro que o olfacto repeli ia. A moça viera dizer-lhe se queria cear.

E elU, a Aesgracada:—Que fosse para o diabo!

E foi encostar-se ao peitoril da janella, fa- zendo de vez em quando para baixo para a rua psiu, psiu aos frequentadores do bairro que iam passando, apressados.

Mas ninguém entrou e, como ella se dispu- nha a fechar a janella, um ruido de tamancos acordou os echos esquecidos do bairro e uma troça de operários relassos passou, tocando guitarra.

E as notas sentimentaes do fado de Coim- bra, d'uma melodia fácil, foram-se entornan- do no silencio, como um frio de tristeza que escorre- Aquella musica despretenciosa com- moveu-a, sentiu uma vaga necessidade de la- grimas e os seus olhos duces e profundos tor- naram-se húmidos. Como ella era desgraçada, santo Deus! Como era miserando o seu isola- mento inexorável ! Os sentimentos castos, as alegria* puras, o ineffavel prazer de ser espo- sa e mãe, tudo um momento leviano perdera e nunca mais, nunca mais !

E a onda das lagrimas subia, subia como um rio que galga os diques e suja do seu vo- mito as terras incultas. Oh ! era demais !

Recolheu para dentro e rompeu n'um largo chôro, amargo e inextinguível como o mar.

Mas pancadas pesadas, surdas, soaram na larga porta de carvalho.

—Quem seria?, pensou, enxugando á pres- sa os olhos. E, chamando a creada:

—Que fosse abrir, que se não demorasse. A creada veiu ; tinha um corpo roliço, gros-

so, com umas proeminências sem côr; na ca- beça um lenço branco que atava na nuca; um vestido de chita, d'uns tons petulantes, cahia- lhe em pregas até os calcanhares.

—Que era?, perguntava. — Que tinham batido, que fôsse abrir. E,

com um largo gesto zangado, de maus Ggu- dos:

GAZETA DO REALISMO

— Que se aviasse; que a não podia aturar; preguiça até li, nem a cama fizera, era de todo! Que fosse abrir a porta da rua!

Ficou pensando:—Áquellas horas, quem se- ria? Um conhecido, decerto. E um grande riso canalha c.xpirou-lhe á flor dos lábios.

—Um lelegramma, que era um telegram- ma, ouviu.

Uma commoção violenta, poderosa, abalou, aquelle corpo alquebrado.—Um telegramma. Ah! Se fosse de Eduardo?!

E recordações doces, avelludadas, d'uma saúde indefinível, vieram passar n^aquelle cé- rebro doente.

Como fora feliz n'esse tempo que tam bre- ve passara! Era ella costureira das Fèrin e, todos os dias, quando embrulhada na sua po- bre capa preta, que lhe dera a madrinha, a snr.a D. Olivia, seguia pelo Bomjardim abai- xo, adcanlando para defóra da orla do seu modesto vestido de chita a biqueira enverni- sada das bptinhas e sorrindo aos ditos eróti- cos dos lojistas que esperavam a freguesia á porta, elle costumava apparecer-lhe, n'u- ma volta de caminho, cW um aspecto riso- nho e eíTusivo; e, todos chegados, enlevados na Musica das suas confidencias simples, re- tardando o passo, com desejos de se abraça- rem alli mesmo, deante da multidão que se crusava, o seu coração palpitava n'um sobre- salto suave, todo inundado de ternura.

E, depois, quando chegados á porta da mo- dista, força era separarem-se, como se aperta- vam as mãos e como se chamavam um ao outro, pretextando esquecimentos frívolos, o que mais azedo tornava o deixarem-se!

—Espera. Escuta, dizia ella. Não faltes á noite.

—Como o poderia suppôr? Se faltaria?! Pois se ella era o seu deus, o seu tudo?! Se nada mais via na terra, nem nada de mais supremo em alegria esperava no ceu!

Oh! E o innefavel contentamento^le irem juntos, á noitinha, com passadinhas miúdas, até próximo de caza d'ella, beijocando-se no escuro e promettendo-se um amor eterno!

Elle era furriel do 18 e jurara casar-se com ella, quando sahisse 2.° sargento, o que estava para mezes, dizia.

Um dia, num domingo de tarde deram-se uma entrevista na Cordoaria. No coreto toca- va uma banda regimental. Costureiras e crea- das de servir passeavam apressadas na gran- de rua larga, tendo sorrisos honestos, d'uma castidade indubitável, para quem as olhava.

—Bem boa, que peixe!, ouvia-se. Isto no Assiz era uma mina!

Viram-se. Olharam-se com um largo olhar amoroso que foi acordar nas suas fibras de- sejos intensos de movimentos apressados, va- gos.

—Então só agora? Tão tarde! Já a não es- perava.

—Que não tinha podido, explicava. Raio do pai que era um dragão. Só agora se poderá vér livre d'elle!

—Que não tinha duvida nenhuma; mais valia tarde que nunca.

E na sua imaginação vieram pintar-se qua- dros lúbricos, d'umagrande violência actual.

—Vamos passear, sim?, disse elle. —Que sim, tudo o que elle quizesse. —Então tudo?—E ria-se. —Tudo, sim, não; e um rubor avermelha-

do, d'um grande pejo honesto, cobria-lhe a fronte como um véu.

—Olha, se queres, vamos alli comer algu- ma coisa áquella casa verde que fica ao pé da Roda.

—Que não, não tinha vontade. —Ora?! Vem. Então?!, insistia. Não me quei-

ras fazer zangar. —Pois sim, que ia. E um sobresalto vio-

lento al> ilou-a completamente. Entraram. E' uma casa larga, suja, com

bancos de pinho que rodeam mezas d'uma còr cebenta.

Umas escadas Íngremes, estreitas, picadas de caruncho conduzem ao primeiro andar.

—Que queriam? Talvez um quarto, sim?

E um sujeito baixo, gordo, d'uma cara bestial- mente alvar, adeantou-se para elles com um sorriso intensamente deslavado, sem vergo- nha.

Deu volta a uma chave e entraram n'uma espécie de cubículo. Elle fechara logo a porta n'uma pressa; e. correndo para ella soffrega- mente, o pensamento fixo na realisação do desejo que lhe agitava o sangue, abraçou-a com effusão e pòz-lhe nas faces uma chuva de beijos cantados.

Sentaram-se na beira da cama de ferro; elle enlaçara-a com a mão esquerda, muito carinhoso, acariciando-a com uns tics d£ quem sabe ser temo e distincto. E com a outra ia- Ihe levantando de vagarinho a fralda da ca- misa.

Instantes depoi3 ella fez ui! E jà se lhe viam as pernas torneadas que se

destacavam suavemente das opulentas coxas, d'um appetite feroz.

A cama começava a mover-se e, rangen- do, a fazer i i i.

Ella, o rosto afogueado, soltos os cabellos e o farto seio descoberto, com o olhar em branco, não se cançava de repelir:

—Mais, filho! Mais! Ai! Ai! Elle então, doido de furor, tomara-lhe as

pernas e lizera-as poisar sobre os seus hom- bros.

E ia pensando:—Que bocado! Que bocado!

Qnando sâhirara os bellos olhos castanhos d'ella, sempre envoltos no fluido amoroso em que nadavam, encheram-se de lagrimas e, n'um tom reprehensivo:

—0 que me foste fazer?!, dizia. 0 que se- rá de mim, se tu me abandonas?

—Nem queria que lhe fallasse u'isso. Aban- donal-a, nunca! Mais depressa o abririam de meio a meio! Que descansasse, que breve havia de ser o seu dia feliz.

Mas, pouco depois, sahira 2.° sargento e fora transferido para um regimento da capi- tal. E sem lhe dizer adeus, sem lhe partici- par coisa alguma, partira!

Como ella se admirava de elle lhe não ap- parecer dois dias a seguir, uma apprehensão negra toldoulhe a alma confiante e, cheia de susto, fura ao quartel, amparada de uma re- solução enfebrecida, e perguntara a um velho cabo, que ia saindo com o cigarro na orelha e a fardeta desabotoada, se podia fallar com o Eduardo Correia, furriel da 5.a 0 cabo pa- rara, ouvindo-a, entre interessado e irónico; e depois:

—Boa está ella, pequena!, respondera com placidez. Aonde vae elle agora, se bem cor- rer? 0 Correia jà sahiu 2." sargento, foi pas- sado para o 5 e, a estas horas, está elle mas é em Lisboa, todo liró. Mas, lá por isso, elle deixou homem por si e não te aíllijas, peque- na, que serei eu o pae de teus filhos. Olha...

Mas ella não o quiz ouvir mais; e, camba- lendo, com os ouvidos cheios de zunidos e as faces tremulas de cólera e vergonha, fugiu- se d'alli, allucinada, embaraçando-se nas saias, tropeçando, sentindo dentro o coração a par- tir-se de dôr.

E, como dobrava a esquina, uma peixeira enfarruscada, de saias arregaçadas, que os vinha fitando, voltou-se para o cabo que pe- tiscava lume na humbreira d'um portal, fazen- do das mãos guarda-vento:

—Seu desalmado!, disse. Veja lá como tracta a pobresinha de Christo?!

—Que diz Você, sua bruxa do inferno?, gri- tou elle, intimamente lisonjeado de ser to- mado por outro, que a arranjo já lambera!

—Olha o raéco?! Passa fora, tarimbeiro, uivou a outra, cheia de rasão, vae para a Praça Nova, pandilha, se não tens que dar de comer em casa á amiga, relaxado!

E, rebolando-se, emquanto elle ria às gar- galhadas, muito sacudidas, affastouse ralhan- do como uma saraivada que passa!

Mas a pobresinha de Christo, ao chegar a casa, entrara como um tufão pela porta do

seu quarto dentro e fora atirar-se sobre a cama, chorando, arrepelando-se.. .

—Era assim que a amava, aquelle traste, pensava. E- ella prompta a sacrificar-lhe tudo, a fazer asneiras, a ir-se para a companhia d'elle. Emquanto elle partia para fora da ter- ra, esquecido d'ella, sem uma palavra, sem uma saudade, sem um beijo, sem uma recor- dação ! Oh ! Os homens eram uns monstros e, áquellas horas, emquanto ella, coitadinha!, para alli se finava de raiva e de dôr, elle em Lisboa passeava de certo a baixa à cata de tolas como ella e ia à noite ao Perna de Pau com qualquer Lola,de saias engommadas, rui- dosas, regar de meio decilitro uma ceia bara- ta de íigado frito com balatas.

N'aqnelle dia não foi à modista nem no que se lhe seguiu; e, como o velho pai que, de- pois da morte da mulher, dera em beberricar, de volta da taberna fronteira, ao cahir da tar- de, com os olhinhos avermelhados e os beiços pegajosos lhe perguntava com um pigarro avinhado se se dispunha agora a passar vida de fidalga, ella que ageitava no fundo d'uma caixa de papelão doirado, com a figura de uma cocotle amarellada na tampa, que ella olhara por vezes com uma vaga admiração invejosa, o seu foulard azul de grandes pregas molles, que elle lhe dera logo no terceiro dia que se conheceram, voltou-se irada, toda arreganha- da n'uma cólera de quem não tem razão:

—Vocemecé que lhe importa com a minha vida?, perguntou. Olhe, não lhe vá eu faltar com o preciso para vocemecé o metter na bar- riga em vinho!

Elle ficou-se atordoado com esta rajada ines- perada, porque era realmente d'ella que elle costumava aos sabbados, quando ella recebia a féria, colher alguns trocos que ia, sollicito, entregar ao da companhia defronte.

Fez as suas desculpas, murmurou: — Oh! Oh!—, e, descrevendo s s, foi-se arrastando até à alcova, em que as costumava coser.

Mas, ao outro dia, ella encheu-se de reso- lução, teve vergonha do seu desalento sem motivo e, depois de ter feito o seu frugal al- moço d'uma caneca de café com leite, sahiu e encaminhou-se para casa da modista.

—Bem tola!, ia pensando pela rua, bem tola em se ralar! E por quem? Por um ingra- to. Não lhe haviam de fallar tão bons e me- lhores do que aquelle pelintra. E enlão a ella, que se sabia tam bonita! Bastava só querer.

Chegara às Fèrin e os ditos das compa- nheiras, que lhe sabiam já da desgraça e lhe perguntavam pelo noivo que abalara, conges- tionaram-a de cólera.

—Bêbedas!, pensava. Não disse coisa alguma; mas, como os ditos

continuassem e as allusões se envenenassem, começou a sentir ódio às mestras e ás outras e logo um vago tédio pelo trabalho e a ap- petecer uma vida fácil e elegante. Pouco a pouco, o desejo de sahir d'aquelle atoleiro, porque ella não era menos que as mais, se foi distendendo na sua alma confrangida, to- mando-a a volupluosidade da preguiça, como um hediondo polypo que envia ao longe os seus tentaculos, que, tenases, revolvem, ar- rancando-o do fundo à superfície, o que de mais recôndito se esconde no intimo do orga- nismo.

Acostumara-se, por esse tempo, a subir a rua de Santo António, á noite, quando sahia da modista e o aspecto fulgurante dos esta- belecimentos elegantes deslumbrava-a, quasi lhe fazia tonturas.

Dentro das lojas, senhoras brancas, cober- tas de rendas, envolvidas pela luz doce dos globos Carcel, discutem preços com caixeiros moços e finos, d'uma pallidez doente. Trens armoriados sobem e descem, sulcando em fi- tas tortuosas o largo raacadam. As vitrines (lammejam e, por detraz do seu reposteiro de crystal, os diamantes incrustados n'um oiro polido despedem sobre o velludo cereja em que poisam tentadoras radiações.

Á porta dos theatros uma multidão elegan.

\

GAZETA DO REALISMO 3

— Que se aviasse; que a não podia aturar; preguiça até li, nem a cama fizera, era de1

todo! Que fosse abrir a porta da rua! Ficou pensando:—Aquellas horas, quem se-1

ria? Dm conhecido, decerto. E um grande riso canalha expirou-lhe á flôr dos lábios.

—Um lelegramma, que era um telegram- ma, ouviu.

Uma commoção violenta, poderosa, abalou, aquelle corpo alquebrado.—Um lelegramma. Ah! Se fôsse de Eduardo?!

E recordações duces, avelludadas, d'uma saúde indefinível, vieram passar n'aquelle cé- rebro doente.

Como fòra feliz n'esse tempo que tam bre- ve passara! Era ella costureira das Féria e, todos os dias, quando embrulhada na sua po- bre capa preta, que lhe déra a madrinha, a snr.a D. Olivia, seguia pelo Bomjardim abai- xo, adeanlando para defóra da orla do seu modesto vestido de chita a biqueira enverni- sada das botinhas e sorrindo aos ditos eróti- cos dos lojistas que esperavam a freguesia à porta, elle costumava apparecer-lhe, n'u- ma volta de caminho, cW um aspecto riso- nho e effusive; e, todos chegados, enlevados na rrfusicá das suas confidencias simples, re- tardando o passo, com desejos de se abraça- rem alli mesmo, deante da multidão que se crusava, o seu coração palpitava n'um sohre- salto suave, todo inundado de ternura.

E, depois, quando chegados á porta da mo- dista, força era separarem-se, como se aperta- vam as mãos e como se chamavam um ao outro, pretextando esquecimentos frívolos, o que mais azedo tornava o deixarem-se!

—Espera. Escuta, dizia ella. Não faltes á noite.

—Como o poderia suppôr? Se faltaria?! Pois se ella era o seu deus, o seu tudo?! Se nada mais via na terra, nem nada de mais supremo em alegria esperava no ceu!

Oh! E o innefavel contentamento^le irem juntos, á noitinha, com passadinhas miúdas, até proximo de caza d'ella, beijocando-se no escuro e promettendo-se um amor eterno!

Elle era furriel do 18 e jurara casar-se com ella, quando sahisse 2.° sargento, o que estava para mezes, dizia.

Um dia, n'um domingo de tarde deram-se uma entrevista na Cordoaria. No coréto toca- va uma banda regimental. Costureiras e crea- das de servir passeavam apressadas na gran- de rua larga, tendo sorrisos honestos, d'uma castidade indubitável, para quem as olhava.

—Bem boa, que peixe!, ouvia-se. Isto no Assiz era uma mina!

Viram-se. Olharam-se com um largo olhar amoroso que foi acordar nas suas fibras de- sejos intensos de movimentos apressados, va- gos.

—Então só agora? Tão tarde! Já a não es- perava.

—Que não tinha podido, explicava. Raio do pai que era um dragão. Só agora se poderá vér livre d'elle!

—Que não tinha duvida nenhuma; mais valia tarde que nunca.

E na sua imaginação vieram pintar-se qua- dros lúbricos, d'uma grande violência actual.

—Vamos passear, sim?, disse elle. —Que sim, tudo o que elle quizesse. —Então tudo?—E ria-se. —Tudo, sim, não; e um rubor avermelha-

do, d'um çrande pejo honesto, cobria-lhe a fronte como um véu.

—Olha. se queres, vamos alli comer algu- ma coisa áquella casa verde que fica ao pé da Roda.

—Que não, não tinha vontade. —Ora?! Vem. Então?!, insistia. Não me quei-

ras fazer zangar. —Pois sim, que ia. E um sobresalto vio-

lento abilou-a completamente. Entraram. E' uma casa larga, suja, com

baneos de pinho que rodeam mezas d'uma côr cebenta.

Umas escadas Íngremes, estreitas, picadas de caruncho conduzem ao primeiro andar.

—Que queriam? Talvez um quarto, sim?

E um sujeito baixo, gordo, d'uma cara bestial- mente alvar, adeantou-se para elles com um sorriso intensamente deslavado, sem vergo- nha.

Deu volta a uma chave e entraram n'uma especie de cubículo. Elle fechara logo a porta n'uma pressa; e. correndo para ella sofrega- mente, o pensamento fixo na realisação do desejo que lhe agitava o sangue, abraçou-a com effusão e pôz-lhe nas faces uma chuva de beijos cantados.

Sentaram-se na beira da cama de ferro; elle enlaçara-a com a mão esquerda, muito carinhoso, acariciando-a com uns tics d£ quem sabe ser terno e distincto. E com a outra ia- Ihe levantando de vagarinho a fralda da ca- misa.

Instantes depoi3 ella fez ui! E já se lhe viam as pernas torneadas que se

destacavam suavemente das opulentas coxas, d'um appetite feroz.

A cama começava a mover-se e, rangen- do, a fazer i i i.

Ella, o rosto afogueado, soltos os cabellos e o farto seio descoberto, com o olhar em branco, não se cançava de repetir:

—Mais, filho! Mais! Ai! Ai! Elle então, doido de furor, tomara-lhe as

pernas e lizera-as poisar sobre os seus hom- bros.

E ia pensando:—Que bocado! Que bocado!

Qnando sahiram os bellos olhos castanhos d'ella, sempre envoltos no fluido amoroso em que nadavam, encherain-se de lagrimas e, n'um tom reprehensivo:

—0 que me foste fazer?!, dizia. 0 que se- rá de mim, se tu me abandonas?

—Nem queria que lhe fallasse n'isso. Aban- donal-a, nunca! Mais depressa o abririam de meio a meio! Que descansasse, que breve havia de ser o seu dia feliz.

Mas, pouco depois, sahira 2.° sargento e fòra transferido para um regimento da capi- tal. E sem lhe dizer adeus, sem lhe partici- par coisa alguma, partira!

Gomo ella se admirava de elle lhe não ap- parecer dois dias a seguir, uma apprehensão negra toldou-Itie a alma confiante e, cheia de susto, fòra ao quartel, amparada de uma re- solução enfebrecida, e perguntara a um velho cabo, que ia saindo com o cigarro na orelha e a fardeta desabotoada, se podia fallar com o Eduardo Correia, furriel da 5.J 0 cabo pa- rara, ouvindo-a, entre interessado e ironico; e depois:

—Boa está ella, pequena!, respondera com placidez. Aonde vae elle agora, se bem cor- rer? 0 Correia já sahiu 2." sargento, foi pas- sado para o 5 e, a estas horas, está elle mas é em Lisboa, todo liró. Mas, lá por isso, elle deixou homem por si e não te afilijas, peque- na, que serei eu o pae de teus filhos. Olha...

Mas ella não o quiz ouvir mais; e, camba- lendo, com os ouvidos cheios de zunidos e as faces tremulas de cólera e vergonha, fugiu- se d'alli, allucinada, embaraçando-se nas saias, tropeçando, sentindo dentro o coração a par- lir-se de dôr.

E, como dobrava a esquina, uma peixeira enfarruscada, de saias arregaçadas, que os vinha fitando, voltou-se para o cabo que pe- tiscava lume na humbreira d'um portal, fazen- do das mãos guarda-vento:

—Seu desalmado!, disse. Veja lá como tracta a pobresinha de Christo?!

—Que diz Você, sua bruxa do inferno?, gri- tou elle, intimamente lisonjeado de aer to- mado por outro, que a arranjo já lambem!

—Olha o méco?! Passa fóra, tarimbeiro, uivou a outra, cheia de rasão, vae para a Praça Nova, pandilha, se não tens que dar de comer em casa á amiga, relaxado!

E, rebolando-se, emqtianlo elle ria às gar- galhadas, muito sacudidas, affastou-se ralhan- do como uma saraivada que passa!

Mas a pobresinha de Christo, ao chegar a casa, entrara como um tufão pela porta do

seu quarto dentro e fòra atirar-se sobre a cama, chorando, arrepelando-se...

—Era assim que a amava, aquelle traste, pensava. E-ella prompta a sacrificar-lhe tudo, a fazer asneiras, a ir-se para a companhia d'elle. Einquanto elle partia para fóra da ter- ra, esquecido d'ella, sem uma palavra, sem uma saudade, sem um beijo, sem uma recor- dação ! Oh ! Os homens eram uns monstros e, àquellas horas, emquanto ella, coitadinha!, para alli se finava de raiva e de dôr, elle em Lisboa passeava de certo a baixa à cata de tolas como ella e ia á noite ao Perna de Pau com qualquer Lola,de saias engommadas, rui- dosas, regar de meio decilitro uma ceia bara- ta de figado frito com batatas.

N'aquelle dia não foi à modista nem no que se lhe seguiu; e, como o velho pai que, de- pois da morte da mulher, dera em beberricar, de volta da taberna fronteira, ao cahir da tar- de, com os olhinhos avermelhados e os beiços pegajosos lhe perguntava cora um pigarro avinhado se se dispunha agora a passar vida de fidalga, ella que ageitava no fundo d'uma caixa de papelão doirado, com a figura de uma cocotte amarellada na tampa, que ella olhara por vezes com uma vaga admiração invejosa, o seu foulard azul de grandes pregas molles, que elle lhe déra logo no terceiro dia que se conheceram, voltou-se irada, toda arreganha- da n'uma cólera de quem não tem razão:

—Vocemecê que lhe importa com a minha vida?, perguntou. Olhe, não lhe vá eu faltar com o preciso para vocemecê o metter na bar- riga em vinho!

Elle ficou-se atordoado com esta rajada ines- perada, porque era realmente d'ella que elle costumava aos sabbados, quando ella recebia a féria, colher alguns trocos que ia, sollicito, entregar ao da companhia defronte.

Fez as suas desculpas, murmurou: — Oh! Oh!—, e, descrevendo s s, foi-se arrastando até à alcova, em que as costumava coser.

Mas, ao outro dia, ella encheu-se de reso- lução, teve vergonha do seu desalento sem motivo e, depois de ter feito o seu frugal al- moço d'uma caneca de café com leite, sahiu e encaminhou-se para casa da modista.

—Bem tola!, ia pensando pela rua, bem tola em se ralar! E por quem? Por ura ingra- to. Não lhe haviam de fallar tão bons e me- lhores do que aquelle pelintra. E então a ella, que se sabia tam bonita! Bastava só querer.

Chegara ás Férin e os ditos das compa- nheiras, que lhe sabiam já da desgraça e lhe perguntavam pelo noivo que abalâra, conges- tionaram-a de cólera.

—Bebedas!, pensava. Não disse coisa alguma; mas, como os ditos

continuassem e as allusões se envenenassem, começou a sentir odio às mestras e ás outras e logo um vago tédio pelo trabalho e a ap- petecer uma vida fácil e elegante. Pouco a pouco, o desejo de sahir d'aquelle atoleiro, porque ella não era menos que as mais, se foi distendendo na sua alma confrangida, to- mando-a a voluptuosidade da preguiça, como um hediondo polypo que envia ao longe os seus tentaculos, que, tenases, revolvem, ar- rancando-o do fundo à superfície, o que de mais recôndito se esconde no intimo do orga- nismo.

Acostumara-se, por esse tempo, a subir a rua de Santo Antonio, á noite, quando sahia da modista e o aspecto fulgurante dos esta- belecimentos elegantes deslumbrava-a, quasi lhe fazia tonturas.

Dentro das lojas, senhoras brancas, cober- tas de rendas, envolvidas pela luz dôce dos globos Carcel, discutem preços com caixeiros moços e finos, d'uma pallidez doente. Trens armoriados sobem e descem, sulcando em fi- tas tortuosas o largo macadam. As vitrines ílammejam e, por detraz do seu reposteiro de crystal, os diamantes incrustados n'um oiro polido despedem sobre o velludo-cereja em que poisam tentadoras radiações.

Á porta dos theatros uma multidão elegan.

GAZETA DO REALISMO

te é assaltada pelos vendedores do bilhetes e das janellas meio-abertas das casas sahem d'entre as pregas abandonadas das cortinas caras da cambraia de Bruxellas as notas vi- brantes do teclado ferido pelas mãos delga- das e nervosas de burguezinhas que estudam a marcha triumphal da Aida, enquanto dos cafés scintillantes irrompe, brutal, o brouhaha dos que cercam as mesas em conversas ris-: cadas de risos felizes.

Vinham-lhe desejos incoherentes, desejava arrastar caudas que se enlameam no trattofr e as ceias em gabinetes fechados pareciam- lhe um parais) cheio das felicidades supre- mas.

Começou a faltar na modista, a vaguear pe- las ruas, á toa, sem destino, a sentar-se nos bancos das praças.

E um dia que a viram com a tia Michaela, que a espreitava de ha muito c que lhe fez observar que se expunha a ir para o Aljube, por andar fora da revista, decidiu-se emfim e foi buscar ao commissariado, acompanhada da megera, o seu livro de matricula.

Alugara por um quartinho mensal, fora a comida e os engommados, à tia Michaela, uma que tinha raparigas, um cubículo n'um pri- meiro andar á Sé, e, como o pai se admirava de ella não apparecer e começava a pergun- tar por ella, inquieto, vieram-lhe dizer que a triste tinha ido para a vida e que esperava a freguezia na rua das Aldas, ao pé da Maria das luvas

Elle sentiu uma cólera bruta, fallou mesmo em a matar, mas, como se dirigia pela noi- tinha a casa d'ella, para a fazer em bocados, dizia, como se demorasse pelo caminho, aca- bou por passar a noite no Carmo, no com- partimento dos bêbados recolhidos pela pa- trulha.

.Mas, depois, pensou bem e, com uma pru- dência philosophica, acabou por se resignar á sua sorte; um dia, foi mesmo, cheio de curio- sidade, visital-a e, como recebesse d'ella uma placa á sabida, veio declarar que ella tinha afinal o coração d'um anjo e que a todos n"es- te mundo onde quer estão uns trabalhos ar- mados.

Mas, pouco a pouco, a hediondez da vida que abraçara começou a mostrar-se-lhe la acabou por cahir do alto das suas illusões com o horror de um que do cimo d'uma torre topetando com o azul se precipitasse, sentindo por debaixo o lodo d'uma sentina à sua es- pera.

Ao principio divertira-se, fora procurada, como nova. E uma noite de mascaras, na na- ve central do Palácio, sobretudo, encantara-a.

Uma mó compacta de gente comprimia os que entravam. A luz dos bicos de gaz aos mi- lhares entontecia. Ao fundo as sonoridades das walsas de Strauss, atravez de que, como uma doida farândola, serpeam os pitos agudos das mascaras, enchiam o recinto de um ruido ale- gre de cobres ; a agua jorrava do grande tan- que do centro, embebendo-se na folhagem fina que o ladea. E ella, de pagem da côrle de Luiz XIV, envolvida n'uma atmosphera de ado- rações obscenas e de convites lúbricos, sentia- se dilatar como n'um banho tépido de leite, perfumado de vinagre de toilettc.

Mas. depois d'essa noite feliz, aos poucos, o lado verdadeiro das coisas revelara-se-lhe e conheceu que se ia afundando, submergin- do n'essa voragem que tem á superfície a transparência azul dos lagos da Escócia e no fundo a podridão dos esgotos.

Então as recordações do desalmado qu perdera, pensava, voltaram como nos momen- tos desesperados a lembrança dos eternos svmbolos protectores.

. " Emagrecera. Surprehéndeta-se a chorar por vezes; penáara no destino cruel de se des- fazer, sob o olhar irónico dos médicos, nas enfermarias infectas, dos males vergonhosos, e vagamente vieram-lhe até idêas dos suicí- dios redes com lumes de pau em agtfárdente.

E havia dias que estas soismas estranhas a perseguiam, quando recebera uma caria ã'él-

le, retardada, por vir sem morada, em que ; elle declarava ter sabido em Lisboa do passo I errado que ella dera e em que, desculpando- j se depressa de se não ter despedido, por lhe

ter sido de todo impossível, dizia, lhe pro- mettia, generoso, que lhe perdoaria e que, voltando para o Porto, para onde ia obter uma transferencia para caçadores, a tiraria d'a- quella vida.

Foi um momento de alegria profunda para ella. Escreveu-lhe immediatamentc na volta do correio, cheia de reconhecimento, humi- Ihando-se, explicando-se, dizendo-lhe a mora- da ; mas, como elle lhe não respondesse, per- deu logo a confiança, desesperou de todo e voltaram-lhe as suas idéas negras, d'uma in- felicidade implacável.

Debalde procurara distrahir-se nos lheatros e no ruido dos pagodes nocturnos. E acabara por cahir n'essa atroz resignação dos que se sentem perdidos, quardo, de repente, áquel- la hora esquecida, alguém se lembrava d'ella no seu isolamento horrível, e um lelegramma chegava!

Tomou-o das mãos da creada, mandou-a embora, sobresaltada, que se fosse deitar, e abriu-o, convulsa.

Era simples. Poucas palavras. Que chegava no outro dia pela manhã. Que a iria ver, á noitinha, que não recebesse ninguém, que queria estar só com ella,-sem importunos.

Não pôde dormir toda a noite, agitada, tre- mula de um prazer cheio de receio.

E ao outro dia, lembrou-se, de o ir esperar ã eslaçâo, mas logo pensou que elle não que- reria que o vissem alli, á luz do sol, com ella, e decidiu-se com magoa a aguardar pela tar- de que não acabava de vir.

Chegou emfim e ella esperava-o. Desde manhã que sentia uns transportes Íntimos, ge-

50S, d'uma grande bondade communicati- va. Conhecia-se feliz: ia vel-o. E, na sua ima- ginação alegre, pintava-o com cores vivas, intensas, d'uma grande belleza masculina.

Quando fora jantar, olhara tristemente a sua pequena mesa.—Sói Mas dentro em pou- co..., e risadiDhas fortes, vibrantes como um crystal, eslallaram.

Mas h;diam. —Seria elle? E um grande so- bresalto punha no seu coração movimentos rápidos.

Foi vèr; era um. frequentador:—Que se fosse embora, gritou de cima, que o não po- dia aturar, que a deixasse, estava doente, andava com a historia, não podia fallar com ninguém

E tinha gestos violentos, desdenhosos e na voz uns tons zangados, atrevidos. —Que raio de vida! Não a deixavam quieta um instante !

E recolheu-se para o quarto com uma gran- de tristesa que se lhe espalhava pela face.

—Tão tarde, ainda sem vir?!, pensava. Mas passos apressados soaram na calçada. — Oh! Era elle, era elle, por certo, deu-lhe

um rebate o coração. Desceu a escada. Correu para a porta, abriu-a

com um movimento febril e deu de cara com elle!

Tiveram um longo abraço muito apertado. Beijos cantaram com uma sonoridade conso- ladora. Perguntas rápidas, desencontradas cor- taram no portal, por vezes, aquella atmos- phem de reconciliação, perfumada e lépida como um banho de amor.

Mas iam subindo. Chegaram ao quarto. Elle sentou-se na cama que rangeu e, sopesando-a nos braços, pousou-a nos joelhos encruzados.

—Então que era feito? Como se dava com aquella vida?

E tinha risinhos irónicos, d'um descara- mento audaz.

—Que se callàsse, que tivesse vergonha!. e tapava lhe a bòcca com a sua mão peque- nina.

—Que tirasse a mão, a porca, que sabia lleus por onde tinha andado...

E, dobrando-a sobre si, pousou-lhe na face um beijo sonoro.

—Que. estivesse quieto, que não esperava aquillo d'elle.

E lagrimas amargas rolaram-lhe dos olhos tristes.

—Ora adeus! Que não fosse tola! Se espe- rava d'elle lamurias piegas, estava arranjada. Que não fosse tola, repetia.

Levantou-se; e, parando no meio da saleta, em altitude parlamentar, como vira por mui- tas vezes faser aos deputados em S. Bento, co- meçou a desfiar em voz pausada e somnolen- ta as suas theorias da boa vida regalada, como elle dizia:

— Que se consolasse; que mais valia um gosto na vida que seis \intens na algibeira.

E, continuando, com largos gestos aílirma- tivos:

—Que se não admirasse de a tractar d'a- quelle modo; que não esperasse que fossem viver de casa e pucarinho; que, quando lhe escrevera, pensara n'essa tolice; mas depois mudara felizmente; os tempos estavam bicu- dos e aquillo fora chão que dera uvas. Uma amigaçãosinha era coisa mystica para um bo- tãosinbo de pétalas bem fechadas; agora, pa- ra ella, rosa aberta., e bem aberta.. Que não fosse tola, tornava. ,

E ria largamente, brutalmente. Ella pasmara de o ouvir; e, em voz alta,

duvidando: —Pois era aquelle o furriel que em tempos

conhecera?! —Que pergunta! Se desejava lamentações,

que elle não era Jeremias. Que ella não ti- nha nada de parva; bem sabia para o que el- le alli viera.

E, envolvendo n'um mesmo olhar petulan- temente afogueado a ella e á pobre cama passiva, abraçou-a uma vez mais.

Ella desprendeu-se-lhe, meiga, e, como abaixava a luz do seu velho candieiro de pe- tróleo, de um vidro enfurnado e rachado, que, pousado sobre a commoda gretada, allu- miava a um Santo António de Pádua, pen- dente da parede, as scenas que o canonisado se acostumara a presencear insensível, elle fez-lhe baixo uma pergunta.

Ella corou ao de leve e disse admirada: —Estás doido? Isso não! Mas elle tomou-a nos braços, cahiram na

cama com risinhos abafados, fofos. E, de no- vo, elle mnrmiirnii-lhe ao ouvido:—Que te custa? Anda!

Ella negava-se, porem, e já com um sorri- sinho:—Não! Não!, disse.

—Ora! Pois porque não? Elle bem ouvira em Lisboa que ella os fazia,

—Era mentira! Que era mentira!, protes- tava.

Mas, pouco depois, saltou da cama, agita- da, e com uma pressa nervosa tomou de cima do mármore esverdeado do lavatório um copo meio-cheio de uma agua turva, de que, sof- frega, sorveu um gole que, escorrendo-lhe dos cantos da bôcca em fios salivados, gros- sos, ia cahindo no fundo da bacia d'uma por- celana barata.

Pousou o copo e, como accendia um ci- garro do Miguel e se voltava n'um sorriso, elle, que se erguera e lançava a mão à toa- lha pendente das travessas de ferro, olhou-a de vagar, com curiosidade c uma inslinctiva repulsão: e, com umas risadinhas canalhas, emquanto cila se debruçava a cuspinhar no soalho:

— Que historia é essa?, perguntou. Com que então soube-te mal o purgante, hein?

— Safado!, fez ella, indignada. Bem se vê que. vens do Hocio!

eile. sem pestanejar: —Olha, minha amiga, aconselhou. Desen-

gana-te que não ha nada melhor para dar lustre á dentadura.

E a sua vez de teiiorino. bem afinada, por- que fora corista em seus tempos elevou-se, cantando:

Là hurcii r mobile!

Alplwnse Daudet, Émile '/.

avo, Flaubcrt.

4 GAZETA DO REALISMO

te é assaltada pelos vendedores de bilhetes e das janellas meio-abertas das casas sahem d'entre as pregas abandonadas das cortinas I caras da cambraia de Bruxellas as notas vi- brantes do teclado ferido pelas mãos delga- das e nervosas de burguezinhas que estudam a marcha triumphal da Aida, emquanlo dos cafés scintillantes irrompe, brutal, o brouhaha dos que cercam as mesas em conversas ris- cadas de risos felizes.

Vinham-lhe desejos incoherentes, desejava arrastar caudas que se enlameam no trottoir e as ceias em gabinetes fechados pareciam- lhe um paraiss cheio das felicidades supre- mas.

Começou a faltar na modista, a vaguear pe- las ruas, á toa, sem destino, a sentar-se nos bancos das praças.

E um dia que a viram com a tia Michaela, que a espreitava de ha muito e que lhe fez observar que se expunha a ir para o Aljube, por andar fóra da revista, decidiu-se emfim e foi buscar ao commissariado, acompanhada da megera, o seu livro de matricula.

Alugara por um quartinho mensal, fóra a comida e os engommados, á tia Michaela, uma que tinha raparigas, um cubículo n'um pri- meiro andar á Sé, e, como o pai se admirava de ella não apparecer e começava a pergun- tar por ella, inquieto, vieram-lhe dizer que a triste tinha ido para a vida e que esperava a freguezia na rua das Aldas, ao pé da Maria das luvas

Elie sentiu uma cólera bruta, fallou mesmo em a matar, mas, como se dirigia pela noi- tinha a casa d'ella, para a fazer em bocados, dizia, como se demorasse pelo caminho, aca- bou por passar a noite no Carmo, no com- partimento dos bêbados recolhidos pela pa- trulha.

Mas, depois, pensou bem e, com uma pru- dência phiiosophica, acabou por se resignar á sua sorte; um dia, foi mesmo, cheio de curio- sidade, visital-a e, como recebesse d'ella uma placa á sabida, veio declarar que ella tinha afinal o coração d'um anjo e que a todos n'es- te mundo onde quer estão uns trabalhos ar- mados.

Mas, pouco a pouco, a hediondez da vida que abraçara começou a mostrar-se-lhe e el- la acabou por cahir do alto das suas illusões com o horror de um que do cimo d'uma torre topetando com o azul se precipitasse, sentindo por debaixo o lodo d'uma sentina á sua es- pera.

Ao principio diverlira-se, fôra procurada, como nova. E uma noite de mascaras, na na- ve central do Palacio, sobretudo, encantara-a.

Uma mó compacta de gente comprimia os que entravam. A luz dos bicos de gazaos mi- lhares entontecia. Ao fundo as sonoridades das •walsas de Strauss, atravez de que, como uma doida farandola, serpeam os gritos agudos das mascaras, enchiam o recinto de um ruido ale- gre de cobres ; a agua jorrava do grande tan- que do centro, embebendo-se na folhagem fina que o ladea. E ella, de pagem da côrte de Luiz XIV, envolvida n'uma atmosphera de ado- rações obscenas e de convites lúbricos, sentia- se dilatar como n'um banho tépido de leite, perfumado dç vinagre de loitette.

Mas, depois d'essa noite feliz, aos poucos, o lado verdadeiro das coisas revelara-se-lhe e conheceu que se ia afundando, submergin- do n'essa voragem que tem a superfície a transparência azul dós lagos da Escócia e no fundo a podridão dos esgotos.

Então as recordações do desalmado que a perdera, pensava, voltaram como Tios momen- tos desesperados a lembrança dos eternos svmbolos protectores.

. * Emagrecera. Surprehdndera-se a chorar por vezes; pensara no destino cruel de se des- fazer, sol) o olhar ironico dos medicos, nas enfermarias infectas, dos males vergonhosos, e vagamente vieram-lhe até idóas dos suicí- dios relies com lumes de pau em aguardente.

E havia dias que estas scismas estranhas a perseguiam, quando recebera uma carta d'el-

le, retardada, por vir sem morada, em que elle declarava ter sabido em Lisboa do passo errado que ella déra e em que, desculpando- se depressa de se não ter despedido, por lhe ter sido de todo impossível, dizia, lhe pro- mettia, generoso, que lhe perdoaria e que, voltando para o Porto, para onde ia obter uma transferencia para caçadores, a tiraria d'a- quella vida.

Foi um momento de alegria profunda para ella. Escreveu-lhe immediatamente na volta do correio, cheia de reconhecimento, humi- lhando-se, e.\plicando-se, dizendo-lhe a mora- da ; mas, como elle lhe não respondesse, per- deu logo a confiarfça, desesperou de todo e vollaram-lhe as suas idéas negras, d'uma in- felicidade implacável.

Debalde procurara distrahir-se nos lheatros e no ruido dos pagodes nocturnos. E acabara por cahir n'essa atroz resignação dos que se sentem perdidos, quando, de repente, áquel- la hora esquecida, alguém se lembrava d'ella no seu isolamento horrível, e um telegramma Chegava!

Tomou-o das mãos da creada, mandou-a embora, sobresaltada, que se fosse deitar, e abriu-o, convulsa.

Era simples. Poucas palavras. Que chegava no outro dia pela manhã. Que a iria ver, á noitinha, que não recebesse ninguém, que queria estar só com ella,.sem importunos.

Não pôde dormir Ioda a noite, agitada, tre- mula de um prazer cheio de receio.

E ao outro dia, lembrou-se de o ir esperar á estação, mas logo pensou que elle não que- reria que o vissem alli, á luz do sol, com ella, e decidiu-se com magoa a aguardar pela tar- de que não acabava de vir.

Chegou emfim e ella esperava-o. Desde manhã que sentia uns transportes Íntimos, ge- nerosos, d'uma grande bondade communicati- va. Conhecia-se feliz: ia vel-o. E, na sua ima- ginação alegre, pintava-o com côres vivas, intensas, d'uma grande belleza masculina.

Quando fora jantar, olhara tristemente a sua pequena mesa.—Só! Mas dentro em pou- co..., e risadinhas fortes, vibrantes como um crystal, eslallaram.

Mas baliam. —Seria elle? E um grande so- bresalto puhlia no seu coração movimentos rápidos.

Foi vêr; era um. frequentador:—Que se fosse embora, gritou de cima, que o não po- dia aturar, que a deixasse, estava doente, andava com a historia, não podia fallar com ninguém

E tinha gestos violentos, desdenhosos e na voz uns tons zangados, atrevidos. —Que raio de vida! Não a deixavam quieta um instante !

E recoiheu-se para o quarto com uma gran- de tristesa que se lhe espalhava pela face.

—Tão tarde, ainda sem vir?!, pensava. Mas passos apressados soaram na calçada. — Oh! Era elle, era elle, por certo, deu-lhe

um rebate o coração. Desceu a escada. Correu para a porta, abriu-a

com um movimento febril e deu de cara com elle!

Tiveram um longo abraço muito apertado. Beijos cantaram com uma sonoridade conso- ladora. Perguntas rapidas, desencontradas cor- taram no portal, por vezes, aquelia atmos- phera de reconciliação, perfumada e tépida como um banho de amôr.

Mas iam subindo. Chegaram ao quarto. Elle sentou-se na cama que rangeu e, sopesando-a nos braços, pousou-a nos joelhos encruzados.

—Então que era feito? Como se dava com aquelia vida?

E linha risinhos ironicos, d'um descara- mento audaz.

—Que se callàsse, que tivesse vergonha!, e tapava lhe a bôcca com a sua mão peque- nina.

—Que tirasse a mão, a porca, que sabia Deus por onde tinha andado...

E, dobrando-a sobre si, pousou-lhe na face um beijo sonoro.

—Que estivesse quieto, que não esperava aquillo d^elle.

E lagrimas amargas rolaram-lhe dos olhos tristes.

—Ora adeus! Que não fôsse tola! Se espe- rava d'elle lamurias piegas, estava arranjada. Que não fosse tola, repetia.

Levantou-se; e, parando no meio da saleta, em altitude parlamentar, como vira por mui- tas vezes faser aos deputados em S. Bento, co- meçou a desfiar em voz pausada e somnolen- ta as suas theorias da boa vida regalada, como elle dizia:

— Que se consolasse; que mais valia ura gosto na vida que seis \intens na algibeira.

E, continuando, com largos gestos affirma- tives:

—Que se não admirasse de a tractar d'a- quelle modo; que não esperasse que fossem viver de casa e pucarinho; que, quando lhe escrevera, pensara n'essa tolice; mas depois mudara felizmente; os tempos estavam bicu- dos e aquillo fôra chão que dera uvas. Uma amigaçãosinha era coisa mystica para um bo- tãosinbo de pelalas bem fechadas; agora, pa- ra ella, rosa aberta., e bem aberta.. Que não fosse tola, tornava. ,

E ria largamente, brutalmente. Ella pasmara de o ouvir; e, em voz alta,

duvidando: — Pois era aquelle o furriel que em tempos

conhecera?! —Que pergunta! Se desejava lamentações,

que elle não era Jeremias. Que ella não ti- nha nada de parva; bem sabia para o que el- le alli viera.

E, envolvendo n'um mesmo olhar petulan- temente afogueado a ella e á pobre cama passiva, abraçou-a uma vez mais.

Ella desprendeu-se-lhe, meiga, e, como abaixava a luz do seu velho candieiro de pe- tróleo, de um vidro eníumado e rachado, que, pousado sobre a commoda gretada, allu- miava a um Santo Antonio de Padua, pen- dente da parede, as scenas que o canonisado se acostumara a presencear insensível, elle fez-lhe baixo uma pergunta.

Ella corou ao de leve e disse admirada: —Estas doido? Isso não! Mas elle tomou-a nos braços, cahiram na

cama com riçinhos abafados, fôfos. E, de no- vo, elle mnrmurnn-lhe ao ouvido:—Que te custa? Anda!

Ella negava-se, porem, e já com um sorri- sinho:—Não! Não!, disse.

—Ora! Pois porque não? Elle bem ouvira em Lisboa que ella os fazia,

—Era mentira! Que era mentira!, protes- tava.

Mas, pouco depois, saltou da cama, agita- da, e com uma pressa nervosa tomou de cima do mármore esverdeado do lavatório um copo meio-cheio de uma agua turva, de que, sof- frega, sorveu um gole que, escorrendo-lhe dos cantos da bôcca em fios salivados, gros- sos, ia cahindo no fundo da bacia d'uma por- celana barata.

Pousou o copo e, como accendia um ci- garr'o do Miguel e se voltava n'um sorriso, elle, que se erguera e lançava a mão á toa- lha pendente das travessas de ferro, olhou-a de vagar, com curiosidade e uma instinctiva repulsão: e, com umas risadinhas canalhas, emquanto ella se debruçava a cuspinhar no soalho:

— Que historia é essa?, perguntou. Com que então soube-te mal o purgante, liein?

—Safado!, fez ella, indignada. Bem se vê que vens do Rocio!

Mas elle, sem pestanejar: —Olha, minha amiga, aconselhou. Desen-

gana-te que não ha nada melhor para dar lustre à dentadura.

E a sua toz de tenorino, bem afinada, por- que fôra corista em seus tempos, elevou-se, cantando:

La bucca è mobile!

Alphonse Daudet, Fmile Zola, Gustave Flaubert.