A Última Casa Da Rua - David Loucka

download A Última Casa Da Rua - David Loucka

If you can't read please download the document

Transcript of A Última Casa Da Rua - David Loucka

A ltima Casa da Rua David Loucka Jonathan Mostow Lily BlakeA casa no final da Sycamore Lane era um sobrado com a janela da frente emformato de meia-lua e as finas cortinas cinzentas sempre fechadas. A varandavivia cercada de ervas daninhas e, entre as tbuas empenadas do assoalho, agrama brotava. Sobre elas, as telhas estavam quase todas quebradas. Da pinturaverde desbotada s sobravam algumas faixas que ainda no estavam totalmentedescascadas. Um playground enferrujado continuava de p no quintal. Oescorregador ainda estava inteiro, mas s o que restava dos balanos eram duascorrentes arrebentadas. Os assentos de borracha tinham se soltado havia muitotempo e ficavam jogados no cho, ressecando sob o sol. Mas no foi sempre assim naquela casa. incrvel como, de repente, as coisasmudam e os acontecimentos ruins se acumulam. A famlia que vivia ali foiassombrada pela m sorte, os momentos trgicos chegando sempre antes e commaior intensidade que os mnimos momentos felizes. A vida deles foiinterrompida bruscamente no dia em que Carrie Anne filha mais nova docasal e a nica menina caiu do balano no quintal. Quando a encontraram, osangue se acumulava sob sua cabea, congelando entre as mechas embaraadasde sua longa cabeleira loira. Os vizinhos logo ficaram sabendo que a coitadinhatinha sofrido dano cerebral. Dali em diante, ela passaria a maior parte do tempodentro de casa. Seus pais a monitoravam constantemente. Eles controlavam oque ela comia, o que vestia e nunca a deixavam sair do quarto mais do quealgumas horas por dia. Comearam a correr boatos de que ela era perigosa. Passaram-se anos antes da segunda grande tragdia. Era uma noite quente emida de agosto quando tudo aconteceu, uma dcada depois do acidente deCarrie Anne. Seus pais estavam dormindo com a janela aberta, pois o arcontinuava abafado depois de uma tarde chuvosa. Mary Jacobsen, a me deCarrie Anne, acordou ouvindo passos que se aproximavam na escada. Elademorou alguns segundos para entender se aquilo era real ou se fazia parte deum sonho, at que viu a luz se acender no vo embaixo da porta. John Jacobsenvirou-se na cama, percebendo que sua esposa tinha acordado. Mas como pode? Essa menina acordou de novo? ele esbravejou. Mary esfregou os olhos. Tudo bem, tudo bem. Pode deixar que eu vou respondeu num tomspero. Os dois j mal se falavam naquela poca. Seu casamento tinha rudodepois do acidente, com tudo cada conversa, cada dia, cada ms girando emtorno de sua filha. O que Carrie Anne ia comer hoje? Qual dos dois ficaria emcasa com ela enquanto o outro ia cidade? Incapazes de se concentrar em outracoisa alm da menina, ambos perderam o emprego nos meses seguintes aoacontecido. As dvidas e arrependimentos os corroam. E se eles estivessem dolado de fora quando ela caiu? Ser que poderiam ter feito alguma coisa? Serque teriam evitado o pior? E por que John no cobriu de areia o cho 1do playground, como tinha prometido desde o incio? Quantas vezes Mary jtinha pedido que ele fizesse isso? Era sempre ela quem consolava Carrie Anne, quando a menina acordava nomeio da noite. Era duro ter uma filha que precisava de conforto e ateno emtempo integral. Embora Mary Jacobsen no fosse capaz de admitir em alto ebom som, sabia que tinha se tornado mais dura em relao filha com o passardo tempo. Seus nervos estavam esgotados, essa era a verdade. Ela acabavaperdendo a pacincia com a menina mais do que gostaria. Nos ltimos meses, afrequncia com que ia ao mdico atrs de receitas de calmantes era cada vezmaior. Ento comeou a frequentar outros consultrios, desesperada paraconseguir mais e mais plulas seu suprimento nunca era o bastante. Ela e Johndiscutiam muito mais quando os frascos de remdios estavam perto de acabar. Mary levantou da cama e caminhou devagar em direo porta do quarto.Sua cabea estava explodindo graas combinao de tranquilizantes e plulascontra a ansiedade. Quando apareceu no corredor, Carrie Anne estava parada, beira da escada, com os braos para trs, as mos fora da sua vista. Mary fechoua porta do quarto devagar, sabendo que John iria reclamar caso elas fizessemmais barulho do que j tinham feito. Carrie Anne ela disse, severamente. Voc precisa voltar para a cama.Agora. Voc j sabe como isso vai terminar. Os longos e embaraados cabelos loiros da menina estavam cados parafrente, escondendo seu rosto. Sua camisola, comprida at a altura dostornozelos, tinha uma mancha seca na frente. Mais cedo, durante o jantar, elahavia surtado mais uma vez e atirado o prato de comida na parede, derrubandotodo o molho da carne sobre o prprio colo. Sua me simplesmente no sentiu amenor vontade de limp-la ou ento trocar suas roupas. Carrie Anne? Mary a chamou novamente. A garota estava com o troncolevemente inclinado para frente e a cabea baixa. Novamente, ela no esboouqualquer reao. Mary deu um passo em sua direo, avanando pelo corredorestreito. Simplesmente odiava quando a filha fazia aquilo. Ela reconhecia suavoz. Sabia que era a sua me quem estava falando. Por que cargas d'gua fingiaque no tinha mais ningum ali? Mary deu mais um passo e alcanou o brao da menina, agarrando seu pulsoe puxando com mais fora do que pretendia. Foi a que notou algo diferente derelance. Carrie Anne ergueu a outra mo, revelando, sob a luz fraca docorredor, o martelo que escondia atrs das costas. Por uma frao de segundoseus olhos azuis brilharam, vislumbrando o rosto assustado da me, que noteve tempo para fazer mais nada. Com um movimento rpido, Carrie Anne aacertou na cabea, logo acima dos olhos e bateu de novo e de novo, at Maryfinalmente cair para trs, absolutamente irreconhecvel. 2 No quarto, John se sentou na cama, sentindo que havia algo de errado. Eletinha escutado as pancadas abafadas e depois o silncio que se seguiu, masestava um pouco areo por causa dos medicamentos um coquetel especial queo mantinha relaxado por horas, antes de causar um acesso de paranoia comoefeito colateral por isso ficou ali parado, olhando para a porta, pensando quetalvez fosse a sua imaginao que estava pregando mais uma pea. Intrigado,ele esticou o brao e tateou a mesinha de cabeceira atrs do frasco de remdios,mas j no havia nenhum comprimido dentro dele. Sentado na cama, John esperou por alguns segundos, imvel, apenasobservando as sombras que se moviam no vo da porta e imaginando se Marytinha conseguido convencer Carrie Anne a voltar para a cama. s vezes, paraconter a agitao da menina e for-la a dormir, sua esposa tinha que apert-lacom toda fora contra o seu peito, imobilizando-a entre seus braos por vriosminutos. Outras vezes, os dois eram obrigados a tranc-la no quarto e a ficarescutando seus gritos desesperados por horas e horas, antes que elescomeassem a diminuir de intensidade para enfim desaparecerem totalmente.A gritaria era o que John mais detestava. Seu sangue fervia ao som dos berrosestridentes e dos socos e pontaps que a garota dava na porta. Parado no quarto, ele continuou observando as sombras no cho. Do lado defora, trovoava. A chuva tinha comeado a cair novamente, molhando ascortinas. John se levantou e deu alguns passos tentando se orientar naescurido. Estava prestes a chamar o nome da esposa, quando a porta se abriu.Sua filha entrou rapidamente, o cabelo bagunado na frente do rosto e omartelo sangrento em uma das mos... 3Captulo 1Quatro anos depois... Elissa deu um pulo e se sentou no cap empoeirado da velha caminhonete,segurando o seu violo. Encontrou uma posio confortvel e debruou-sesobre o instrumento, dedilhando um Sol maior repetidamente. Aquele semprefoi seu acorde favorito. Talvez por causa da sonoridade viva e aberta, ou entopela sensao dos seus dedos tocando aquelas cordas em especial. Ou talvez elapreferisse o Sol maior porque aquele foi o primeiro acorde que aprendeu. Seupai tinha lhe dado o violo de presente quatro anos atrs, em seu aniversrio detreze anos. Nessa poca, eles ainda viviam nos arredores de Chicago. Isso foiantes do divrcio, antes das brigas e do rancor que se seguiram. No vero em que seu pai parou de aparecer, de telefonar e at de escrever,Elissa no conseguiu deixar o violo de lado. Ela preenchia o silncio commsica, a nica coisa potente o bastante para abafar os seus prpriospensamentos. Agora, enquanto dedilhava aquele Sol maior, ela observavaSarah, que estava deitada no cap, com a cabea apoiada no para-brisa. Desdeque seu pai tinha partido, parecia tolice continuar chamando aquela mulher de"mame" ou de "me". Na ausncia dele, elas se pareciam mais comcompanheiras de quarto que se conheceram pela internet, convivendo em umapartamento dividido como se fossem duas estranhas. Elas mal se falavam, ano ser para tratar das tarefas domsticas quem colocaria o lixo para fora,quem guardaria as compras, quem deveria lavar os ltimos pratos na pia. Ascoisas foram dessa forma por quase trs anos, at sua me anunciar que tinhaencontrado uma casa em Seattle, em um subrbio "agradvel". Ela argumentouque a mudana era para melhor, que era a chance de elas terem um novocomeo e que assim as duas poderiam passar algum tempo juntas, antes deElissa ir para a faculdade. Elissa bem que queria acreditar nisso que estar emum lugar novo poderia transform-las. S que no conseguia parar de pensarem algo que sua av costumava dizer. E essa pequena frase ficou ecoando emsua cabea durante os dois dias de estrada, enquanto, ao lado da me, elacruzava o pas: aonde quer que voc v, l voc estar. Como poderia uma novacidade, uma nova casa, mudar qualquer coisa entre elas? Ser que j no eratarde demais para isso? Elissa trocou de acorde e comeou a tocar o refro de uma velha canodo Bleeker Street. Quando ela tinha dez anos, seu pai tinha lhe dado de presenteum CD deles, como parte da sua "educao musical". Enquanto tocava, elaolhava por cima da cerca viva sua frente. S o que conseguia ver era o topodas paredes de pedra. 4 Vocs devem ser as Cassidys! Uma voz se dirigiu a elas de repente. Elissase virou atrada por ela. Um sedan preto de luxo encostou do outro lado da ruae um homem baixo e calvo saiu de dentro dele. Dan Gifford. Desculpem oatraso. Eu esqueci o celular no escritrio. Na certa vocs tentaram me ligar. Ele secava o suor da testa, enquanto se explicava. S uma dzia de vezes Sarah respondeu, sentada no cap dacaminhonete. Seu cabelo loiro e ondulado pendia altura dos ombros, sua peleestava rosada, graas espera de uma hora e meia, debaixo do sol. Mill perdes por isso, senhora Dan murmurou. Mas agora me deixemmostrar sua nova casa. Com um chaveiro lotado em uma das mos, ele seatrapalhou um pouco at encontrar a chave certa. Quando finalmenteconseguiu abrir o porto de madeira, revelou-se o sobrado de pedra que ficavaalm dele. Elissa quase riu quando ele apareceu diante dos seus olhos. Aquela casa eraumas dez vezes maior do que o apartamento delas em Chicago. A parede dafrente tinha trs janelas grandes, com colunas trabalhadas enfeitando a entrada.No era enorme, no era uma manso, definitivamente. Mas, mesmo assim, eraa maior casa em que ela j tinha morado. Elissa estava comeando a pensar quetalvez Sarah estivesse certa talvez este fosse o ano em que as coisas mudariampara elas. Sarah abriu a traseira da caminhonete e Dan as ajudou com algumas caixaspequenas, deixando seu suor pingar em cima delas. Como foram de viagem? perguntou, enquanto entravam no terreno. Ns passamos dois dias na estrada Sarah respondeu, apoiando uma dascaixas na cintura. No vemos a hora de arrumar as coisas e descansar umpouco. Elissa ergueu os braos para alcanar uma caixa com objetos de cozinha e foipega de surpresa pelo cheiro desagradvel que vinha debaixo deles. E tomar um banho tambm completou, rindo. Dan comeou a subir os degraus de pedra, cercados por arbustos dehortnsia. Eu acredito que vocs vo se sentir muito confortveis aqui. E, alm dissovo adorar a vizinhana. Os trs entraram na casa e Elissa no conseguiu evitar abrir um sorriso deorelha a orelha. Quando era pequena, ela costumava fazer desenhos elaboradosde sua "casa dos sonhos": uma manso de dois andares, com piso de madeira, 5enormes aparelhos de TV, sofs de couro e quartos suficientes para quatrocrianas (ela sempre imaginou que seus pais teriam mais filhos depois quefinalmente parassem de brigar). De alguma forma, aquele sobrado era parecido.Havia balces de granito na cozinha, mveis simples, mas elegantes, e umavaranda grande nos fundos. Sarah se virou e ergueu as sobrancelhas para elacomo quem diz: Viu s?! Eu no disse que era demais? Deixaram as caixas no balco da cozinha e foram conhecer a casa. Danmostrou os trs quartos no andar de cima, cada um deles com uma cama queensize o que era um tremendo luxo se comparado com o colcho de solteiro emque Elissa tinha dormido a vida toda. Depois comentou algo sobre a timapresso da gua, tratou de alguns detalhes do aluguel e apontou o parqueestadual, junto aos fundos da propriedade. Quando terminaram de conhecertudo, ele tirou as chaves do seu chaveiro e as entregou a Sarah. Os Reynolds vo fazer uma festa para a vizinhana amanh. s prepararum prato e aparecer. Vocs esto convidadas. Eles moram s a algumas casasdaqui. Sarah no tinha parado de sorrir desde o instante em que eles passaram pelaporta de entrada. Ela era uma pssima cozinheira, mas confirmou presena todaanimada, como se ficar atrs do fogo fosse a atividade ideal para a primeiranoite na casa nova. Qualquer coisa, ns ligamos disse, enquanto observava Dan fechar aporta atrs de si. Elissa olhou ao redor, prestando ateno nas portas deslizantes de vidro, nascortinas perfeitamente franzidas, nas almofadas milimetricamente arrumadasno sof. esquisito demais disse, sem conseguir disfarar o sorriso. como sefosse uma casa de verdade. Sarah se inclinou na direo dela, mostrando as chaves e as balanando. mesmo uma casa de verdade corrigiu. Mas e as outras casas, onde que ficam? Elissa perguntou. E onde fica amercearia? Onde que eu vou encher a cara, posso saber? Ela estavabrincando, claro. Sabia que a me odiava qualquer insinuao sobre beberantes dos dezoito. Pois , querida, tudo ao redor o parque estadual Sarah respondeu,apontando as janelas do fundo e ignorando o comentrio sobre a bebida. Umbelo quintal, voc no acha? 6 Ento os olhos de Elissa avistaram a casa decadente, a uns trinta metros dedistncia. O velho sobrado parecia cravado no meio das rvores, nos limites doparque. Olha s, daqui da pra ver a casa do Senhor e Senhora Mortinhos da Silva ela disse, sorrindo. No fale assim, Elissa Sarah protestou, apoiando os cotovelos no balco. Aquela casa a razo pela qual ns podemos pagar o aluguel desta aqui. Umduplo assassinato no costuma fazer bem aos negcios imobilirios. No costuma fazer bem aos negcios? muito mais do que isso, Elissa pensou.Mesmo se esta minimanso fosse perfeita, ainda assim ia ser bizarro morar toperto de uma casa onde duas pessoas tinham sido assassinadas. Durante aviagem rumo a oeste, Elissa tinha feito Sarah contar a histria inteira umas trsou quatro vezes. Pais com uma filha violenta que tinha algum tipo de problemano crebro. Ela os acordou no meio da noite e matou os dois com um marteloroubado do barraco de ferramentas. Vrios dias se passaram antes queencontrassem os corpos e, na poca, ningum ficou sabendo o que aconteceucom a garota. Disseram que ela tinha quinze anos, mas que a sua condiomental era a de uma criana pequena. Vamos logo Sarah disse batendo no ombro de Elissa. Vamos terminarde descarregar aquelas caixas.Mais tarde, naquela noite, Elissa derramou o macarro no escorredor,observando o vapor subir em frente ao seu rosto, o que fez a cozinha abafada emida parecer ainda mais quente. O suor se acumulava sobre suassobrancelhas. Depois do espaguete esfriar um pouco, ela usou um pegador paraservi-lo, tomando todo cuidado para coloc-lo bem no centro dos pratos, comoseu pai tinha lhe ensinado certa vez. Por fim, despejou uma concha cheia demolho no macarro e completou com um ramo de salsa por cima. Sua receita especial, servida naqueles pratos brancos simples, pareciaperfeita igualzinha a uma foto que ela tinha visto em uma revista. Elissa selembrou da noite em que seu pai a ensinou a prepar-la e dos pequenos truquesque ele lhe mostrou, fazendo de conta que o apartamento onde eles moravamera um restaurante chique, do tipo que jamais teriam dinheiro para frequentar.Parecia que ele estava ali, agora mesmo, na frente dela, experimentando oespaguete como se fosse caviar, lagosta ou um belo filet mignon, e exclamando"magnifique!", com aquele sotaque francs fajuto que sempre a fazia cair narisada. 7 Elissa levou os pratos para a mesa, colocando um deles delicadamente emfrente a Sarah. Ainda no passava das sete da noite, mas sua me j tinhatrocado as calas jeans e a camiseta suada pelo seu velho pijama cor-de-rosa.Seus cabelos loiros ondulados estavam puxados para trs, presos em um coque,o que a fazia parecer muito mais com uma garota mais velha do colgio deElissa do que propriamente a sua me. Em uma das mos ela segurava umisqueiro Zippo, que ficava abrindo e fechando seguidamente, fazendo a chamaaparecer e desaparecer. Obrigada por cozinhar, querida Sarah disse, colocando o isqueiro de lado. Elissa se sentou em seu lugar. Voc pode agradecer ao papai, foi ele quem me ensinou a preparar essemacarro. Sarah fingiu uma expresso de surpresa. Poxa, no acredito! Foi ele mesmo quem te ensinou essa coisa toda deesquentar a gua, jogar o macarro dentro e depois abrir a lata de molho?Minha nossa! Mas que pai incrvel ele ! Merece um prmio Nobel. Elissa apertou com toda a fora o garfo que estava segurando, sentindo-se aponto de finc-lo no tampo de madeira da mesa. Por que afinal Sarah sempretinha que fazer aquilo? Ela no podia falar nada sobre o pai sem que sua meficasse nervosa, fizesse cara feia ou emendasse algum comentrio maldoso. EraElissa quem no tinha mais um pai. Era Elissa quem no ouvia falar dele hmais de um ano, quem no recebia um telefonema nem em seu aniversrio. Eletinha ido embora porque no conseguia parar de brigar com Sarah, tudo comeles virava uma discusso interminvel. Se algum ali tinha o direito de ficarnervosa com isso, esse algum era, acima de tudo, Elissa. Segurando as lgrimas, ela olhou para baixo. Ser que no existia, em algumlugar, um prazo oficial que determinava quanto tempo voc podia chorar porcausa do seu pai ausente? Ela tinha prometido a si mesma que no deixariamais a tristeza consumi-la como nos meses que se seguiram partida dele. Elissa enrolou um pouco de macarro no garfo, sentindo menos apetite doque sentiu um minuto atrs. Seus olhos estavam fixos no Zippo sobre a mesa.Desde que conseguia se lembrar, ele estava em sua vida, como se fosse mais ummvel em casa. Quando seus pais ainda estavam juntos e as brigas ainda notinham se tornado insuportveis, toda noite eles se sentavam ao lado da janela efumavam juntos s um cigarro antes de dormir. Fumar pode ser um hbitodesagradvel e eles at largaram o vcio depois de um tempo, mas isso era algoque faziam juntos e, com certeza, trazia lembranas a Sarah. Por isso, ela aindalevava o isqueiro aonde quer que fosse. 8 At parece que voc carrega isso a para cima e para baixo porque sentefalta de fumar Elissa murmurou, ressentida, para a me. Talvez ela noquisesse admitir, mas tambm no tinha conseguido se esquecer delecompletamente. Sarah suspirou e pegou o isqueiro, olhando bem para ele. Tem coisas das quais sinto falta, sem a menor dvida. Mas quando ramoscasados, as coisas eram duras para mim. Ele estava sempre na estrada, equando no estava viajando, brigvamos sem parar. Voc sabe muito bem comoas coisas funcionavam. Voc estava l tambm e viu tudo. No fundo, tenhocerteza de que voc sabe que melhor assim. Agora, ele est l, compondomsicas sobre mim. E eu estou aqui, com voc, a melhor coisa que fizemosjuntos. Sem levar o garfo boca, Elissa brincou com o macarro no prato. Elatambm tinha escutado as msicas, embora nunca tivesse contado a Sarah quepassava vrias horas por semana no site da banda de seu pai. "Olhos azuis","Ela disse e ele disse" e "Tudo de novo" eram trs daquelas canes. Elaprestava toda ateno s letras, procurando por algum sinal de que ele voltariapara casa, de que tinha se arrependido do que tinha feito. Mas, no final, erasempre como se as msicas fossem sobre entregar-se aos excessos, deixar tudopara l e acolher a liberdade que vem com a perda. Nenhuma das duas falou por um bom tempo. Sarah colocou para dentroalgumas garfadas de macarro antes de olhar para o teto, com os olhosmarejados. Olha s, Elissa... Esse lugar. Enquanto falava, abria os braos e apontavaao redor. Isso novo. Essa mudana vai fazer bem a ns duas. Vamos olharpara frente. Eu vou levar um tempo para me acostumar a ter voc por perto. Deixa disso. Eu at deixei voc ficar com o quarto maior Sarah disse,sorrindo. No vai ser nenhum sacrifcio. Elissa tambm sorriu. Ela queria com todas as foras acreditar em sua me.Sarah tinha dito que, quando chegasse em casa noite, depois do trabalho nohospital, as duas fariam o jantar juntas, depois assistiriam a filmes antigos ouento passariam um tempo na varanda dos fundos, organizando sua velhacoleo de discos. Ela tinha prometido Elissa uma semana inteira de JoniMitchell, passando por todos os seus lbuns Sarah colocaria para tocar suascanes prediletas e as duas ouviriam, tomando litros de ch gelado nas noitesquentes de vero. Mas uma parte de Elissa estava sempre preparada, esperando 9que as coisas voltassem a ser como antes e elas comeassem se comportar comoduas estranhas. Afinal, como uma nova cidade seria capaz de mudar a vidadelas do dia para a noite? Sarah se levantou e comeou a tirar a mesa. Elissa se moveu para ajud-la,mas sua me protestou. Voc cozinhou, eu lavo ela insistiu. V terminar de desencaixotar ascoisas. Elissa olhou para o topo da escada, onde ainda havia uma pilha de caixas depapelo esperando por ela. Mas isso podia ficar para amanh. O sol aindaestava pairando no cu e ela s tinha mais uns trinta minutos, ou at menos,antes que ele se pusesse de uma vez. E agora que finalmente tinha um quintal,ela queria aproveit-lo. Eu s estou a fim de dar uma olhada por aqui antes disse para a me, umpouco mais animada, antes de abrir as portas de correr que davam nos fundosda casa e descer as escadas, seguindo por uma trilha que penetrava nas rvores.Elissa avanou devagar, atenta s pedras e galhos no caminho, com cuidadopara no tropear, enquanto subia o morro, j nos domnios do parque estadual. O sol estava se pondo. A casa abandonada ficava alguns metros adiante. Deonde estava, Elissa conseguia ver um balano quebrado. Ela seguiu em frente,abrindo caminho entre as rvores, tentando encontrar um ponto em que tivesseuma boa viso das dimenses do parque. Essa era a sua casa agora. Tudo ia serdiferente pelo menos era isso que Sarah esperava. Elas nunca tinhamconversado a respeito, mas Elissa sabia que, em parte, elas tinham se mudadopor causa de Luca. Os dois tinham se conhecido no ltimo inverno e, em menosde quinze minutos, j estavam matando aula para fumar um baseado na pickup dele. Na verdade, eles estudavam juntos desde a quinta srie, mas Elissaainda se lembrava do dia em que o tinha notado pela primeira vez (ou melhor:que tinha notado que ele tambm a estava notando). Luca estava sentado ao seu lado na sala de aula, desenhando alguma coisana mesa com um canivete suo. E assim ele ficou por alguns minutos,esculpindo a madeira, segurando o canivete em uma das mos e cobrindo a sua"obra" com a outra, o cho ao redor dos seus ps cheio de rebarbas de madeira.Quando terminou, ele levantou um pouco a mo, permitindo que apenas Elissapudesse ver o que havia ali: Isso aqui um saco, estava escrito. Voc no preferiaficar chapada? Luca era o tipo de garoto que toda menina da Rossmore High School queriaconhecer, pelo menos para poder dizer que conhecia. Ningum podia negar queele era atraente, com bceps definidos e o cabelo loiro bagunado caindo sobreos olhos verdes. Sempre estava vestindo jeans detonados e uma camiseta cinza. 10Todo mundo sabia que ele fazia "coisas" fumava maconha, bebia, matavaaula, fazia sexo. Estar com ele queria dizer ser arrancada do mundinho tediosode todo dia, para explorar um outro mundo, um lugar onde tudo era maisexcitante, mais perigoso. Elissa continuou caminhando entre as rvores, enquanto se lembrava dasmos de Luca tocando sua pele, da maneira como ele segurava seu rostoenquanto beijava apaixonadamente sua boca. Depois de trs meses, ela chegouem casa uma noite e encontrou Sarah cansada e com os olhos vermelhos,sentada mesa da cozinha. Ns estamos de mudana, ela decretou, nem umpouco disposta a conversar a respeito. As duas brigaram at trs e meia damanh, com Sarah dizendo que elas precisavam de um recomeo, queRossmore no era mais um bom lugar para tocarem suas vidas. Elissa nopreferia morar em uma casa maior e frequentar uma escola pblica melhor?Mudar de cidade aumentaria as chances de ela conseguir entrar em uma boafaculdade. Mas Elissa sabia o que Sarah estava prevendo que ela poderia facilmenteseguir o seu caminho: grvida aos dezessete, casada aos dezenove, com umafilha que mais parecia sua irm. Ela queria dizer que isso era impossvel, que ascoisas com Luca nunca foram srias de verdade, mas a verdade que temiaficar sabendo de algo que sempre suspeitou que com Sarah e seu pai as coisasno eram srias tambm. Que aqueles primeiros anos, quando eles eram tojovens e quando sua me ficou grvida, tinham sido um grande erro. Ento ela aceitou a mudana sem discutir mais. No queria repetir os errosde sua me. O cu estava escuro. Elissa olhou para trs de repente, se dando conta decomo estava caminhando rpido. Ela tinha avanado um bocado no meio dobosque e todas as rvores pareciam iguais. Os pssaros estavam quietos. O somde um galho estalando chamou sua ateno. Olhou ao redor, tentandodistinguir as formas na escurido. Os pelos do seu brao se arrepiaram. Elavasculhou o horizonte, procurando por algum sinal que a fizesse lembrar deque lado tinha vindo, at que, finalmente, conseguiu enxergar, ao longe, suame na janela da cozinha. Imediatamente, comeou a correr para l o maisrpido possvel, sem saber direito o que a tinha assustado tanto. 11CAPITULO 2 Olha a frente! gritou a garota morena vestindo um biquni roxo, antes de saircorrendo pelo ptio de tijolos e mergulhar na piscina. Uma onda enormecresceu ao seu redor, agitando a superfcie cristalina da gua. A casa dosReynolds era o triplo do tamanho da casa de Elissa e ainda tinha piscina comcascata e um ofur. Essa gente tinha dinheiro. Alguns garotos e garotas estavamestirados ao redor da piscina tomando banho de sol, enquanto outrosbrincavam de Marco Polo na parte rasa. A certa altura, Bonnie Reynolds arrancou Elissa de perto de Sarah, insistindoque ela tinha que conhecer seu filho. Veja, querida. Aquele ali o Tyler disse, toda sorridente, apontando paraum garoto musculoso, que vestia uma sunga verde fosforescente. Ele podemostrar tudo por aqui, se voc quiser. Tyler o capito da equipe de natao,mesmo sendo o mais novo de todos. Ele e os amigos se envolveram em umprojeto de combate fome depois das aulas e conseguiram arrecadar mildlares ano passado. Enquanto falava, ela alisava os cabelos como se quisessemostrar as luzes recm-feitas e as unhas perfeitamente tratadas no salo. Odinheiro foi para a frica, ou ser que foi para o Tibete? No sei ao certo, mastenho certeza que foi para um desses lugares distantes, onde as coitadas daspessoas no tm nem o que comer. Elissa balanou a cabea, fingindo prestar ateno ao que ela dizia, masestava muito mais interessada nos cheeseburguers chiando na grelha ou na bolainflvel da piscina viajando por cima de mesa de piquenique. Ela s estava coma Sra. Reynolds havia uns trs minutos, e j no aguentava mais aquela mulher.Era o tipo de me que acha que tudo que o filho faz (seja amarrar o cadaro dotnis, arrumar a prpria cama ou assoar o nariz) digno de aplausos. Elissaestava prestes a se libertar dela, quando Tyler o homem, o mito, a lenda empessoa veio na direo delas. Ele lanou um olhar para a me e,imediatamente, ela saiu andando na direo dos outros adultos. Foi mal pela minha me disse ele, calmamente. No preciso nemadivinhar, ela partiu para cima de voc com o pacote completo, no foi? perguntou, secando as costas com a toalha e sacudindo os cabelos molhados. Fica tranquilo, as mes gostam mesmo de encher a bola dos filhos. Elissa sorriu, contente por Tyler parecer ser quase normal pelo menos. Eutenho certeza que voc o maior perdedor da cidade. Tyler riu uma risada real e autntica , depois a levou at mesa do buffet.Entre as guloseimas, um prato de salada de repolho, outro de batatas fritas, 12uma bandeja de cachorros-quentes e a salada de batata com aparncia esquisitaque Sarah tinha preparado. Seu maior erro tinha sido colocar picles no meio,mesmo Elissa a tendo avisado de que essa era uma pssima ideia. Tyler pegou dois pratos de plstico e entregou um deles a Elissa. Os dois seserviram, depois se sentaram perto dos adultos. Atrs de seu prato de salada,Bonnie puxou conversa novamente. E ento, o que vocs esto achando da nova vizinhana? ela perguntou,olhando para Sarah, depois para Elissa. Aposto que vocs j conheceram o Ryan Jacobsen Tyler completou, comironia na voz. Sua me lhe lanou um olhar estranho, mas ele ignorou. Ainda no... Elissa respondeu, um pouco confusa. O sobrenome lhe erafamiliar os Jacobsen eram o casal que tinha sido assassinado pela prpria filhae derrubado o preo dos imveis na regio. Mas ela no sabia nada sobre umparente que vivia na cidade. Ser que ele vem aqui hoje? Aqui? Bonnie falou assustada, sua voz soando ainda mais aguda. Ben Reynolds, o marido de Bonnie, alisou os cabelos castanhos e finos. Caramba, querida ele brincou , voc se esqueceu de mandar o convite atempo para a casa dos Jacobsen? A mesa toda caiu na risada. Um casal ao lado de Sarah quase cuspiu ohambrguer todo no cho. Meu Deus do cu, deixa disso, Ben! Bonnie disse com um sorriso amarelono rosto. Ento se dirigiu a Sarah. Ryan Jacobsen o filho do casal que foiassassinado. Ele ainda vive na casa, mas no costuma sair muito de l. Algum devia tocar fogo naquela porcaria de casa uma mulher comculos de sol enormes se manifestou. No fale desse jeito, Jenny Bonnie sussurrou. A mulher simplesmente deu de ombros. Eu no disse que o prprio Ryan Jacobsen devia queimar junto com ela.Mas, c entre ns. Por que o garoto ainda mora naquele lugar? Ben Reynolds balanou a cabea, concordando. 13 Ele est derrubando o valor de todos os imveis do entorno. A prefeiturabem que tentou comprar a casa. A melhor coisa a fazer seria derrubar aconstruo e doar logo o terreno para o parque estadual. Elissa deu uma olhada para Sarah. O que aquela conversa queria dizer,afinal? Ser que elas tambm eram consideradas vizinhas indesejadas por eles?A me solteira e sua filha, atradas por um aluguel bem abaixo do preo. Acaminhonete velha parada na frente da casa. Sarah colocou a mo na coxa deElissa, sentindo que devia dizer alguma coisa. mesmo muito estranho que ele queira continuar morando ali ela tentouentrar na conversa. A mulher tirou os culos, revelando a maquiagem carregada ao redor dosolhos. Pois . A casa onde os pais foram assassinados. Cruzes. Na certa ele aindamais pirado do que a irm. Elissa se agitou no banco, desconfortvel por estar escutando aquilo. Quemaquela gente pensava que era para julgar Ryan Jacobsen? Quem eram eles parajulgar ela e sua me? Eu consigo pensar em coisas bem mais malucas do que viver na casa ondevoc cresceu. Mas, afinal de contas, o que exatamente aconteceu? A mesa ficou em silncio. Ento Tyler descansou seu garfo na beirada doprato. Foi a filha dos Jacobsen, Carrie Anne, quem os matou. Essa parte eu conheo Elissa disse, tentando no olhar ao redor. Masonde Ryan estava quando aconteceu? Ryan no morava aqui. Ele vivia com uma tia, em outra cidade. Tylerjogou a cabea para o lado, tirando o cabelo da testa. E o que aconteceu com Carrie Anne depois do assassinato? Elissaperguntou, colocando o prato de lado, sem o menor apetite. O olhar dela cruzou com o do Sr. Reynolds. As buscas foram incansveis. Ao que parece, ela se afogou perto darepresa. 14 Mas ningum nunca encontrou o corpo Tyler acrescentou. Tem genteque acha que ela ainda vive no bosque. Bonnie levantou do banco e jogou seu prato no lixo. Por favor, Tyler, no comece com essa conversa. Ignore isso, querida. suma lenda urbana que ele e os amigos gostam de alimentar. No h a menor chance da garota ter conseguido sobreviver esse tempotodo na floresta Jenny disse, se ocupando em limpar as lentes dos culosescuros com a ponta da polo rosa que usava. As pedras na lateral da armaobrilhavam sob o sol. Ben concordou com a cabea. Ela sofreu um acidente em casa. Caiu do balano e nunca mais serecuperou. Aquela menina vivia fora de controle. Tinhas umas criseshorrorosas. Passava horas gritando. A vizinhana inteira era obrigada a escutaraquilo. E por que no a internaram? Elissa perguntou. Supostamente, eles cuidavam dela em casa Ben Reynolds explicou.Bonnie fez um gesto para a empregada que aguardava perto da porta dosfundos, apontando para os pratos e copos vazios. Jenny deixou escapar uma risadinha sarcstica. Cuidavam dela? Eles basicamente a mantinham presa na prpria casa,amarrada ao p da cama. Mas chega dessa histria, no mesmo? Bonnie disse, interrompendo. Que tal mudar um pouco de assunto? Algo mais agradvel, talvez. Aos poucos, as pessoas ao redor da mesa foram entrando em assuntosdiferentes, algumas conversando sobre o jogo de basquete da noite passada,outras se perguntando quando o restaurante em construo no fim da ruaprincipal ficaria pronto. Elissa ficou observando sua me brincar com os restosde seu hambrguer no prato. Ainda havia tantas questes sobre o que tinhaacontecido naquela casa, sobre o que tinha acontecido quela garota. Mas Elissamanteve apenas duas em mente: quem era Ryan Jacobsen e como ele conseguiacontinuar morando ali, passando os dias e as noites sozinho. 15O Sol estava se pondo quando elas comearam a caminhar pela rua, de voltapara casa. Atrs das duas, o som da festa ia diminuindo. Sarah apertou a tigelavazia contra o peito. Aquele papo dos Jacobsen no te deixou um pouco assustada? finalmenteperguntou, olhando para Elissa. Com certeza. Essa vizinhana esquisita. Ns devamos queimar aquela casa ela disse, imitando o jeito pomposo de Jenny. Mas que maravilha. Eu fico meperguntando onde eles guardam as tochas e as forquilhas para a caa sbruxas... Sarah ficou em silncio. Elissa sabia que ela no tinha como negar. verdadeque as casas daquele bairro eram finas, mas os moradores no eram nem umpouco. Ela no queria nem imaginar o que eles estavam falando agora mesmosobre as novas vizinhas a me solteira e sua filha desbocada que alugaram altima casa da rua. Eles ficariam horrorizados se soubessem que Sarah eraapenas uma tcnica de raios-X no hospital. Na certa, para aquela gente, se vocno tivesse um Dr. ou um PhD ao lado do seu nome, voc merecia a morte. Mesmo assim, Tyler pareceu ser um garoto bacana Sarah arriscou. Eu ainda no tenho muita certeza disso. As duas continuaram andando, subindo o longo caminho que levava doporto entrada da casa. O bosque estava escuro. Enquanto Sarah subia aescadaria da frente, Elissa parou no gramado, olhando alm das rvores. Voc acha mesmo que algum seria capaz de viver ali? perguntou. Sarah se virou e seu olhar seguiu o de Elissa. No ela disse calmamente. Eu acho que no. Ento entrou na casa eacendeu as luzes. Elissa continuou do lado de fora, observando o bosque escuro. Ela tinha aestranha sensao de que algum a estava observando de volta. Mais cedo,tinha sentido a mesma coisa, quando levou as almofadas para a varanda dosfundos e as arrumou sobre as cadeiras. Seu olhar foi atrado por uma rvoreparticular, mais precisamente por uma sombra atrs dela. Intrigada, ela piscouvrias vezes, imaginando que talvez aquela sombra fosse iluso de tica. Entose virou e voltou para casa, mas a sensao estranha persistiu, mesmo depois dej estar l dentro, com a porta fechada e trancada. 16CAPITULO 3Elissa saiu do carro de Tyler e olhou para cima, observando a manso suafrente. A verdade que no queria ter ido at l. Mais cedo, assim que saiu daaula, ela tinha visto a chamada perdida em seu telefone e ligado para Sarah,com esperana de confirmar os planos que as duas tinham feito para mais tarde era a primeira vez que passariam algum tempo juntas desde... bom, ela nolembrava desde quando isso no acontecia. O combinado era Elissa fazer a suapipoca temperada especial (que era mesmo uma delcia, mas no deixava ohlito muito agradvel), para as duas comerem assistindo a filmes em preto ebranco no TCM. Mas o motivo pelo qual Sarah havia ligado mais cedo erajustamente para dizer que seria obrigada a cancelar. Ela bem que tentou seexplicar dizendo que teria que trabalhar no turno da noite no hospital e que notinha como negar, j que era nova no emprego. Elissa no conseguiu evitar ficarchateada, afinal, de nada adiantava elas terem se mudado para to longe secontinuariam a ser as mesmas que eram em Chicago. Qual era o sentido deSarah ter feito o treinamento para ser tcnica em raio-X, se ia trabalhar nomesmo horrio que trabalhava no antigo emprego de garonete? Tyler subiu a escadaria da frente e entrou na casa, fazendo um sinal paraElissa segui-lo. Era a reunio do Fundo de Combate Fome. Quanta diverso.Ele a convidou depois de encontr-la sozinha no ptio da escola. Tinha sido umdia daqueles sozinha na sala de aula, mexendo no notebook; sozinha beirada quadra, esperando a aula de educao fsica comear; sozinha no armrio eandando pelos corredores; sozinha, sozinha e sozinha. A ideia de ter que voltarpara a casa vazia e continuar sozinha foi o que a levou quela manso. Isso e ofato de ela ser obrigada a admitir que Tyler era, pelo menos, um pouquinhoatraente (de um jeito bem bvio, tipo esses caras musculosos, em catlogos deroupa masculina). Elissa obrigou seu corpo a segui-lo at a enorme cozinha da casa de CaitlinAberdeen. Alguns garotos jogavam video game na sala de estar, enquanto o restodo pessoal tomava uma bebida rosa em copos de plstico. O ar cheirava amaconha. esse aqui o seu encontro contra a fome? Elissa perguntou, erguendo assobrancelhas. Pode crer que Tyler respondeu, cumprimentando um garoto com osolhos vermelhos. Ano passado ns conseguimos vinte mil dlares para oprojeto Stop Hunger Now. Eles vieram direto do carto de crdito do meu pai.Bem mais prtico do que ter que incomodar as pessoas no estacionamento dosupermercado, no mesmo? Assim a gente pode fazer festa sem ningumencher o saco e isso ainda conta como atividade extracurricular na escola. 17 Elissa olhou para o lado, sem saber direito se estava enojada ouimpressionada com aquilo. Eu acho que preciso algum talento, mesmo para isso... ela admitiu,observando a festa. Talvez os princpios morais de Tyler fossem frouxos, talvezele fosse como todos os outros garotos ricos que ela conheceu, mas isso aindaera bem melhor do que ficar sozinha em casa, imaginando se uma assassinainsana no estava vagando pelo bosque. Valeu Tyler respondeu, fazendo uma reverncia, como se estivesserecebendo aplausos de uma plateia. Ento colocou um pouco de vodka elimonada rosa em um copo e o chacoalhou cobrindo a boca com uma das mos. Agora hora de te fazer entrar no clima da reunio.A cabea de Elissa j estava bem leve por causa da bebida. Com os olhosvidrados na tela da TV, ela afundou o polegar esquerdo no controle, tentandodesviar do carro de Tyler, mas acabou batendo na proteo de metal beira dapista. Cansada do video game, olhou ao redor e se deu conta de que a "reunio"agora era entre duplas. No canto da sala, uma garota loira vestindo um topcurto, estava enroscada em um carinha com dreads no cabelo, enquanto, navaranda, outro casal conversava animadamente e soltava risadinhas. Surpresa,Elissa se levantou na mesma hora, deixando o controle cair no cho. Acho que eu perdi mais uma vez disse, reparando nos olhos vermelhosde Tyler e na maneira como ele estava largado sobre o brao do sof. Hora defazer um pit-stop, preciso ir ao banheiro. Se segurando no corrimo, ela subiu as escadas devagar. Ao chegar aobanheiro, se deparou com uma ruiva debruada sobre a privada, vomitandocomo se no houvesse amanh. Depois de terminar, a garota olhou para cima eviu Elissa. Foi mal ela disse sorrindo e um pouco sem graa. Sua camiseta tinha umaenorme mancha na frente, provavelmente por causa de alguma bebidaderramada. Tudo bem a? Voc precisa de uma carona pra casa ou algo do tipo? Elissa perguntou, se abaixando perto dela. Eu s preciso descansar um pouco a garota respondeu, limpando oscantos da boca com os dedos, antes de deixar o corpo cair sobre o fino tapete dobanheiro. Elissa a encarou por alguns segundos, tentando descobrir o quanto ela estavabbada. Na verdade, aquela garota aparentava estar em melhores condies do 18que a maior parte das pessoas na festa, e o que quer que ela tivesse bebido jtinha saltado para fora do seu corpo a esta altura e estava boiando dentro daprivada. Elissa virou a cabea da garota para o lado e colocou uma toalhadobrada embaixo, como se fosse um travesseiro, tentando deix-la toconfortvel quanto possvel. Em vinte minutos, voltaria para conferir como acoitada estava. At l, sua misso era encontrar outro banheiro. De volta ao corredor, caminhou atravs de uma poro de portas, seperguntando quantos quartos uma casa precisava ter. Caitlin no era filhanica? Decidiu experimentar uma das portas e acabou entrando na suteprincipal, mas antes que conseguisse alcanar o banheiro algum a agarrou portrs. Ei! ela protestou e depois viu o rosto de Tyler. Cai fora, Tyler, voc est chapado demais. Elissa se contorceu e conseguiuse libertar por um momento dos braos dele, mas Tyler a puxou novamente e ajogou sobre a cama king-size, depois tropeou e desabou no cho. Qual , Elissa? Cad o seu esprito humanitrio? Ele levantou e partiupara cima dela rapidamente, a imobilizando na cama. Ento agarrou seu seiodireito e o apertou com fora. Ah... agora sim! A est ele! disse, dandorisada. Elissa se virou rapidamente e o acertou em cheio com uma cotovelada.Depois levantou da cama e correu para a porta, tirando o telefone celular dobolso. Hummm... a garotinha vai ligar pra mame, vai? ela escutou Tyler dizer,em tom de provocao. Isso mesmo, eu preciso de uma carona pra ir embora daqui, seu babaca! ela gritou de volta. Nisso, ele alcanou Elissa e, estendendo o brao por cima doseu ombro, arrancou o telefone de sua mo. Os dois estavam bem em frente escadaria agora. Algumas pessoas olharam para cima da sala de estar, tentandover o que estava acontecendo. Deixa de ser infantil e me devolve essa porcariade telefone, Tyler. Agora mesmo! Gargalhando, ele ergueu o brao o mais alto possvel e a provocou: Vocquer? Ento vai ter que pegar, queridinha. Havia um sorriso doentio em seurosto e, nessa hora, Elissa percebeu que o odiava com todas as foras. Fossemquais fossem as primeiras impresses que havia tido dele que era um poucocheio de si, que no passava de um mauricinho mimado e convencido elaseram muito melhores do que aquilo que ela pensava agora. A verdade queElissa nunca tinha se sentido to repelida por algum em toda a sua vida. 19 Ela o empurrou com toda fora contra a parede e, cheia de raiva, deu umpulo que no conseguiria dar se no fosse pela adrenalina do momento,conseguindo agarrar o celular. Foi ao puxar o telefone com toda fora que seubrao acertou uma luminria antiga que estava logo atrs. Elissa s teve tempode se virar e assisti-la rolando escada abaixo, se estilhaando mais e mais a cadadegrau. No mesmo instante, Tyler partiu para cima de Elissa novamente. Mas, dessavez, ela o acertou com uma joelhada bem nas bolas, o que o fez curvar-seimediatamente de dor. A esta altura, uma pequena multido estava amontoadal em baixo, assistindo luta. Caitlin, uma garota baixinha, com o narizevidentemente refeito pelas mos hbeis de algum cirurgio plstico, abriuespao entre os curiosos e se deparou com a luminria destroada. Ah, meu Deus do cu! Meu pai vai me matar ela gritou com sua vozesganiada, segurando um dos poucos cacos maiores que ainda sobravam. Quem foi que fez isso? Antes mesmo que ela terminasse a frase, Tyler apontou para Elissa, queainda tentou se defender. Desculpa. Foi ele quem... J pra fora da minha casa, sua... Caitlin gritou. Todos os olhos ao redor searregalaram e algumas risadas foram ouvidas. T esperando o qu? Eu disseagora! Elissa queria mais era explodir de raiva e dizer umas belas verdades paraaquela gente, mas respirou fundo, desceu as escadas, passou no meio da plateiade cabea erguida e pegou sua mochila que estava atrs do sof. Sem problemas disse. Eu bem que estava querendo tomar um pouco dear fresco. Ento bateu a porta atrs de si e saiu andando pelo enorme gramadosem olhar para trs. 20CAPITULO 4Mas que droga, Elissa pensou. A ideia de mudar para c era justamente me livrardesse tipo de lixo. Do lado de fora, a rua estava na mais absoluta escurido. Elamal conseguia ver alm das rvores. Desanimada, tirou o celular do bolso ecomeou a navegar pela lista de contatos. Ningum para quem pudesse ligar.Cada um daqueles nomes era de algum da sua antiga escola, do seu antigogrupo de amigos, de sua antiga vida. A essa hora, Sarah ainda estava presa nohospital. Sua casa estava a quilmetros de distncia e, dentro da festa, no haviasequer uma pessoa sbria o bastante para lhe dar uma carona no que elaestivesse disposta a implorar. Sem opo, ela continuou a caminhar na direode casa. As primeiras gotas de chuva caram sobre seus ombros descobertos. Elissa ainda no tinha caminhado nem 20 metros, quando um carro passou atoda velocidade, espirrando um fino jato de lama em suas pernas. Sem parar deandar, ela olhou para o celular novamente e passou devagar pelo nome deSarah, pensando se era uma boa ideia tentar ligar agora. Afinal, no foi sua memesma quem disse que ela podia ligar sempre que estivesse com problemas? Eno era um problema de verdade estar ali sozinha naquela rua mal iluminada,com um carro estranho diminuindo a velocidade logo adiante? O carro parou alguns metros frente. A chuva comeou a engrossar,molhando a blusinha que Elissa vestia. Ento a luz de r do carro se acendeu eele andou para trs cantando pneu. A janela do passageiro se abriu e omotorista se inclinou em sua direo. Demorou um pouco para Elissa perceberque ele era um garoto apenas alguns anos mais velho do que ela, com o cabeloloiro, curto e oleoso, e olhos castanhos que se arregalavam para enxerg-la naescurido. Voc precisa de uma carona? ele perguntou. Elissa se virou, dando um passo para trs. No tinha passado por sua cabeapedir carona. Afinal, no parecia ser uma boa ideia entrar sozinha no carro deum estranho. No, tudo bem. Moro aqui perto. Obrigada, mesmo assim elapraticamente teve que gritar para ser escutada na chuva, tentando soarconvincente. No mora, no o motorista gritou de volta, pela janela aberta. Vocacabou de se mudar para a Sycamore Lane. Sou seu vizinho. 21 Elissa olhou bem para o carro, reparando na pilha de livros sobre o banco dopassageiro, na camisa de flanela daquele garoto e na barba crescendo em seuqueixo, como se ele tivesse se barbeado pela ltima vez havia um ou dois dias.Ele parecia to... normal. Voc o Ryan Jacobsen? ela perguntou. O garoto encostou o carro. Como se no soubesse bem o que fazer, passou amo na testa, tentando esconder o sorriso em seus lbios. Foi mal... disse, ainda meio sorrindo. Eu no queria assustar voc. Qual o seu nome? Elissa olhou para o celular, sem saber bem se devia apertar o send. Se elaligasse, sua me chegaria em vinte minutos. De todo mundo naquela cidadedesconhecida, no era justamente aquele garoto que morava na mesma casaem que seus pais tinham sido assassinados a ltima pessoa de quem ela deviaaceitar uma carona? Eu me chamo Elissa a garota respondeu. Mas no ligo de ir andando.De verdade. Valeu a inteno, mesmo assim. At mais. Elissa comeou a se afastar e o carro seguiu ao seu lado. Ryan deu risada. Voc est a uns dez quilmetros de casa. Se eu fosse voc aceitava logo aminha oferta. Ento, ela observou o longo e sinuoso caminho sua frente. No mesmoinstante, um raio cortou o cu, seguido de um trovo ensurdecedor, e a chuvacomeou a cair com ainda mais fora. Em pouqussimos segundos, Elissa estavacompletamente encharcada. Ela olhou para dentro do carro, onde Ryan ainda aesperava. Ele a olhava nos olhos, com a cabea levemente inclinada para o lado,como que dizendo: isso mesmo? Voc quer MESMO seguir andando? Elissa apertou as mos com fora, morrendo de raiva de Sarah que tinha sidoobrigada a trabalhar noite, de Tyler que a tinha atacado daquele jeito e deCaitlin que a tinha expulsado da festa injustamente. E agora ela estava ali,debaixo da maior chuva, tentando decidir se pegava ou no carona com umrfo misterioso e solitrio. Sem pensar muito, Elissa abriu a porta e pulou paradentro do carro, tirando do caminho os livros que estavam sobre o banco dopassageiro. Depois dessa conversa inicial, os dois rodaram em silncio durante algumtempo, escutando apenas a trilha sonora da chuva caindo sobre a lataria docarro e dos limpadores de para-brisa indo e voltando no vidro da frente. Ocarro era bem velho, mas at que era legal, com grandes bancos de couro e umpainel estiloso. Algumas fitas cassete estavam jogadas no cho, dando a 22impresso de que ali dentro ainda era 1989. Um medalho dourado ficavapendurado no espelho retrovisor e uma lancheira amarela estava no cho, aolado dos ps de Elissa. Ao lado de Ryan, havia alguns romances de Hemingway[1], caindo para forade uma mochila, junto com um enorme livro de Biologia. Durante o tempo queficaram em silncio, Elissa o observou, estudando seus pequenos olhoscastanhos e seus traos bem marcados. Ele no devia ter mais que vinte umanos. Enquanto ela o observava, ele mantinha os olhos na pista, sem dizer umapalavra. Ser que os Reynolds tinham razo? Ser que havia mesmo algo deerrado com aquele garoto? Afinal, como ele conseguia viver naquela casadecadente, completamente sozinho, sabendo que seus pais tinham sidoassassinados ali mesmo? O silncio j estava insuportvel. O limpador de para-brisa rangendo, para le para c, a chuva forte caindo lateralmente, acertando a lataria do carro comfora. Depois de alguns minutos, Elissa no conseguiu mais se segurar. Por que voc ainda mora naquela casa? Ryan soltou um longo suspiro que fez com que Elissa se sentisse culpada,imediatamente. Desculpe. Eu acho que essa no foi uma boa pergunta ela tentouremendar a situao, esperando que eles pudessem apag-la da memria efingir que nada tinha acontecido. Voc s disse o que estava pensando Ryan disse, parecendo compreend-la. No tem problema. s nisso que as pessoas conseguem pensar quando euestou por perto. A verdade que minha famlia me mandou para longe quandoeu tinha sete anos e, no incio, aquela casa era tudo o que tinha me restadodeles. Mas, para ser sincero, morar l tem sido bem difcil. Eu decidi que voufazer uma reforma e depois vou vender a casa. Elissa passou nervosamente os dedos pelo banco, afundando-os no couro.Por que raios ela teve que tocar nesse assunto? H um minuto eles estavamandando no mais absoluto silncio, mas no instante seguinte estavamconversando sobre como os pais dele o tinham mandado embora. Pelo menosela se sentiu um pouco melhor de saber que ele no gostava de viver ali. Enfim,ele no era o estranho solitrio de que os Reynolds tinham falado no outro dia,que vivia espreita por a, dormindo na cama onde seu pai tinha sidoespancado at a morte.[1] Ernest Hemingway, escritor norte-americano (1899-1961), autor, por exemplo, de "Por quem os sinos dobram" (1940) e "Ovelho e o mar" (1952). (N.T.) 23 Ryan virou o rosto para ela e sorriu. Eu escutei voc cantar hoje cedo. Tenho que admitir que gostei do queouvi. Voc canta em alguma banda ou algo assim? Elissa suspirou aliviada, satisfeita por estar tudo bem de novo. Quando elesorriu, ela o viu com outros olhos ele parecia mais gentil, mais doce. Mais ou menos. Eu costumava tocar bastante violo quando morava emChicago explicou. Meu pai tambm tem uma banda, embora eu dificilmenteo veja. Ele sempre est viajando por a, fazendo shows e turns. Ento elacomeou a mexer nos cassetes que estavam no console central do carro, para verse tinha algo que valia a pena escutar. Cara, isso aqui velho mesmo! ela riu, olhando as etiquetas gastas dasfitas, a maior parte de bandas dos anos 80. Voc precisa renovar isso aqui,urgentemente. Ryan sorriu. Esse carro era do meu pai. Tudo a foi dele. Dizendo isso, ele a olhoudemoradamente, fazendo Elissa se lembrar da maneira como Luca costumavaolh-la durante os ltimos meses. Os olhos dele passearam pelos seus lbios epela blusinha ensopada, depois pararam nos cachos de cabelo loiro grudadosem suas bochechas por causa da gua. E ento? Voc e sua me vieram para Woodshire para ficar? elefinalmente perguntou. Elissa desviou o olhar, notando o chaveiro pendurado na ignio mais umavelharia: uma bola oito mgica, dessas que respondem s suas perguntasquando voc chacoalha. Elissa esticou o brao e a alcanou, sua mo pairando apoucos centmetros da perna direita de Ryan. Ento ela a virou e leu surpresa oque estava escrito: Tudo indica que sim leu em voz alta, sorrindo. Ryan deu risada e, pela primeira vez, ela imaginou se ele no tinha algo deespecial, esse garoto que todos descreviam como se fosse o maior esquisito.Enquanto dirigia, ele continuou alternando o olhar entre Elissa e a pista, atfinalmente parar o carro em frente casa dela. Sem saber muito bem o quefazer, os dois ficaram ali sentados imveis por alguns instantes, em silncio. Esse lugar to quieto ela disse, abaixando o vidro para deixar um poucode ar fresco entrar. Enfim a chuva tinha parado. Ryan desligou os faris e elesficaram sozinhos na escurido. bem diferente do lugar de onde eu venho. ainda mais quieto ao amanhecer Ryan disse, se arrumando no banco echegando um pouco mais perto de Elissa. 24 Mas o que voc faz acordado to cedo? Eu sento no quintal e s escrevo. Histrias na maioria. Parece mais fcil.Gosto do amanhecer porque ainda esto todos dormindo. como se asmelhores ideias estivessem pairando por a, sem que ningum as tivessepescado ainda. Ele se virou para ela e seus olhos se encontraram. Vocentende o que eu digo? Novamente, Ryan a estava estudando primeiro seus olhos desceram paraos ombros descobertos de Elissa, depois para a sua blusa, o tecido molhadocolado na pele. A vida melhor quando o resto do mundo est dormindo ela disse. Entoolhou para baixo e viu que os dedos dos dois estavam a poucos centmetros dedistncia. Valeu pela carona, Ryan. De nada ele disse suavemente, entregando a ela a mochila. Elissacaminhou pelo gramado da frente de sua casa, se sentindo mais leve do quetinha se sentido o dia todo. Tudo o que tinha acontecido na casa da Caitlinparecia menos doloroso agora. Ryan Jacobsen era normal, gentil... at mesmoum pouco sexy. Ser que aquilo era coisa da cabea dela a maneira como ele aolhava, parecendo que queria devor-la? Antes de Elissa sair do carro, ele aestava encarando de um jeito diferente, com aqueles olhos castanhos profundos,cada vez se aproximando mais, os rostos dos dois a apenas um palmo dedistncia. Enquanto subia as escadas da frente, Elissa olhou para trs uma ltima vez.Ryan ainda estava l, inclinado sobre o banco do passageiro, observandoenquanto ela entrava em casa. No, ela pensou, enquanto um sorriso tomavaconta de seus lbios.Definitivamente no imaginei aquele olhar.Dentro de casa, tudo estava em silncio. Elissa deixou a mochila no cho e foidireto para a cozinha, atrs de algo para comer. A geladeira estavapraticamente vazia. As opes eram o resto do espaguete do outro dia, um potede picles fechado, algumas fatias de queijo e uma bandeja de algo que ela notinha muita certeza do que era alguma coisa entre salame e rosbife. Elissaescolheu o queijo e enrolou as fatias, como costumava fazer quando era criana.Mas mesmo comendo alguma coisa, ela ainda se sentia vazia. Seu estmagoestava agitado. Sem falar na dor de cabea, uma pequena recordao da festa no apenas da vodca com limonada, mas tambm, e principalmente, doincidente com Tyler. Ela se sentia enjoada s de pensar nas mos dele tocando seu corpo, namaneira como ele havia tentado imobiliz-la na cama. Tyler tinha tanta certeza 25que ela o queria, que no estava nem um pouco preocupado se teria que obrig-la a perceber isso. Quantas outras garotas j tinham passado pela mesma coisacom aquele babaca? Quantas delas ser que tinham tentado resistir? Elissa olhou para o relgio: 21h53. Em menos de doze horas ela estaria naescola novamente, completamente sozinha, tentando puxar conversa com agarota gtica que sentava ao seu lado na aula de Matemtica. Se hoje j tinhasido um dia difcil, amanh seria ainda pior. Agora ela teria que fazer de tudopara evitar Caitlin "j-pra-fora-da-minha-casa" Aberdeen e Tyler com seugrupo de amigos chapados. Decepcionada, Elissa se lembrou da imagem detoda aquela gente amontoada na escada, dando risada enquanto ela tentavatirar seu telefone das mos de Tyler. Ainda dava para sentir aqueles olharestodos a perseguindo. Ela ainda estava pensando em Tyler e remoendo aquilo tudo, quando suame desceu as escadas. O som dos passos de Sarah a assustou. Eu no sabia que voc j estava em casa Elissa disse. Acho que noreparei no carro l fora. Sarah chegou perto dela, colocando a mo em seu ombro. Mais uma vantagem da nossa nova casa, querida: a garagem. Mas medesculpe, eu no queria assustar voc. No... tudo bem Elissa respondeu, no se sentindo nem um pouco bem,na verdade. Mesmo a leveza provocada pelo encontro inesperado com RyanJacobsen tinha desaparecido, dando lugar a uma sensao de pavor. Foi a me do Tyler quem te trouxe para casa? Eu queria dar um oi para ela.Sarah pegou uma fatia de queijo enrolada e deu uma mordida. No... Elissa olhou para o lado, se perguntando se devia contar a Sarahtudo que tinha acontecido. Ryan Jacobsen me deu uma carona. Sarah no esperava por aquilo, uma expresso sria tomou conta de seurosto. E, por acaso, a senhorita gostaria de me contar como acabou pegandocarona justo com Ryan Jacobsen? No ela no ia contar a Sarah o que tinha acontecido mais cedo. Sua memal conseguia escutar o nome Ryan Jacobsen sem sair do srio. Como ela sesentiria descobrindo que Tyler Reynolds, o garoto perfeito, presidente doFundo de Combate Fome, no passava de um estuprador metido a gal? 26 Ningum queria me dar carona, ento resolvi vir a p. Ele me viu na rua ese ofereceu para me trazer. Fim da histria. Sarah cruzou os braos. E voc simplesmente foi entrando no carro de um estranho qualquer? Aessa hora da noite? Por que voc no me ligou? Eu podia ter ido at l. T certo Elissa murmurou. Quando foi que Sarah j tinha ido busc-la emalgum lugar antes? Ela sabia muito bem o que estava acontecendo. Era algo na maneira comoSarah tinha dito "um estranho qualquer". Ela tinha se voltado contra RyanJacobsen antes mesmo de conhec-lo. Tinha engolido cada palavra dosReynolds, tinha comprado todo aquele papo sobre Ryan no passar de umdesajustado. Mas o que que eles sabiam? Quem eram eles para falar qualquercoisa a respeito de valores familiares? Eles estavam ajudando o filho apromover um projeto de caridade que no passava de uma desculpa para fazerfesta e usar drogas. E ento... Sarah tentou mudar de assunto. Como foi a reunio? Umpequeno sorriso se formou em seus lbios. Elissa olhou bem nos olhos da me. Ela queria dizer a verdade. Seria muitomais fcil contar tudo nos mnimos detalhes. Mas Sarah estava to esperanosa,to determinada, que ela no quis arruinar seu sonho de que aquela cidade eraa soluo para todos os problemas. Pelo menos no at que precisasse fazerisso... Aquele Tyler um verdadeiro babaca foi tudo o que disse. S porque ele vai bem na escola e quer entrar em uma boa faculdade? Sarah lanou um olhar irnico. Agora, Elissa queria gritar. Ela j tinha passado o dia todo sozinha na escola,depois tinha sido atacada por um idiota chapado e expulsa de uma festa qualno queria ter ido desde o princpio. S o que faltava agora era ser obrigada aescutar um sermo de sua prpria me. Ela no aguentava mais aquilo o diatinha que acabar de uma vez. A nica coisa boa sobre ele, na verdade, que jestava quase no final. Elissa se levantou e passou direto por Sarah, sem se virar para trs. Tudo bem disse, olhando para o lado, enquanto as lgrimas escorriamdos seus olhos. Por hoje chega. 27CAPITULO 5Na hora do intervalo na escola, Elissa caminhava no ptio gramado,procurando entre as longas mesas de piquenique um lugar para se sentar.Primeiro, avistou a mesa do pessoal tecnolgico, com seus enormes fones deouvido ao redor da cabea. Mais adiante, viu uma mesa de garotas magrelascom cortes de cabelo idnticos, sentadas lado a lado, comendo sua salada econversando animadamente. Ento seus olhos encontraram Tyler, Caitlin, Zak eo resto do pessoal que se preocupava com o "Combate Fome". Tyler acenoucom toda a naturalidade, como se ontem mesmo no tivesse tentado abusardela. Elissa s lanou um olhar inexpressivo e mudou de direo, encontrandouma sombra debaixo de uma rvore. Chegando l, sentou-se na grama, tirou damochila um sanduche e, enquanto comia, para no se sentir a maior perdedorado mundo, se ocupou com um jogo no telefone, leu alguma coisa para a aulamais tarde e mandou algumas mensagens para os amigos em Chicago. J tinhapassado o dia todo sozinha na escola ontem isso no era nada com que ela nopudesse lidar. Estava quase terminando de esboar uma bola de futebol em um software dedesenho, quando notou algum se aproximando. Tyler parou diante dela, comos braos cruzados na frente do peito, os olhos focados em algum pontodistante. Eu queria ter certeza de que estava tudo bem com voc foi dizendo, emvoz baixa. Voc sabe... Por causa do nosso pequeno mal entendido na casa daCaitlin. Mal entendido?! Ele tinha mesmo dito aquilo? Pelo menos, parecia que Elissanunca mais teria que acertar uma joelhada nas bolas do maldito de novo. No teve nenhum mal entendido. Ela o encarou, at que ele a olhasse nosolhos. Eles costumam chamar aquilo de tentativa de estupro. E se voc chegarperto de mim de novo, vou falar com a polcia. E voc vai poder colocar isso noseu registro escolar, se quiser. Tyler ficou ali parado, de boca aberta, um pouco surpreso com a reao dela.Elissa enfiou o telefone na mochila, se levantou e saiu andando, sem conseguirsuportar nem mais um segundo na presena dele. Mal entendido quandoalgum combina de se encontrar com voc s nove da manh e voc s apareces nove da noite. O que ele tinha feito era muito diferente. Ele a jogou na cama epulou em cima dela. O que teria acontecido se ela no tivesse conseguido 28escapar, se estivesse bbada demais para ser capaz de fugir? E se ela tivessecongelado de medo e no conseguisse lutar para se salvar? S de pensar nisso,seu sangue comeou a ferver. Ela continuou andando pelo ptio, morrendo de raiva, quando escutoualgum chamar seu nome. Elissa, no ? a pessoa perguntou. Era a garota que Elissa havia encontrado vomitando no banheiro da festa eque tinha cado no sono ali mesmo. Ela estava bem diferente agora, com ocabelo ruivo alinhado e preso e com a camisa fechada at em cima. Eu me chamo Jillian ela disse. Obrigada por ter me ajudado ontem. Tudo bem. Nessas horas, uma ajudinha sempre bem-vinda. Jillian deu uma mordida no sanduche que estava em seu colo. que eu no sou de beber muito, sabe? No bastasse voc ter meencontrado daquele jeito, mais tarde eu ainda acabei vomitando no tapete dobanheiro e a Caitlin teve um ataque. Ai que vergonha. Elissa deu uma olhada na mesa de Tyler. Todos ali estavam na festa. Umgrupinho de seis pessoas que andavam sempre juntas. Um garoto estava comdois canudos enfiados no nariz enquanto os outros riam descontroladamente. Qual a desse pessoal, hein? Elissa perguntou, se sentindo enojada. Porque voc estava com eles naquela festa? No tenho muita certeza, para dizer a verdade. Eu costumava sair com oTyler, mas ele tipo um... tipo um... Jillian parecia no saber como terminar afrase. Tudo bem, deu para entender, sei bem qual o "tipo" dele Elissa disse. Tipo imbecil, para dizer o mnimo. Jillian deu risada, revelando seus dentes perfeitos, custa de muitostratamentos, com certeza. Mas e voc? Est sendo bem recebida aqui na Woodshire High School?Aposto que est com saudade dos amigos antigos. Elissa abaixou a cabea, lembrando-se de Luca e Laticia, seus amigos maisprximos em Chicago. Desde que tinha se mudado para Woodshire, ela aindamantinha contato com eles por SMS, mas tambm conseguia senti-los se 29afastando aos poucos. A cada nova mensagem que enviava, os dois demoravammais e mais para responder. Enfim, ela comeou a se perguntar o que afinal decontas havia de comum entre eles, alm do fato de curtirem fumar um baseadojuntos e matar aula no bosque atrs da escola. Pensando bem, ela no sabiaabsolutamente nada a respeito dos irmos mais velhos de Laticia, nem sobre aescola alternativa que ela tinha frequentado antes das duas se conhecerem elas nunca tinham conversado sobre isso. Elissa, por outro lado, tambm nuncatinha contado a ela nada sobre seu pai, nem sobre a briga que ele teve comSarah, na noite em que foi embora. Mais ou menos Elissa respondeu, meio sem saber o que dizer. Voctinha que ver o lugar de onde venho. No era em nada parecido com isso aqui. Ela queria continuar falando sobre a escola antiga e contar a Jillian sobre osdetectores de metais na entrada ou sobre a lista de peas de roupa que voc nodevia vestir se no quisesse ser confundido com um membro de algumagangue. Jillian era a primeira pessoa na cidade a querer saber algo sobre suavida e Elissa estava com esse desejo estranho de botar tudo para fora. Mas,antes que ela pudesse comear a dizer qualquer coisa, dois garotos seaproximaram. Um deles mais parecia o irmo gmeo de Jillian, com seu cabeloruivo repartido do lado direito. Elissa, esse o meu irmo, Jake e esse aqui o Robbie. Eu ouvi dizer que voc tocava em uma banda Robbie disse. Ele era maisbaixo que Jake e usava culos estilosos e cala jeans preta bem justa. Como voc sabe disso? Elissa se perguntou, sem conseguir evitar que aexpresso em seu rosto perguntasse o mesmo. Na outra manh, Ryan Jacobsena tinha escutado tocando violo e cantando seria possvel que mais algumtambm tivesse ouvido? Foi o Google que me contou Robbie riu. Sabe como , querida. Hoje emdia, nada mais segredo. Mas isso no interessa. O que importa que voccanta, eu toco bateria e o nosso amigo Jake aqui toca baixo. Isso tem cheiro decoisa boa, no tem? Elissa ficou vermelha com a ideia de ele ter encontrado seu antigo site, umque tinha criado quando estava determinada a "botar a boca no mundo". Todasas suas composies prprias estavam ali. No fundo, ela tinha esperana de queseu pai pudesse escutar e resolvesse ligar ou aparecer. Mas isso nuncaaconteceu. Com um pouco de dificuldade, Robbie tirou do bolso da frente de suas calasultrajustas um panfleto verde, dobrado cuidadosamente em vrias partes.Depois o entregou a Elissa o papel ainda mido de suor. Mesmo no estando 30muito interessada em ter contato com os fludos corporais de ningum, eladesdobrou o panfleto e no pde deixar de sentir um leve entusiasmo com oque estava escrito no topo, as letras acompanhando a forma de uma guitarra:FESTIVAL DE BANDAS. A essa altura, os ps de Robbie no paravam de semexer de ansiedade dentro dos tnis. E a? O que voc acha? Jake perguntou. T a fim de tocar com a gente? Elissa apertou os olhos e fez cara de dvida. Mas e se vocs forem uma droga perguntou, em tom de brincadeira. Averdade que j tinha sido convidada para tocar em muitas "bandas" pelomenos, o bastante para saber que as boas so as mais raras. E no havia ideiapior no mundo para ela do que ficar em cima de um palco tentando tocaralguma coisa enquanto os outros ao seu redor mal conseguem acompanhar oritmo. No precisa se preocupar, a gente manda bem Robbie argumentou,tirando um pen drive da mochila e o entregando a Elissa. Aqui tem umagravao nossa. D uma ouvida e v o que voc acha. Se curtir, s aparecer.Amanh dia de ensaio. Jake e Robbie saram andando pelo ptio, deixando Elissa sozinha parapensar sobre a proposta. O fato que ela nunca tinha tocado em uma banda deverdade antes, a no ser que se considerasse aqueles meses antes de seu pai irembora. Os dois passavam as noites mais deliciosas, espremidos ao redor damesa da cozinha, seu pai movendo os dedos to rpido no brao da guitarra,que ela mal conseguia reconhecer os acordes. Enquanto ele tocava, Elissatentava cantar e arranhar alguma coisa no violo, e, s vezes, Sarah se juntava aeles para cantar tambm. Agora ele vivia mais distante que nunca das duas,como baixista do The Constants, uma banda indie pequena que costumava fazera maior parte dos shows na Europa. Elissa se perguntava se Robbie tinhadescoberto isso tambm e se essa era a verdadeira razo pela qual eles atinham chamado para tocar. Jillian estava ao lado dela, olhando por cima de seu ombro o panfleto dofestival. Eles so bons mesmo, pode acreditar disse, animada. Voc devia ir aoensaio. Tambm acho que vou. E voc tem razo, j passou da hora de deixar oFundo de Combate Fome para l, junto com todo aquele pessoal nada a ver. Ento Jillian deu um sorriso e enroscou um de seus braos no brao de Elissa,algo que ela normalmente odiaria. Mas ali, de braos dados com sua novaamiga e com a possibilidade de tocar em uma banda surgindo no horizonte,Elissa comeou a se sentir vontade e entusiasmada, como ainda no tinha se 31sentido em Woodshire. Talvez mas s talvez sua me tivesse razo. Essepodia mesmo ser um recomeo para as duas. 32CAPITULO 6Encostada no balco, vestindo seu uniforme de enfermeira, Sarah aguardavaque lhe servissem seu caf. Apreensiva, conferiu o horrio no relgio dacafeteria do hospital. Passava um pouco das trs da tarde, o que significava queas aulas j haviam terminado e que Elissa estava voltando para casa...provavelmente. Durante os dois ltimos dias, Sarah s conseguia pensar que,quando chegou em casa na outra noite, sua filha estava com uma cara estranha.E quando ela lhe perguntou como tinha sido o primeiro dia na nova escola, agarota ficou paralisada por um segundo e depois s deu respostas vagas. Issono era nenhuma novidade para as duas, verdade. Mas havia algo diferente.Elissa parecia um pouco transtornada... at mesmo com medo. A nica coisaque disse foi que tinha ido reunio do Fundo de Combate Fome e que,depois, Ryan Jacobsen tinha lhe dado uma carona de volta para casa. Ser que ele tinha feito algo a ela? Elissa podia ter razo sobre os Reynolds eles eram gente de cabea fechada, com certeza. Mas era mesmo muito estranhoaquele garoto viver na casa onde seus pais tinham sido assassinados. Que tipode pessoa fica tranquila com uma coisa dessas? E por que ningum na cidadeparecia conhec-lo? Sarah j o tinha visto sair de casa no meio da madrugadaduas vezes na ltima semana, acordada pelo barulho nada discreto do carrovelho que ele dirigia. A atendente entregou o caf e ela se virou, notando o policial que estavaparado do lado de fora da entrada principal do hospital. Ele devia ter apenasalguns anos a mais que Sarah, com seus olhos castanhos e o cabelo preto semum fio sequer fora do lugar. Ela simplesmente no conseguiu evitar. Antes quese desse conta, j estava do lado de fora, encostada na parede ao lado dele,batendo o p ansiosamente, tentando imaginar uma maneira de chamar suaateno. Voc est nervosa o policial perguntou, olhando para o p de Sarah.Ento deu um sorriso amigvel e uma covinha se formou em sua bochechadireita. Desculpe, acho que a culpa toda minha. Costumo ter esse efeitosobre as mulheres. Juro que estou tentando no ser to irresistivelmentecharmoso. Sarah deu risada. Ser que aquele sujeito estava tentando paquer-la? No, no ela comeou a se explicar. que eu queria perguntar umacoisa. Meu nome Sarah, Sarah Cassidy. Bill Weaver ele respondeu, estendendo a mo. 33 Escute Bill. Minha filha tem dezessete anos e ns acaba-mos de nos mudarpara a cidade. Alugamos uma casa na Sycamore Lane. E... Ele a interrompeu. E voc queria saber se possvel uma mulher como voc ter uma filha dedezessete anos. A minha reposta no, sem dvida. Sarah sorriu. Aquele sujeito estava definitivamente tentando paquer-la. A minha dvida sobre Ryan Jacobsen, na verdade. Quando ela tocou nonome do rapaz, a expresso de Bill ficou sria e suas sobrancelhas se uniram. Ele deu uma carona a Elissa um dia desses. O que no tem nenhum problema,eu acho. Mas eu o vi saindo de casa no meio da noite e achei um poucoestranho. No sei, pressentimento de me. Eu s estava me perguntando sevoc no saberia nada a respeito dele. Se ele um garoto... Sarah deixou afrase no ar, no querendo soar preconceituosa. Normal? Exatamente Sarah respondeu. Sabe como . Descobrir que seus paisforam assassinados pela sua prpria irm... algo um tanto intenso, para dizero mnimo. Bill encostou na parede, secando a fina camada de suor sobre a sua testa. Entendi. Na certa voc j andou escutando comentrios do gentil povodesta cidade. Bom, fui eu quem deu a notcia a ele e tia. Dirigi trs horas,rumo ao norte, para contar pessoalmente. Ryan morava com essa senhoracompletamente senil, que mal conseguia completar uma frase. A impresso quetive foi a de que era ele quem cuidava dela, e no o inverso. Os dois acabaramse mudando para c, at que, no ano passado, ela morreu. O garoto teve umavida dura. A verdade que eu nunca tive qualquer problema com ele. E, atonde eu sei, nenhuma outra pessoa teve tambm. Mas claro que tem muitagente por a falando besteira por causa do valor das propriedades, no isso? Sarah estava envergonhada, olhando para o nada. Ser que ela era tomesquinha quanto aquela mulher afetada no churrasco dos Reynolds? Elissaficaria indignada e surpresa se soubesse que ela estava perguntando sobre RyanJacobsen ao primeiro policial que aparecesse em sua frente. Eu acho que sim... ela disse. Bill olhou para ela, descansando a mo sobre o rdio preso em seu cinto. 34 Sinto muito. Eu no queria ser grosso. S o que sei que o Conselho daCidade est tentando arrancar o coitado do garoto daquela casa a todo custo, eisso me tira do srio. Ele tem todo direito de permanecer l aquela casa ainda dele. Sarah sabia, logicamente, que ele tinha razo. Se Ryan Jacobsen oferecessealgum perigo, no devia haver sinais mais bvios? Durante anos ele morounaquela casa, e tudo que os vizinhos tinham para reclamar era a pinturadescascada e o gramado no aparado. As pessoas falavam sobre o duplo-assassinato como se o coitado do garoto tivesse algo a ver com ele, s por serirmo de Carrie Ane. Mas a verdade que ele no estava nem por perto. Ryanno tinha feito nada de errado. Muito obrigada, oficial Sarah disse, se dirigindo s portas automticas dohospital. Seu intervalo estava acabando e o mdico encarregado naquela tardeera um verdadeiro p no saco. Me chame de Bill, por favor ele corrigiu. A gente se v por a? O policial estava sorrindo e l estava a covinha em sua bochecha novamente. Claro, Bill Sarah disse por cima do ombro, entrando no hall do hospital esentindo o choque do ar-condicionado. Caminhando na direo dos elevadores,ela jogou o copo de caf vazio no lixo. Bill tinha razo Ryan era uma vtimanessa histria. O garoto tinha o direito de viver naquela casa e no porque,s vezes, gostava de dirigir por a no meio da noite, que haveria algo de erradocom ele. Talvez s estivesse tentando esvaziar um pouco a mente, ou talvez noconseguisse ficar sozinho dentro daquela casa em certos momentos. Sarah entrou no elevador, sentindo aquele friozinho na barriga quando elearrancou para subir. J no dcimo andar, enquanto se dirigia ao seu posto,ainda no tinha conseguido deixar para trs a inquietao. Lembrou-se dosfaris do carro de Ryan iluminando a janela de seu quarto por um momento, nomeio da madrugada. Se Bill tinha razo, e ele no era mesmo perigoso, entopor que ela ainda sentia calafrios s de imaginar Elissa dentro daquele carro? 35CAPITULO 7Elissa subiu a escada lateral, tomando o cuidado de pular os degrausquebrados. Bateu na porta duas vezes, notando pelo vidro embaado que Ryanestava l dentro, debruado sobre seu laptop. Algumas sacolas de comprasestavam amontoadas em cima do balco da cozinha. Ei... sou eu... ela disse, abrindo a porta, que rangeu ao menor movimento. Eu fiz um CD para voc. Ryan ainda gastou mais alguns segundos no computador, antes de se virarpara ela. Ele parecia nervoso, como se tivesse sido pego fazendo alguma coisaerrada. Elissa se aproximou mais alguns passos e pde ver o que havia na tela.Ryan estava olhando o antigo site dela. A primeira msica que tinha escrito navida Luz do dia estava pausada, j na metade. Essa a minha pgina ela disse, no conseguindo acreditar em seusolhos. Eu queria ouvir mais das suas msicas Ryan murmurou, sem graa. Isso no esquisito demais, ? No, a no ser que voc no goste delas ela respondeu, se aproximandomais. Ryan olhou para o cho, parecendo ainda mais envergonhado que antes. Na verdade, eu gostei muito. Suas msicas so lindas. Elissa sorriu e deu um soco de brincadeira bem no meio do peito de Ryan. Certa resposta exclamou, dando risada. Ento deu uma olhada ao redor,finalmente se dando conta de que estava dentro da casa a casa dos Jacobsen, acasa sobre a qual tanto tinha ouvido falar, antes mesmo de poder v-la. O cheiroera de humidade e mofo e, s vezes, de desinfetante. O sof de polister tinhauma estampa bizarra, que mais parecia sada de um episdio de That 70's Show.Uma poro de desenhos amarelados estavam grudados na geladeira. Nobalco, ao lado da pia, entre outras coisas, havia trs pacotes de po, uma pilhade comida congelada e umas vinte latas de alimentos variados. Voc est estocando comida? Tem algum tipo de abrigo secreto aqui? Elissa perguntou, descontrada. 36 Ryan ficou vermelho. Eu no gosto de ir at a cidade mais do que o necessrio. Elissa notou asfinas grades de metal nas janelas. Ela tinha escutado rumores na escola: mais deuma vez, baderneiros insanos apareceram na casa de Ryan, atirando pedras nasjanelas. As coisas chegaram ao ponto de algum tentar incendiar o sobrado deuma vez por todas. Em parte, Elissa entendia como era. Seu antigo apartamentoem Chicago podia no ter sido alvo de vndalos, mas os roubos e o som de tirosno eram nada raros em sua vizinhana. As janelas tambm tinham grades e asada de incndio era protegida com arame farpado. Elissa mostrou o CD. Eu queria que voc escutasse uma coisa. Sem cerimnia, ela foi entrandona sala de estar, onde havia um antigo aparelho de som em cima de umaprateleira, cercado de romances de capa dura. Ao redor, mais uma poro depilhas de livros por todo lado. Elissa pegou um aleatoriamente, no topo de umadelas "Arcadia", de Tom Stoppard. D para ver que voc gosta de ler disse, enquanto Ryan entrava na sala.Ela o observou por alguns segundos. Naquele lugar, comeou a entender o queele fazia com o seu tempo livre. Ryan devia ser um desses caras que passamdias inteiros lendo, estudando, contentes com a solido. E com quem, nestacidade, ele poderia ter qualquer conexo, afinal de contas? Quase todo mundoque conhecia a histria dos assassinatos, devia estar convencido de que sabiaexatamente quem ele era, antes mesmo de conhec-lo. A verdade que elesnunca lhe deram a chance de provar o contrrio. Um pouco nervoso, Ryan passou as mos na cabea, tirando alguns fios decabelo da testa. Suas bochechas ficaram vermelhas, como se ele no estivesseacostumado a receber tanta ateno de algum. Vamos ouvir logo? Estou curioso para saber o que voc tem a dissefinalmente, enquanto ligava o aparelho de som. Elissa colocou o CD para tocar e uma voz suave e rouca tomou conta dasala. Continuum era o nome da banda. Ela era obcecada por eles desde o dia emque seu pai lhe mostrou uma msica pela primeira vez. Simplesmente adoravao timbre spero da voz do cantor e a maneira como o piano preenchia todos osespaos ao fundo. Parada a poucos centmetros de Ryan, ela o observavaenquanto ele apreciava o som. Balanando levemente a cabea no ritmo da msica, ele sorriu. Voc gosta desse tipo de msica? ela perguntou, estudando suaexpresso. 37 Gosto sim ele respondeu. E ento fez aquela coisa de novo: seus olhospassearam pelos lbios de Elissa, pelo seu rosto, descendo pelo pescoo at odecote da camiseta gola V que ela estava vestindo. Gosto muito. Elissa desviou o olhar, sentindo-se agitada por dentro. O que havia em RyanJacobsen que a deixava to sem graa? Enquanto ele escutava a prxima cano,ela caminhou pela sala, olhando ao redor, dando ateno especial s fotografiaspenduradas na parede. Uma delas devia ser dos pais de Ryan. O jovem casalestava com roupas de casamento e a noiva olhava direto para a cmera, seusolhos azuis brilhando. Elissa se virou para Ryan novamente, esperando que eledissesse alguma coisa, mas ele ainda estava parado ao lado da estante, perdidoem seus prprios pensamentos. Ento ela continuou andando, at alcanar um corredor estreito, onde haviamais prateleiras com livros. Elissa estudou alguns dos ttulos, deixando-se levarpela msica que chegava do outro cmodo. Poucos passos adiante, havia umaporta. Ela virou a maaneta sem pensar, imaginando que haveria um banheiroali. Ao invs disso, se deparou com um quarto pequeno. As paredes eramcheias de crculos brilhantes verdes, roxos e cor-de-rosa. A cama estavacoberta com uma colcha mofada. Como se algo a estivesse atraindo, Elissa deualguns passos para dentro, reparando no ba de madeira, no canto do quarto. Ento percebeu que Ryan estava se aproximando no corredor. Se virou,imediatamente, arrependida pelo que tinha acabado de fazer. Desculpe, Ryan... Eu no devia ter entrado aqui. No sei o que deu naminha cabea. Enquanto se explicava, ela tentou sair do quarto, dando a volta ao redor deRyan, mas ele bloqueou sua passagem. No precisa sair ele disse, olhando as paredes do quarto. Eu no vinhaaqui h um bom tempo. Ele parecia estranhamente calmo enquanto passavapor Elissa e examinava o ambiente. Pegou um urso de pelcia de cima da camae espanou o p com a mo. Ansiosa, Elissa fez um rabo de cavalo em seu cabelo loiro e o apertou bemforte. Por que, afinal de contas, ela tinha aberto aquela porta? Ryan, me desculpe. De verdade. Ryan se virou para ela e seus olhares se encontraram. Quando eu vim para c, deixei o quarto exatamente igual, para o caso deela voltar. 38 H quanto tempo foi isso? Quatro anos? Elissa perguntou. , eu sei. Ryan deixou escapar uma risada triste. Estpido da minhaparte, no ? Eu at costumava deixar umas coisas para ela no bosque, comida,cobertores, mesmo sabendo que ela jamais conseguiria sobreviver l fora. Acoitadinha deve ter passado fome at a morte. Ela era incapaz de se virarsozinha. Precisava de cuidado constante. Meu pai queria mand-la para algumlugar especializado, mas minha me nunca permitiu. por isso que eles memandaram embora. Eles j tinham muito com que se preocupar. Elissa abaixou a cabea, sem ter certeza se devia fazer perguntas sobreaquilo. Todo mundo na cidade falava sobre Carrie Anne, mas ningum nuncadisse o que aconteceu com ela como ela ficou daquele jeito. Mas o que aconteceu? Com a sua irm... Ns estvamos brincando e ela caiu e bateu a cabea. Ryan olhou parabaixo, para o urso de pelcia. Ela estava brincando com esse urso naquele dia.Eu tinha sete anos e ela, cinco. Ela adorava aquela brincadeira. Me lembro delaarrancando o urso da minha mo e depois correndo pela casa, fugindo de mim.Eu a persegui at l fora, no quintal, e pulei em cima dela, e ns lutamos at eupegar o urso de volta. Ns ficamos ali, rindo por um tempo, e ento fizemos amesma brincadeira que sempre fazamos: ver quem conseguia ir mais alto nobalano. Elissa conseguia ver a imagem da garotinha segurando as correntes dobalano, suas perninhas a impulsionando para frente e para trs, seus cabelosloiros se afastando e se aproximando do seu rosto com o movimento. E Ryanbalanando ao lado dela, tentando alcanar sua mo sem nunca conseguir, comos dois balanos fora de sincronia quando um ia, o outro j estava voltando e,quando voltava, o outro j tinha ido. Por alguns segundos eu olhei para cima, para a janela do quarto dos nossospais Ryan prosseguiu. Queria ver se eles estavam olhando. Nos fins desemana, eles no saam de dentro do quarto. As cortinas ficavam fechadas euma fumaa vazava por baixo da porta. Os dois sempre pareciam estar emmundo distante hoje eu sei que estavam enfrentando um vcio. Mesmo assim,eu estava olhando para cima, esperando que eles nos vissem. E foi ento queCarrie Anne caiu. Ela despencou do balano e caiu no cho com fora. A ltimacoisa de que me lembro de estar ao lado dela, sem saber o que fazer, sgritando, desesperado. Ainda demorou um bom tempo para eles sarem dedentro de casa para ver o que tinha acontecido. Elissa soltou a respirao, que no havia percebido estar prendendo. Quehistria horrvel aquela. 39 Ryan no tirou os olhos do urso, enquanto se lembrava e continuavacontando. Quando ela acordou, parecia outra pessoa. Ela tinha sofrido dano cerebral.Passava o dia todo gritando, quebrando coisas pela casa. por isso que todas as janelas aqui tm grades? Elissa perguntou, semsaber direito o que dizer. Sim. Ela parecia nunca saber o que as coisas eram nem onde estava. Omenor descuido dos meus pais era o bastante para ela se enfiar no bosque esumir entre as rvores. As grades serviam para mant-la dentro de casa. Mashoje elas tambm so teis. Servem para me proteger quando as pessoassimpticas dessa cidade resolvem vir me visitar. Os dois continuaram no quarto por algum tempo, em silncio. Ryan aindamantinha o urso de pelcia entre as mos, olhando para ele como se o estivessevendo pela primeira vez. Elissa queria dizer algo para reconfort-lo, mas tudoem que pensava parecia falso, errado. Ela queria dizer que entendia, mas issono era verdade. Mesmo as piores coisas pelas quais j tinha passado odivrcio dos seus pais, seu pai desaparecendo de sua vida no eram nadaperto daquilo. Ento, ao invs de dizer qualquer coisa, ela alcanou a mo deRyan e a apertou, balanando levemente. E foi como se isso o tivesse despertado de um transe. Ele deixoucuidadosamente o urso sobre a cama e levou Elissa de volta para o corredor. Eu no gosto de vir para esta parte da casa disse suavemente. Entofechou bem a porta atrs de si. Elissa olhou para ele com vontade de abra-lo, mesmo eles tendo seconhecido havia apenas trs dias. Ento ns no vamos mais voltar aqui ela disse, puxando-o para a sala deestar, onde a msica ainda estava tocando. Prometo que no vamos.Elissa se sentou na cama de Ryan, ao lado dele, os dedos dos dois a poucoscentmetros de distncia. O quarto era pequeno demais para os dois. Haviaapenas uma cama estreita e uma mesa. O teto era inclinado e, nele, havia umajanela que dava para o quintal. Na parede, ficava pendurado um retratoenquadrado. Nele estavam seus pais, um com o brao ao redor da cintura dooutro. Carrie Anne estava de p na frente, segurando seu urso de pelcia eRyan, ao lado dela. Ele parecia to srio. Era o nico ali que no estavasorrindo. 40 Ento essa era Carrie Anne Elissa disse, estudando a garotinha loira deolhos azuis brilhantes com a mo da me sobre o ombro. Os olhos dela so toazuis. Ryan se inclinou para frente, seu ombro pressionando o de Elissa, enquantoele examinava aquela imagem do passado. Ela era o corao da famlia. Depois do acidente as coisas mudaram muito.Meus pais pioraram cada vez mais. Como assim... pioraram? Elissa perguntou. Ryan balanou a cabea, como se no quisesse muito falar sobre aquilo. s que tudo ficou muito diferente... Foi ento que eles mandaram voc para longe? Ryan olhou ao redor eseus olhos se encontraram com os de Elissa. Ele no respondeu a pergunta e elano quis pressionar. Eu sei que no o mesmo, mas as coisas tambmmudaram muito depois que meu pai foi embora. c