A variedade da prática do tipo clínico ao caso único em psicanálise - ALVARENGA, Eisa

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TERCEIRO ENCONTRO AMERICANO DO CAMPO FREUDIANO

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do tipo clínico ao caso único em psicanálise

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Av. Contorno 1390 . Floresta30110-ooe· &.10 Horizonte· MG

(31) 3303·1000_.Itvrartadopalc:ologo.com.br

Apresentados por Judith Miller,

presidente da Fundação do Campo

freudiano, os textos presentes neste

volume, editado em português e em

espanhol, versam sobre os quatro eixos

de trabalho propostos para o Terceiro

Encontro Americano, XV Encontro

Internacional do Campo freudiano,

que reúne os membros das três Escolas

americanas da Associação Mundial de

Psicanálise (AMP): a Escola Brasileira

de Psicanálise (EBP) , a Escuela de

Orientación Lacaniana (EOL) e a

Nueva Escuela Lacaniana (NEL).

O livro conta ainda com uma

contribuição inédita, em português e

espanhol, de Éric Laurent, Delegado

Geral da AMP, na qual ele, partindo

da criança como constituinte da

variedade das fanúlias, extrai dos

tipos de fanúlia contemporâneos

cada criança como exceção.

A variedade da prática analítica

se verifica nos casos inclassificáveis,

nos tipos clínicos tratados caso a caso,

nos novos e variados sintomas

contemporâneos e na presença dos

psicanalistas lacanianos em seus

Centros de Atendimento. O leitor

poderá, assim, acompanhar como estes,

ao honrar o desejo de Lacan, têm

demonstrado e reafirmado a utilidade

social da psicanálise.

A VARIEDADE DA PRÁTICA

A VARIEDADE DA PRÁTICA:

DO TIPO CLÍNICO AO CASO ÚNICO EM PSICANÁLISE

TERCEIRO ENCONTRO AMERICANO,

XV ENCONTRO INTERNACIONAL DO CAMPO FREUDIANO

to~~

Ilustração da capa

Murilo Godoy

A criança no avesso das famíliasÉric Laurent

11

Copyright © 2007, dos autores SUMÁRIO

Responsável da edição em português

Elisa Alvarenga

Responsáveis da edição em espanhol

Ennia Favret e María Hortensia Cárdenas

Revisão técnica

Anamáris Pinto

Apresentação 7Elisa Alvarenga, Ennia Favret, María Hortensia Cárdenas

Capa, projeto gráfico e preparação

Contra Capa

Uma lecturaJudith Miller

23

ISBN: 978-85-7740-015-7

1. O INCLASSIFICÁVELOU "ISTO NÃO É UM DIAGNÓSTICO"A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise

Terceiro Encontro Americano, XV Encontro Internacional do Campo freudiano

Elisa Alvarenga, Ennia Favret e María Hortensia Cárdenas [orgs.]o inclassificável 27Silvia Elena Tendlarz

Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007

112 p.; 14x21 cmOs vaivéns de um mal-entendidoe algumas conseqüências 33Juan Fernando Pérez

Borderline 41Ariel Bogochvol

2. TRATAMENTO DO TIPO CLíNICO COMO CASO ÚNICO

2007

Todos os direitos desta edição reservados à

Contra Capa Livraria Ltda.

<[email protected]>

Rua de Santa na, 198 - Loja

20230-261 - Rio de Janeiro - RJ

Tel (55 21) 2508.9517 I Fax (5521) 3435.5128

www.contracapa.com.br

O avesso da festaMônica Torres

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Tipo clínico e caso único,conceitos que não se recobremAlicia Arenas

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O "sintoma pai" 63Fátima Sarmento

3. VARIEDADE DOS SINTOMAS, UNIClDADE DO TIPO CLíNICO

De onde esperar? 69Luis Erneta

Do relativismo classificatório ao caso único 77Piedad Ortega de Spurrier

Juventude e violência urbana 83Fernanda Otoni de Barros

4. OS NOVOS CENTROS DE ATENDIMENTO PSICANALÍTICO

Uma resposta política da Escola ao mal-estar 91Silvia Baudini, Guillermo Belaga,Adriana Rubistein e Ricardo Seldes

Todo caso é único.A psicanálise aplicada nos permite sustentá-Ia 99Aliana Santana N.

Psicanálise na cidade.Variedade e princípios da experiência 105Ana Lucia Lutterbach Holck

APRESENTAÇÃO

Este livro registra e dá consistência ao trabalho realizado na preparaçãodo Terceiro Encontro Americano, braço americano do XVEncontro Inter-nacional do Campo freudiano, que se realizará de 3 a 5 de agosto de 2007

em Belo Horizonte, Min"asGerais.Pela terceira vez, os ~olegas da América que formam parte da comuni-

dade de trabalho de Orientação Lacaniana se reúnem e, pela primeira vez,a EBP é a anfitriã. Colegas das três Escolas da AMP-América escreveram eoutros tantos traduziram, a nosso pedido, os textos reunidos no presentevolume, editado em português e em espanhol.

Partindo da afirmação de Lacan de que existem tipos de sintomase de que os tipos clínicos decorrem da estrutura, embora o que decorrada mesma estrutura não tenha forçosamente o mesmo sentido, damostestemunho aqui de que só existe análise do particular. Assim, os tiposde sintoma nada nos dizem sobre o que significa para cada sujeito o seupróprio sintoma. Seguindo essa orientação de Lacan, o Terceiro EncontroAmericano ressitua a iIl!P..2.rtânciado QLagnósticona prática psicanalítica,ao mesmo telllIl.9que aponta para o que há de único em cada sujeito e quenão encaixa bem em nosso saber e, muito menos, em nossas classifica-ções. É o que nos ensina Jacques-Alain Miller em seu texto ':Oeol"ouxi!!.l2!i!!: Lacan", inspiração para a imagem que dá sua marca ao 3° Encontro-Americano.

Este livro conta com um texto inédito, em português e espanhol, deÉric Laurent, Delegado Geral da AMP, no qual ele parte da criança comoconstituinte da variedade das famílias, caso a caso, e extrai dos tipos defamília contemporâneos cada criança como exceção. Segue-se a apresenta-ção feita por Judith Miller, presidente da Fundação do Campo freudiano,

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à suposição de um sujeito ao saber inconsciente, ao ciframento. É daí quesurge o que articulou como fundamento de um "novo amor": o sujeitosuposto ao saber inconsciente.

Por meio das relações entre o inconsciente e o real, ao qual acedemosna contingência, podem produzir-se os nós, pontos de precipitação quefazem o discurso analítico ter seu fruto. A partir da experiência dos novosCentros de Tratamento Psicanalítico criados pelas Escolas e pelos Institu-tos do Campo freudiano, nosso livro registra novas práticas, individuaisou coletivas, que extraem o sujeito do seu tipo clínico e lhe permitemtecer o nó que lhe é próprio.

aos textos de membros da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), daEscuela de Orientación Lacaniana (EOL) e da Nueva Escuela Lacaniana(NEL), organizados em torno dos quatro eixos de trabalho propostos.Ao articular o 3° Encontro Americano com o seu correspondente nocontinente europeu, o Encontro Pipol 3, Judith Miller aponta como aprática de orientação lacaniana, sem deixar de lado os seus princípios,está diretamente ligada à preocupação com a sua utilidade social.

O encontro com casos que aparecem como exceções às classes con--f) sagradas nos permite tematizar o que chamamos de "inclassificável",

mostrando que esse termo não compõe uma nova categoria de diagnósticoe tampouco faz consistir a categoria psiquiátrica do borderline.

O que chamamos de tipos clínicos? Na primeira clínica de Lacan, háos tipos clínicos clássicos, extraídos por Freud da nosologia psiquiátrica edemarcados por ele com base na presença ou ausência do Nome-do-Pai.Nosso horizonte se amplia e se torna menos descontínuo com a segundaclínica, a das suplências, em que cada um se arranja com seu sintoma,com ou sem o Nome-da-Pai. Nessa segunda clínica, Lacan fala de tiposde nós que se aproximam do que chamamos de caso único ou singular.Entre os tipos clínicos clássicos e os tipos de nós tecidos pelos sujeitos,tomados um a um, existe toda uma gama de tipos consagrados na nossacontemporaneidade, chamados de novos sintomas, entre os quais in-cluímos anoréxicos, bulímicos, toxicômanos, hiperativos, deprimidos,bipolares, aqueles que fracassam na escola, transgressores etc.

Apsicanálise de Orientação Lacaniana, ao conceder privilégio ao quehá de único em cada sujeito, pode inventar novos tipos a exemplo do quefez Lacan em sua tese de psiquiatria ou a partir de casos da literatura oudos casos de Freud, verdadeiros paradigmas clínicos.

A variedade dos sintomas não deve se perder em um relativismoclassificatório, e é aí que resgatamos a importância dos tipos. Em "Auto-comentário?', Lacan pergunta se a análise, o discurso e a idéia do sintomacomo nó lançam luz sobre a clínica de antes. E responde que sim, quepode haver pela análise um caminho que transcenda o sentido e proceda

Elisa Alvarenga [EBP]

Ennia Favret [EOL]

María Hortensia Cárdenas [NEL]

DIRETORIA EXECUTIVA DO

TERCEIRO ENCONTRO AMERICANO

• LACAN, Jacques. "Autocomentário", Unopor Uno, n. 43, 1996, p. 18-19.

APRESENTAÇÃOA VARIEDADE DA PRÁTICA8 9

Éric Laurent

A CRIANÇA NO AVESSO DAS FAMíLIAS

Em dois séculos, passamos de uma justificação da elaboração religiosada família para a sua completa "jurisdificação".

No cristianismo, as relações "familiares" no seio da Divindade e daSagrada Família permitiram regular a função do Norne-do- Pai. A famíliafoi justificada por Hegel como uma instituição essencial, na condição delugar institucional do amor. "Como substancialidade imediata do espírito,a família se determina por sua unidade sentida pelo amor'".

A substancialidade imediata, diz Jacques-Alain Miller em "Vers lesprochaines Journées de l'Ecole'", é que a família, no início da instalaçãodo liberalismo, apareceu como o sonho de um laço social que se tornassenatural. Dois séculos mais tarde, é o direito que articula a família, após terisolado as suas funções e, então, transferido algumas delas e partilhadooutras. Os direitos específicos - direito fiscal, direito do trabalho, direitosocial, direito da imigração - remetem, agora, "a substancialidade imedia-ta do espírito" e "a unidade sentida pelo amor" à condição de utopia.

Dessa forma, casa-se muito mais facilmente após o segundo filho.Além disso, uma vez pronunciado o divórcio de um primeiro casamento,a união livre é, em seguida, amplamente preferida por aqueles que jáforam casados. Em 2004, quase a metade dos bebês nasceu de um casalvivendo em união livre, contra menos de 6% em 1965; quanto aos maisvelhos da fratria, aproximadamente 60%nascem fora do casamento. Esses

• CitadoemAUROux, Sylvain (dir.). Encyclopédie philosophique uniuerselle, tome lI:

Les notions philosophiques. Paris: PUF, 1998, p. 952.

2 MILLER, Jacques-Alain. "Vers les prochaines Journées de I'École", La LettreMensuelle, n. 247. 2006.

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números situam a França à frente dos países europeus que abandonarama instituição do casamento. A nova norma social é a de um casamentotardio; quando ocorre o divórcio, a norma é a pouca freqüência de umnovo casamento, sendo o laço com a criança mantido ou não. Isso foi in-corporado à lei em 2005, com o fim da distinção entre crianças "naturais"e ''legítimas''. Mas será que, ainda assim, a visão "natural" da família nosentido do direito "natural" cedeu?

A criança dos "sociômanos"

A questão existe, pois, para a comissão da Assembléia Nacional para aFamília, a situação permanece simples: "De agora em diante, qualquerque seja a situação juridica do casal, é o nascimento de uma criança quecria socialmente a família'", É certo que não é mais a família que faz acriança. Seguramente, a família é um instrumento social pouco utilizado,mas o ponto de junção natureza-cultura, a glândula pineal do sonho social,está mantido. Ele agora se localiza na própria criança. Não se pode maissonhar com um laço familiar "natural"; isso, contudo, não faz acordar,estando o ponto do sonho apenas deslocado.

Lacan interrogava esse ponto do sonho a partir do que chamava"a ideologia edipiana", denunciada por ele como uma das formas do "fami-liarismo delirante", que, na França, conhecemos sobretudo nos anos 1940,para evitar que se interrogasse a função do semblant familiar. "Observe-mos o lugar ocupado pela ideologia edipiana para dispensar a sociologia,há um século, de tomar partido, como antes ela tivera que fazer, quantoao valor da família, da família existente, da família pequeno-burguesa nacivilização - ou seja, na sociedade veiculada pela ciência. Beneficiamo-nosou não do que cobrimos com isso, sem que o soubéssemosz'"

3 Relatório da missão da Assembléia Nacional sobre a família, citado em CHEMIN,

Anne. "Les enfants nés hors mariage plus souvents reconnus", Le Monde, 18 de

outubro de 2006.

4LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967". Em: Outros escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 262.

12 A VARIEDADE DA PRÁTICA

Quanto à psicanálise, a ideologia edipiana consistia em uma operaçãoanáloga ao que tentara a filosofia do século XIX: a naturalização da famíliapequeno-burguesa. Quanto à sociologia, constatamos que ela cessou de nãotomar partido. Alguns de seus setores, inspirados pelos "comunitarísmos"dosgender studies, enfatizam o exame de práticas familiares ainda marginaise as apresentam como vanguardas das formas futuras. Outros, inspirados poruma perspectiva católica, propõem a fórmula que citamos: "É o nascimentode uma criança que cria a família". Essa tese quer dizer que o que conta paraa criança é o estatuto jurídico que ela constitui pelo próprio nascimento.Qualquer que seja o modo de laço amoroso dos pais, qualquer que seja arelação deles, contará apenas o estatuto da parentalidade definida a partirdo nascimento. Para continuar.a sonhar que a relação familiar é natural,basta considerar que ~sgncia de laço familiar é uma família como outraqualquer e fazer perceber o laço "natural" sob as variações do artefato.

Podemos tomar a medida dessa instauração da família pelas viasnaturais por ocasião da recolocação em ficções jurídicas da criançaentregue à adoção. Até então, o poder do Estado era o único a deter aschaves da filiação. Com essa proteção, a mãe, ao decidir entregar a crian-ça à adoção, rompia o mais seguro dos laços sociais, enquanto o artigodo Código Civil sobre a entrega à adoção não mencionava em momentoalgum a existência do pai. A filiação dessas crianças repousa sobre umaficção jurídica: as mães são tidas como jamais tendo parido. A certidãode nascimento não guarda traço de abandono e, "juridicamente, é impos-sível que essas crianças empreendam investigações sobre a maternidade.Depois da reforma lançada em 2002 por Ségolêne Royal, então ministrada Família do governo Jospin, as crianças entregues à adoção podemdemandar ao Conselho Nacional para oAcesso às Origens Pessoais o fimdo segredo envolvendo seus nascimentos'". A Suprema Corte pôs um fimnesse sistema: se um homem reconhece uma criança in utero, a filiaçãopaterna desta será doravante estabelecida ... Percebemos, graças a umrecente julgamento no Supremo Tribunal Federal, que o gesto da mãe de

5 CHEMIN, Anne. "Le pêre d'un né sous X... voit sa paternité reconnue", Le Monde,9 de abril de 2006.

A CRIANÇA NO AVESSO DAS FAMíLIAS I Éric taurent 13

14 A VARIEDADE DA pRÁTICA A CRIANÇA NO AVESSO DAS FAMILlAS I hic laurent 15

entregar a criança à adoção pode ter sido um gesto ao modo de Medéia.Por meio dessa decisão, a futura mãe privava o pai de sua paternidade.Ora, o advogado do pai quis fazer reconhecer a paternidade de seu cliente."Essa sentença marca o fim da onipotência materna, resume o advogadode Philippe Peter, Didier Mendelsohn. Uma mulher que decide entregaruma criança à adoção não pode mais privar o pai de sua paternidade'",Sob o natural, portanto, rondam muitos demônios.

A hipótese do "natural" não é a da psicanálise. Constatamos que a"ideologia edipiana" não é mais suficiente. O ponto de vista da psicanálisenão é restaurá-Ia, mas constatar o fato de que a criança contemporânearevela o que é de estrutura para todos nós. É o sujeito quem tem a tarefade constituir sua família, no sentido em que essa institui uma distribuiçãodos nomes pai e mãe. A partir de então, essa tarefa não é aliviada nempela ficção jurídica, nem pela contribuição da sociologia.

Com efeito, a necessidade de ir além da ficção "sociômana" é mantidapelos testemunhos do romance contemporâneo e pelo dos sujeitos queencontramos em nossa prática. A carta ao pai não cessa de se escrever:seja com o romance americano de Paul Auster (A invenção da solidão),com Jonathan Franzen (As correções) ou, mais recentemente, com JohnIrving (Eu te reencontrarei). Neste autor, a invenção do pai sobre um fundode carência deu lugar a passagens desopilantes nas variações deA vida se-gundo Garp, cujo herói é filho de uma feminista, professora de catch, e deum pai desconhecido. O romance francês comporta a mesma preocupação,mas acrescenta cenas sexuais mais explícitas. Que seja homo ou heteros-sexual, nele a evocação do incesto é mais direta. Nesse sentido, assistimosao nascimento de um gênero literário, a narrativa de incesto - ChristineAngot, Virginie Despentes -, acompanhando uma epideznia de denúncias,freqüentemente justificadas e, em muitos casos, imaginárias. Essa epidemiacausou estragos dos dois lados doAtlântico, mas apresentou característicasdistintas. A denúncia desafia os critérios de veracidade psicológica do pa-recer, como mostrou o caso Outreau. Um testemunho nos dá uma versãoinquietante desse modo inexplicável de endereçamento ao pai.

Em um livro-testemunho, Virginie Madeira, que tem hoje 21 anos,conta, sem o menor traço de raiva ou mesmo de emoção, como, aos 14anos, mentiu, acusando seu pai de tê-Ia violentado durante vários anos.O tom é frio e as frases, muito concisas: "É complicado compreender,mas eu não conseguia perceber que meu pai estava preso, por minhacausa; não se coloca as pessoas na prisão, se elas nada fizeram". Ela oacusoUem um dia da primavera de 1999, para que sua amiga Melanie "seinteressasse por ela", para que "ela não a abandonasse". No dia seguinte,VzrginieMadeira foi convocada pela diretora do colégio. "Eu não conseguidizer que tudo era falso". Ela atravessou a fase de instrução do processo,incluindo as perícias psiquiátricas, como um fantasma. Falava pouco,mantinha os olhos baixos e se contentava em confirmar a sua mentira,aquiescendo às questões com um simples movimento da cabeça. Osperitosexplicaram esse esmorecimento com a alegação dos estupros paternosque teria sofrido: a adolescente evoca "uma forma de passividade e dedependência", observa um deles. Ao constatar incisuras vaginais, que, narealidade, são fisiológicas, um perito em ginecologia confirma a existênciade "penetrações penianas" ...

O processo ainda não foi revisado, mas Antônio Madeira ganhouliberdade condicional em fevereiro de 2006, depois de mais de seis anosde prisão. Sua filha, que quer se tornar professora, o vê regularmente."Ele nunca demonstrou ter raiva de mim'",

Tomo essa proliferação como sintoma do que a ideologia da paren-talidade não pode acalmar. Seria equivocado opor a literatura do segredoindividual (romance do incesto) àquela que se opõe à época e à história,segundo uma relação interior/exterior. Chega-se a substituir o interiordo sujeito pela história, por exemplo, em Les bienueillantes", como viu

6 Ibid.

7 CHEMIN,Anne. "Un inceste", Le Monde, 21 de setembro de 2006.

8 N. do T. Romance do escritor francês de origem americana Jonathan Littel,publicado em agosto de 2006. Trata-se das memórias da personagem fictícia Ma-ximilienAue, particiante dos massacres nazistas como uma oficial SS. O livro foium dos principais lançamentos da temporada literária 2006-2007, tendo obtidooGrand Prix du roman de l~cadémie Française (26/10/2006) e oPrix Goncourt(6/11/2006). Cfhttp://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Bienveillantes

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16 A VARIEDADE DA PRÁTICA A CRIANÇA NO AVESSO DAS FAMíLIAS I Éric Lauren! 17

muito bem Claude Lanzmann. O romance épico inclui agora a invençãoda família.

Contrariamente aos sociólogos que analisam tranqüilamente o in-tervalo entre as parentalidades múltiplas e "à Ia carte", de um lado, e asformas diversas do casal contemporâneo e de suas práticas sexuais, dooutro, a criança sabe que tem a tarefa de manter juntos os ideais familiarese a relação sexual, isto é, parentalidade e sexualidade.

A criança freudiana sabe que deve fazer com que se mantenham juntosos monstros engendrados pelas fantasias, que não cessam de voltar nosromances e na clínica, e as idealizações da parentalidade. Talvez ela o saibamelhor que a filosofia, como queria Derrida, cuja obra situava o irredutivelda filiação, articulando o "natural" e o "cultural" pelo "reconhecimento".Haverá nascimento e laço familiar em torno da criança. Essa invariantepermanecerá, mas a organização dos respectivos lugares se tornará maismóvel. Ela nunca foi "natural" para "vivente" algum (humano ou animal),mas parecerá cada vez menos "natural" ... Será preciso circunscrever umarelação irredutivel entre o que se chama genético, biológico, "natural",de um lado, e o simbólico ou "cultural'", do outro. "Toda a obscuridadese concentra nessa 'experiência' chamada, muito apressadamente, 're-conhecimento"> .

Não se trataria antes de reconhecer que a criança, em geral, respondeao desejo do Outro pagando a "libra de carne"? E que, ao interrogar odesejo do Outro, não se trataria de reconhecimento, mas de angústia?Para mascarar a última, a preocupação sociológica quer articular a criançaa uma ficção jurídica, desempenhando o papel de um ideal, ainda quefraco - em italiano, isso se diz "il pensiero debole". A posição psicanalíticaconsiste em manter o sujeito distante do ideal e interrogar o real em jogono nascimento da criança, sendo esta produto do desejo ou do gozo.

A criança da angústia

Em OSeminário, livro 16: de um Outro ao ourro-', Lacan interroga o idealda família em nome do fato de que, no Outro, haja uma falta absoluta,estrutural (}(). Há duas maneiras de vencer essa falta. A primeira consisteem acrescentar o gozo que falta no Outro. Essa é a via do perverso, e temcomo efeito produzir um significante do Outro que seja pleno, escrito porLacan como S(A). A isso ele opõe a via do neurótico, que, por sua vez,quer se completar a partir do ideal de uma família como sintoma s(A).O problema surge quando é preciso demandar uma criança à mulher epassar, para tanto, pelo Outro sexo. Trata-se aqui do avesso do Nome-do-Pai como garantia. O pai de família é tão-somente um sonho do neurótico,que, para se inscrever no Outro, quer ser garantido desse modo.

O drama familiar deve ser retomado a partir do lugar dessa tampa querevela o objeto a "liberado" pelo significante de )(, a estrutura, simplesmente.Como observou Lacan, a criança ocupa, por excelência, esse lugar de objeto."O importante, contudo, não é que o objeto transicional preserve a autono-mia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para amãe?", Nesse caso, "a criança realiza a presença do objeto a na fantasía'v.

A tônica incide sobre a criança tomada não em um ideal, mas no gozo, oseu e o de seus pais. Por essa presença, a criança vem saturar a falta da mãe,ou seja, seu desejo. Há realização no sentido não da angústia de castração,mas no fato de que se produza um objeto que responda a partir da angústialigada à privação. "Em suma, na relação dual com a mãe, a criança lhe dá,imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprioobjeto de sua existência, aparecendo no real">,

Infanticídios e incestos recentes na França e na Europa nos mos-traram várias facetas do que quer dizer a criança como objeto a da mãe,

9 DERRIDA, Jacques & ROUDINESCO, Elisabeth. De quoi demain ... Paris: Fayard,

2001, p. 77.

>O Ibid., p. 79.

U lACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre XVI: D'un Autre à /'autre. Paris: Seuil, 2006 .

•2 lACAN, Jacques. "Alocução sobre as psicoses da criança". Em: Outros escritos.

Ob. cit., p. 366.

'3lACAN, Jacques. "Nota sobre a criança". Em: Outros escritos. Ob. cit., p. 370.

'4 Ibid., p. 370.

18 A VARIEDADE DA PRÁTICA A CRIANÇA NO AVESSO DAS FAMíLIAS I Éric Laurent 19

quando o pai é foracluído dos lugares de processo: Outreau, Angers.Nomes de pessoas fazem o índice do enigma: Courjaualt, Kévin, Dutroux.

É partir daí que o "objeto revela a sua estrutura. Esta é a de umcondensador de gozo, na medida em que, pela regulação do prazer, ele édespojado do corpo'<. O objeto designa o ser do sujeito no ponto em queele é ausência de representação.

Éque esses objetos, parciais ou não, mas seguramente significantes-o seio, o excremento, o falo - o sujeito decerto os ganha ou os perde,é destruído por eles ou os preserva, mas, acima de tudo, ele é essesobjetos, conforme o lugar em que eles funcionam em sua fantasiafundamental, e esse modo de identificação só faz mostrar a patologiada propensão a que é impelido o sujeito num mundo em que suasnecessidades são reduzidas a valores de troca. 16

[p]roblemas do direito de nascimento, por um lado, mas também,no impulso do 'teu corpo é teu', no qual se vulgarizou no início doséculo um adágio do liberalismo, a questão de saber se, em virtudeda ignorância em que é mantido esse corpo pelo sujeito da ciência,chegaremos a ter o direito de desmembrá-lo para a troca. [...]

Haveremos de destacar pelo termo de criança generalizado aconseqüência disso? [...]

Eis o que assinala a entrada de um mundo inteiro no caminhoda segregação."

estatuto de um discurso precursor do objeto condensador de gozo, ex-traído do corpo. Lembremos que, antes desse discurso, o corpo pertenciaa Deus, os cadáveres, à igreja, e cada um tinha o dever de conservar-sea si mesmo e não se suicidar. Somente quando se definiu a propriedadeprivada do corpo é que se pôde proceder tanto ao tráfico de órgãos comconsentimento quanto às barrigas de aluguel e também à extensão dessasquestões acerca da prostituição como disposição de si. Sempre ao encalçodo consentimento que se qualificará de esclarecido para fazer ainda maisAuflcliirung, como na retórica da avaliação.

O segundo ponto abordado por Lacan é que o sujeito, na condiçãode sujeito da civilização e sujeito da ciência, não pode gozar de seu corpocomo um; ele só goza da imagem desse corpo transformado em objeto,em envelope, sendo essa a objeção feita por Lacan à fenomenologia,que fazia espelhar a esperança de reconciliar o sujeito com o seu corpo."Depois que longos séculos nos deram, na alma, um corpo espiritualizado,a fenomenologia contemporânea faz do nosso corpo uma alma corporiza-da. O que nos interessa nessa questão [...] não é mais o corpo participanteem sua totalidade'w,

A conseqüência do peso que recai sobre a criança de ter de inventara família nesses novos termos enfatiza a importância dos estados de-pressivos da infância. O "cansaço de ser si mesma" é aí ainda mais forte.Retomo o termo forjado por um sociólogo.'? Com efeito, a sociologiapermitiu situar em seu justo lugar o cansaço narcísico, mas o que é menosperceptível é que a criança é o último tampão para que não se perceba oburaco no Outro.

O texto de orientação de casos das Jornadas da Escola da Causa Freu-diana, de Jacques-Alain Míller=, permite-nos compreender a distânciaque tomam certas associações de pais de crianças portadoras de grandessofrimentos em relação à psicanálise. Essas associações insistem que as

Por que mobilizar aqui o valor de troca? Prossigamos com Lacan,referindo-nos ao momento em que ele faz uma lista dos:

Comentamos os dois hiatos entre a fantasia materna, o discursoliberal e o discurso da ciência. O liberalismo do "teu corpo é teu" tem o

'5 LACAN, Jacques. "Alocução sobre as psicoses da criança". Ob. cit., p. 366.

•6 LACAN, Jacques. "A direção do tratamento". Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1998, p. 620.

., LACAN, Jacques. "Alocução sobre as psicoses da criança". Ob. cit., p. 367.

.8 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 2005, p. 241 .

'9 EHRENBERG, Alain. Lafatigue d'être sai. Dépression et société. Paris: Odile

Jacob,1998.

20 MILLER, Jacques-Alain. "Vers les prochaines Journées de I'École". Ob. cito

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perturbações da criança sejam definidas somaticamente. a sucesso daclassificação dos sintomas da criança como distúrbio da atenção, hipera-tividade, distúrbios bipolares é muito poderoso porque permite reduzira questão subjetiva a uma simples perturbação somática. Assim, quandoos psicanalistas dizem: "Mas não, isso não é uma perturbação somática,isso é da ordem subjetiva", pensando trazer uma mensagem de esperança,na verdade deixam certas pessoas desesperadas. a efeito é implacável: oódio. a sucesso da nova clínica das funções cognitivas, da atenção e suasperturbações, da condensação da causa na amígdala que já não agüenta,encontra aí a sua razão.

a que está em jogo nessa procura da inscrição somática é a busca deum sentido, no momento em que, nos discursos estabelecidos de nossacivilização, tantas certezas escapam sob nossos pés. A inscrição no corpotoma o lugar da garantia "natural" de uma ordem.

É a essa questão que vem responder a criança que "faz a família".Ao ponto "natural" que nos propõe a sociologia, respondemos por umafalta radical na cadeia das representações. A psicanálise é "uma teoriaque inclui uma falta a ser encontrada em todos os níveis, inscrevendo-seaqui como indeterminação, ali como certeza, e a formar o nó do ininter-pretável'?'. A psicanálise é, com efeito, um discurso que se sustenta semoutra garantia salvo aquela da própria interpretação. A psicanálise é odiscurso que tenta dispensar os semblants propostos pela civilização àinquietante questão "o que falar quer dizer". a discurso da parentalidade,cortado da particularidade do desejo que produziu a criança, faz partedesses semblants que recusamos. Preferimos manter a questão de Eliotem Waste land, sem compartilhar de sua esperança quanto a uma novareligião sincrética que responderia à sua questão. Eis o texto em inglês etambém na versão francesa de Pierre Leyris=:

21 lACAN, Jacques. "O engano do sujeito suposto saber". Em: Outros escritos. Ob.cit.,p. 338.

22 EUOT, Thomas Stearns. La terreuaine et autres poêmes, Paris: Seuil, 2006.

20 A VARIEDADE DA PRÁTICA

What have we given?My friend, blood shaking my heartThe awful daring of a moment's surrenderWhich an age of prudence can never retractBy this, and this only, we have existedWhich is not to be found in our obituariesar in memories draped by the beneficent spiderar under seals broken by the lean solicitorIn our empty roms

Mon ami le sang affolant le creurL'épouvantable audace d'un moment de faiblesseQu'un siêcle deprudence nepourrait racheterNous avons existé pour cela, cela seulQui n'est point consigné dans nos nécrologiesNi dans les souvenirs que drape la bonne aragneNi dans les sceaux que brise le notaire chafouinDans nos chambres vacantes.

a sentido do poema é dado segundo a interpretação que se empregaao vazio de "empty rooms", Eu o retomo, para concluir, como uma figurade S(A).

Tradução: Yolanda Vilela

Revisão: Elisa Alvarenga

A CRIANÇA NO AVESSO DAS fAMíLIAS I Éric Laurent 21

23

UMA LECTURA

Judith Miller

Na leitura deste volume, vê-se como o tema do Terceiro Encontro Ame-ricano converge para o de Pipol g: Psicanalistas conectados diretamenteao social. Nada de surpreendente nesse efeito de uma mesma orientação,a lacaniana. Este volume, no entanto, surpreende por muitas razões.

Primeira surpresa: ele se lê com facilidade. Objetivo, não tem redun-dâncias, nem demagogias.

Nova surpresa, os primeiros capítulos fazem um raro esforço epis-temológico, em que se vêem sublinhadas e esclareci das numerosasreferências a Lacan, resultado de um estudo atento e atual, no qual sãotratados os clássicos (nominalismo, realismo, Georges Canguilhem), mastambém convocados os trabalhos de autores recentes, como Ian Hackingou Zygmunt Bauman.

Ao passo que as vias são traçadas por Jacques-Alain Miller e ÉricLaurent, o toque de cada um se faz presente em todos os trabalhos.O leitor também é chamado a "pôr aí algo de seu".

Terceira surpresa: as lições das experiências atravessadas na Europapelo Campo freudiano são extraídas do continente americano com talpertinência, que se pode prever que o autismo pelo qual pudemos seratingidos na Europa, segundo a expressão de Manuel Blanco Fernandez',não prejudicará nossa vigilância.

Quarta: os Centros Psicanalíticos de Consultas e Tratamento (CPCTs)e os colegas engajados no trabalho social europeu podem contar com aexperiência adquirida do outro lado do Atlântico pela Red Asistencial e

, Em artigo a ser publicado em Revue de La Cause Freudienne, n. 66, junho de2007·

24 A VARIEDADE DA pRÁTICA UMA LEITURA I Judith Milier 2S

por PAUSA, assim como por outras iniciativas feitas aqui e ali, na pes-quisa e na formação clínica que asseguram. É impressionante como ospsicanalistas, no momento em que se exige deles a invenção da clínicado século XXI, deparam-se com a permanência da questão levantada por

Freud há mais de cem anos!Essa questão insiste ao longo da história do movimento analítico a cada

vez que se trata da extensão da psicanálise na cidade. Nestes dias em que oduplo luto de nossos colegas Robert e Rosine Lefort tocou fortemente nossacomunidade de trabalho, lembraria que essa mesma questão angustiouRosine Lefort em 1977,a propósito de seu trabalho com Nadia: "Trata-se depsicanálise?" Ao que Lacan respondeu por um: "O que é então?", explicitadopor ela, em 1990, como "um saber sobre o desejo, por natureza, impossívelde esgotar, em razão de sua relação com a verdade">,

Parece-me que aqueles cuja formação nas Escolas do Campo freu-diano permite fazê-lo devem velar por essa questão. De tal formaçãojá resultou a explicitação clara e firme dos princípios diretivos do atoanalítico, publicados no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise(AMP) em julho de 2006. Ela permite conjeturar favoravelmente sobreas múltiplas iniciativas que são e serão tomadas futuramente, de maneiratão audaciosa quanto a amplitude de suas apostas.

Neste volume, está claro que falar a língua do outro de modo algum impli-ca abraçar as suas teses. De fato, falamos sobre a língua do outro para extrairseus pressupostos e alvos. É isso que exige a preocupação epistemológicade que estes textos dão provas. A singularidade do caso no fundamento daclínica de orientação lacaniana, continuísta ou não, só pode se manifestar apartir das marcas de estrutura que dão conta disso. Por esse motivo, JacquesLacan observou o estatuto de práxis próprio à psicanálise.'

2 FREUD, Sigmund. "As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica" (1910)e "Linhas de progresso na terapia psicanalítica" (1919). Em: Edição StandardBrasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vols. XI e XVII,respectivamente. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

3 Ver o artigo de Rosine e Robert Lefort em L'Ane, n. 44, 1990.• LACAN,Jacques. "Televisão' (1974). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 2004.

A fim de indicar o que se designa como inclassificável, é precisosaber para quem e em que falar ao sujeito da língua do outro e falar sualíngua constituem dois procedimentos distintos. Esse outro é plural.Os "outros" devem, seguramente, ser diferenciados: propor a noção deborderline, que implica uma linha de divisão, e falar de depressão semqualquer preocupação pela estrutura, dispensando toda a escuta dosdeprimidos para melhor colocá-los no prumo, não são a mesma coisa.Linha de divisão que supõe a estrutura e uma clínica diferencial, para aqual estão inteiramente fechados aqueles que manejam sem considera-ção e multiplicam indefinidamente classes, categorias, tipos, síndromes,algumas vezes com a única preocupação de assegurar à sua clientela oúltimo produto da indústria farmacêutica.

Os terapeutas do comportamento e da cognição não escutam nada, ebuscam reduzir ao silêncio o que sua colaboração às lógicas do mercado osconduz a chamar de "transtornos" (da ordem pública, isto é, das normasa que aderem). Sua classificação promete pôr na linha os recalcitrantes,sem conseguir reconhecer que eles falam, à diferença dos computadorese dos cães.

A escuta se insere em uma práxis e não está à mão de quem não éformado pela experiência da associação livre. Práxis, termo um pouco emdesuso, diz bem o que tem a dizer: nem protocolo aplicável segundo umautomaton indiferente a seu campo e estanque diante de seu operador,nem técnica utilizável sem exploração de seus pressupostos e conseqüên-cias. A práxis tem duas vertentes, prática e teórica, que caminham juntase se autorizam uma da outra.

Na época do Outro que não existe, fazer seu lugar no campo do Ou-tro é indispensável e indiscutivelmente, mais do que nunca, de utilidadepública, como os numerosos analistas de orientação lacaniana estão en-gajados em demonstrar e decididos a fazer escutar. Eles não trabalhamno deserto. Eles continuam. Pois bem.

Tradução: Lúcia Grossi dos Santos

Revisão: Elisa Alvarenga

o INCLASSIFICÁVEL

Silvia Elena Tendlarz[EOl]

Nosso novo século transformou a forma de apresentação dos casos clíni-cos. O declínio do Ideal e o predomínio do objeto de gozo sobre o Idealconduzem a uma multiplicação de identificações simbólicas, a uma plu-ralização dos SI. Desse fato, derivam identificações frágeis, solidárias deuma fragmentação discursiva. À falta do significante mestre que coletiviza,emerge tal pluralização dos SI' à maneira do significante "em nome do qualse fala". Por outra parte, os sujeitos recorrem a identificações imagináriasmutáveis que funcionam como suplências em face do déficit simbólico.Desse modo, tenta-se apaziguar o mal-estar relativo ao declínio da figurado pai e à inconsistência do Outro.

A proliferação dos "como se" contribui para dificultar os diagnósti-cos. Os casos raros, atípicos, os chamados inclassificáveis, excedem nosconsultórios. Por exemplo, a psicose ordinária examinada na atualidadenão quer dizer que a psicose clássica tenha desaparecido. Em seu lugaraparecem psicoses atenuadas, sem desencadeamento, com fenômenospsicóticos brandos, que mais traduzem um desligamento do Outro, semconstrução de delírio e com "acontecimentos do corpo que não estãocentrados no amor ao pai". Laurent indica que se visualizam, dessa forma,"pedaços do real", "surgimentos erráticos do real", sem a necessidade deum delírio que prive o sujeito da linguagem comum.

O uso globalizado dos medicamentos e a impregnação social dos crité-rios dos DSM que desconstroem sistematicamente as categorias existentesem nome de um realismo pragmático e sincrônico empurram o fenômenopsicótico a uma modalidade que escapa às classificações tradicionais utiliza-das na psicanálise. Não se trata tanto de seu desaparecimento, e sim de quea modificação do binômio signifícante-gozo é solidária a outra clínica.

27

Do empuxo à classe ao não-todo

Como resultado dessa mudança, produziu-se uma crise em nossas clas-sificações e alguns diagnósticos deixaram de ser operativos. A clínicadescontínua, estruturalista, de "substituição", como indicado por Miller,evoluiu para uma clínica contínua, de "conexão", borromeana, na qual osuporte já não é a inscrição do Nome-do-Pai, mas a foraclusão generali-zada e a relação do sujeito com seu sinthoma. A ênfase, assim, desloca-seda estrutura, que é uma classe, para a unidade elementar do sintoma.

Os novos sintomas concernem às patologias sobre as quais antesnão se falava e que existem a partir da nomeação de classes. Renova-se oenvoltório formal do núcleo de gozo que não varia: não existe uma novapulsão.

iO sintoma apresenta uma dupla vertente: singular, que concerne ao

gozo, e universal, que provém do Outro e traduz seu aspecto social. A partefixa do sintoma, o gozo aparelhado, mantém-se, enquanto a parte variável,que corresponde aos significantes vindos do Outro simbólico, com osquais se inventam os modos de satisfazer à pulsão, varia sua vestimentae associa-se ao relativismo. Na esfera do sujeito, permanece a inércia queinscreve o sintoma no real, situando-o, assim, entre o real e o social.

Em contrapartida à dispersão clínica, a essa série indefinida decombinações, que já não corresponde ao regime do Nome-do-Pai, masao regime do não-todo contemporâneo, à pluralização dos significantesmestre, surgem novas "classes" de identificações socialmente construídas.Ao mesmo tempo, porém, diante do empuxo social de constituição declasses, de tudo nomear, aparecem casos avulsos que não formam umacomunidade e se tornam inclassificáveis. Essa identificação fragmentadaé o suporte das epidemias diagnósticas modernas.

lan Hacking considera que os diagnósticos contemporâneos sãoconstruções sociais que respondem a épocas e a lugares determinados.O ato de dar um nome consegue realizar uma construção sobre aquilo quenomeia. As classificações incluem indivíduos com os quais interagem, epor "efeito bucle" vão se modificando tanto os indivíduos classificadosquanto as próprias classes. No entendimento desse autor, o mal real

28 A VARIEDADE DA PRÁTICA

que a classe tenta nomear existe; o que se modifica é o constructo queo nomeia.

O ponto de partida dessa orientação foi dado por Nelson Goodman,ao afirmar que as classes fazem mundos, mas as conclusões conseguidas apartir das particularidades não impedem que se chegue a uma conclusãooposta usando as mesmas regras de inferência, caso se utilizem prefe-rências diferentes na classificação. Habitamos muitos mundos possíveis,de acordo com as classes que usamos. O ponto central é que critérios deseleção e organização são utilizados na categorização das classes conside-radas relevantes. A essas considerações lan Hacking acrescenta o socialda construção da realidade, visto que o mundo não é alheio às pessoasque o habitam.

Pois bem, o "mal real" invocado nessa perspectiva nominalista nãocorresponde ao real próprio à psicanálise, que se esquiva necessariamenteao saber. Isso nos leva ao chamado "real da classe ou do tipo clínico", eesse real torna mais complexa sua inclusão na classe diagnóstica.

Os pólos diagnósticos e o singular

Asubversão levada a cabo por Lacan em relação ao universal de Aristótelesfaz com que se retifique o uso dos quantificadores, de modo a extrair dalógica moderna o problema da existência, para além da questão da per-tinência. Essa virada não impede que a clínica analítica almeje encontrarcategorias nas quais se inclua o sujeito. Na verdade, apontamos para umaciência do particular e do singular, e não do universal, posto que o serdo sujeito, seus atributos e particularidades não são dedutíveis do tipoa que ele pertence.

Como efeito das transformações contemporâneas, a clínica clássica,ue responde pela estrutura do todo e das classes, da sexuação masculi-

na, como disse Jacques-Alain Miller, tornou-se uma clínica do não-todolacaniano.

~stência do Outro revela que não há um todo universal e quese inscreva na estrutura que Lacan chamou de não-todo. Como conse-

o INCLASSIFICÁVEL I Silvia Elena Tendlarz 29

qüência, a universalização, longe de se inscrever no espaço do para todox, torna-se o não-todo generalizado. Miller especifica as particularidadesdesse não-todo: "não é um todo que supõe uma falta, mas uma série emdesenvolvimento sem limites e sem totalização", destacando-se, dessemodo, o ilimitado da série.

Ora, se o ser do sujeito se encontra na particularidade do não-todo,trata-se de uma pura dispersão nos particulares ou existem universais outipos clínicos que podem ser usados legitimamente na clínica?

A relação entre o Um e o múltiplo produz oscilações e introduzmatizes. A clínica analítica do particular permite questionar os concei-tos aceitos. Introduz, portanto, uma mobilidade, cuja presença impedesua transformação em um dogma no qual, para se alcançar o universalsonhado, as particularidades subjetivas se esvaziariam. A singularidade

Jdo ser falante entorpece esse anseio. O enlaçamento do sinthoma, os nóssintomáticos, sempre é singular e resiste à inclusão em um universal.

Os quantificadores aristotélicos se inscrevem em um universo dediscurso finito. O não-todo de Lacan se distancia dele, posto que a ênfaseincide sobre a impossibilidade da universalidade do predicado. ComoMiller desenvolveu, valendo-se do modelo intuitivo de uma seqüência deeleições, se não se enfoca inicialmente a lei de formação da série, torna-

)

se impossível para todos. Essa seqüência é lawless, ou seja, sem lei quemarque uma série finita, sendo esse o atributo singular do real. Dito deoutro modo, o real é sem lei.

)

O sintoma é a lei particular de um sujeito e mostra que não há umsaber no real, um saber sobre a sexualidade, uma vez que o real que valepara um não vale para outro. Nesses termos, a disjunção entre saber egozo é o efeito do furo da não relação sexual.

A contingência determina o modo de gozo do sujeito e evidencia avariabilidade da experiência psicanalítica. Cada ser falante tem seu sinto-ma como parceiro fundamental. Ante a falta de saber no real, os distintostipos de sintoma suprem a ausência de relação sexual. A contingência sealoja no singular de cada caso e não se deixa absorver pelo típico.

\

O inclassificável é o gozo do próprio sujeito. Além disso, seus sinto-mas respondem a uma estrutura e transtornam os significantes de uma

30 A VARIEDADE DA PRÁTICA

época. Ainda que o postulado clínico dos pólos da neurose e da psicosese mantenha, deve-se precisar as "distorções topológicas", como disseLaurent, que vão de um estado a outro sem rupturas.

Trata-se, definitivamente, de fazer uso das categorias clínicas para Jexaminar os tratamentos sintomáticos singulares, revelando-se, assim,que o sujeito não é mais que uma hiância perante o universal.

Ainda que Deus não jogue com os dados, a contingência e o acaso doencontro fazem de cada sujeito um caso único e excepcional.

Tradução: Maria Rita Guimarães

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32 A VARIEDADE DA PRÁTICA

OS VAIVÉNS DE UM MAL-ENTENDIDO

E ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS

Juan Fernando Pérez[NELl

o problema em discussão

Se considerarmos o termo inclassificável por si só, em seu sentido de-notativo e à margem de sua história no âmbito da orientação lacaniana,ou das restrições que podem ser feitas ao seu sentido primário, ele nãopoderá ser tomado como um diagnóstico, uma vez que o diagnóstico é,por definição, uma classificação.

Por que, em alguns contextos, não é evidente o fato de que"0 inclassificável não é um diagnóstico"?

Por que razão o que é evidente em uma lógica geral se torna contra-evidentenessa mesma lógica, ao menos em parte? Não resta dúvidas de que o lugarocupado pelo "caso único" em psicanálise, a clínica do sujeito, remete, deum modo ou de outro, à idéia de "inclassificável". O que não está claro é arazão pela qual se consideraria essa noção um diagnóstico. Para esclarecer oque assinalei, é preciso considerar o percurso feito pelo termo inclassificávelnas Escolas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

Tal percurso parte de um verdadeiro acontecimento: A Conversaçãode Arcachon-, realizada entre as Seções clínicas francesas em julho de1997, em Arcachon, cidade costeira do Atlântico francês. Dessa Conver-

, Em: MILLER, Jacques-Alain e outros. Los inclasificables de Ia clínica psicoanalí-tica. Buenos Aires: Paidós/ICBA, 1999, p. 195-414.

33

sação, ponto de partida da difusão do termo inclassificável no âmbitolacaniano, é possível extrair momentos e teses muito significativas, queparecem ter influenciado na criação da contra-evidência em questão e doque considero um mal-entendido.

Uma identidade questionável

A conversação de Arcachon teve continuação decisiva, dois anos depois,na Convenção de Antibes, publicada sob o nome de Psicose ordinária.Nesta se definiram pontos que haviam permanecido abertos em Ar-cachon, e que tinham como cerne o conceito de psicose ordinária, deJacques-Alain Miller. Não obstante, a partir do momento de difusão desseconceito de Miller, especialmente em alguns meios das Escolas ameri-canas por ocasião do lançamento das edições em espanhol e portuguêsdos debates de Arcachon e Antibes, surgiu a tendência de identificar anoção de inclassificável com a de psicose ordinária, gerando-se assim omal-entendido assinalado. Épossível constatar que essa identificação nãose produziu nos lugares de fala francesa e tampouco em outros espaçosda orientação lacaniana em que não se fala espanhol, nos quais o termoinclassificável deixou de ser relevante após a abordagem inicial realizadano fim dos anos 1990.>

À luz da perspectiva de Arcachon, é fácil reconhecer que a discussãolá produzida sobre as psicoses em geral e, em particular, sobre as psi-coses "de hoje" desembocou no estabelecimento de uma série de teses

2 Cabe notar que ovolume deArcachon foi editado em francês como Lu Conversation

d'Arcachon, diferentemente das edições em português e em espanhol, que foramintituladas Os inclassificáveis. É muito provável que esse fato, ou seja, o títulodado a esse volume, tenha tido papel significativo na criação e difusão do mal-entendido aqui considerado, uma vez que, ao converter esse termo em um objetode múltiplas proposições, situou-o em um plano importante. Acrescente-se a issoque o aparecimento dos volumes em espanhol e em português coincidiu com adifusão do conceito de psicose ordinária nas Escolas da AMP.

34 A VARIEDADE DA PRÁTICA

que facilitaram e promoveram o aparecimento do conceito de psicoseordinária.3

Recordemos que, na convocatória dessa conversação, figurava o termoinclassificável, sendo importante destacar os dois casos-chave no debateem Arcachon: os de Deffieux e de Castanet.

Como afirmado, é possível traçar uma linha que vai do termo inclassi-ficável, proposto em Arcachon, ao conceito de psicose ordinária, sugeridodois anos mais tarde. Devemos assinalar que a psicose ordinária, emboraseja uma categoria cuja natureza não permite considerá-Ia propriamenteum diagnóstico, não elude a questão da classificação no que concerne aotermo inclassificável em sua dimensão denotativa.

Para demonstrar que "isto - o inclassificável - não é um diagnós-tico", é necessário estabelecer quando e como essa linha que vai doinclassificável à psicose ordinária incorporou a idéia de diagnóstico,de modo a aparecer, eventualmente, no último conceito. Afirmar que oproblema em questão ("isto - o inclassificável- não é um diagnóstico")já estava presente desde o começo de Arcachon (a idéia de diagnósticono uso do termo inclassificáveO exigiria um exame sobre a concepçãoque lá teria vigorado, quando se tomou o termo aqui discutido como

3 Essa categoria, formulada por Miller em Antibes, havia sido antecipada pelo pró-prio nos anos 1970, ao situar com nitidez algumas teses de Lacan que permitiamvislumbrar essa perspectiva. Por exemplo, em "Ensinamentos da apresentaçãode doentes", texto de 1975, lê-se o seguinte: "Apopulação das apresentações dedoentes sem dúvida não está formada por grandes delirantes; tampouco Lacan seconfronta com dementes senis, a grande psicose é rara e, afinal, quem são os quevêm? São pessoas que apresentam alguns fenômenos elementares, a respeito dasquais a questão essencial é prognosticar a evolução do mal, e, além dessas pessoas,gente normal, no sentido de Lacan" (Cf MILLER, Jacques-Alain e outros. Los

inclasificables de Ia clínica psicoanalítica. Ob. cit., p. 426-7). É claro, portanto,que a idéia de psicose ordinária, de certo modo, já se encontrava presente emMiller na época da redação desse texto, em razão da notação muito específica deLacan sobre esse ponto, e que por certo inspirou bastante a produção da categoria.Na minha opinião, foram as condições ocorridas em Arcachon, iniciadas em Angersem 1996, que tornaram Antibes (1999) o tempo para sua enunciação, sob a formade um termo esclarecedor e justo.

os VAIV~NS DE UM MAL-ENTENDIDO E ALGUMAS CONSEQÜ~NCIAS I Juan Fernando Pérez 35

uma classificação. Fato que é, como se pode reconhecer, bastante es-tranho em si mesmo.

Além disso, é possível afirmar que, em Arcachon, o inclassificávelnunca foi considerado um diagnóstico e que, portanto, a linha que une oinclassificável à psicose ordinária e à idéia de ser um diagnóstico não éuma linha direta, como alguns parecem supor; trata -se antes de uma linhaimaginária, mal fundamentada, que é produto de um mal-entendido.

Sobre o caso de Deffieux em Arcachon

Para avançar na compreensão da questão aqui formulada, devemosconsiderar o caso de Deffieux ("Um caso não tão raro"), assim como asformulações em torno dele propostas em Arcachon.

1. O tema proposto para a conversação era "Casos raros: os inclassifícá-veis da clínica", ao qual Deffieux respondeu com uma inversão do tema. Eledisse: "Um caso não tão raro". Deffieux, portanto, passou do raro ao comum(ao ordinário, ao "não tão raro") e, assim, conseguiu que a conversação sedeslocasse justamente do raro (do que é ou pode ser inclassijicável) ao que,segundo seus termos, "encontramos cada vez mais'",

Desse modo, deu-se lugar a uma discussão mais clínica do queepistemológica, algo que a Conversação também esperava realizar. ParaDeffieux, a questão se constituía sobretudo em fazer notar uma dificul-dade conceitual traduzida em práticas erráticas, e não tanto em discutirse casos como o seu eram ou não inclassificáveis. Tal dificuldade seresolveria, de maneira definitiva, dois anos mais tarde com o conceitode psicose ordinária.

2. Considero que a "Abertura" da conversação (Miller), a classificaçãodos casos apresentados para a conversação proposta por La Sagna, assimcomo o próprio tema da conversação convidavam a uma discussão que de-veria também ser epistemológica. Todavia, devido ao peso alcançado peladiscussão clínica, especialmente sobre os casos de Deffieux e Castanet,

4 Ibid., p. 333.

36 A VARIEDADE DA PRÁTICA

a discussão epistemológica permaneceu um tanto fluida. É possível queisso tenha contribuído um pouco para a formação do mal-entendido.

3· De fato, na apresentação e discussão de seu caso, Deffieux nãovacilou em classificà-lo, ou seja, em lhe atribuir o diagnóstico de psicose.Isso suscitou uma cascata de reflexões em Arcachon decorrentes de suasustentação. Do ponto de vista epistemológico, o diagnóstico do casode Deffieux foi tratado como se fizesse série, embora não fosse possívelinclui-lo na série dos "inclassificáveis da clínica", como assinala o títulodado pelo próprio autor. Assim, foi um erro dar ao livro da Conversaçãoo título Os inclassijicáveis.

Sobre o diagnóstico

Convém, agora, dizer algo sobre o conceito de diagnóstico, seu lugar napsicanálise lacaniana e o que ele implica, a fim de considerar os conceitosde inclassificável e de diagnóstico.

Se, nesse contexto, há alguma diferença a ser destacada entre aconcepção de diagnóstico, de acordo com a orientação lacaniana, e asconcepções psiquiátricas, especialmente as contemporâneas, esta semdúvida é a ênfase na estrutura como noção, que, desde Lacan e Miller,constitui o fundamento do diagnóstico. Nesse sentido, podemos falarde diagnóstico estrutural por oposição, entre outros, aos diagnósticosde condutas.

A. Consideremos, em uma perspectiva epistemológica, quatro refe-rências: a Conversação de Arcachon em seu conjunto, particularmentea "Abertura" e o "Fechamento", feitos por Míllere; A psicose ordinária,volume cheio de precisões com relação ao que aqui está exposto; o textode Miller chamado Psychose ordinaire et clinique floue", no qual é pos-

5 Nos dois momentos, Miller insistiu na importância de O pensamento selvagemi(1962), de Lévi-Strauss, para os efeitos aqui discutidos.

6 Publicado há alguns anos na web em Ornicar? Digital, mas certamente também em

outros lugares, dos quais infelizmente não tenho a referência no momento.

OS VAIVÉNS DE UM MAL·ENTENDIDO E ALGUMAS CONSEQÜ~NClAS I Juan Fernando Pérez 37

sível encontrar o fundamento da articulação entre o que Miller chama depensamento aproximativo e o materna, necessária para evitar extraviosna consideração do problema da classificação na orientação lacaniana;e As palavras e as coisas, de Michel Foucault, que contém formulaçõescentrais para o problema de que tratamos. Questões como as da nomea-ção, das taxionomias e da classificação em geral dificilmente podem sertratadas com plena justeza sem a consideração das teses elaboradas porFoucault nesse livro.

B. Desses textos, consideremos a questão do diagnóstico como classi-ficação. Será preciso levar em conta a oposição proposta por Miller entreclassificação eformalização, e, aqui, a importância central do conceitode gradação. É em função desses conceitos que a categoria de psicoseordinária recebe seu maior peso epistemológico.

Com esses elementos de base, faz sentido distinguir a clínica des-continuísta da clínica continuísta, conceitos que dificilmente se poderiacompreender sem reconhecer os fundamentos do fato de classificar (emgeral e na psicanálise lacaniana, em particular), sua diferença em relaçãoao ato de formalizar e o lugar teórico cumprido pela gradação. Cabe des-tacar a precisão de Miller, ao enfatizar que é a gradação que possibilita,seguindo os passos de Leibniz, "articular conceitualmente o contínuo e odescontínuo'", algo que, por sua vez, permite compreender a razão segun-do a qual a estrutura tem lugar na clínica continuísta. Miller acrescenta:"[...] clinicamente [, achamos que] há uma gradação. Quando tentamosconceituar os casos, somos levados a dizer que há mais ou menos, e nãoapenas que 'há' ou que 'não há'. Hoje, esses conceitos são decisivos nouso das categorias diagnósticas em psicanálise".

C. O caso único poderia, então, ser tido como o que se designa como termo inclassificável, ou seja, como o que, de um lado, renuncia pordefinição a toda forma de diagnóstico e, de outro, seria o mais próprio daclínica analítica como clínica do sujeito? Penso que isso implicaria negartodo lugar legítimo ao uso de conceitos e categorias que formem conjuntos,

7 MILLER, Jacques-Alain e outros. Los inclasificables de Ia clínica psicoanalítica.

Ob. cit., p. 324.

38 A VARIEDADE DA PRÁTICA

considerem a série, à noção de estrutura e inclusive ao materna, assimcomo exigiria esclarecimentos epistemológicos.

Na psicanálise de orientação lacaniana, não só faz sentido, comotambém é indispensável considerar a estrutura, do mesmo modo que darlugar ao diagnóstico estrutural contribui eficazmente para sua prática,sem desvirtuar seus fundamentos. Como Laurent afirma:

Constatei de forma recorrente entre meus colegas de outras orienta-ções, assim como dentro da própria orientação lacaniana o sentimentode que, afinal, a clínicanão é o essencial; o essencial sãoos sujeitos, umpor um. Esta é a perspectiva nominalista: não acreditar no realismodas estruturas, acreditar no nominalismo do caso um por um, não naessência, em que não há mais além do que o próprio sujeito. Isso temuma vertente positiva, em termos precisos, a de atenção a esse sujeito.Épreciso também, todavia, entender que isso fazdesaparecer o realis-mo das estruturas, que tem um peso, ou seja, a função e a intervençãodo Outro. É preciso reintroduzir esse lugar do Outro por intermédioda figura do necessário lugar da interpretação."

Cabe acrescentar a elaboração proposta por Miller, ao falar de pen-samento aproximativo (ver B), e o que isso implica no que diz respeitoao inclassificável.

D. Sabe-se que a ars diagnostica e o aforismo medieval Qui benediagnoscit bene curat fazem parte da tradição médica ocidental desdea Antigüidade, bem como de outras tradições (a necessidade do serfalante em classificar, como produto fundamental da simbolização),embora adquiriam força e precisão apenas nos séculos XVIII e XIX. Foisomente a partir da afirmação da importância da observação clínica e dacientifização da medicina em geral que esse fato se instalou com clareza.Nesse sentido, a psiquiatria segue o espírito da medicina e Lacan é her-deiro dessa tradição, embora se dedique a fazer diversas precisões a esse

8 LAURENr, Éric. "Pluralización actual de Ias clínicas y orientación hacia el sín-toma". Conferência proferida no Congresso de Saúde Mental, organizado pelaMunicipalidade de Buenos Aires, em 22 de setembro de 1999.

OS VAIVÉNS DE UM MAL·ENTENDIDO E ALGUMAS CONSEQÜ~NClAS I Juan Fernando Pérez 39

respeito. Sublinho aqui o fato de o diagnóstico ter um lugar na clínica ena tradição lacanianas.

E. O que foi dito até aqui nos leva a afirmar que, com Lacan, odiagnóstico não é um tabu, como o é em diversos setores da psicanálise.Lacan, contudo, esforçou-se para transmitir a necessidade de diagnósticosprecisos, bem fundamentados, sem jamais esquecer a perspectiva do umpor um, do caso único. Isso O levou a fazer revisões e reelaborações detodo tipo, já que as categorias diagnósticas para a psicanálise precisavamde uma ordenação bem-sucedida; já que os signos e os sintomas estavam,em muitos casos, mal ou sequer identifícadoss; já que eram conceitosrequeridos para definir mais claramente a natureza das estruturas (fo-raclusão, ponto de basta etc.) e para que houvesse maior explicitação noordenamento das classificações (neurose, psicose e perversão); e já que aperspectiva do real sempre esteve no horizonte (fato nevrálgico em umaclínica do um por um).

F. A história do diagnóstico é uma história complexa e diversa. Nelase fortalece a prática terapêutica e seus fundamentos. A psicanálise temaí não poucos fatos para considerar o seu "o que fazer", como Lacan odemonstrou amplamente. Um exame mais completo do tema exigiriareconhecer essa diversidade, seus percursos, assim como precisar seususos no ensino nem sempre uniforme de Lacan. Nesse campo de idéias,será conveniente recordar que sua história se encontra atulhada de mal-entendidos.

Que o inclassificável se some ao percurso destes e que não seja fac-tívellhe definir um lugar na orientação lacaniana talvez seja, em últimainstância, apenas uma anedota entre outras dessa história, a qual talveztermine com o esquecimento de que ele, em algum momento, tenhaexistido em nossa clínica.

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

9 Assunto ao qual Lacan se dedicou com ousadia. É, por exemplo, o caso dos trans-

tornos da linguagem na psicose.

40 A VARIEDADE DA PRÁTICA

BORDERLlNE

Ariel Bogochvol[EBP)

lnclassificável é O termo utilizado para designar casos clínicos que nãose enquadram nas classes definidas por nossa nosografia. Éo diagnósticode que não há, para esses casos, um diagnóstico, isto é, de que nossostermos, conceitos, critérios e julgamento fracassaram em apreender umadada realidade clínica e em inseri-Ia na classificação estabelecida.

A não-classificação pode decorrer tanto de dificuldades em operarcom o sistema classificatório quanto de limitações intrínsecas do sistema.Seja por um motivo, seja por outro, surge uma impossibilidade circuns-tancial de abordar um fenômeno inédito, não consagrado.

Diante da ocorrência de um caso não classificado, a tendência inicialé atribuir a dificuldade à aplicação ineficiente do sistema. Preserva-se osistema, que dispõe de meios para se manter imutável, mesmo diante doaparecimento de fenômenos que o deixam, potencialmente, em risco.

Uma pequena modificação na definição da classe pode permitir ainclusão daquilo que, até então, não se incluía. Foi o que se observou,por exemplo, na Conversação de Arcachon: casos não classificados noinício foram classificados no final como psicoses, em função da extensãodo conceito. Há uma tendência inercial dos sistemas classificatórios queresistem aos choques e às modificações de sua orientação estrutural.'

Classificar esses casos como 'inclassificáveis' é uma forma de incluí-los na classificação. Isso, no entanto, não é suficiente para criar uma nova

1 MILLER, Jacques-Alain e outros. Os casos raros, inclassificáveis da clínica psi-canalítica. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.

41

~ 4

categoria, uma vez que ela se define não só por traços negativos - não serclassificada -, como também por traços positivos encontrados em todosos componentes da classe a que pertence. A 'classe dos que não se incluemem classes' forma uma classe, mas não um diagnóstico, e nada garanteque haja homogeneidade entre eles para além de suaheterotopia.

O caso único, por si, não é capaz de provocar mudança significativana nosologia e na nosografla. Somente a acumulação de casos não clas-sificados, a multiplicação de 'casos únicos', força, de fato, a mudança dosistema. É o que se verifica no Campo freudiano.

Em um primeiro momento, em Angers, começamos [...] com nos-sas surpresas. [...] Estava implícito que nos confrontávamos comcerta rotina, com certo classicismo, e por isso queríamos distinguirmomentos ou casos que se recortaram sobre um fundo de ordem eprovocaram nossa surpresa. [...]

No segundo tempo, perseveramos e elegemos como tema "Casosraros". Quiçá quisemos dar então um conceito a nossas surpresas. [...]Nós nos vimos conduzidos a explicitar nossa referência à norma clás-sica das psicoses e, por causa disso, a discuti-Ia mais radicalmente.

Hoje nos encontramos em um terceiro tempo. [...] Oque havíamosabordado desde o ângulo dos casos raros, abordamos agora comocasos freqüentes. Nós nos demos conta de que o que havíamos de-signado como casos raros em relação à nossa norma de referência,nosso metro-padrão 'De uma questão preliminar' [...], na práticacotidiana eram casos freqüentes.'

Caso único - casos raros - casos inclassificáveis - casos freqüentes,o percurso desenhado não deixa de ser o movimento que caracteriza ocampo clínico como tal.

a MIll.ER, Jacques-Alain e outros. La psicosis ordinária: Ia Convención deAntibes.

Buenos Aires: Paidós, 2005.

42 A VARIEDADE DA PRÁTICA

II

Em uma perspectiva sincrônica, os fenômenos que se apresentam, a formacomo se expressam e se organizam, e a rede discursiva que lhes conferesignificação parecem ter existido desde sempre, imutáveis. A esquizofre-nia, a histeria, o transtorno afetivo bipolar (TAB), o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), a neurose, a psicose e a perversão parecem entidadesmórbidas e estruturas perenes, que 'não cessam de se inscrever'.

A perspectiva diacrônica mostra, ao contrário, que a clínica, a noso-logia e a nosografia se modificam continuamente. Variam os sintomas,sinais, signos, doenças, incidência, modos de captá-los, nomeações,classificações, as redes discursivas que lhes conferem sígnifícação.s Háalgo que, na clínica, 'não cessa de não se inscrever's,

Há uma história da clínica; ela é uma construção provisória e móvel.Operação simbólica/imaginária sobre o real, busca apreender tanto o quenão cessa de se inscrever quanto o que não cessa de não se inscrever.

Em função de sua natureza, sempre haverá um elemento ex-sistenteà ordem, fora-da-classificação. E, correlativamente, sempre haverá ummovimento do sistema no sentido de absorvê-lo em seu corpo.

III

O ato do diagnóstico implica tanto o re-conhecimento de um acontecimen-to clínico quanto sua nomeação, categorização, classificação e, se possível,

3 BOGOCHVOL, Ariel. "Inibição, desinibição, sintoma, angústia", Carta de SãoPaulo, n. 1, Nova Série.

4 Ao reconhecer o caráter provisório do conhecimento clínico, as classificações psi-

quiátricas contemporâneas se apresentam como um 'ponto de vista historicamente

datado'. Pressupõem que novas classificações surgirão sucessiva e necessariamente

(CID 1, 2, 3 ... 10) e, para tanto, organizam um trabalho de revisão permanente,

criando classes provisórias e não classificados em todas as suas seções. Dessa forma,

assimilam e incorporam aquilo que 'não cessa de não se inscrever'.

BORDERLlNE I Ariel Bogochvol 43

explicação. Envolve etapas variadas que se sucedem e se mesclam,s Su-põe a transformação de uma demanda em signo, do signo em classe, daclasse em lei. A partir dos signos e do enquadramento nosográfico, deveser possível localizar a classe à qual esses signos pertencem e esclarecer

suas relações.Entre o universal do quadro descrito pelo saber clínico e o particular

do caso que se apresenta é necessário um julgamento que decida se o casocabe na regra, na classe, no universal.v"

O diagnóstico implica simultaneamente os juízos de existência e deatribuição: afirma a existência de algo, e que esse algo possui determi-nadas qualidades que permitem não só defini-Io como tal, mas tambémcategorizá-Io. É um ato de nomeação, de diferenciação, de classificação.

O princípio dos sistemas classificatórios é que os fenômenos não seapresentam ao acaso, podem ser ordenados com base em suas diferençase igualdades, ou organizados em conjuntos, grupos ou classes, e que essaoperação pode ser realizada com qualquer fenômeno que se apresente.

O binômio identidade/diferença é o fundamento de toda a noso-grafia, um princípio geral que ordena os sistemas classificatórios. O quevaria entre um sistema e outro é o elemento ordenador, aquele que servecomo traço destacado em relação ao qual se estabelece a igualdade ou a

diferença."Onde situar o borderline?

5 Entre o instante de ver e o momento de concluir, há um emaranhado de termos,

conceitos, teorias, aforismas - 'o saber clínico' - que influenciam na percepção

inicial e no enunciado final.

6 MILLER, Jacques-Alain. "O rouxinol de Lacan", Carta de São Paulo, n. 5, 2003·

7 FORBES, Jorge & ALVES, Francisco Rodrigues. "Do legado de Lacan: a arte do

diagnóstico na Segunda Clínica". Disponível no site do Projeto Análise: www·

projetoanalise.com.br.

8 Em uma das nosografias de Freud, esse elemento é a transferência - neuroses de

transferência x neuroses narcísicas. Na primeira clínica de Lacan, é o Nome-do-Pai.

No CIO 10 e no DSM IV, há múltiplos ordenadores.

44 A VARIEDADE DA PRÁTICA

IV

Borderline não é um significante que circula no campo lacaniano. Foiintroduzido por Adolph Stern em artigo publicado na revista Psychoa-nalytic Quarterly em 1945.9 Parte do vocabulário clínico norte-americanoe anglo-saxão da Ego psychology e, sob certos aspectos, do pós-kleinismoda década de 1960, perpassou o neofreudismo e o culturalismo, e se in-tegrou à terminologia psicanalítica francesa sob o nome états-limites=Foi adotado pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das PerturbaçõesMentais (DSM III) e pela Classificação Estatística Internacional de Do-enças e Problemas Relacionados com a Saúde (Cll) 10), e, desde então,tornou-se um termo clínico de uso mundial.

Esse sucesso decorreu não propriamente do rigor do conceito, mas,ao contrário, de sua imprecisão. Nesse curto tempo, teve diferentes defi-nições, de acordo com diferentes escolas." Sua imprecisão, longe de serum caráter acessório, é elemento constitutivo do termo, pois serviu paranomear casos que não se adequavam aos diagnósticos e modelos estabe-lecidos. Eram pacientes que se encontravam na fronteira, nas bordas dasestruturas clínicas, e que não portavam seus traços ou os misturavam.

Para esses pacientes, que se multiplicavam na clínica e não se incluíamnas classes, multiplicavam-se as designações: esquizofrenias latentes,pseudoneuróticas, incipientes, personalidades as ij, pré-psicóticas, psi-copáticas etc." Grupo heterogêneo, advindo de todo o campo da psico-patologia, atestava os limites das nosografias vigentes.

Desde os trabalhos de Victor W. Eisenstein de 1949, agrupa-se amaioria dessas entidades - definidas, de ínício, pelo traço negativo da não-

9 STERN, Adolph. "Psychoanalitic therapy in the borderline neuroses", The Psycho-

analytic Quarter/y, n. 14, 1945, p. 190-198.

10 ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

u As borderline neuroses de Stern têm pouco em comum com o transtorno de per-

sonalidade borderline do DSM IV.

ra BERGERET, Jean. Personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Mé-dicas, 1988.

BORDERUNE I Ariel Bogochvol 45

BORDERlINE I Ariel Bogochvol 47

inclusão - sob o vocábulo inglês borderline ou o francês états-limites. '3

As diferentes escolas divergem quanto à posição nosológica que lhes deveser atribuída. Formas menores de neuroses? Formas menores de psicoses?Uma transição entre as duas? Uma unidade nosológica índependente?«

Procura-se, em meio à diversidade, o "tronco comum dos estadoslimites'<. Como afirma Bergeret:

A criança entrou de um só golpe, massiva e precocemente demais,em uma situação edipiana para a qual não estava preparada. [...]As imperfeições e fracassos do recalcamento serão freqüentes.A criança se achará colocada diante da necessidade de apelar a me-canismos de defesa mais arcaicos, mais custosos para o ego e maispróximos daqueles empregados pelo psicótico."

'3 Ibid.

'. Ibid.'5 Ibid.

•6 Ibid.'7 AMERlCAN PSYCHlATRlCASSOClATION. Manual de Diagnóstico e Estatísticadas Perturbações Mentais - DSM IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000 .

•81. Esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginário; 2. Um padrão

de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado pela alternân-

cia entre extremos de idealização e desvalorização; 3. Perturbação da identidade:

instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem ou do sentimento do self;

4. Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à própria

pessoa (por ex., gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente,

comer compulsivamente); 5. Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças

suicidas ou de comportamento automutilante; 6. Instabilidade afetiva devido a

uma acentuada reatividade do humor; 7. Sentimentos crônicos de vazio; 8. Raiva

inadequada e intensa ou dificuldade em controlá-Ia; 9. Ideação paranóide transi-

tória e relacionada ao estresse ou severos sintomas dissociativos.

Deparamo-nos, na clínica, com pacientes que apresentam as caracterís-ticas descritas por Bergeret e pelo DSM IV. Não trazem os fenômenos típicosde uma neurose ou de uma psicose, apesar de apresentá-los eventualmente.Mais do que sintomas ou fenômenos localizáveis, circunscritos", a própriaexistência se torna um sintoma, marcada por actings out, passagens ao ato,dificuldades no laço social, rupturas das relações, empuxo ao gozo, vazio eautomutilação. Há uma amarração frágil dos registros S, I e R.

Surgem e se multiplicam em uma época em que o Outro não existe,que não é pai-orientada, que não assegura os laços, e não tem normas,nem padrões. 20 Em outros tempos, o vazio, o nonsense, o tédio e a solidãoestavam recobertos pela família, pátria, religião ou tradição, e a existênciaparecia estável. 21

Para uma clínica estrutural- a primeira clínica de Lacan -, o concei-to de borderline é um contra-senso. Clínica categorial, descontínua, elanão admite transição entre os quadros: psicose, neurose ou perversão.Para essa concepção, o borderline não existe e constitui apenas um errodiagnóstico ou de conceituação.

Para uma clínica borromeana - a segunda clínica de Lacan -, aquestão se dá de outra forma. Pode haver uma continuidade clínica, jáque cada tipo é uma saída diferente para uma mesma dificuldade de ser.São abordados à luz dos modos de gozo.

Fala-se de modos, quando se fez desaparecer a descontinuidade dasclasses. Já não se distinguem classes, mas modos que são variações .Se o Outro existe, pode-se resolver pelo sim e pelo não, existemcritérios repartidores. Mas quando o Outro não existe, não se estásimplesmente no sim ou no não, mas antes no mais ou menos."

O DSM IV'? define o transtorno de personalidade borderline (301.83)como um padrão invasivo de instabilidade dos relacionamentos inter-pessoais, auto-imagem e afetos, e acentuada impulsividade, que começano início da idade adulta e está presente em diversos contextos, comoindicado por cinco ou mais dos critérios listados. ,8

Advindas de campos e teorizações diferentes, a problemática doborderline se superpõe, em parte, à problemática dos inclassificáveis;

'9 Como os sintomas freudianos.

20 FORBES, Jorge. "A psicanãlise do homem desbussolado". Disponível no site do

Projeto Análise: www.projetoanalise.com.br

21 HEGENBERG, Mauro. Borderline. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

22 MILLER, Jacques-Alain e outros. La psicosis ordinária. Ob. cito

46 A VARIEDADE DA PRÁTICA

encontra um tratamento mais sólido com a clínica borromeana e se assi-mila, em parte, às psicoses ordinárias.

v

"Existem tipos de sintomas, existe uma clínica'?". A clínica só pode existirporque existem sintomas típicos que se repetem e se articulam em tiposclínicos decorrentes da estrutura=-v, No mesmo escrito, contudo, Lacanafirma: "O que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mes-mo sentido. É por isso que só existe análise do particular. Não é de umsentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura, sobretudonão quando ela atinge o discurso'?",

Se os sintomas são particulares e seu sentido é único para cada pacien-te, porque nos preocuparmos com o tipo clínico ?27 O movimento atual danossa clínica se dirige rumo ao 'um por um', ao 'caso a caso'. Privilegiamoso singular mais do que o geral ou o universal. Descremos do realismodas estruturas e acreditamos na perspectiva nominalista que concebe odiagnóstico como um puro semblant. "Isso tem uma vertente positivade atenção precisa a cada sujeito, mas faz desaparecer a estrutura, quetambém tem seu peso, quer dizer, a função e a intervenção do Outro'?".

23 LACAN, Jacques. "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos"(1975). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003·

24 Ibid.

25 "É somente a estrutura que permite orientar e fazer progredir o que chamamos de

clínica, não a acumulação dos casos". Cf. MILLER, J acques-Alain. "Curso de Orien-

tação Lacaniana: Iluminações Profanas, n. 16", aula de 10 de maio de 2006.

26 "Não existe um senso comum da histérica, e aquilo com que neles ou nelas joga a

identificação é a estrutura e não o sentido. Os sujeitos de um tipo, portanto, não

têm utilidade para os outros do mesmo tipo. E é concebível que um obsessivo não

possa dar o menor sentido ao discurso de outro obsessivo". Ibid.

27 Conferência de Elisa Alvarenga no Encerramento do XVI Encontro Brasileiro do

Campo Freudiano.

28 LAVRENT, Éric. "Pluralización actual de Ias clínicas yorientación hacia el síntoma".

Em: Psicoanálisis y salud mental. Buenos Aires: Tres Haches, 2000, p. 25·

48 A VARIEDADE DA PRÁTICA

Na clínica, deparamo-nos com a sincronia da estrutura e a diacroniado drama do sujeito. Somos nominalistas - "acolhemos o paciente emsua singularidade, sem compará-lo a ninguém, como o inclassificável,fazendo aparecer a singularidade em seu esplendor" - e realistas - "nóso referimos a tipos de sintomas, à estrutura e afirmamos que há espéciesobjetivas"29. Movimentamo-nos entre o caso único e os tipos clínicos, evice-versa.

O debate sobre o borderline se situa na fronteira entre o nominalismoe o realismo, entre o semblant do diagnóstico e o real da estrutura.

29 MILLER, Jacques-Alain e outros. Os casos raros, inclassificáveis da clínica psi-canalftica. Ob. cito

BORDERLlNE I Ariel Bogochvol 49

Mônica Torres[EOl]

o AVESSO DA FESTA

De que me servirão meus talismãs, o exercício das

letras, a vaga erudição, a aprendizagem das palavras

que o áspero Norte usou para cantar seus mares e es-

padas, a serena amizade, as galerias da Biblioteca, as

coisas comuns r...] onome de uma mulher me delata.

Dói-me uma mulher em todo o corpo.

O ameaçado, Jorge Luis Borges

Não sabes nada? Não lembras de nada? Estás vivo

ou não? Não há nada em tua cabeça?

La tierra baldía, Thomas Steams Eliot

As bibliotecas servem para estudar os tipos clínicos, mas como não hásentido comum aos sintomas, o analista tem de referir-se ao universal daclasse e também considerar cada caso, um a um'.

Em nossa época, a psicanálise está verdadeiramente ameaçada poruma relação ao gozo que não é exatamente aquela antecipada por Lacanem "Conferência de Genebra sobre o sintorna'".

O exemplo que usarei será o da chamada depressão, precisamentepara demonstrar que ela não é um tipo clínico para a psicanálise.

O que é um depressivo? A psicanálise conhece a tristeza como paixão.A depressão, então, é uma invenção de nossa época que se situa contra a

I TORRES, Mônica. "Clínica de Ias neurosis", Cuadernos dei Instituto Clínico deBuenosAires, n. 10, 2005.

'LACAN, Jacques. "Conferencia en Ginebra sobre eI sintoma". Em: Intervencionesy textos 11.Buenos Aires: Manantial, 1988.

51

psicanálise', mas também é, no dizer de Jacques-Alain Miller, suscitadapela psicanálise.

Dizer "estou deprimido" é uma forma de situar-se contra a psicanálise,um modo de posicionar-se contra a psicanálise, ao qual aderem tanto asociologia quanto a psiquiatria. Mas também é uma forma de localizar-secontra uma psicanálise do próprio sujeito deprimido.

Em nossa época, a época da festa permanente, quando se trata deque nunca chegue o momento do the party is over, o sujeito, ao tentarpreencher todo o vazio, toda falta, entrega-se à festa perpétua que a so-ciedade de consumo lhe oferece e lhe prepara. Trata-se do after do afterdo after proposto por uma festa interminávels.

O sujeito se vê empurrado a gozar sem medida, a renegar a separaçãodo objeto, o que Jacques-Alain Miller tem chamado de "a subida do objetoa ao zênite social'". Trata-se de evitar o vazio, o resto, esse resto resultanteda operação de separação, que o sujeito deprimido não consegue inscrever.Assim, o ser falante, profundamente separado do Outro, pretende não seseparar de seu objeto, e o mercado lhe oferecerá o que for preciso paraque sua adição ao objeto seja ininterrupta.

Mas essa ânsia generalizada, essa ansiedade, é na verdade a outraface de uma tristeza cada vez mais intensificada.

O amor intelectualis dei, proposto por Espinosa, não é a solução para oanalista, pois Espinosa postula que nada falta e que não há vazio, enquantoa psicanálise funda sua prática e sua ética na aceitação do vazio. O analistasabe que há um corte entre o sentido e o sem-sentido que funciona comoum vazio, no qual se aloja a tristeza, a melancolia, a dificuldade de viver",

Como sustentar a preservação do vazio, que é a solução singularproposta pela psicanálise em face da dor de existir, quando o mercadooferece opções continuas para que não se instale nenhuma falta na des-continuidade do gozo que o consumo pretende mascarar?

3 REGNAULT, François. "Pasiones dantescas", Revista Virtualia, n. 13, 2005.

4 NAPARSTEK, Fabián. "La ciudad de Ia fiesta", Texto apresentado na abertura da

XV Jornadas Anuales da EOL. Inédito.

S MILLER, Jacques-Alain. "Uma fantasia", Opção Lacaniana, n. 42, 2005, p. 7-18.

6 IAURENT, Éric. "La erosión dei sentido y Ia producción dei vacío", Enlaces,n. 11,2006.

52 A VARIEDADE DA PRÁTICA

A outra face desse hedonismo compulsivo, que se situa, com clareza,mais além do princípio do prazer, é a depressão generalizada. Todosdeprimidos.

Nos tempos da civilização do trauma, que também é a civilização dasvaidades variáveis, haverá ainda espaço para a psicanálise?"

Na época de Freud, tal como ele enuncia em "O mal-estar na civiliza-ção", o supereu em relação à culpa é apresentado nestes termos: "quantomais virtuoso, mais culpável", mais castigo e crime.

Nosso tempo, todavia, é o de uma época dos criminosos sem culpa, poisnossa sociedade, longe de proibir o goro, estimula-o. Ordena a gozar. Agora,portanto, o sujeito sente-se culpável de não poder gozar completamente.

O anoréxico, que pretende nada comer; o bulímico, que quer tudocomer; o toxicômano, que tenta obturar a falta com narcóticos; e o trans-gressor, que pede sempre um pouco mais de gozo, são tipos clínicos denossa contemporaneidade que aspiram a evitar a separação. Tal como Hei-degger assinalou, entre o tédio e a angústia, resta-nos a têmpera. Podemosafirmar que os chamados "depressivos" são sujeitos sem têmpera.

Qual analista não escuta várias vezes por dia em seu consultório, nohospital, nos centros de atendimento, a palavra-chave, a definição gene-ralizada com a qual o sujeito se apresenta: "Estou deprimido"? Expressãoque, de tão repetida, já não quer dizer absolutamente nada.

O sujeito cedeu em seu desejo a favor do gozo e, no ponto em que afesta perpétua se detém, experimenta o que chama de depressão.

O sujeito contemporâneo está desorientado, desenlaçado dos sig-nificantes provenientes do campo do Outro, de um outro singular paracada sujeito; está lançado em um gozo hedonista que o Outro social lhepropõe. Um gozo que é para qualquer um, um gozo prêt-à-porter, quesupostamente permite ao sujeito escolher à sua medida. Mas ele nãogoverna essa escolha, já que não se trata do modo de gozo singular como qual cada um deve inventar seu saber fazer.

A continuidade do gozo que lhe é demandado pelo imperativo socialse opõe às rupturas de sua história singular, ao terrorismo oculto que

7 TORRES, Mônica. "Vanidades variables", Enlaces, n. 11, 2006.

o AVESSO DA FESTA I Mônica Torres 53

54 A VARIEDADE DA PRÁTICA o AVESSO DA FESTA I MÔnica Torres 55

ameaça continuamente aquelas cidades que têm garantido mais consis-tentemente esse acesso ao gozo para todos.

É com a ponte de Londres que T. S. Elliot nos lembra isso, ao reme-morar a canção infantil "London Bridge is falling down falling down fallingdown'"; caíram também as Torres Gêmeas, enquanto nos é proposto, aomesmo tempo, o paraíso.

O paraíso proposto pelo terrorismo a seus fanáticos religiosos suicidasestá tão distante quanto o paraíso que os meios de comunicação impõemaos nossos olhos e aos nossos ouvidos. Os sujeitos desorientados, sempreculpáveis por não gozar completamente, encontram-se na sua 2Sa horacom sua responsabilidade de gozo. Mas não estão à altura de assumi-Ia,pois perderam a bússola do desejo.

A tristeza do depressivo não é a angústia, como afeto diante de umreal inassimilável. Tampouco chega a ser um sintoma. Trata-se antes deum estado de alma compativel com diferentes estruturas clinicasv,

A depressão também não coincide necessariamente com a melancolia.A palavra depressão, generalizada e pouco precisa, pode nomear tudo: ainsatisfação histérica, o desejo impossível do obsessivo, o dever de fazergozar o Outro do perverso ou a melancolia psicótica. E também, em ter-mos mais sociológicos, o suicídio das Desperate housewives, modestasmadames Bovary de nosso tempo; a série inglesa de televisão East Endernão pára desde 1985, como um verdadeiro show de Truman ininterruptoa nos prometer um mundo garantido pelo aparelho de televisão, daquiaté a eternidade=.

O depressivo perdeu o colorido das paixões". Do analista tambémquer uma solução prêt-à-porter, pronta para levar consigo já, já. Ficousó, completamente só e entregue, sem um SI que lhe envergonhe, quesustente sua dignidade e seu horror. A psicanálise, no entanto, não propõeuma versão moderna do Apocalipse. Quer, mais do que nunca, livrar sua

batalha a favor do desejo e não apenas para cada um, mas para o mal-estarna cultura de seu tempo. Aposta em um gozo compatível com a vida, emum desejo que não seja anônimo.

A depressão generalizada, o avesso da festa perpétua, estaria à alturadas paixões dantescas de que nos fala François Regnault?

Conhecemos as discussões de filósofos sobre a possibilidade de equi-parar a tristeza e a acídia, e de que ambas deslizem em direção à melancoliaou à preguiça, bem como a outra interpretação, na qual o acidioso tem ovalor de atuar tal potência do não.

Se nossos depressivos atuais alcançam o valor dessas paixões, issosó pode ser verificado caso a caso. Propomos ao depressivo se atrever ahabitar um mundo que o afaste da tristeza e, ao mesmo tempo, da festaeternizada. A psicanálise convida-o a atrever-se a habitar um mundovivível, que inclua a experiência da perda e do vazio. Trata-se de nãotentar se desvencilhar nem da perda, nem da dor, nem do vazio, ou seja,de aceitar, com têmpera, habitar a língua.

Nos termos de Éric Laurent, o realismo do gozo pode levar em contao nominalismo do bem dizer.

E o ameaçado aceita assim o amor, a dor e também as bibliotecas.Não há significante sem gozo e não há existências sem dor ou vazio.

O psicanalista se propõe a assegurar o caminho que inclui o vazioimpossível de eliminar.

A farmacologia pretende obturar esse vazio, impedindo que o real sedesprenda da relação do sujeito com seu corpo.

A sociologia oferece seu próprio diagnóstico, do qual também nosservimos.

Há uma correlação histórica entre o trágico e a festa.A antropologia tem demonstrado que essa relação entre o trágico e a

festa inclui necessariamente, como participante, a própria morte!'O indivíduo descrito pela sociologia responde à segregação com o re-

fúgio nas tribos, que asseguram uma inclusão efêmera, porém intensa.8 EUOT, Thomas Stearns. La tieITa baldía (1922). Madrid: Editorial Cátedra, 2005.

9 NEGRl, Maria Inés. "La depresión, éun mal de nuestro tiempo?". Inédito.

10 BAUMAN, Zygmunt Amor líquido. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômico, 2003.

n BODEI, Remo e outros. Historias de Ias pasiones. Buenos Aires: Losada, 1998. ia MAFFESOU, Michel. EI tiempo de Ias tribus. México: Siglo XXI, 2004.

Mas a outra face desse suposto refúgio é o que Maffesoli chamou de"a parte do díabo?».

Os analistas, de todo modo, sabem que, desde Freud, o diabo estáentre nós, que a festa é acompanhada pela pulsão de morte, como Hobbesnos antecipou que o homem é o lobo do homem.

Na madrugada, na hora do lobo, o sujeito ameaçado, depois da festa,fica sem recursos.

A psicanálise pode oferecer outra solução?É o desafio do nosso tempo. Sustentar o um por um, ali onde isso

parece impossível.

Oferecer ao sujeito "deprimido" que encontre sua solução além daqueda das identificações, em tempos em que o objeto domina os ideaise as identificações.

Não nos queixamos da civilização que nos cabe habitar.Se o sujeito pode aceitar seu modo de gozo singular, valendo-se dos

significantes mestres que uma análise pode isolar, não precisará dos ideaiscomuns que lhe são oferecidos seja pelo mercado, seja pelas "tribos".

Não temos uma solução "para todos". Enfrentamos a época que Millercaracterizou como de "problema-resposta" e não de "problema-solução".

O sujeito está mal preparado para enfrentar a tirania do supereude nossa época. Não dispõe de muitos significantes mestres para seorientar.

A clínica contemporânea, que é a clínica do Outro que não existe,evidencia novas modalidades do gozo, sintomas que não se organizam emtorno do Nome-do- Pai, e que deixam o sujeito cada vez mais desamarradodo laço social e entregue ao caráter mortífero do gozo pulsional.

A psicanálise propõe sua resposta: trata-se de sintomatizar o gozo,para torná-lo compatível com a vida.

É nossa resposta não apenas para cada sujeito, como também parao mal-estar na civilização que nos cabe atravessar.

Tradução: Maria Josefina Sotta Fuentes

>3MAFFESOLI, Michel. La part du diable. Paris: Flammarion, 2002.

56 A VARIEDADE DA PRÁTICA

TIPO CLíNICO E CASO ÚNICO,CONCEITOS QUE NÃO SE RECOBREM

Alicia Arenas[NELl

A concepção de tipo clínico surge da necessidade muito antiga de es-tabelecer descrições das perturbações consideradas psicopatológicas,uma tradição psiquiátrica que Freud acata, mesmo que lhe apresentedificuldades. Mas essa tentativa de objetivação dos transtornos mentaisvisando afinar e situar as diferenças não é sem conseqüências, já quequalquer marco de referência contém em si mesmo a tendência de redu-zir complexos e fenômenos presentes na prática clínica. De tempos emtempos, a psiquiatria entrega um novo manual, que hoje, mais do que aforça e a presença de alguns autores, como no passado, apresenta a forçada estatística e de suas conclusões, situando o diagnóstico como resultadodo discurso tecnológico e de suas variáveis. Lacan, preocupado com asformas de descrição da psicanálise que não contribuíam para reforçaros discursos dos que deviam excluir-se, esforçou-se por encontrar umaperspectiva que lhes fosse êxtima.

Em 1918, com o caso d~as classificações uti-lizadas na psicanálise se mostram falhas. Conhecemos o destino dessepaciente, que continuou em análise por toda sua vida, sem que, mesmohoje, haja um acordo entre os analistas a respeito de seu diagnóstico.Trata-se de uma demonstração de como a dimensão do inclassificável seinstala nas tentativas de descrever os fenômenos psíquicos.

Os pós-freudianos tomaram posições distintas na tentativa de clas-sificar e privilegiaram o sintoma, as fantasias, as defesas etc., de acordo

IFREUD, Sigmund. "Historia de una neurosis infantil" (1918). Em: Obras completas,tomo 11, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, p. 1941.

57

com a visão de seus autores. Em vez disso, a posição de Lacan, que sem-pre quis situar o propriamente analítico, foi a de se interessar pelo queestaria além da nosografia. Foi assim que, inicialmente, ele introduziuem seu ensino a noção de Outro simbólico, com a intenção de situaruma dimensão própria baseada na relação do sujeito com a linguageme, em particular, o significante como referência. Encontramos no texto"De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose'> umLacan preocupado em situar, com clareza, o estatuto do Outro simbólicona neurose e na psicose, valendo-se da referência freudiana de Schreber,à luz da série de fenômenos de código e de mensagem que participam emseu delírio. O modo como, nesse artigo, Lacan situa as alucinações deSchreber difere do modo usual como a psiquiatria as agrupa, pois ele astrata como fenômeno de linguagem.

Nessa época, seu principal objetivo era demonstrar a alteridade,estabelecida no sujeito, da cadeia significante, assinalando que se tra-tava de algo tão radical quanto os antigos hieróglifos, que permanecemséculos sem serem decifrados. Ainda sem nomeá-lo, já situa aqui o realque está emjogo para o sujeito, indicando ao mesmo tempo a capaci-dade de o significante induzir um efeito de significação promotor desentido. Isso corresponde à primeira análise minuciosa efetuada porLacan acerca do enunciado e da enunciação, e que lhe permitirá situaro sujeito que fala na ordem de um universal: todos atravessados pelalinguagem, ao mesmo tempo que começa a delimitação das diferençasde um sujeito para outro.

O sujeito se relaciona com o Outro simbólico em um tipo de sustenta-ção precária, que o leva a encontrar diferentes formas de vínculo. Lacan,ao propor os quatro tipos de discurso em O Seminário, livro 17: o avessoda psicanôlise», estabelece a divisão subjetiva como agente no discursohistérico, razão pela qual a histeria é considerada a estrutura de base da

neurose. Freud, por sua vez, sempre considerou a neurose obsessiva comoum dialeto da histeria.

Na introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos,Lacan diz:

[...] o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mes- )mo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é deum sentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura,sobretudo não quando ela atinge o discurso.

Não existe senso comum da histérica e aquilo com que neles ounelas joga a identificação é a estrutura, e não o sentido, como se lêperfeitamente pelo fato de que ela incide sobre o desejo, isto é, sobrea falta tomada como objeto, e não sobre a causa da falta. [...]

Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros 1do mesmo tipo. E é concebível que um obsessivo não possa dar omenor sentido ao discurso de outro obsessivo.'

A referência a algo que está mais além da estrutura orienta Lacannesse momento, pois situa a causa da falta, assinalando o lugar que ocupaa falta na histeria, um tipo de gozo particular próprio da estrutura e vin-culado ao sintoma histérico. Precisamente, o que não está situado aqui éuma dimensão que não é possível de se apreender pelo discurso.

Na intervenção da Escola do Campo Freudiano de Caracas, atualNueva Escuela Lacaniana (NEL), no volume do IV Encontro Internacionaldo Campo Freudiano sobre a histeria e a obsessão, no artigo "O Outrona histeria e na obsessão", os relatores dizem: "A histeria é, finalmente,uma teoria implacável, já que, ao abrir entre o saber e o gozo uma fron-teira impossível de suturar, dá fé da lógica de ferro da qual é a mais vivaencarnação: há significante, mas não alcança a nomear o Outro sexo'".Essa fronteira impossível de suturar dá conta da problemática que se

a LACAN, Jacques. "De una cuesti6n preliminar a todo tratamiento posible de Ia

psicosis" (1958). Em: Escritos 2. Ciudad deI México: Siglo XXI, 1979, p. 217.

3 LACAN, Jacques. EI Seminario, libro XVII: EI envés deI psicoanálisis (1969-70).

Buenos Aires: Paid6s, 1992.

@ACAN,Jacques. "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos"

(1975). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 554.

5 ARENAS, Alicia; BRODSKY, Graciela e outros. "Histeria y obsesi6n". Em: EIOtro

en Ia histeria y Ia obsesión. Buenos Aires: ManantiaI, 1985, p. 49.

58 A VARIEDADE DA pRÁTICA TIPO CLlNICO E CASO ÚNICO. CONCEITOS QUE NÃO SE RECOBREM I Alicia Arenas 59

apresenta na experiência analítica, em que o lugar do Outro, ocupadopelo sujeito suposto saber, apesar de capaz de oferecer abertura ao camposimbólico via sentido, faz presente o real como impossível de alcançar etambém de classificar, pois não há saber possível em que possa sustentarsua ultima descrição.

O que se apresenta em cada caso como não remetendo ao Outro,não referido à identificação com o campo do Outro, e por isso mesmoligado ao real da prática, revela-se, na realidade, inclassificável, já queexige encontrar uma interpretação própria a cada um. Trata-se, para apsicanálise de orientação lacaniana, de como se orientar e reordenar ocaso, tendo como base o real que está em jogo.

A diferença entre o sintoma freudiano e o sinthoma lacaniano temsido ressaltada como duas perspectivas clínicas a serem diferenciadas.O primeiro situa no fim do percurso analítico a dimensão de travessiada fantasia, estabelece a existência de uma verdade a ser encontrada no

Isintoma, um gozo do qual se deveria separar. O segundo, o sinthoma,associa-se à afirmação lacaniana "Há gozo", a qual sublinha a presençade um tipo de gozo de que o sujeito não pode se separar totalmente, masI apenas aprender a lidar com ele. Este assinala que o mais singular do serque fala está do lado do que, confrontado à não relação sexual, permite-lhe sustentar-se, isto é, a dimensão do gozo. Essa forma de gozo, fora dalei do significante, não permite encontrar saída pela via da decifração ouda separação; é preciso inventar novas formas de conexão que permitamassumir e saber fazer com o mais próprio do sintoma.

Em razão de todos esses antecedentes, no argumento do atual En-

1contro Americano, diz-se: "Há sintomas típicos, entretanto o sentido de

.um mesmo sintoma é diferente em sujeitos diferentes e está articulado àsexperiências individuais de cada um". De que modo, então, o caso únicopode ser o novo paradigma de um tipo clínico ou, inclusive, um novo tipoclínico como exceção à regra, como pura experiência individual?

De acordo com esse ponto de vista, um toxicômano, uma anoréxica,um depressivo, ainda que pensados como sujeitos que se sustentam em seusintoma enquanto forma tipificada de laço com o Outro, por meio da qualse dá uma solução social a sua vida pela via identificatória, encontrariam

60 A VARIEDADE DA PRÁTICA

nesse mesmo sintoma a forma única, singular, de não renunciar àquilo \cujafalta tornaria vão o uniuerso", sua forma de gozo como ponto emque, de fato, prescindem do Outro.

Na Conversação dG-cachon7, Mi~stabeleceu dois momentosna clínica: um nominalista, quando recebemos o paciente em sua sin-gularidade, sem compará-Io com ninguém, como alguém inclassificávelpor excelência, e outro estruturalista, quando nos referimos a tipos desintomas e à existência da estrutura. Apassagem do singular ao estrutural,

entanto, necessariamente deixa algo de fora, algo que não pode passarà cadeia significante para representar-se perante o Outro.

O problema aqui reside no fato de que o aspecto mais singular decada sujeito o separa do Outro e de qualquer possibilidade de laço nesseponto. No sintoma, fazem-se presentes os 8

1do Outro, mas sua função,

a função do sintoma para um sujeito, não tem relação de solidariedadecom a de outro sujeito que participe do mesmo tipo de sintoma.

Por essa razão, tipo clínico e caso único são dois conceitos que,apesar de poderem estar presentes simultaneamente em um mesmosujeito, não se recobrem. Para a psicanálise de orientação lacaniana aclassificação dos tipos clínicos permite, sobretudo, conhecer a relação dosujeito com o Outro, sem que, por isso, o mais autista de seu gozo deixetudo descoberto.

A noção de sinthoma exigiu de Lacan afastar-se das tipificações edestacar a singularidade. Por isso, ele teve de tomar, primeiro, a pers-pectiva daforaclusão generalizada e da pluralização dos nomes do Pai,ilustrada por James Joyce de modo exemplar, ao lhe permitir situar oconceito de suplência como modo único em que alguém encontra umamaneira de sustentar-se.

Quando Lacan questiona a perspectiva de situar as suplências queo ser que fala é capaz de implementar para si, responde a um problema

6 LACAN,Jacques. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconscientefreudiano" (1960). Em: Escritos. Ob. cit., p. 834.

7 MILLER,Jacques-Alain e outros. Los inclasificables de Ia clínica psicoanalítica:

Conversaci6n de Arcachon. Buenos Aires: Paidós/ICBA, 1999, p. 404.

TIPO CLfNICO E CASO ÚNICO, CONCEITOS QUE NÃO SE RECOBREM I Alicia Arenas 61

clínico contemporâneo: os sujeitos que chegam hoje aos psicanalistas deorientação lacaniana muitas vezes carregam consigo vários diagnósticosanteriores, em geral provenientes do DSM IV.

Curiosamente, isso fala não de diferentes perspectivas diagnósticas,mas de uma dificuldade crescente em estabelecer diagnósticos em face dasmanifestações sintomáticas de nossa época, que mostram precisamente ainstabilidade das identificações. O que realmente ocorre é que a noção dediagnóstico se extingue diante de um empuxo classificatório, que só fazcontabilizar os traços provenientes da estatística, afetada por numerososfatores, entre os quais a falsidade dos diagnósticos que o psi-business,ao privilegiar os processos administrativos em detrimento dos clínicos,termina por produzir.

Que o último ensino de Lacan termine, segundo Jacques-Alaín Miller",dando prioridade a psicose como a estrutura é algo que, em última ins-tância, estabelece que a psicanálise de orientação lacaniana considera aperspectiva do real do gozo ineludível na clínica e também uma marca quenão se pode dialetizar, isto é, com a qual o sujeito tem de aprender a viver.Perspectiva, em geral, não compartilhada pelas psicoterapias e, menosainda, por orientações psicanalíticas distintas da orientação lacaniana.

O único de cada caso na psicanálise é algo que irá surpreender o psi-canalista, um ponto em que não lhe serve o já sabido ou o já classificado.Trata-se, portanto, do achado do que não pode ser articulado, separado,ou seja, de algo que é, nele, a alíngua.

Tradução: Paola Salinas

8 MILLER, Jacques-Alain. "Cours de Orientation Lacanienne III, 9". Aula de 29 de

novembro de 2006. Inédito.

62 A VARIEDADE DA PRÁTICA

o "SINTOMA PAI"

Fátima Sarmento[EBP]

Este artigo visa responder ao argumento enviado pela comissão científicadeste Encontro, que pode ser assim resumido: como a psicanálise deorientação lacaniana pode se diferenciar em relação a diversas práticas,ao privilegiar o que há de único em cada sujeito tomado pelos diversos"tipos clínicos" da atualidade: anorexia, bulimia, toxicomania, depressão,hiperatividade, sintomas psicossomáticos etc.

Aprimeira proposição a ser sustentada é a de que esses "tipos clínicos"denominados sintomas sociais se caracterizam por certo fracasso nosmodos tradicionais de gozo. Se antes os laços eram estabelecidos tendoo ideal como núcleo, na atualidade o que prevalece é o objeto a comomais-de-gozar. No lugar de agente, o objeto a não institui as diferenças,já que não é resultado da produção de um sujeito.

Se não há um S, que represente o sujeito no Outro, este fica muitopróximo do real do gozo, trazendo conseqüências para o tratamento, quenão se realizará pela via do sujeito suposto saber e do deciframento dosintoma como metáfora.

Na condição de desidentificados, desbussolados, tais sujeitos lan-çam mão de um significante-mestre (S,) que lhes dará a garantia de umaidentificação comunitária. É a forma de gozar que agrupa os sujeitos naatualidade e que, de acordo com a opinião de Serge Cottet', acabam setornando "presas fáceis" das terapias cognitivo-comportarnentais (TCCs),que têm como meta a adaptação ao mal-estar .

•COTIET, Serge. "A aceleração dos efeitos terapêuticos em psicanálise". Em: SAN-

TOS, Tânia Coelho dos (org.). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada. Rio

de Janeiro: Contra Capa, 2005, p. 44.

63

,..Apresentando-se como especialistas e, identificados com o sujeito

suposto saber, esses terapeutas prometem a cura e fixam o sintoma adeterminada estrutura clínica. Nessa direção, a escuta de um deprimidoe a forma de tratá-Io servirão para todos de uma mesma categoria.

Um recorte clínico demonstra como a psicanálise de orientação laca-niana pode se diferenciar das TCCs, ao transformar em resposta singularuma resposta globalizada em face do mal-estar na civilização.

Da identificação comunitária ao efeito terapêutico

Trata-se de um caso de psicanálise aplicada à terapêutica, apresentadopor Angelina Harari na primeira conversação da Clínica da Ansiedade(CLIN-a) em São Paulo. A CLIN-a porta em seu nome um significanteque identifica o sujeito (ansiedade), "tática inicial" para acolher em umdispositivo coletivo. A própria estrutura de funcionamento da clínica(tempo limitado, gratuidade, oficinas coletivas mediadas por uma ativi-dade, a circulação da transferência, prática feita por vários) possibilita odeslizamento do significante, ao permitir a prática da palavra sem o efeitode grupo, ou seja, ao permitir que se fale de cada um como um sujeito.

Uma senhora de 67 anos com longo histórico médico de uso de me-dicamentos e acompanhamento psiquiátrico, casada, com filhos, netos,apresenta em sua chegada a seguinte queixa: a filha casada voltara a morarem sua casa com o marido e um filho, e isso desorganizara sua vida, poiscomeçara a ter muitos atritos com o genro. Junto com a questão inicial,diz morar com uma filha mais velha, mas que esta não se constitui emum problema.

Na primeira oficina, diz-se invadida pela filha e pelo genro, e aanalista pergunta se ela havia tomado alguma atitude em relação a isso.Na oficina seguinte, relata que sempre tomou atitudes em sua vida, sem-pre brigou por seus direitos e sempre teve iniciativa. Queixa-se do genroo tempo todo. Um dia, chega e põe em questão a saída de casa da filhade 45 anos. Apesar de reconhecer que essa filha ansiava tal saída jamaisalcançada, queixa-se e chora muito, sentindo-se culpada, pois considera

64 A VARIEDADE DA PRÁTICA

que a precipitação ocorreu após uma discussão com a filha em que disse:"Mas se você sempre pensou em sair, por que não o faz?" Logo em seguida,a filha se instala em um apartamento e ela se diz surpresa com o fato deela ter conseguido sair de sua casa de forma tão rápida. Esse efeito tera-pêutico (ter soltado o objeto) acontece em seis meses, sem transferência,ao menos em senso estrito, e não promove a divisão subjetiva, ou seja, aprodução de um analisante.

Na clínica psicanalítica, um efeito terapêutico só pode ser aprês-coupe inesperado, e isso é uma de suas diferenças em relação às TCCs. Nestas,os efeitos terapêuticos estão embutidos no cartão de visita: os terapeutasjá sabem desde o início o que têm de ensinar, a percepção errônea quetem de ser corrigi da.

A segunda proposição a ser sustentada neste texto, e que tem a vercom a primeira, diz respeito à idéia de que é a falha da função do pai comouniversal que determina o fracasso nos modos tradicionais de gozo. Seantes o pai favorecia a equivalência entre desejo e lei, a idéia lacanianaãepêre-uersion é, conforme Santiago', o fim do privilégio do Nome-do-Pai concebido como a encarnação da lei. A função paterna designadapela pêre-uersioii denuncia que há algo no pai, e mesmo no Édipo, quese aproxima da perversão. Em sua perversão particular de gozar de umpedaço do corpo de uma mulher, o pai transmite o seu pecado, o real deseu gozo, o seu sintoma. O a, esse mal-entendido que não se pode reduzir,será encarnado no corpo do filho, razão pela qual, em cada caso clínico,trata-se de verificar como cada um se fez herdeiro do gozo do pai.

Dos tipos de sintoma aos tipos de nó

Um exemplo de nossa clínica reflete o deslocamento da "clínica estrutural"à "clínica do sintoma" e, desta, à "clínica dos nós". Trata-se de um sujeito

2 SANTIAGO, Jésus. "E o amor homossexual, o analista avalia?". Conferência pro-

ferida no XVI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Belo Horizonte, 2 a 4 denovembro de 2006.

o "SINTOMA PAI" I Fátima Sarmento 65

que apresentava um enunciado paranóico, não dialetizável, embora nãose tratasse de uma estrutura psicótica. Isso está em conformidade coma afirmação de Miller- de que, enquanto o animal realiza a sua espéciecomo um caso exemplar dela, o ser falante é um sujeito porque, por maisque pertença a uma classe, jamais chega a se adequar inteiramente a ela.O sujeito é essa disfunção que faz com que o rouxinol de Keats seja omesmo de Ovídio e de Shakespeare, embora Keats não seja Ovídio etampouco Shakespeare. Assim, se um caso jamais realiza completamente

o seu tipo clínico, pode ser considerado único.Maria tem 25 anos, é filha única e, desde cedo, defrontou-se com o

desamparo diante da psicose de sua mãe. Aos cinco anos, inicia na escolaum ato compulsivo, que consiste em pegar fios do cabelo, selecionar o maisgrosso, triturá-lo com os dentes e depois engoli-lo. O amor da paciente emdireção ao pai se intensifica na adolescência, quando ela se toma parceira

dele na instalação de uma empresa.Maria chega à análise pelo sofrimento diante de uma provável traição

do marido. O estilo de um enunciado "todas as mulheres querem roubaro meu homem" nos levou a admitir que, na relação desse sujeito com oOutro, havia algo de muito invasivo. Repetido em várias sessões, esseenunciado nos pareceu ter forma monolítica, o que nos fez argumentarsobre a possibilidade de uma psicose ordinária. Em uma discussão clíni-ca, esse diagnóstico foi contra-argumentado e conduzido na direção deuma histeria. Não há, no entanto, a construção de um sintoma histérico;o que se impõe de forma direta é a tentativa de marcar o corpo no real, jáque havia um esvaziamento significativo de cabelo em um dos lados dacabeça. O caso só saiu da dificuldade diagnóstica, quando a atenção foideslocada do enunciado para a tricotilomania.

Nossa hipótese é a de que a tricotilomania - que tomaremos comofenômeno psicossomático - surgiu como uma maneira de reagir à psi-cose da mãe. Como o corpo deste sujeito não existe, ao comer cabelo, elaconstrói o seu corpo e tenta nascer como sujeito. Assim, faz a mãe de si

3 MILLER, Jacques-Alain. "A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan" (2001),Curinga, n. 23, 2006, p. 25-27.

66 A VARIEDADE DA PRÁTICA

mesma, dando-se comida, nutrindo-se. Esse sintoma a acalma do terrordessa mãe, surge como defesa em face do desamparo. Na arte de escolhero cabelo, é como se o sujeito estivesse escolhendo o melhor tempero - háem sua família três gerações de excelentes cozinheiras: a paciente, a mãee a avó materna. Nesse caso, portanto, o simbólico não está solto, é o realque flutua. A tricotilomania é uma invenção para suprir a falha do nó, vemcomo amarração para segurar o real, é um ritual para tampar o pânico,parar o stress, mas ainda não é o gozo. O trabalho com esse sujeito temde ser na direção de saber qual é o seu gozo.

Ainda que a transferência não aconteça no nível do sujeito supostosaber, Maria tem tirado muito proveito da análise. Se antes só lhe restava atricotilomania, vigiar o olhar do Outro e as passagens ao ato, com a análiseparte para a invenção: faz arranjos de flores, confecciona cestas de café damanhã, abre uma floricultura e se toma uma pequena empresária. Não setrataria aqui de um fazer cuja função é reinventar o pai? Para isso, essesujeito necessitava apenas de um parceiro na transferência. Desse modo,se o que se transmite, se o que há de sintomático diz respeito à herança dopai, trata-se de, em cada caso, verificar o que, para cada sujeito, funcionoucomo artifício, como enlaçamento para suprir a falha do nó.

~

o "SINTOMA PAI" I Fátima Sarmento 67

,....

DE ONDE ESPERAR?

Luis ErnetaIEOl)

Pontos de dificuldade

Predicamos que nossa prática se rege pelo princípio do caso a caso. Essaafirmação tem como conseqüência fundamental certa perseverança emprovar como nela nos orientamos ou nos desorientamos. Há também certoemprego recorrente de três termos provenientes das filosofias antiga emoderna: universais, realismo e nominalismo. É algo que se deduz deleituras. Semi-analfabeto nessas disciplinas, eu me limitarei a citar algoextraído da leitura de Alain de Libera, estudioso do tema. Advertido daamplitude do campo, tomo a precaução de não falar "com o aprumo dosque ignoram a dúvida" (Borges).

Na introdução de seu livro, Alain de Libera delineia a questãode modo simples. Sua pergunta é: "Há ou não universais no mundo?A resposta afirmativa é o realismo; a negativa, o nominalismo". Acres-centa que o problema medieval dos universais se destaca no debate que,desde o último período da Antigüidade, opõe e reúne, a um só tempo,o platonismo e o aristotelismo Na atualidade, esse debate continua.No capítulo destinado às conclusões, esse autor afirma:

Em história, há que ser nominalista não porque os pensadorestenham relação com as mesmas coisas, mas porque o historiador,que freqüentemente se refere às palavras (mots), sempre tem, emtodo caso, relação com signos que foram conceitos, ou seja, atosreferenciais que figuram como termos nas proposições mentais.Mas há que ser também realista, no sentido em que as redes em quefuncionam esses termos são estruturas que subsistem independen-

69

temente de havê-Ias recuperado ou não. A história dos universais éuma história do logos.'

Na condição de analistas de orientação lacaniana, nós nos situamos,de fato, como nominalistas e também como realistas, opondo e reunindo,ao mesmo tempo, ambas as faces de nossa prática. Nossa "querela" nãoé filosófica, nem científica, já que não praticamos nem uma, nem outra.Trata-se de reordenar os agrupamentos sociais produzidos pela ciênciae, sobretudo, "da universalização que ela ali introduz'".

Jacques-Alain Miller, na aula de 9 de novembro de 2005, indicaque "a psicanálise é a teoria de uma prática e o que permanece, a seufavor, é que tem efeitos [...] é conseqüência de um discurso [...] efeito dosimbólico no real. [...] A estrutura é um real, o saber como causa". Em1975, Jacques Lacan respondeu a Quine, a propósito de Levi-Strauss, doseguinte modo: "Penso que a estrutura não tem nada a ver com a filosofia,que raciocina sobre o homem como pode, mas põe em seu centro a idéiade que o homem é feito para a sabedoria. Não tenho, de acordo com opensamento de Freud, simpatia alguma pela sabedoria">,

Éric Laurent sublinha que Lacan, em seu último ensino, articula o casoa caso/particular-singular com o realismo da estrutura/universal. Rela-ção que se funda "sobre o fracasso, para aquele que se nomeará pai, emsatisfazer as exigências da função'". Não é incongruente pensar que essacondição para nomear-se não é privativa do que se nomeie pai, pois eladiz respeito a todo parlêtre que aspire a nomear-se, porquanto o nomear-se situa um impossível, um irredutível de gozo que indica esse fracassopara estar à altura da função. Se há satisfação aí, trata-se da satisfação deum gozo impossível. Não se trata de algo impossível de satisfazer, mas da

I LIBERA, Alain de. La quere/le des universaux. Paris: Seuil, 1996, p. 12.

2 LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da

Escola" (1967). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,

p.263·

3 LACAN, Jacques. "Conférences et entretiens dans les universités nord-arnéricaines"

(1975). Em: Scilicet 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 53.

• LAURENT, Éric. Blog-notes dei sÍntoma. Buenos Aires: Tres Haches, 2006, p. 28.

70 A VARIEDADE DA PRÁTICA

satisfação de um impossível. Nesse mesmo Seminário, na aula de 11demarço de 1975, Lacan comenta: "O nominalismo filosófico é um enigmacujo destaque é apenas render homenagem ao efeito do nome sobre o real".Lacan opta por um nominalismo do real ou um realismo do nome.

Tipo: variações sobre o tema

Parece haver acordo ou subentendido em relação ao sentido do termotipo no emprego que habitualmente fazemos dele: tipo clínico, tipo desintoma etc.

No dicionário de Ferrater Mora, a procedência etimológica da palavratipo comporta certa congruência com o modo em que, para nós, o real seapresenta, já que, em grego, quer dizer "golpe, bem como a marca deixadapor um golpe", que pode ressoar no que chamamos marcas de gozo. Em suaacepção atual, os termos tipo e tipico procedem da medicina; seu primeiroemprego técnico se dá com o médico Coelius, no século IIda era cristã.Coelius foi o primeiro a empregar o conceito de tipo para se referir à normado desenvolvimento de uma enfermidade. O tipo, portanto, resulta emmodelo de desenvolvimento de uma enfermidade e, em razão disso, emindivíduos que ~ão reconhecidos como pertencentes a uma mesma classe.Esses indivíduos são exemplos de um tipo e todos eles têm "ar familiar", ex-pressão curiosa, parece-nos, pois alude a um parentesco de origem obscura.Lacan se rebela contra esse emprego em "Variantes do tratamento-padrão",ao qualificar tal fórmula de pleonasmo e objetar o que oferece de referênciaimplícita a um desvio.s A fórmula quase lendária "uma psicanálise, padrãoou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista" pode ser atualiza-da, sem perder seu rigor, cremos, nos seguintes termos: uma psicanálise,aplicada ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista.

O "ar familiar" atraiu nossa atenção, quando lemos uma afirmaçãode Éric Laurent de outro texto, em que ele, seguindo Lacan na aula de

5 LACAN, Jacques. "Variantes do tratamento-padrão" (1955). Em: Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 331.

DE ONDE ESPERAR? I Luis Erneta 71

21 de janeiro de 1975 de "O Seminário, livro 22: R.S.I", situa o sintomacomo "letra de gozo sobre o corpo em uma pura contingência. A repetiçãoinclui a variação: pode-se criar uma família de sintornas'". Surge, assim,a questão de como reconhecer tal "ar familiar" nesse contexto, excetose - isto é uma hipótese - for uma paráfrase do que diz mais adiante:"a contingência do gozo pode criar a série", entendida como a interaçãode uma letra de gozo impossível de subsumir em uma família-tipo desintomas, abrindo-nos uma versão possível da unicidade da letra e, con-comitantemente, a unicidade de um tipo clínico. O dicionário da RealAcademia Espanhola, na oitava acepção de tipo, diz: "pessoa estranha esingular". Isso comporta algo verdadeiro. Como Lacan comenta em seu"Autocomentário": "cessar de não se escrever, essa é nossa oportunidade.Está no, não direi particular, mas singular de toda observação'", O estra-nho do sintoma - corpo estranho, nos termos de Freud - relaciona-se aomais singular de cada um.

Tipos freudianos

Freud não foi pródigo no emprego do termo. Em 1916, escreve "Algunstipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico". Expõe três tipos,dos quais deriva modos paradoxais da satisfação de certas formas de gozo.Por exemplo, no estilo de uma nota de Tchekov: alguém vai à roleta, ganhaum milhão, volta para casa e se suicida. Já no primeiro capítulo de "Trêsensaios sobre a teoria da sexualidade", chama de "fábula poética ao mitoda repartição do ser humano em duas metades - macho e fêmea -, queaspiram reunir-se novamente no amor". É impossível de dois fazer um.Em nota de 1915, ele confirma: "Assim, do ponto de vista da psicanálise,o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constituium problema que precisa ser esclarecido, pois não é fato evidente em si

6 LAVRENT, Éric. "EI modelo y Ia excepción", Em: Síntoma y nominación. Buenos

Aires: Diva, 2002, p. 176.

7 LACAN, Jacques. "Autocomentario", Unopor Uno, n. 43, 1996.

72 A VARIEDADE DA PRÁTICA

mesmo'". Homem e mulher não são tipos puros; não há norma-tipo paraa relação entre eles.

Em 1931, Freud escreve "Tipos libidinais", texto breve e consistente,mas pouco citado. Em nossa precária busca, somente o encontramos emTeoria psicanalítica das neuroses, de Otto Fenichel. Entre as mais de1.600 citações, dedica-lhe somente algumas linhas não muito favoráveis,e dá como referência um artigo de 1932, publicado em PsychoanalyticQuarterly.

Em "O Seminário, livro 22: R.S.I", Lacan faz algumas menções a certaintuição de Freud, relativa à triade, acerca do recalque original irredutível,do buraco de que ele se vale para pensar a pulsão. Lacan prescinde deFreud para dele se valer, permitindo-nos ler retroativamente "Tipos libi-dinais", de Freud, com certa orientação lacaniana. O artigo começa com aafirmação de que "cada ser humano, individualmente, entende o quadrogeral da humanidade conforme uma variedade quase infinita de manei-ras'". Certo platonismo inicial, a um só tempo, opõe-se a e se reúne como diverso de cada um. Há o universal e também o nominalismo freudianode cada um. A exigência fundamental exposta por Freud afirma que ostipos libidinais não coincidem com quadros clínicos (tipos clínicos). Emsua praticidade, como ele diz, caem dentro do âmbito do normal, ou seja,trata-se de distribuições libidinais no parlêtre, estruturais, se é possíveltraduzir assim o que ele chama de normal. Não há tampouco menção àdistribuição segundo os sexos. E isola três tipos - erótico, compulsivoe narcisista -, que denomina puros, ao mesmo tempo que diz ser essapureza irrealizável ou impossível de alcançar.

O tipo erótico se determina pela posição de ser amado, mas o queo governa é a angústia ante a perda do amor. A angústia é índice de umreal pulsional que mostra a cara no narcisista do amor, e este comparecesub-rogando as exigências pulsionais do isso.

8 FREUD, Sigmund. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905). Em: EdiçãoStandard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.

VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 146.

9 FREVD, Sigmund. "Tipos libidinais" (1931). Em: Edição Standard Brasileira dasObras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Ob. cit., p. 252.

DE ONDE ESPERAR? I luis Erneta 73

o tipo compulsivo se caracteriza pelo predomínio do supereu; aangústia, também presente, deriva da consciência moral. Nos âmbitoscultural e social, ele passa a ser um genuíno transmissor da cultura, por-tador de normas que regulam o movimento pulsional e, até certo ponto,mitigam-no.

O tipo narcisista, por sua vez, caracteriza-se pela via negativa; seuprincipal interesse se dirige à autoconservação, e sua posição é mais amardo que ser amado. Os homens desse tipo se impõem a outros como "per-sonalidades, aptos para assumir o papel de líderes e dar novos estimulosao desenvolvimento cultural".

Já os tipos chamados de mistos por Freud são os que se apresentamna experiência. Erótico-compulsivo, erótico-narcisista e narcisista-com-pulsivo são tipos que permitem a distribuição das estruturas psíquicasindividuais conhecidas no trabalho psicanalítico. Os tipos freudianos,portanto, estruturam-se como três consistências libidinais, e a consis-tência deles é precisamente o laço que se estabelece entre os mesmos.Os pares enumerados não devem ocultar que o terceiro termo está pre-sente ao mesmo tempo que os outros. É questão somente de orientaçãoe de predominância em seu movimento. Por que, pergunta Freud, nãose estabelece o tipo narcisista-erótico-compulsivo? Porque esse tipo jánão seria mais um tipo, e corresponderia à norma absoluta, à harmoniaideal, algo que estava distante da forma de Freud pensar. Quanto à relaçãocom a patologia, essas agrupações não apresentam nada de novo sobre agênese das neuroses. É certo, de todo modo, que a passagem à patologialocalizaria a histeria a partir do tipo erótico, bem como a neurose obsessivaa partir do tipo compulsivo. Talvez o mais interessante aqui seja o fato deque Freud deriva do tipo narcisista a propensão à psicose e as condiçõesespeciais da criminalidade. Ele, de fato, menciona que a eventual passa-gem dos tipos normais à psicopatologia contribui para superar o supostoabismo entre o normal e o patológico. Posição continuísta?

Resta indagar a atualidade desses tipos ante a profusão das chamadasnovas formas de distribuir o gozo. O Encontro seguramente favoreceráeste cotejamento, embora não estejamos certos de que algo se tenhamodificado tão radicalmente na própria raiz do ser humano que possa

74 A VARIEDADE DA PRÁTICA

prometer algum progresso para a humanidade. Em vez disso, o cotidianonos faz ser céticos. Continuamos freudianos nesse ponto; pode-se con-fiar um pouco mais na renovação das práticas de psicanálise, para que oencontro com um psicanalista seja sempre uma oportunidade que ajudealguém a sair um pouco das embrulhadas do gozo. De acordo com SergeCottet, continuamos confiando na incrivel ação reparadora da operaçãodo inconsciente e em sua aparentemente inesgotável capacidade parasuprir os estragos que o gozo, obscuro e indizível, opera sobre o desejo=.A palavra do psicanalista encontra aí a oportunidade de sua aplicação.

Tradução: IIka Franco Ferrari

'0 COITET, Serge. "El padre pulverizado", Revista Virtualia, n. 15,2006. Disponívelem http://www.eol.org.ar/virtualia/01s/default.asp

DE ONDE ESPERAR? I Luis Erneta 75

DO RELATIVISMO CLASSIFICATÓRIO AO CASO ÚNICO

Piedad Ortega de Spurrier[NELl

"Paul Williams, 13 anos, tem tantos diagnósticos psiquiátricos quantoa sua idade". Assim começa um artigo do New York Times, de 11 denovembro de 2006. "O que começou com um diagnóstico de depressão,após uma entrevista de vinte minutos aos sete anos de idade, converteu-se em um percurso de avaliações, todas acompanhadas de sua respectivaprescrição de medicamentos. Ele está cansado de passar de especialistaem especialista, e não espera que o último resultado obtido, transtornobipolar, seja o definitivo. Sabe que outros virão".

Essa resenha exemplifica a preocupação existente, quando os psi-quiatras se encontram perdidos em um relativismo classificatório que semostra francamente ineficiente na prática, quando este responde à noçãode "comorbidade", termo cunhado nos anos 1970. Tal noção admite apossibilidade de que, no curso de uma enfermidade, superponham-se oudesenvolvam-se entidades clínicas. Para a psiquiatria, em particular, im-plica a presença de um antecedente ou síndrome psiquiátrica concorrenteque se soma à doença principal. Atualmente, alguns psiquiatras consi-deram que essa noção apresenta pouca consistência e que a dificuldadediagnóstica torna difícil extrair conclusões.

Os efeitos disso nos sujeitos, todavia, saltam aos olhos: Paul Williams"tem tomado antidepressivos, como o Prozac, drogas antipsicóticas paratratar a esquizofrenia, pílulas para dormir e estabilizadores de humorpara o distúrbio bipolar em tantas combinações, que já os toma irrefleti-damente", resultado de um relativismo classificatório que é tão-somenteuma soma de generalizações que são impostas ao sujeito e nas quais elenão está implicado.

77

'4S

78 A VARIEDADE DA PRÁTICA DO RELATIVISMO CLASSIFICATÓRIO AO CASO ÚNICO I Piedad Ortega de Spurrier 79

Estamos diante de uma teoria "light", que produz diagnósticos "light"e formas de tratamento "Iight" via medicação, dotadas de um arsenalfarmacológico tão intenso e absoluto que, muito freqüentemente, noafã imediato de normalizar o sujeito, impede perguntar-nos sobre o queacontece na relação do sujeito com o que invade sua existência. Eviden-cia-se, nessas circunstâncias, um redobramento foraclusivo da medicinaatual que evita qualquer possibilidade de criação e invenção produtiva nosujeito e multiplica os efeitos de gozo advindos do Outro.

Para o psicanalista, sua prática tampouco é simples, quando se vêconfrontado com sujeitos que apresentam grande variedade de sintomas,em particular quando estes encontram dificuldade para se orientarempelo Nome-do-Pai, haja vista este permitir o estabelecimento de certaordem com efeitos de localização do gozo que detêm a fuga estruturaldo sentido. Por essa razão, Lacan propôs, nos anos 1950, a existência dealgo profundamente problemático na relação do sujeito psicótico coma linguagem, com o simbólico, demarcando uma diferença radical emrelação à estrutura neurótica, e estabelecendo uma distinção estruturalentre o campo das neuroses e o das psicoses.

Sem dúvida, o problema estrutural pode ser compensado de diversasmaneiras, como Lacan trataria de mostrar com a clínica dos nós e suplên-cias, que, sem perder de vista a distinção entre neurose e psicose, dá contados modos particulares de tratamento e de como o sujeito responde ounão ao furo do real.

Convém que nos detenhamos em distinguir as neuroses e psicosesfreudianas, que se apóiam no Édipo e no complexo de castração, dasneuroses e psicoses lacanianas, que põem em questão a importância e oestatuto da metáfora paterna. Nas primeiras, o estatuto do Outro comocampo do significante é o Outro da lei, lugar do Nome-do-Pai que produzum efeito de significação gerador de uma regulação na economia libidinal.Ante a ausência do Nome-do-Pai, produz-se no sujeito uma alteraçãocataclísmica da realidade, uma vez que não se estabelece uma rede sig-nificante mínima para constituir seu mundo. Assim, o desencadeamentoda psicose se liga a essa ausência foraclusiva. O Nome-do-Pai produz umefeito de sentido que limita o gozo e detém a fuga estrutural do sentido,

ainda que não consiga dar cabo disso, pois esta, como destaca Miller, é umapropriedade estrutural do sentido. Também a fantasia tem a propriedadede coagular o sentido, razão pela qual sua monotonia permite sujeitar ogozo, para sossegá-lo por meio de uma relação com um objeto e incluí-lono princípio do prazer. Isso explica as condições do esquizofrênico emseu encontro com o gozo invasor, sem o auxílio da fantasia.

A proposição de uma neurose e uma psicose lacanianas serve paramarcar o giro produzido por Lacan em O Seminário, livro 23: o sintho-ma, ao separar a articulação entre Nome-do-Pai, foraclusão e desenca-deamento da psicose. Essa não é a única forma de enodar que permite aarmação constitutiva do mundo, na condição de amarra entre significantee gozo. O sintoma pode ter o mesmo efeito. A nova elaboração dá conta damudança de estatuto do Outro na segunda clínica de Lacan, ao enunciarque "não há Outro do Outro" e pôr em evidência o S(,X). Não vivemos,portanto, com um discurso único, sendo sua multiplicidade que torna oA barrado. Por fim, há diferentes maneiras de produzir o marco do real,ocorrendo uma foraclusão generalizada que cada neurótico, mediante osdiscursos, tentará suprir e cada psicótico poderá ou não produzir umasuplência não discursiva.

A topologia do nó borromeano permite a Lacan sustentar as mo-dalidades de enganchar, armar consistências e responder à questão dassuplências. Do lado da clínica borromeana, a experiência humana seestrutura referida às categorias de real, simbólico e imaginário. Para quepossa criar e manter um laço social com seus semelhantes, o sujeito precisamanter os três registros unidos, ou seja, é necessário algo que amarre,alinhave, permitindo a ele sustentar-se na "realidade humana" que é ado discurso. Sem dúvida, podem produzir-se falhas de enodamento quelevem a desenganchar e enganchar novamente os registros, com efeitosfundamentais para o sujeito.

Conseqüentemente, conclui-se que o sintoma e o Nome-do- Pai podemter a mesma função. E, mais ainda, que o Nome-do-Pai pode ser um dosnomes do sintoma, por funcionar como um aparato que, ao manter unidosos três registros. garante a articulação entre uma operação significante esuas conseqüências sobre o gozo do sujeito.

Lacan nos legou "seus três registros", real, simbólico e imaginário,para nos guiar na clínica porque, na apresentação dos sintomas contempo-râneos, filhos da época em que" o Outro não existe" , a pulsão parece estardesconectada do inconsciente e não passar pelo Outro. As manifestaçõesclínicas decorrentes das novas relações estabelecidas pelas coordenadas daépoca atual vão de uma depressão mais ou menos generalizada, mostran-do a ausência de desejo, à promoção do gozo do UM, que torna possível,por exemplo, a parceria do sujeito com as drogas, no sentido de garantira inexistência da alteridade na entrega absoluta a um gozo mortifero, eà vontade implacável para controlar o próprio empuxo pulsional até olimite da autodestruição, como tentativa de reivindicar a autonomia e aliberdade de escolha, após se terem rompido os laços com o Outro.

Em suma, são sintomas que estão a serviço do direito ao gozo, sem

Ipassar pelo Outro sexo. Não demandam nada; são apenas uma fixaçãode gozo que mostra opacidade em relação ao sentido e resistência aodiscurso. Trata-se, tal como postulado por Lacan em O Seminário, livro23: °sinthoma, do "estigma do real".

Por isso, não é fácil corroborar o efeito de sujeito quando prevalece o~ I plano do gozo e sua relação com a pulsão. Há não só opacidade em relação

ao sentido que resiste ao discurso, como também extenso retorno ao Ou-tro da demanda imperativa, que é manifestação da quebra do referencial

ée;;;o em sua fun~ica)A clínica do detalhe proposta por Jacques-Alain Miller e Éric Laurent

nos obriga a observar minuciosamente a existência ou não de sucessivosdesenganches em relação ao Outro (os neodesencadeamentos), para seremreabsorvidos em um tecido de gozo, à diferença da clínica do desencadea-mento clássico, que supõe uma ruptura estreita e valoriza mais os tipos desintoma. Assim também çs fenômenos corpor~ são novamente postos em

1

escrutínio: há diferenças nas modalidades de estranhamento ou abandonodo corpo que põem à prova a existência ou não de certo encaixe com o

~ Õutr;;(neoconversões). A clínica das suplências se distancia ainda mais

Ide uma clínica fenomênica, para se aproximar do que há de único emcada sujeito, já que busca encontrar as soluções particulares produzidaspelo sujeito para tratar o real.

A ênfase no tratamento do psicótico se dirige não para uma seg-mentação dos sintomas, a fim de que nos indiquem que determinadoagrupamento responde a determinada classificação, mas sim para ovalor de uso que cada um deles possui como tentativa de tratamentodo furo do real ameaçador e insuportável. Assim, o diagnóstico mudatotalmente de objetivo, porque se trata de localizar os elementos com Ique esse sujeito conta para não sucumbir, isto é, quais os que utiliza e oque acontece para que alguns fracassem ou deixem de ser eficientes. Nãose pretende, portanto, introduzir uma normalização, posto que algunssintomas podem se mostrar necessários em face da emergência do pior,implicando a renúncia dos ideais da saúde mental que demarcam o queconvém aos sujeitos.

A orientação lacaniana pode permitir ao psicótico obter, em seu tra-tamento, um saber sobre o que produz seu desencadeamento, para queconsinta em evitá-lo, ou pode dar lugar ao funcionamento de artifíciosde seleção e recorte de elementos de alíngua que se impliquem em umdiscurso e produzam efeitos de regulação do gozo) permitindo:lheesta-belecer um laço social. Desse modo, ele saberá fazer algo com o que lhe émais peculiar: sua forma de fazer frente à morte iminente, distinguindo-ode outros que pertençam à mesma estrutura.

Em meu entender, o caso único é aquele que se constrói na expe-riência. É a partir dessa lógica que se responde à pergunta: o que, emtal caso, vem ocupar o lugar de S(,X)? Desse modo, os analistas podematestar, mais além de "evidências fenomenológicas", o que noções comoa de "comorbidade" tendem a promover.

Tradução: Lilany Vieira Pacheco

80 A VARIEDADE DA PRÁTICA DO RELATIVISMO ClASSIFICATÓRIO AO CASO ÚNICO I Piedad Ortega de Spurrier 81

Referências bibliográficas

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82 A VARIEDADE DA pRÁTICA

JUVENTUDE E VIOLÊNCIA URBANA

Fernanda Otoni de Barros[EBP]

"Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa am-pliação cada vez mais dura dos processos de segregação". Nessa passagem,Lacan se interroga sobre o horizonte da psicanálise, no qual destaca afacticidade do real, "sumamente real, tão real que o real é mais hipócritaao promovê-Ia do que a língua, é o que torna dizível o termo campo deconcentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagandodo humanismo ao terror, não se concentraram o bastante'>.

A gestão biopolítica das populações

Novembro de 2005. Na periferia de Paris, dois garotos foram abordadosna rua por policiais. Eram filhos de imigrantes e a polícia queria ver seusdocumentos. Rebelaram-se, correram e morreram queimados na redeelétrica. Os jovens dessa periferia se manifestaram, incendiando carros.O ministro do Interior classificou-os como "racaille", palavra que indicapessoa de pouco valor, que vive à margem: a "ralé"! Diante dessa classi-ficação, esses jovens não pronunciaram uma única palavra, e milharesde carros foram queimados por toda a França.

, LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da

Escola" (1967). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,

p.263·2 Ibid.

83

Os peritos foram convocados para acalmar a angústia, e iniciou-sena França um investimento político no estudo dos comportamentosviolentos. A classificação desse transtorno e a identificação da variedadedos sintomas que a ele se associam poderiam indicar a terapêutica con-veniente, bem como os instrumentos para sua prevenção e controle.

Uma perícia coletiva do Institut National de Ia Santé et de Ia Recher-che Médicale (INSERM) sobre o "Transtorno de conduta na criança e noadolescente"> foi encomendada nessa época e uma variedade de sintomascomportamentais, desde as crises de cólera e as freqüentes desobediênciasda criança difícil até agressões graves, como estupro, golpes, ferimentose roubo, foram agrupados e classificados como "transtorno de conduta".Este, por sua vez, foi associado a uma série de outros sintomas, comodistúrbio hipercinético, déficit de atenção etc. A recusa das normas sociaisfoi imputada aos déficits cognitivos associados aos distúrbios ansiosos,depressivos ou de aprendizagem. Tal comorbidade estaria presente desdeo nascimento, e a presença desses sintomas indicaria um "fator de risco",um sinal de delinqüência. Identificá-Ios precocemente, portanto, seriaum modo de preveni-Ios.

Laurent afirma que, nessa perícia, o acento sobre "os déficits se impôs,em detrimento de toda possibilidade de historicização clínica do sintoma,sendo subtraída dessa análise qualquer articulação significante singular".Além disso, a única terapêutica imaginada foi o enquadre educativoassociado aos arsenais medicamentosos.s

O esforço das ficções científicas tem sido o de calar o que permaneceinclassificável no sujeito, apagando a unicidade do caso, quando o enigmade sua singularidade desaparece no universal de uma classe. O efeitodessa perícia na gestão política se observa nas propostas que a sucedem.Laurent nos alerta acerca da perspectiva inquietante da "inscrição nascadernetas de saúde das crianças, desde os três anos de idade, de itensdo tipo: Brigou? Bateu? Mordeu? Deu chute? Recusou a obedecer?

3 LAURENT, Éric. "Blog-notes: psychopathie de l'evaluation", La Cause Freudienne,

n. 62, 2005, p. 63-4.4 Ibid.

84 A VARIEDADE DA PRÁTICA

Não sentiu remorso ?"5Hoje, tramitam no Senado francês vários projetos delei relativos à prevenção da delinqüência. Aperícia coletiva de que falamosofertou as ficções necessárias para sua sustentação. A gestão biopolíticadas populações age agora mais precocemente - as crianças são seu alvo -,pois não se pode deixar cessarem as pesquisas que alimentam as práticaspara o controle da vida.

"A política é a continuação da guerra por outros meios:"

As classificações não querem saber do sujeito porque sua função é eli-minar o sintoma. Um movimento, sem dúvida alguma, político! Deixaro sujeito de fora e não interrogar sobre o modo de satisfação que orientasua resposta parece ser um dos meios de que a política se serve paraextrair sua eficácia no controle da vida. A foraclusão do sujeito, contudo,tem conseqüências.

Lacan, em uma declaração à France-Culture, ainda em 1973, afirmou:"o discurso da ciência tem conseqüências irrespiráveis para o que se cha-ma de humanidade'", Ele acompanhou as devastações produzidas pelatecnologia científica, tendo sido atravessado por um tempo que produziua entrada de Hiroshima e de Auschwitz nos mapas da história.

Zygmunt Bauman, em Vidas perdidas: a modernidade e seus ex-cluídos, disse que toda forma de ordem política implica a produção de"rebuts", restos, sucatas. O planeta anda cheio, transbordam seus dejetos.Esse termo designa hoje o que o autor chama de dejetos humanos, umapopulação numerosa de seres que são rejeitados, excluídos e que nãopodem fazer nada de sua existência. Bauman dita sua sentença: "a sucataé a sombra secreta e vergonhosa de toda produção cientifica'".

s Ibid.

6 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade (1975-6). São Paulo: Martins Fontes,

1999·7 LACAN, Jacques. "Déclaration à France-Culture à propos du 280m• Congrês de

Psychanalyse, Paris, julho 1973", Le Coq Héron, n. 45-46, 1974, p. 5.

8 BAUMAN, Zygmunt. Vies perdues: Ia modernité et ses exc/us. Paris: Payot, 2006.

JUVENTUDE E VIOLÊNCIA URBANA I Fernanda Otoni de Barros 85

Estamos advertidos por Lacan de que, nos mercados comuns, todosos esforços serão feitos para livrar os restos indesejáveis dessa política.O sujeito, contudo, resiste a ser reduzido à condição de sucata e inventasuas soluções para se ligar a este mundo. Por vezes, diante da precarie-dade de recursos simbólicos, não podendo se servir de soluções que seorientam pelo Nome-do-Pai e pela norma fálica, os atos de violência seapresentam cada vez mais como modos de resposta ao real. Isso retornacomo algo essencial na repetição. A facticidade do real não cessa de in-terrogar a biopolítica, por intermédio de acontecimentos que, no espaçopúblico, comemoram o triunfo da pulsão de morte. Aviolência que sacodeo planeta parece ser conseqüência da lógica da segregação que hoje orientaseus modos de governabilidade.

A política do sintoma

Lacan disse: "A psicanálise é o pulmão artificial graças ao qual se tentaassumir o que é preciso encontrar de gozo na fala para que a história con-tínue'v, Sim, o sujeito não se enquadra nas classificações. Como respostaao real, é uma solução que encontra lugar para o gozo em uma amarraçãosingular: seu sintoma. Na prática clinica, colhemos uma variedade deefeitos surpreendentes e inéditos que nos permitem destacar a evidênciada satisfação do sujeito em sua solução de laço social.

No espaço da Seção Clínica do Núcleo de Psicanálise e Direito do Ins-tituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSMMG), recolhidois casos em que se privilegiou a sua unicidade, em detrimento da lógicada segregação, de onde recolhemos uma orientação: o sintoma é o meiopelo qual a política do gozo se serve para alcançar sua satisfação.

João= era um jovem de periferia, calado e marcado pela exclusão

9 LACAN, Jacques. "Déclaration à France-Culture à propos du 2S'm, Congrês de

Psychanalyse, Paris, julho 1973". Ob. cit., p. 5.

W Este caso foi acompanhado pelo Programa de Atenção Integral ao paciente Judiciá-

rio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (PAI-PJ). No tempo que passou pelo

PAI-PJ, João foi acompanhado por vários: Fabrício Ribeiro, psicólogo, Marina

86 A VARIEDADE DA PRÁTICA

na escola. Não se integrava a nenhum grupo e, apesar de não ser pro-priamente o que chamam de delinqüente, envolvera-se em uma guerrade gangues, mesmo sem fazer parte de uma delas. Foi morar com umatia, que realizava dentro de casa rituais espíritas. Certa noite, foi dormirmais cedo, para manter distância desses rituais. Escutou um rosnadoe percebeu o animal aproximar-se; após ter sentido um sopro em suascostas, não se lembra de mais nada. Segundo sua irmã, ele foi até oquarto da tia e lhe deu socos, pontapés e 56 golpes de faca. Depois doato, mostrou-se delirante. Melhora aos poucos. Afirma que sofreu umapossessão demoníaca e que um milagre o curou. Convocado pelo juiz,chega ao Projeto de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ)."O milagre" que o curara andava vacilando. Não conseguia tirar a carteirade motorista e tinha certeza de que seu nome estava em todos os compu-tadores. Eles queriam o excluir de tudo, retirar todos os seus direitos. Foiencaminhado para falar sobre seus direitos com a advogada do Programa,que lhe assegura que cometera um crime e teria de responder por isso,mas que continuava tendo direito a seus direitos. João diz ter escutadouma voz: "Você só precisa de papel e caneta". A analista lhe oferta papele caneta, e ele inicia um livro: A pátria dos excluídos. Escreve o que lhevem de fora. "Esse livro expressa, através dos seus personagens, toda -,discriminação sofrida. Quando sair, será como um míssil". Mas lamentaque o livro não acaba, pois sempre tem algo a acrescentar. Trata-se de umaguerra sem fim que ele é levado a tolerar. A analista lhe diz para continuarescrevendo e que talvez fosse necessário produzir um segundo livro. Elepassa a escrever um filme e já compôs a letra de uma música para servirde tema de abertura, chamada Protesto. Nesse tempo de acompanha-mento, casou-se com uma evangélica, que, como ele, perdeu um pouco desua liberdade. Faz e vende objetos que servem às datas comemorativas.Leva uma vida normal, conseguiu a cessação da periculosidade judicial,

Pompeu, estagiária de psicologia, Janaina Beneti e Ana Paula Villela Portella,

assessoras jurídicas. O encontro desse sujeito com a experiência analítica ofertada

no campo das políticas públicas criminais operou uma passagem por onde, hoje,

pode dizer de sua satisfação.

JUVENTUDE E VIOLÊNCIA URBANA I Fernanda Otoni de Barros 87

não precisa mais freqüentar a Justiça, mas passa pelo PAI-PJ. "Estavapassando aqui perto e resolvi tomar um cafezinho". Vai se ajeitando navida com suas pequenas invenções."

Em resposta a Einstein, Freud disse que "a principal razão de nosrebelarmos contra a guerra é porque não podemos fazer outra coisa">. Emsua carta, parece reeditar sua aposta na psicanálise, sua oferta para tratar aguerra que cada um é levado a tolerar: "Tudo o que estimula o crescimentoda civilização trabalha simultaneamente contra a guerra?'>.

No caso de Tales=, o encontro com o analista foi crucial como meiode enfrentar essa batalha. Fome e violência montam o cenário ao seuredor. O primeiro roubo acontece quando assiste à aflição de sua mãe aover seus filhos chorando de fome e o padrasto deitado de barriga cheia,depois de comer o pouco que restava. Roubou, comprou comida e ficousatisfeito em ver as crianças comendo, a mãe aliviada e o padrasto calado.Em seguida a esse roubo, vários outros. Tales explica: "A princípio, foipor necessidade; depois, por adrenalina". Torna-se o melhor amigo do"dono da boca", apesar de não fazer uso de drogas. Épreso e, por essa via,encontra a liberdade assistida, em um ponto da cidade onde acontece seuencontro com um analista.'! No início dos atendimentos, situava-se foradeles, cumprindo a medida judicial, sem ligar-se a ela. A escuta analíticada satisfação que o amarrava em torno do "rap" permitiu que ele a inclu-ísse em seu sintoma. Em torno de letras de "rap" e shows de afro-reggae,o sujeito tece seu romance e localiza sua satisfação. O analista dirige o

u OTONl DE BARROS, Fernanda. "La psychanalyse dans Ia cité: psychanalyse et

droit". Em: Prisons. lle-de-France: ACF-lle-de-France, 2006.

•• FREUD, Sigmund. "Por que a guerra?" (1932). Em: Edição Standard Brasileiradas Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro:

Imago Editora, 1976, p. 257.

'3 Idem, p. 259.

14 Este caso foi acompanhado pela colega Anamáris Pinto, no Programa de liberdade

Assistida da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e apresentado no Núcleo de

Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

'5 PINTO, Anamáris. "Tales: entre ficção e fixão" (2005). Texto apresentado no Nú-

cleo de Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas

Gerais. Inédito.

88 A VARIEDADE DA PRÁTICA

delicado trajeto de um sujeito que encontra na transferência modos defazer borda aos pontos mortíferos e inventar as medidas de proteçãonecessárias ao seu encontro com uma liberdade não toda, consentindoem seu esforço de conexão com novos pontos de ancoragem para suasatisfação. Tales passa a freqüentar projetos culturais oferecidos porONGs, o rap, a escola e o "liberdade assistida". Encontra os meios neces-sários para sair da ''boca'' do tráfico, muito próxima da boca que choravade fome. Escapa do tiroteio em que seus "manos" morrem para vingar amorte do "dono da boca". Sai de perto disso e se conecta a soluções pararetomar a vida que segue, orientada, a partír de então, pelo cálculo quemede a distância possível do pior. Projetos são retomados e, por essa via,o sujeito pode sobreviver à violência e fazer laço com a cidade. Cumpresua medida e, agora, é assistente de um artista e paga sua própria análise."Entre outras atividades, participa do grupo de rap: 'réus, resistentes, quecombatem o mau de frente, que querem a liberdade, sem ter que resistirdentro do caixão?". A princípio, por necessidade; agora, mais ainda, porsatisfação.

***

Considerar a unicidade do caso clínico é um modo de se rebelar e resistirao relativismo classificatório. Se o sujeito da experiência analítica temum tipo, digamos que o sujeito é do tipo que inventa seu sintoma comoresposta ao real. Isso porque o sujeito não desiste de sua satisfação. Cadasujeito se satisfaz com seu sintoma de modo único.

Se o saber científico se esforça para eliminar os sintomas e, paraisso, foraclui o sujeito, nossa tarefa, ao avesso, no caso a caso, tem sidoa de acompanhar a construção de um lugar para o sintoma na cena domundo. Em outras palavras, uma solução que dê lugar ao sujeito. Estamosorientados quanto à facticidade real e seguimos a política do sintoma,que é única. O sintoma, seja qual for seu tipo, orienta-se pela políticada satisfação pulsional que busca assegurar o gozo, ainda que apenas

'6 Ibid.

JUVENTUDE E VIOL~NClA URBANA I Femanda Otoni de Barros 89

um pedacinho dele. Nossa rnilitância no campo da psicanálise aplicadajunto às políticas públicas dispensa a lógica que produz dejetos humanosnas franjas da gestão biopolítica. A psicanálise se oferta corno recursono enfrentamento dessa guerra porque, ao seguir a política do sintoma,coloca-se em condições de acompanhar as soluções singulares que têmpor fim a produção de um sujeito satisfeito.

90 A VARIEDADE DA PRÁTICA

UMA RESPOSTA POLíTICA DA ESCOLA AO MAL-ESTAR'

Silvia BaudiniGuillermo BelagaAdriana Rubistein

Ricardo Seldes[EOl]

Convocados a conversar em tomo do projeto assistencial da Escuela deOrientación Lacaniana (EOL), em consonância com a formulação do eixoIV do argumento "Quando a psicanálise não responde ao que é historica-mente típico: os novos centros de atenção psicanalítica", Guillerrno Belagae Adriana Rubistein pela Rede Assistencial, e Ricardo Seldes e SilviaBaudini por PAUSA nos brindam com suas reflexões e perspectivas.

Guillermo BelagaA modalidade de rede e centro assistencial, em nosso caso a de PAUSA,é urna particularidade da EOL. Em Madrid, houve urna rede em respos-ta ao atentado de 11 de março, e ela logo se dissolveu. Essa experiênciacontribuiu com trabalhos para o que depois se tomou a publicação daConversação de Barcelona sobre os efeitos terapêuticos rápidos, que,por sua vez, favoreceu a instalação do Centro Psicanalítico de Consultase Tratamento (CPCT) nessa cidade, fazendo surgir esse toque de Jacques-Alain Miller sobre a teoria dos ciclos. Parece-me que a novidade na EOLé PAUSA, que possui urna marca diferente daquela do CPCT.

Ricardo SeldesPAUSA tem um triplo pertencimento: foi criada pela EOL, pelo InstitutoClínico de Buenos Aires (ICBA) e pela Fundación Casa del Campo freu-

, Paula Kalfus e Guilhermo López sugeriram alguns textos que funcionaram comoponto de partida e se ocuparam do estabelecimento desta conversação.

91

92 A VARIEDADE DA PRÁTICA UMA RESPOSTA POLlTICA DA ESCOLA AO MAL-ESTAR I Baudini, Belaga, Rubistein e Seldes 93

Silvia BaudiniPensava no historicamente típico, pois acredito que tanto as redes quantoos centros têm a ver,justamente, com os tipos clínicos que encontramosem cada momento da história. Parece-me que há íntima relação entre otipo clínico, o caso único e o momento atual em que surgem centros comoPAUSA, os CPCTs, a Rede. Esta foi pioneira a esse respeito, ao respondera essa nova clínica que pede uma nova prática. O que é historicamentetípico tem a ver com o tipo clínico da história, tal como Maleval trabalhouem seu texto do Congresso de Roma: as estruturas não mudaram, masos tipos clínicos sim. Hoje, temos, em PAUSA, a experiência de uma de-manda cada vez maior de psicoses que podem ser situadas no programade investigação da psicose ordinária.

Há porcentagem muito alta desse tipo de demanda, que não haviaem outro momento, ou talvez quando não tínhamos os instrumentos paradiagnosticá-Ia como tal. Creio que os instrumentos nos foram dados porOs inclassificáveis eA psicose ordinária. Sempre conto um caso em queeu trabalhava no sentido de construir uma metáfora delirante e o pacienteme dizia: "Eu não sou um louco clássico". A prática nos foi ensinando queo caminho era outro.

Guillermo BelagaEm "Improvisação sobre Rerum Novarum", Miller considera que a práticados analistas seria institucional e que a formação se daria na Escola, ouseja, ele situa o problema da Escola do lado do passe, da psicanálise pura,e na prática nas instituições.

Para nós, ter psicanalistas nas instituições da cidade não é umanovidade. A novidade de PAUSA é sua orientação lacaniana, pois existepsicanálise nas instituições desde a década de 1960. Parece-me que,com o ataque à psicanálise que tem havido na Europa, implementou-seessa política de criação de centros de psicanálise aplicada, com base naorientação lacaniana. Então, como formula Silvia, talvez haja aí uma viaa ser explorada. Por exemplo, parece-me que a psicose ordinária se alojamelhor em instituições, enquanto existem outros tipos clínicos que sãode consultório ou de rede assistencial. Creio que essa oferta da Escolapermite abarcar muitos tipos clínicos da cidade, que assim podem sealojar em PAUSA ou na Rede Assistencial.

diano. Implica uma orientação comum a essas três instâncias, justamentenesse momento em que o Delegado Geral apresenta as três consistências:Escola, Instituto e Centro.

Épreciso considerar o que Miller criou como o Programa Internacio-nal de Psicanálise Aplicada de Orientação Lacaniana (PIPOL) em 2002,em um dos breaks do Congresso de Bruxelas. O PIPOL produziu, institu-cionalmente, o que tem sido uma política clara do Campo freudiano e daAssociação Mundial de Psicanálise (AMP) já há muitos anos: incentivara presença dos analistas na cidade, por intermédio dos hospitais e doscentros assistenciais. Nesse momento, ainda não havia centros assisten-ciais criados pelas Escolas, e Miller visava conseguir com o PIPOL umlugar de conversação sobre as experiências daqueles que trabalham nesseintervalo deixado pelo discurso do mestre, para que os analistas possamse inserir em instituições assistenciais.

Adriana RubisteinEm nosso país, a política da psicanálise existe há muito tempo. O que érealmente novo é que as Escolas e os Institutos tenham decidido dirigir essescentros. Assim, podemos pensar a política de PIPOL como se ela tivessevários braços, entre os quais a criação dos centros e da Rede. Entendo quea Rede foi pioneira, sendo inclusive anterior à completa definição do quese chamou de "ação lacaniana", já que se iniciou no fim de 1997.

Penso que, antes de todo esse movimento político, a atenção a essetipo de patologia com demandas que podemos chamar de não-clássicas,quer dizer, de pessoas que não vinham para entrar em análise, talvezfossem atendidas nos consultórios, sem que isso se sustentasse comoalgo legítimo. Talvez estivéssemos com o esquema mais clássico em quetínhamos de encontrar os modos de entrada em análise, uma coisa maispróxima da psicanálise pura.

Assim, parece-me que o movimento de fundação da Rede teve oefeito de legitimar e, ao mesmo tempo, de abrir as portas a demandasdesse tipo.

Silvia BaudiniPôs-se efetivamente em marcha o que Miller chamou de "ação lacania-na", cujos efeitos podemos ver: PAUSA, os CPCI's, a Rede são invenções.PAUSA é algo que inventamos todos os dias. Parece-me que se trata aquide uma política que começou a ser pensada nos anos 1980 por Miller eque, agora, começa a ter efeitos concretos.

Ricardo SeldesRecordo que, nos anos 1980, quando levávamos aos hospitais em quetrabalhávamos casos de psicanálise, éramos criticados por nossos colegas.Eles nos diziam que não se tratava de psicanálise, nos termos do que aInternational Psychoanalytical Association (IPA) podia dizer, mas sim depsicoterapias de orientação psicanalítica.

Retomar a invenção da psicanálise aplicada à terapêutica, tal comoformulado por Lacan no "Ato de fundação", fez com que essas consultascomeçassem a ser legitimadas como psicanalíticas. Isso abriu um campoe, eticamente, obrigou aos analistas de orientação lacaniana a enxergaralém de seus próprios narizes.

Adriana RubisteinTrata-se de uma política decidida que implica pensar a psicanálise emum sentido muito mais amplo do que sua forma clássica, cabendo, assim,um número muito maior de intervenções do que aquelas que, até então,eram chamadas de psicanalíticas. Recordo da época em que, em algunshospitais, dizia-se: "Se não há demanda de análise, eles devem partir",como se fosse preciso encontrar o modo mais puro da demanda de aná-lise para atendê-los. Essa política recuperou a dimensão terapêutica daanálise e a possibilidade de pensar a psicanálise em um aspecto muitomais amplo, mais orientada pelo que Miller situa como contra-indicaçõesdo encontro com o analista. Isso produz efeitos enormes.

Silvia BaudiniSe tomarmos a política sanitária gerenciada, verificaremos que tudo quenão é puro vai em direção às Terapias Cognitivo-Comportamentais (TCCS).

94 A VARIEDADE DA PRÁTICA

Acontece mais na Europa do que aqui, mas é o que ocorreu com a famosaemenda Accoyer, que não questionava a psicanálise. Dizia-se: "Façampsicanálise com aqueles que demandam a psicanálise pura". Todo o restonão pertence ao campo da psicanálise.

Adriana RubisteinNa IPA, por exemplo, distingue-se a psicanálise das psicoterapias psica-nalíticas. Avaliam, de um lado, as psicoterapias e, de outro, a psicanálise,como no Informe do INSERM. Nesse ponto, o movimento de Miller foicrucial.

Guillermo BelagaA escansão que ocorreu em Bruxelas com o lançamento de PIPOL pro-duziu o que em Comandatuba será chamado justamente de: "A práticalacaniana: sem standard, mas não sem princípios", porque me parece queé o efeito do standard que levou muitos psicanalistas com formação naIPA, cansados de standards, a criar, por exemplo, Beck, o cognitivismo,e outros psicanalistas à terapia sistêmica.

Cansaram-se do standard, entediados com uma idealização da psi-canálise pura em que não havia mais os efeitos terapêuticos rápidos, asresoluções sintomáticas.

Mesmo nós perdemos a sensibilidade em relação a esses primeirosefeitos que são as entrevistas preliminares e que contêm efeitos tera-pêuticas rápidos. Os casos de PAUSA, dos CPCI's tratam dos efeitos dasentrevistas preliminares. São efeitos das primeiras entrevistas, nas quaishá casos clínicos que concernem ao que são resoluções terapêuticas. An-tes, pensava-se que eram abandonos de tratamento; agora, fazemos umaleitura diferente: o que era um déficit se tornou uma leitura positiva.

Ricardo SeldesTalvez o fato de falar em entrevistas preliminares tenha sido tambémuma política, ou seja, o fato de considerar que essas primeiras entrevistassão preliminares a uma análise tenha sido uma escansão para indagarcomo se transforma esse pedido em uma demanda de análise. Digo isso

UMA RESPOSTA POLiTICA DA ESCOLA AO MAL-ESTAR I Baudini. Belaga, Rubistein e Seldes 95

porque, para pensar uma psicanálise pura, é preciso entender que a de-manda tem de ser uma demanda consistente. O que é interessante, tantonos centros quanto na Rede, é a possibilidade de trabalhar de maneiraespecial com uma demanda, quando ela não é uma demanda decidida-mente analítica.

Guillermo Belaga

Parece-me que há também uma sensibilidade ligada à mudança do Outrosocial, porque estudos internacionais demonstram que, independente-mente da técnica usada, em 70% das consultas há resoluções terapêuticasem quatro meses. Por isso, o tema das 16 sessões não é algo arbitrário.Algo desse individualismo moderno exige uma resolução rápida, entãonós introduzíamos a psicanálise e respondíamos a isso, ou a psicanálisesaía perdendo.

Adriana Rubistein

Estava pensando na nossa história nos hospitais, em que o tema do tem-po demarcado era uma das razões pelas quais se dizia que não se podiafazer psicanálise, chegando-se a pensar que a psicanálise no hospital eraimpossível. Tempo e dinheiro. Era verdadeiramente grave considerarque toda interrupção representava um fracasso, cuja medida era o fimde análise.

Chegava-se inclusive a considerar que não havia desejo do analistasuficiente para levar o tratamento até o seu fim. Pensávamos, mais oumenos, no que se poderia conseguir no tempo que fosse. Em todo caso,o tempo em que se produz algo é um tempo que permanece incalculável,podendo haver momentos de concluir que não são interrupções.

Silvia Baudini

A questão da insuficiência também está em jogo, quando se pensa napouca duração ou no não pagamento.

A partir dos cursos de Miller, o acento recai cada vez mais no sintoma,no sintoma como funcionamento. Já não se trata mais, portanto, de o su-jeito não conseguir constituir uma demanda, e sim do fato de que, desde o

96 A VARIEDADE DA PRÁTICA

início, há um sintoma em funcionamento que o sujeito vive como se fosseuma disfunção. Parece-me que isso nos obriga a um outro posicionamentoem face da demanda. Isso porque, antes, a idéia era abrir e, agora, com ateoria dos ciclos, Miller indica uma idéia mais de fechamento do que deabertura. Ele considera que se trata não de abrir, mais de fechar no lugarem que o sujeito encontrou a solução ou, de todo modo, de ir aos pontosde flexão da solução. Em outras palavras, algo que está mais próximo doavesso do inconsciente.

Guillermo Belaga

Tomando o nome mesmo de PAUSA, a partir da urgência subjetiva,pode-se pensar no vazio que dá pânico. A saída do vazio que dá pânico éo prosseguimento, a verdade o mais rápido possível, porque quem estápadecendo desse sofrimento necessita rapidamente de um S, que ordenesua existência. Tão logo isso seja conseguido, uma pacificação sintomáticase produz.

Ricardo Seldes

Parece-me que introduzir o tempo de acordo com o último ensino deLacan e pensar o tratamento do lado do fora de sentido mudam comple-tamente as coisas. As interrupções não podem ser mais pensadas comotais. Recordem que houve um Encontro do Campo freudiano, chamado"Conclusões do tratamento", no qual formulou-se precisamente isto que,acredito, está no espírito do que dizia Silvia a respeito do ponto a que cadaum pode chegar em seu tratamento.

Que o inconsciente seja Baltimore ao amanhecer, como disse Lacan,implica pensar qual é a relação entre lugar e tempo para o surgimento dadimensão subjetiva do indivíduo que demanda algo, qual é a relação com oinconsciente. Isso porque o efeito do fora de sentido, quer dizer, a localizaçãode um S" implica necessariamente uma nova dimensão do inconsciente,que é diferente do inconsciente tomado a partir do sujeito representado porum significante para outro significante, no sentido da cadeia.

Modifica-se não só a dimensão do sintoma, como também a con-cepção que o analista tem do que é o inconsciente e a transferência. Se

UMA RESPOSTA POLITICA DA ESCOLA AO MAL-ESTAR I Baudini, Belaga, Rubistein e Seldes 97

levamos em conta o que Miller formulou em Comandatuba, ao dizer queé preciso pensar a transferência ao avesso, não se trata de que o sujeitosuposto saber é o pivô da transferência, mas sim de que o amor é o pivôdo sujeito suposto saber. É preciso se situar como aquele que produz,segundo O Seminário, livro 20: mais, ainda, de Lacan, um efeito desujeito, a partir da intervenção do analista, e de que isso leva, de todomodo, à instalação do sujeito suposto saber. Trata-se de urna concepçãoque permite interpretar desde o início, que permite localizar quais são ascoordenadas do sujeito desde o momento em que ele chega, e com inter-venções muito mais diretas e ativas do que aquelas que, habitualmente,costuma-se fazer. Isso tem feito com que nos abramos a uma dimensãoem que a questão dos ciclos adquire um sentido diferente, porque semessa concepção do inconsciente e da transferência, não se poderia pensarde modo algum no fato de tentar iniciar um primeiro ciclo para podercompletá-lo. Do contrário, estaríamos na psicanálise mais típica, ao passoque, agora, falamos de respostas não típicas.

Tradução: Simone Souto

98 A VARIEDADE DA PRÁTICA

TODO CASO É ÚNICO.

A PSICANÁLISE APLICADA NOS PERMITE SUSTENTÁ-LO

Aliana Santana N.[NELI

Vivemos em uma época em que o empuxo à globalização, ao quantitativo,à comparação, ao imediatismo, ao funcional, ao utilitário e a tudo o queestá direcionado à produção de respostas generalizantes, unificadoras,tranqüilizadoras, diretas e rápidas é considerado característico da mo-dernidade. Resultados rápidos são esperados, sem muito gasto de tempoe energia.

Com base no que se pode denominar princípio da utilidade direta pre-tende-se hoje, em todas as áreas do conhecimento, mensurar resultadosde propostas, métodos, técnicas, modelos, experiências etc.

Estamos na época do mercado farmacológico, das terapias que reivin-dicam para si a solução imediata para o sofrimento humano, das univer-sidades que prometem formar e certificar a prática de analista em quatroou cinco anos. Éurna época em que, como frisado no projeto de declaraçãode princípios da psicanálise de orientação lacaniana, "a salvaguarda dapsicanálise exige o estreitamento dos laços com todos aqueles que resistemà redução do homem a urna cifra contábil'".

A psicanálise é convocada a atuar onde algo falha, onde há umahiância, um vazio, onde não há respostas científicas ou intelectuais.Precisamente onde a completude prometida falha, tropeça, está o sujeitodividido, o sujeito em falta, o sujeito da linguagem, que, ao falar, con-segue apenas evidenciar a brecha entre o dito e o dizer, já que, por maisque tente, não pode dizer tudo o que quer. Nesse lugar, a psicanálise de

, "Projeto de declaração de princípios da psicanálise de orientação lacaniana",Extraído da lista AMP-UQBAR.

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orientação lacaniana faz laço social, e o faz, valendo-se da psicanálisepura com a psicanálise aplicada à terapêutica.

Tem-se promovido bastante o conceito de laço social. Ainda assim, éimportante recordar que esse conceito, sobre o qual se funda o maternados quatro discursos, faz pensar em ou remete ao Um da sociedade - fatoque sabemos ser ilusório. A sociedade como Um não existe. A sociedade,como afirma Miller, é ilusória, razão pela qual Lacan utilizou o conceitode laço social e jamais se referiu a sociedade."

Para Lacan, o laço social é uma relação de dominação, uma relaçãode dominante a dominado. Pode-se estabelecer laços sociais distintos,mas não se pode fazer laço com a sociedade. Miller propõe a utilizaçãodo neologismo laço dominiab, em substituição a laço social. Em outrostermos, falar de laço sempre remete à pergunta sobre quem domina quem,o que domina o quê. Dominação aqui quer dizer, sobretudo, que é o Outroquem faz a avaliação significante do sujeito.

Tomemos um exemplo para ilustrar o que foi dito até aqui. Trata-se daresposta dada pela psicanálise de orientação lacaniana - especificamente, aRED-PSI, de Caracas - a uma demanda social: a criação de um programa paraoferecer tratamento psicanalítico às vítimas de violência intrafamiliar.

A demanda do Outro institucional nos termos de "suprimam o traumada criança ou do adolescente vítima de víolência e façam com que o adultonão persista infringindo a lei" foi respondida pela psicanálise com a criaçãodo programa Psicanálise Aplicada à Terapêutica da Violência Intrafamiliar(PATVI).OOutro institucional estabelece que um tratamento psicanalítico de

2 MILLER, Jacques-Alain. "Psicoanálisis y sociedad" (2003), Freudiana, n. 43-44,

2005·3 N. do T. No artigo "Psicoanálisis y sociedad", de Jacques-Alain Miller, a que a autora

se refere, encontramos uma definição de laço social que justifica a presença desse

neologismo. Miller afirma que a definição lacaniana de laço social parte da con-

testação da idéia de totalidade - que o caracterizaria por relações de intercâmbio,

cooperação e complementaridade - e da sustentação de que a sociedade se encontra

fragmentada em diversos laços sociais de dominação. Seria mais apropriada, assim,

a criação de um neologismo que contivesse as principais característica do laço social:

a contestação da idéia de totalidade e a relação de dominante a dominado.

100 A VARIEDADE DA PRÁTICA

18 sessões é a saída para todos os seus problemas, e que as razões de cunhojuridico-social que representam o universal do diagnóstico" criança, adoles-cente maltratado" devem prevalecer sobre a demanda particular dessa criançaou adolescente. Vejamos uma vinheta de um caso da clínica do PATVI.

Uma jovem mulher é encaminhada ao programa por haver maltratadofisicamente seus dois irmãos menores. Tornara-se a representante legalde seus irmãos após a morte de sua mãe. Em sua primeira entrevista coma analista, afirma: "Meus irmãos me denunciaram ao Conselho porqueeu batia muito"; "eu batia muito neles, mas ninguém me perguntou porque eu fazia isso".

Imediatamente após a denúncia e seu ingresso no PATVI, os espan-camentos cessam. A jovem mulher se questiona a respeito da razão desua agressividade com os irmãos, angustia-se por seu "descontrole" e falade "sua raiva". Após 12 sessões, diz:

Já não sinto essa raiva que me leva a espancá-los. Elesjá reiniciaramseus estudos, estão alegres. Mas eu, doutora, que deveria estar bemporque todo esse problema foi solucionado, me sinto pior do queantes, me sinto só, me sinto mal e, a cada dia que passa, estou maisgorda. Não sei o que se passa comigo, custo a dormir, agora tenhoinsônia e meu caráter não se modificou. Continuo com raiva, masagora é uma raiva de mim mesma. Como isso pôde acontecer?

Como disse anteriormente, a palavra articulada à escuta nem sempre fazbem. Ajovem mulher chegou ao PATVI para falar do que acontecera entreela e seus irmãos. Havia sido encaminhada pelos conselheiros de proteçãopara que falasse com alguém que a auxiliasse na modificação de sua condutaagressiva e lhe permitisse, assim, conviver com sua família em um ambientemais saudável. Isso foi efetivamente alcançado, mas ela se sente pior. Os es-pancamentos desapareceram, já não são relevantes para ela. Sua queixa nãoé mais a mesma, sua dor é outra. Trata-se de uma dor que descreve assim:"Agora, posso entender que meu problema é outro. Já não se trata do fato deque espanco meus irmãos. Agora, sei que, ao longo de toda a minha vida, batiem mim mesma, e agora que sei disso, sofro mais, como nunca havia sofridoantes". "Eu vim até aqui por um motivo e, agora, me vem tudo isso".

TODO CASO É ÚNICO I Aliana Santana N. 101

Pode-se dizer que essa mulher resolveu o problema que a trouxe àconsulta, mas vemos como a agressividade em si continua sendo o pro-blema e, mais do que isso, sua própria queixa. Em termos terapêuticos,essa mulher se sente melhor acerca do sintoma que a trouxe à consulta,porém o tratamento continua ou, melhor dizendo, começa.

O PATVI, instituição recoberta pela finalidade terapêutica que afirma''Você está aqui para falar", deixa emergir a questão "Qual é a causa de vocêestar aqui?".

Não se trata, portanto, de verificar a motivação do sujeito em relaçãoao projeto da instituição, mas sim de deixá-lo elaborar a causa de seuingresso no mesmo. Essa é a diferença que marca o limiar de passagemde uma estrutura própria ao campo psicoterapêutico para a estruturaespecífica do campo psicanalítico.

Será que isso é possível em um programa de 18sessões? Será possívela um sujeito ceder sobre o gozo de sua pergunta e de sua verdade inefávelem um tempo predeterminado? A resposta é dada pela psicanálise pura:trata-se de uma possibilidade dada caso a caso.

A vinheta apresentada expõe como a psicanálise aplicada respondeà demanda social, sem perder de vista os princípios que dirigem o atoanalítico e focando a atenção no quarto desses princípios.s

O ensino de Jacques Lacan renovou a doutrina da psicanálise, paraalém do desejo freudiano, bem como ampliou as possibilidades de suaação, de seus usos. Uma clínica orientada pelo real, pelo impossível,

4 "O laço transferencial supõe um lugar - o lugar do Outro", como afirmou Lacan,e não é regulado por nenhum outro particular. Esse lugar é aquele em que o in-consciente pode manifestar-se no dizer com a maior liberdade e, portanto, em queaparecem os enganos e as dificuldades. É também o lugar em que as figuras daparceria fantasmática podem desdobrar-se, por meio dos mais complexos jogos deespelhos. Por isso, a sessão analítica não suporta a presença de um terceiro, nemde seu olhar a partir da exterioridade do processo. O terceiro é reduzido ao lugardo Outro. Esse princípio, portanto, exclui a intervenção de terceiros autoritáriosque queiram determinar um lugar para cada um e estabelecer objetivos préviospara o tratamento psicanalítico. O terceiro avaliador se inscreve nessa série dosterceiros, cuja autoridade s6 se afirma na exterioridade do que está emjogo entreo analisante, o analista e o inconsciente.

102 A VARIEDADE DA PRÁTICA

não só torna a psicanálise de orientação lacaniana uma prática semprenova, como também separa-a da idéia de que se trata de um dispositivoantiquado, monótono e exclusivamente orientado para a neurose. Porintermédio da psicose, da anorexia, do autismo, dos fenômenos psi-cossomáticos, dos fenômenos de violência, cada dia mais "modernos","tecnológicos", e que dão mostra desse real em que é difícil tramitar,verificamos as possibilidades de tratamento eficaz conduzi das pela análisede orientação lacaniana.

Em face do discurso igualitário das psicoterapias atuais, do discursodemagógico da ciência e da tendência a converter o ser falante em um amais na multidão, o psicanalista de orientação lacaniana, com o desejo queo mobiliza, conduz o ser falante a forçar a barreira, a insistir em avançaralém das fronteiras impostas por tais discursos.

A aplicação da psicanálise à terapêutica, como tratamento, em deter-minado momento, em determinada problemática, em determinado lugar,e a demonstração de sua oportunidade, conveniência e possibilidade deação para além das condições imanentes à prática de consultório consti-tuem, em nossos dias, o desafio da psicanálise de orientação lacaniana.Para além de acolher o sintoma como disfunção - algo que outras psico-terapias de escuta também fazem -, o psicanalista está atento para o laçoque o sujeito estabelece com seu sintoma, sobre o qual, conseqüentemente,trabalha. Como assinalava Lacan, a psicoterapia conduz ao pior porquese ocupa de tentar normalizar, no sentido do Ideal, elementos que sãointrinsecamente anormais, como a verdade, o desejo e o gozo.

Transformar a urgência do Outro em urgência subjetiva e esta emuma aventura psicanalítica é para o psicanalista, sem sombra de dúvida,o modo de assegurar-se da singularidade de cada caso, em cada umadas situações encontradas. Trata-se, então, de assegurar que os sujeitospossam penetrar nos caminhos tortuosos e insondáveis de seu dizer, àcondição de que, na psicanálise de orientação lacaniana, nós a elevemosà dignidade de seu sintoma.

Tradução: Cláudia Henschel de Lima

TODO CASO ~ ÚNICO I Aliana Santana N. 103

PSICANÁLISE NA CIDADE.VARIEDADE E PRINcíPIOS DA EXPERIÊNCIA

Ana Lucia Lutterbach Holck[EBP]

"Ogeneral perdeu a cabeça!", e imediatamente todosos assírios se colocam em fuga. Aperda do condutor,em qualquer sentido, não saber em quem se apoiar,basta para que se produza a explosão de pânico,ainda que o perigo continue a ser o mesmo; comoregra, ao desaparecer a ligação da massa com seucondutor, desaparecem as ligações entre eles, e amassa se pulveriza como a lágrima de Batava' quandolhe quebram a ponta.Psicologia de grupo e a análise do eu, Sigmund Freud

A clínica social não é uma novidade entre nós. Há muitos anos, váriassociedades de psicanálise, universidades e outras instituições desenvolvemum trabalho de atendimento clínico gratuito ou a baixo custo voltado paraa população carente. Assim, qual é a novidade dos Centros de AtendimentoPsicanalítico de orientação lacaniana?

Para responder a essa questão, situo como ponto de partida o debateproposto por Jacques-Alain Miller e Éric Laurent sobre a psicanáliseaplicada e o lugar do psicanalista na cidade em tempos de inexistência doOutro. A cabeça que conduzia o Outro social foi perdida, a época lacanianada psicanálise é a época da inexistência do Outro, do não-todo generaliza-do, e o Nome-da-Pai se pulverizou, tal como a lágrima de Batava quandolhe arrancam a ponta. Em "O Outro que não existe e seus comitês de ética",

, Gota de cristal fundido que, em contato com a água fria, amolece e adquire forma

ovóide. Quando sua ponta é quebrada, reduz-se a pó com uma ligeira explosão.

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Miller situa em Freud o reino do Nome-do-Pai, uma universalizaçãocuja estrutura fundada com o pai como exceção foi esboçada em "Toteme tabu". A estrutura chamada por Lacan de não-todo responde ao Outroque não existe e não se inscreve na universalização, mas é o não-todogeneralizado, por toda parte, para todos os lados (pas-toutjpartout).

Qual o lugar do analista nesse novo contexto?

o analista cidadão

Em "O analista cidadão'>, Éric Laurent afirma que, tradicionalmente,o analista se mantém na posição de intelectual crítico, isto é, apagado,produzindo vazio, além de toda crença, e despido de qualquer ideal. Nessaconcepção, a psicanálise é uma prática de desidentificação ao infinito, emque o analista, na condição de especialista da desidentificação, denunciapráticas sociais e estimula certo ideal de marginalização da psicanálise.

Laurent, todavia, observa que não se pode mais manter essa posição,pois se os analistas se mantiverem nesse lugar, seu papel histórico ter-minará, já que não produzirão efeitos no Outro social. É preciso, assim,que os analistas passem da posição de especialista da desidentificaçãopara a de analista cidadão.

O analista cidadão é aquele que não se apresenta mais como alguémque detém as soluções. Ele se inclui na cidade e oferece a psicanálise comouma ferramenta, uma prática que sirva aos impasses subjetivos da con-temporaneidade. Dito de outro modo, essa nova orientação da psicanáliseconvida o analista a voltar seu olhar, sua escuta e seu ato para a cidade.

Nossa cidade, o Rio de Janeiro, como tantas outras do planeta, estáem guerra. Uma guerra sem general, sem pé nem cabeça, sem objetivosde conquista ou expansão, nem mesmo religiosos, raciais ou de classe.Trata-se de uma explosão que não encontra nenhum suporte nas teoriastradicionais e em que as explicações e soluções tendem para uma banali-

2 LAURENT, Éric. "El analista cidadano". Em: Psicoanálisis y salud mental. Buenos

Aires: Tres Haches, 2003.

106 A VARIEDADE DA PRÁTICA

zação em que se reduz essa guerra a um caso de polícia ou de pedagogia.De um lado, há tentativas de segregar a pobreza para as margens dacidade e reforçar a segurança por meio de aparatos policiais e militares.De outro, uma iniciativa, não menos coercitiva, propõe a educação comoforma de controle e adaptação, e produz uma proliferação de entidadestanto governamentais quanto não governamentais, assistencialistas ecaritativas, em um esforço de controle e contenção do mal.

Não cabe ao analista, no entanto, procurar definir as causas ou assoluções para as situações sociais. Essa é uma tarefa para políticos, his-toriadores, economistas, sociólogos ou assistentes sociais. Como, então,a psicanálise entra em uma guerra?

Ao tratar da campanha napoleônica na Rússia entre 1805 e 1812,

Tolstoi ressalta, no prefácio e em inúmeras passagens de Guerra epaz», adiferença entre os pontos de vista do historiador e do artista. Enquanto ohistoriador busca reunir acontecimentos, a fim de demarcar linhas geraisbem definidas entre causa e efeito, fazendo do acaso o resultado de estra-tégia intencional de um herói, o artista se ocupa do medo, da vergonha, dofracasso e das soluções imprevistas de cada caso que definem o resultadofinal: "[...] devemos coibir-nos de provar da árvore da ciência. Só os atosinconscientes frutificarn'v.

Em um primeiro momento, temos a impressão de que guerra e pazsão dois lugares paralelos, o campo de batalha e a vida na cidade, masesse seria o ponto de vista de um historiador. O artista nos conta que aguerra e a paz estão em ambos os campos, mostrando-nos tanto a alegriaencontrada por um rico aristrocrata feito prisioneiro de guerra - "[...] atéo fim de seus dias, alegremente recordaria aquele mês de prisão e comentusiasmo falaria das fortes e inapagáveis alegrias que experimentaraentão e sobretudo da serenidade moral perfeita, da completa liberdade in-terior que só nessa quadra de sua existência profundamente conhecera"s -quanto o ódio que pode florescer na paz. Um homem pode ir para a ba-

3 TOLSTOI, Liev. Guerra e paz (1869). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.4 Ibid., p. 1277.

5 Ibid., p. 1346.

PSICANÁLISE NA CIDADE I Ana Lucia Lutterbach Holck 107

talha em busca de paz, refugiando-se, por exemplo, da guerra conjugal, eum outro escolher a paisagem bucólica para continuar em guerra consigomesmo ou com um vizinho.

Nessa perspectiva, o analista está do lado do artista, pois se interessanão pelas fórmulas universais que tentam explicar ou solucionar a guerra,e sim pelo destino que cada um pode dar ao medo, à vergonha e ao ódiona luta tanto privada quanto pública.

o dispositivo coletivo

Assim como a clínica social não é uma novidade, o atendimento em grupo jáexiste há muito tempo. Desde "Psicologia das massas e análise do eu" (1921),

de Freud, estabeleceu-se uma longa tradição. Essas experiências, no entanto,visavam substituir o tratamento psicanalítico individual pelo de grupo, comas mesmas motivações e objetivos, acrescidos da intenção de aumentar onúmero de pessoas atendidas e diminuir o custo para cada uma delas.

Já nossa proposta é pesquisar os efeitos do discurso analítico em umacomunidade que, pela primeira vez, tem a oportunidade de fazer uso detal dispositivo. Nesse sentido, nossa direção não é o fim de análise, massim a promoção de uma brecha para a experiência do inconsciente, umencontro com a psicanálise, e não exatamente um trabalho de análise.Assim, uma primeira questão logo se impõe: como enfrentar a variedadeda prática psicanalítica, sem se desviar dos princípios e do rigor quenorteiam a clínica lacaniana?

Em Lacan, não encontramos nenhuma referência ao atendimentoem grupo, mas a Escola e o cartel são dispositivos grupais que podemproduzir efeitos no real, em razão de o trabalho em grupo procurar serum produto sustentado pela enunciação singular de cada um. Em "O Se-minário, livro 22: R.S.L", Lacan não recua diante da identificação com ogrupo: "O que desejo é a identificação com o grupo, porque é certo que osseres humanos se identificam com um grupo; quando não se identificam,estão fracassados, estão isolados. Mas, com isso, não digo a que pontodevem identificar-se". Embora não diga o ponto, acrescenta um pouco

108 A VARIEDADE DA PRÁTICA

adiante: "O ponto de partida de todo nó social se constitui pela não relaçãosexual como furo'", isto é, o ponto de identificação é com o furo e nãocom a consistência imaginária. Outra referência a esse respeito é o texto"A asserção do sujeito e a certeza antecipada'", recentemente trabalhadopor Miller e Laurent, no qual Lacan procura definir uma lógica coletiva,isto é, o uso do grupo para que o sujeito possa realizar o cálculo de suarelação com o desejo do Outro.

Dessas referências, partimos para nossa pesquisa e experiência com otrabalho coletivo com um dispositivo diferente do atendimento individual,pois se trata de uma intervenção pontual com vistas a uma experiênciacom o inconsciente que produza efeitos de mutação subjetiva.

DIGAí-Maré8

DIGAÍ-Maré é o nome de um projeto, iniciado há cerca de dois anos, deatendimento em grupo na favela da Maré, no Rio de Janeiro. A política

6 LACAN, Jacques. "O Seminário, livro 22: R.S.L", aula de 15 de abril de 1975.

Inédito.

7 LACAN, Jacques. "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada" (1945). Em:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

B O Projeto DIGAí-Maré, atendimento e consultas em psicanálise realizados em

parceria da EBP-Seção Rio com a PUC-Rio e a organização não-governamental

Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), foi criado em março de

2005. Atualmente, tem uma sede na Maré e funciona com um corpo clínico com-

posto por 15 coordenadores de grupo e cinco supervisores. Todos os coordenadores

estão em supervisão e sua maioria terminou ou está cursando o Instituto de Clínica

Psicanalítica (ICP) da EBP-Rio. Parte desta exposição sobre o projeto é resultado

de elaboração realizada, em reuniões quinzenais, pela equipe coordenada por mim

e Marcus André Vieira: Alda Cardozo, Andréa Reis, Andréa Rollo, Franciele Almei-

da, Isabel do Rêgo Barros, Lourenço Astua de Morais, Mariana Martins, Marícia

Ciscato, Maritza Garcia, Ondina Machado, Renata Cecchetti, Rodrigo Lyra, Sandra

Viola, Tatiane Grova, Teresa Lobato e Vânia Gomes. Além do DIGAí-Maré, está

em desenvolvimento outro projeto similar no Rio de Janeiro, o Centro Lacaniano

de Atendimentos Clínicos (CLAC), coordenado por Mirta Zbrun.

PSICANÁLISE NA CIDADE I Ana Lucia Lutterbach Holck 109

que orienta esse trabalho se insere na perspectiva da psicanálise aplicadae da elaboração de pesquisas, exigidas pela prática de dispositivos nãostandards promovidos pelo Campo freudiano.

O DIGAÍ recebe crianças, adolescentes e adultos dessa comunidade,encaminhados, em sua maioria, por professores e assistentes sociaisligados ao Programa de Criança do CEASM, que acompanha alunos comdificuldades escolares. Depois de algumas tentativas fracassadas de reunirgrupos monossintomáticos em torno de significantes como "angústia","depressão" e "stress", os grupos se organizaram espontaneamente emtorno de queixas variadas.

Relato a seguir algumas situações vividas em um grupo coordenadopor Maricia Ciscato. Os primeiros encontros desse grupo foram marcadospela descrição de cenas violentas ocorridas na favela entre traficantes,policiais e moradores. A coordenadora, orientada durante a discussão docaso a mudar o "tom" que havia se instalado nas reuniões, produziu umdeslocamento para questões subjetivas, que fez surgir, de modo predomi-nante, falas abordando as dificuldades em torno da separação entre mãese filhos, mais especificamente, de situações em que estas não podiam seseparar de seus filhos ou suportar sua presença.

Antonia, por exemplo, procurou o DIGAÍ por causa de seu filho maisvelho, um garoto, com cerca de dez anos, que havia sido encaminhado aoConselho Tutelar em razão dos maus-tratos maternos. Ela dizia querermatá-lo, livrar-se dele, pois, segundo seu relato, era um menino mau.Isso chocou as demais participantes, que diziam que ele era apenas umacriança e que precisava dela. Essa reação do grupo produziu em Antonia,paradoxalmente, uma proliferação de relatos violentos e imprecaçõescontra o filho.

Em um dos encontros, depois de Antonia repetir mais uma vez suasqueixas sobre o filho, a coordenadora lhe disse que, aparentemente, algono garoto lhe era insuportável e lhe despertava ódio. O que era esse algo?A pergunta da coordenadora produziu uma suspensão no grupo.

No encontro seguinte, Antonia pôde contar sua história: entreguepara ser criada pela madrinha, afirmou não ter nada parecido com suamãe, ao mesmo tempo que exibia uma cicatriz decorrente de uma cirurgia

110 A VARIEDADE DA PRÁTICA

realizada quando criança para corrigir um defeito na perna, exatamenteigual ao de sua mãe.

Antonia se separou do marido, de quem muito se queixava; cerca deum mês e meio após a separação, contou estar gostando de outro homem.O novo namorado lhe pediu que desistisse da idéia de internar o meninoe se prontificou a ajudá-Ia a cuidar dele. Em um dos dias subseqüentes,apesar de continuar se queixando do filho, disse não saber mais se queriadá-lo, pois parecia ser a única capaz de suportá-lo. Diante desse homem,sentiu, pela primeira vez, vergonha de falar que tinha vontade de sedesfazer do filho.

O namorado, assim, colocou-se entre mãe e filho, e a vergonha destadeixou de ser sentida pela presença da criança, passando a corresponderà sua vontade de se desfazer do menino. Na reunião seguinte, Antoniaencontrou em si algo muito similar ao jeito de seu filho: "Sei provocar osoutros, assim como ele, até fazer todos perderem a cabeça".

A partir daí, começou a associar o menino com sua mãe e dizer queele era a avó "cuspido e escarrado", desgosto e vergonha na vida dela."Cuspido e escarrado", portanto, é o desgosto e a vergonha que herdarada mãe na perna "aleijada", mas também sua maneira de incluir o filhona linha geracional. Assim, finalmente encontrava um lugar para o es-tranho-íntimo que rejeitava em si e encarnava no garoto.

Esse grupo, depois de funcionar durante sete meses, foi concluído.Como indicado, os critérios habituais para um fim de análise, como atravessia da fantasia ou a identificação com o sintoma, não cabem nodispositivo de grupo. Torna-se necessário, então, estabelecer novos cri-térios de eficácia. Até o presente momento, verificamos, em alguns casoscomo o aqui relatado, efeitos terapêuticos decorrentes de certa extraçãode gozo, com a conseqüente desobstrução das vias do desejo, e um outrouso da fantasia, permitindo a invenção de novos laços sociais.

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