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Departamento de Geografia A TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO SOB UMA PERSPECTIVA DE (RE)CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES TERRITORIAIS NO BAIRRO DE VARGEM GRANDE – TERESÓPOLIS (RJ) Alunos: Bernardo Cerqueira Agueda e Luciano Peres Martins Lima Orientador: João Rua Introdução: O espaço pensado como condição, meio e produto (CARLOS, 2011) nos faz perceber a complexidade que o conceito suscita frente a seu estado de permanente produção e reprodução e sua articulação entre diversas dimensões e escalas. Dentro desse contexto, torna-se fascinante de alguma forma, tentar empiricamente apreender a realidade que nos cerca aliando-a as mediações teóricas para que consigamos entender alguns processos que permeiam a construção espacial. O trabalho de campo realizado no bairro de Vargem Grande teve como objetivo principal trabalhar nossa percepção geográfica das profundas transformações ocorridas tanto na região em si, como no seu entorno, abarcando os municípios de Teresópolis e Nova Friburgo. Na área estudada, foi possível observar variâncias espaciais, que ao mesmo tempo em que podem ser concebidas como diferenciações fragmentárias, também podem ser percebidas como interações desiguais. Aliando as ideias supracitadas ao trabalho de campo realizado, desencadearemos uma análise da relação urbano/rural pautada nessa dialética entre integração e ruptura. Além da constatação da complexidade crescente que envolve essas parcelas do espaço no que tange a atual dificuldade de distinção e atribuição de elementos, símbolos e valores únicos, analisaremos a assimetria entre a territorialidade concebida através das representações hegemônicas e aquelas outras referentes aos espaços vivenciados pelos diferentes habitantes locais, de representação do cotidiano. Percebemos uma atual complexificação do espaço agrário, com o espraiamento da lógica mercantil para quase todas as dimensões da vida. Juntamente com as novas relações urbano-rurais, de acordo com o momento histórico dos jogos de poder no espaço, é percebida a criação de um novo imaginário sobre o espaço rural, com a valorização de outras tendências. A urbanização comportamental (difusão de códigos urbano-metropolitanos) traz novas atividades e funções para o meio rural, ressignifiando-o e reinventando-o de acordo com as demandas urbanas, tendo em vista as relações assimétricas construídas historicamente entre campo e cidade. As mudanças no campo, com o crescimento de atividades não-agrícolas e a diversificação dos sujeitos que atuam neste espaço, operam também na dissolução de identidades e construção de novos valores nesse ambiente. Diante dessas transformações, não é mais possível perceber uma clara dicotomia entre campo e cidade. Forma-se um espaço híbrido, porém (re)produzido segundo as relações sociais de produção capitalistas, num desenvolvimento desigual e combinado. Essas dinâmicas evidenciam tanto a unidade como a fragmentação do espaço geográfico, construídas em uma negociação desigual entre atores locais e supralocais.

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A TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO SOB UMA PERSPECTIVA DE (RE)CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

TERRITORIAIS NO BAIRRO DE VARGEM GRANDE – TERESÓPOLIS (RJ)

Alunos: Bernardo Cerqueira Agueda e Luciano Peres Martins Lima

Orientador: João Rua

Introdução: O espaço pensado como condição, meio e produto (CARLOS, 2011) nos faz

perceber a complexidade que o conceito suscita frente a seu estado de permanente produção e reprodução e sua articulação entre diversas dimensões e escalas. Dentro desse contexto, torna-se fascinante de alguma forma, tentar empiricamente apreender a realidade que nos cerca aliando-a as mediações teóricas para que consigamos entender alguns processos que permeiam a construção espacial.

O trabalho de campo realizado no bairro de Vargem Grande teve como objetivo principal trabalhar nossa percepção geográfica das profundas transformações ocorridas tanto na região em si, como no seu entorno, abarcando os municípios de Teresópolis e Nova Friburgo. Na área estudada, foi possível observar variâncias espaciais, que ao mesmo tempo em que podem ser concebidas como diferenciações fragmentárias, também podem ser percebidas como interações desiguais.

Aliando as ideias supracitadas ao trabalho de campo realizado, desencadearemos uma análise da relação urbano/rural pautada nessa dialética entre integração e ruptura. Além da constatação da complexidade crescente que envolve essas parcelas do espaço no que tange a atual dificuldade de distinção e atribuição de elementos, símbolos e valores únicos, analisaremos a assimetria entre a territorialidade concebida através das representações hegemônicas e aquelas outras referentes aos espaços vivenciados pelos diferentes habitantes locais, de representação do cotidiano.

Percebemos uma atual complexificação do espaço agrário, com o espraiamento da lógica mercantil para quase todas as dimensões da vida. Juntamente com as novas relações urbano-rurais, de acordo com o momento histórico dos jogos de poder no espaço, é percebida a criação de um novo imaginário sobre o espaço rural, com a valorização de outras tendências. A urbanização comportamental (difusão de códigos urbano-metropolitanos) traz novas atividades e funções para o meio rural, ressignifiando-o e reinventando-o de acordo com as demandas urbanas, tendo em vista as relações assimétricas construídas historicamente entre campo e cidade. As mudanças no campo, com o crescimento de atividades não-agrícolas e a diversificação dos sujeitos que atuam neste espaço, operam também na dissolução de identidades e construção de novos valores nesse ambiente.

Diante dessas transformações, não é mais possível perceber uma clara dicotomia entre campo e cidade. Forma-se um espaço híbrido, porém (re)produzido segundo as relações sociais de produção capitalistas, num desenvolvimento desigual e combinado. Essas dinâmicas evidenciam tanto a unidade como a fragmentação do espaço geográfico, construídas em uma negociação desigual entre atores locais e supralocais.

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No trabalho, focaremos esses espaços, considerados por nós, como híbridos (de características urbanas e rurais) e nos processos que explicam as novas dinâmicas e evidenciam a unidade do espaço geográfico. Porém, também serão alvos de análise as particularidades e singularidades que permanecem no rural, assim como a nogociação entre os atores locais e supralocais, que se associa à reconstrução dos lugares.

Assim, com base no trabalho de campo realizado, buscaremos compreender os efeitos da expansão da escala geral e hegemônica do urbano na reformulação de identidades territoriais para tentar pensar o rural multidimensionalmente e multiescalarmente (RUA, 2007) e demonstrar a importância da unificação dos movimentos de resistência à imposição dessa racionalidade que visa a reprodução ampliada do capital.

Assim, bairro de Vargem Grande, localizado no município de Teresópolis, é analisado como exemplo desse processo transescalar de produção do espaço, com novos mecanismos para a expansão do capital. São notáveis as transformações que o bairro vem sofrendo nos últimos anos, numa mescla entre valores e representações, assim como os efeitos da expansão da escala geral e hegemônica do urbano na reformulação de identidades territoriais.

Metodologia A. A base teórico-conceitual desdobra-se em alguns aspectos específicos

• O espectro de significações da palavra espaço: A análise da Vargem Grande sob uma perspectiva relacional

Percebemos uma atual complexificação do espaço, com modificações que suscitam novas complicações. Tendo em vista a ideia de que “cada momento histórico corresponde a uma espacialidade”, objetiva-se compreender a dinâmica espacial como contraditória, sendo a síntese uma medida política empregada para desencadear novas contradições. Cria-se assim, um movimento constante, em que os processos de produção do espaço ressignificam-se, misturando elementos pretéritos a práticas contemporâneas. Essas transformações exigem uma mudança metodológica, uma ressignificação da própria geografia, para que seja trabalhada a diversidade do espaço rural e do espaço urbano, identificando múltiplos rurais dentro do rural e múltiplos urbanos dentro do urbano, ou seja, as “cidades na cidade”.

Teorizar ganha significados diferentes de acordo com o método. Nesse sentido, pretendemos reconstruir teorias, utilizando o espaço integrado como elemento fundacional. A complexidade desse conceito e os domínios de sua aplicação impedem qualquer definição genérica do mesmo. Por isso, concordamos com Harvey em utilizar o espaço como palavra-chave em nossa pesquisa, tentando compreender e abarcar em nossa análise o “espectro” de significações que o cercam.

O bairro de Vargem Grande será representado como evidência de um processo mais amplo, uma comprovação em escala reduzida de um fenômeno transescalar. É o fenômeno da “urbanização completa”, da generalização da lógica da mercadoria, que se expande para quase tudo. Poderíamos comparar à mônada de Leibniz, com suas relações internas, fundamentais à dialética. Seria, portanto, um reflexo do universo, uma correspondência, que diferencia-se das outras pois está condicionada por uma distinta posição e perspectiva.

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Assim, temos em Vargem Grande um exemplo dos impactos e consequências da globalização, que não pode ser entendida separada de um processo concomitante de fragmentação do espaço. A decorrente hibridização exige uma superação relações causais simplistas e reducionistas da lógica formal, associando a dialética à noção de movimento. Sob esta ótica, a busca de síntese das contradições abre constantemente novas problemáticas, incorporadas a um contexto distinto.

Assim, o espaço é visto e pensado de maneira diferente, surgem novas geografias, novas espacialidades. Para compreendê-las, é imprescindível a concepção de espaço como construção histórica, superando a ideia de espaço como sinônimo de extensão, ou seja, um espaço cartesiano, matemático. As transformações decorrentes da globalização neoliberal, que geraram um período de rupturas e incertezas, exigem uma reformulação das interpretações de mundo. Nesse sentido, a geografia crítica/marxista tem grande contribuição, na análise do espaço enquanto condição, meio e produto das relações sociais de produção. Uma vez que essas relações sociais de produção estão inseridas no sistema econômico, a produção do espaço fica condicionada ao capitalismo, reproduzindo suas desigualdades e contradições.

Seguindo essa linha, utilizaremos o modelo espacial desenvolvido por Henri Lefebvre como base teórico-metodológica, na tentativa de incorporar a pesquisa aos usos dos modos espaço-temporais por ele desenvolvidos. Partimos, portanto de sua divisão tripartite inicial, que desemboca em novas tríades. Tal divisão seria: o espaço material (o espaço da experiência e da percepção aberto ao toque físico e à sensação); a representação do espaço (o espaço como concebido e representado); os espaços de representação (o espaço vivido das sensações, a imaginação, das emoções e significados incorporados no modo como vivemos o dia a dia). (LEFEBVRE, 1991).

A partir disso, pensaremos o bairro de Vargem Grande enquanto espaço vivido, percebido e concebido, diferenciando os atores e agentes atuantes na (re)produção da metrópole carioca. Tais categorias não devem ser ordenadas hierarquicamente, mas analisadas em tensão dialética e utilizadas de acordo com o fenômeno abordado. Essa interação é demonstrada por Harvey (2006):

“Os espaços e os tempos da representação que nos envolvem e nos rodeiam na nossa vida cotidiana afetam tanto nossas experiências diretas quanto nossa interpretação e compreensão. No entanto, através das rotinas materiais cotidianas nós compreendemos o funcionamento das representações espaciais e construímos espaços de representação para nós mesmos”.

Da mesma forma, trabalharemos com o sítio carioca enquanto espaço absoluto, relativo e relacional, onde nenhuma das três facetas pode ser entendida isoladamente das outras duas. São concepções dinâmicas e complementares. Segundo Harvey (1973):

“Se considerarmos o espaço como absoluto ele se torna uma ‘coisa em si mesma’, com uma existência independente da matéria. Ele possui então uma estrutura que podemos usar para classificar ou distinguir fenômenos. A concepção de espaço relativo propõe que ele seja compreendido como uma relação entre objetos que existe pelo próprio fato dos objetos existirem e se relacionarem. Existe outro sentido em que o espaço pode ser concebido como relativo e eu proponho chama-lo de relacional – espaço considerado, à maneira de Leibniz, como estando contido em objetos, no sentido de que um objeto pode ser considerado como existindo somente na medida em que contém e representa em si mesmo as relações com outros objetos... O espaço não é nem absoluto, nem relativo, nem relacional em si mesmo, mas ele pode torar-se um ou outro separadamente ou simultaneamente em função das circunstâncias.”

A utilização de uma ou outra concepção depende na natureza do fenômeno abordado. No entanto, certas temáticas só podem ser abordadas pela perspectiva

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relacional do espaço-tempo. É impossível compreender a economia-política, por exemplo, sem adotar uma perspectiva relacional. Também é impossível, portanto, compreender as atuais transformações no estado do Rio de Janeiro, claramente pautadas em interesses internacionais, sem esta perspectiva. Um evento situado num ponto do espaço não pode ser entendido em referência apenas ao que existe somente naquele ponto. Desta forma, pretendemos analisar o bairro de Vargem Grande sob a ótica do espaço relacional, que engloba múltiplas escalas e dimensões, ainda que presos e condicionados a representações e delimitações absolutas do mesmo.

A produção espacial no bairro estudado apresenta contradições fundamentais, o que exige uma exposição dos interesses diversos, das identidades conflitantes. É uma tentativa de transcender o dualismo de concebido/abstrato versus percebido/concreto para incorporar sua personificação como vivido. (HALFACRE, 2006)

• A sujeição da renda da terra ao capital: A concentração de terra e a lógica de reprodução ampliada

Devemos ter em mente que a lei básica do capitalismo é a lei da reprodução crescente, ampliada, representada pelo esquema (D-M-D’). Ou seja, a tendência do capital, como mostra Martins (1981), é se expandir e dominar progressivamente todos os ramos e setores da produção. As relações de produção capitalistas são relações sociais de produção, ou seja, relações entre os homens no processo de produção das condições materiais de sua existência. Nesse sentido, o produto final do processo de produção não é a mais-valia e sim a mercadoria, cujo valor é representado pelo trabalho social inserido nela.

Dentre as mercadorias, há de se destacar uma em especial, o trabalho humano, único capaz de produzir novas mercadorias e valor. Porém, só é possível explorar a mais-valia do trabalhador a partir da expropriação de seus meios de produção. Dessa forma, os trabalhadores se transformam em trabalhadores livres, libertos de toda a propriedade que não seja a sua força de trabalho. Assim, cria-se uma igualdade jurídica, uma relação livre entre proprietários dos meios de produção e proprietários da força de trabalho, uma relação de compra e venda que só pode existir entre pessoas formalmente iguais. A relação criada de suposta liberdade e igualdade é a base da relação social capitalista e se assenta no processo de expropriação dos meios de produção ocorrida no movimento de acumulação primitiva.

É dessa forma que o trabalhador é apropriado pelo capital. Como mostra Martins (1981, p.154)“A função do salário é a de recriar o trabalhador, fazer com que o homem que trabalha reapareça como trabalhador do capital”, recriando ao mesmo tempo sua liberdade e sua sujeição. Assim, o trabalhador fica livre ao mesmo tempo em que fica preso. A lógica contraditória do capital, se apresenta desse modo, onde ao mesmo tempo que a relação social capitalista é aparentemente igual, ela reproduz resultados econômicos fundamentalmente desiguais, personificados por posições hierárquicas e expressos na luta de classes.

A ilusão que se forma é de que não há exploração, de que ocorre uma troca em condições iguais, o que é uma relação alienadora. A riqueza que o capital acumula não aparece como se fosse retirada do trabalhador e sim como produto do capital. O trabalhador, assim, não vê a riqueza que cria, “se torna estranho diante da própria obra, do trabalho” (MARTINS, 1981 p.156).

Para entender esse processo, é importante a distinção feita pelo autor entre capital (reprodução ampliada, mais-valia extraída do trabalhador, trabalho não pago) e dinheiro (equivalente geral da troca na sociedade capitalista). A terra, instrumento fundamental

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de produção, é erroneamente considerada como capital por muitos autores. Diferentemente do capital, a terra não é produto do trabalho assalariado, nem de nenhuma outra forma de trabalho. É um bem que não pode ser reproduzido ou criado pelo trabalho. Assim, a terra não tem valor como materialização do trabalho humano, como discute Martins (1981 p.159), funcionando como um “instrumento de trabalho qualitativamente diferente dos outros meios de produção”. Porém, como a lógica de reprodução ampliada do capital tende a transformar tudo em mercadoria, subordinando todos os setores e ramos da produção, também pode transformar a terra em mercadoria, tendo um preço, mas não valor.

Oliveira (2007), seguindo a mesma linha teórica, difere a concentração da terra da concentração de capital, sendo a primeira produto do monopólio de uma classe sobre um meio de produção específico, que é a terra. O autor mostra que a propriedade capitalista da terra é renda capitalizada, ou seja, o direito de apropriar-se de uma renda. A propriedade privada da terra permite a cobrança de um tributo: a renda capitalista da terra. A “grilagem”, nesse sentido, funcionaria como um “caminho ‘gratuito’ do acesso à renda, do direito antecipado de obter o pagamento da renda, sem mesmo ter sequer pago para poder auferi-la”, nas palavras de Oliveira (2007 p. 66).

A renda da terra, mencionada anteriormente, funciona, portanto, como apropriação privada da mais-valia social. É o lucro extraordinário, suplementar, fração do trabalho não-pago e está imbutida no preço final do produto (definido por aquele que tem as piores condições de produção). Pode ser dividida em renda absoluta (cobrada pelos proprietários, resultante do monopólio da terra) e renda diferencial (cobrada pelos produtores, resultante da concorrência entre os mesmos). A renda da terra, portanto, funciona como um lucro a mais do que o lucro médio do capital, apropriado pelo capitalista e escondido no complexo processo de produção, ocorrendo tanto no campo como na cidade. A sujeição da renda da terra ao capital expressa a necessidade de renovação das lutas pela reforma agrária. Nesse sentido, não basta ter a terra, é preciso ter a renda da terra!

• A questão agrária em um debate clássico Ao pensarmos hoje na questão agrária e sua intrínseca complexidade, devemos

sempre retomar os estudos de obras clássicas, não na intenção de reproduzir as mesmas ideias, mas pela importância de fornecerem bons pilares teóricos e uma interessante reflexão sobre o desenvolvimento capitalista na agricultura.

Não se deve adotar generalizações desse debate clássico acerca da sociologia agrária automaticamente para todas as parcelas do espaço, e sim praticar uma releitura que vise uma apropriação dos conceitos, tendo em vista a constante evolução espaço-temporal e consequentemente o processo de transformação também das bases teóricas. Assim, um levantamento bibliográfico, propiciará não só um embasamento sobre o desenvolvimento capitalista no campo e seus impactos, mas, sobretudo sua utilização como uma ferramenta para a construção de uma visão crítica, partindo de reformulações ideológicas que continuem produzindo formas de resistência à imposição do capital.

O debate clássico começou a ganhar notoriedade no último quartel de século XIX (GUEDES, 2005). Vivendo em contextos bem diferentes, Lênin, teórico russo, e Kautsky, teórico germânico, formularam teorias acerca do desenvolvimento capitalista na agricultura. Devido a ambos os autores serem adeptos das teorias marxistas, as duas obras de alguma forma percebiam os produtos gerados entre o capitalismo e espaço agrário de maneiras iguais, mesmo que por processos diferentes.

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“...em Lênin (1980), o traço básico é a diferenciação social do campesinato, rumo a proletarização destes; já, em Kautsky (1980), é uma tentativa de mostrar a superioridade técnica e econômica da grande exploração capitalista sobre a produção familiar...”(GUEDES, 2005)

A base marxista usada pelos autores estava pautada numa ideia de impossibilidade de agregar o campesinato frente a uma visão social regida por duas classes; os donos dos meios de produção e os expropriados dos mesmos. Assim, tendo como ponto de partida as teorias de Marx, tanto Lênin como Kautsky previam o fim do campesinato e sua respectiva transformação em uma classe de trabalhadores assalariados, ou capitalistas. Além disso, Marx falava da incapacidade de se transitar do feudalismo para o socialismo por meio de uma revolução campesina, pois era preciso antes, instaurar-se o modo de produção capitalista para que então, ele por sí só, criasse as contradições necessárias para uma transformação social. Nesse sentido, evidencia-se mais uma vez que a população campesina estaria fadada ao fim frente à imposição capitalista. Também é importante falar que essa visão que Marx tinha da inadequação do campesinato frente a uma luta de duas classes mudou com o passar do tempo, como mostra Guedes,

“... Marx via na comuna campesina russa um submundo arcaico, de pobreza material e débil contra as forças exploratórias externas. “Su decadência bajo

el capitalismo seria necessária” (Marx apud Shanin, 1990, p. 31). Porém, o Marx tardio (pós-1870) admitiu a coexistência e a dependência mútua de formas sociais capitalistas e não capitalistas no espaço agrário”.(GUEDES, 2005, p.140)

Junto a Lênin e Kautsky, existem mais dois autores clássicos, estudiosos da questão agrária que merecem destaque, Chayanov e Tepich. As ideias desses autores estavam centradas na teoria da organização da unidade econômica campesina, tendo como esforço intelectual, explicar a racionalidade e as particularidades da produção campesina a partir de seu interior, e não como os outros autores, que baseavam suas explicações em comparações externas, como na confrontação do campesinato com uma estrutura de classes consolidada e exteriores a eles.

“...O que estabelece o critério desta necessidade não é, ao contrário do que ocorre em Marx, a relação com o outro e a superação de si próprio no quadro desta relação. Ao contrário, é no interior mesmo do organismo camponês (mais do que na sua inserção social) que serão aqui procurados os elementos que fazem parte dessa forma social” (ABRAMOVAY, 1992, p.52)

Foi assim que Chayanov argumentou que a economia camponesa se orienta pela organização interna do trabalho de seus componentes em moldes não-capitalistas (GUEDES,2005), ou seja, não há relações de assalariamento na organização familiar de produção. Era isso que fazia Lênin e Kautysk pensarem que o campesinato estivesse fadado a extinção, e ao contrário, pelo mesmo motivo, Pepich e Chayanov viam essa constatação não só como uma permanência da produção familiar, mas como uma incorporação desta ao modo de produção capitalista (continuando a ser uma prática não-capitalista) ou até mesmo sua ampliação.

Dentro desse diálogo referente às obras clássicas sobre a questão agrária, torna-se importante uma análise que vise uma interpretação sem maniqueísmo ou hierarquizações. Cada autor estava imerso em um contexto diferente e, portanto, construíram teorias baseados em seus espaços vividos e permeados por diversas intencionalidades. Assim, quando procuramos trazer essas contribuições para a nossa realidade, temos que ter cuidado para não reproduzirmos as mesmas ideias, nem engessarmos as teorias no tempo. A produção espacial incessante nos põe o desafio de também tentar acompanhar a sua transformação, e é isso que será determinante na forma de pensarmos o campesinato. Ou poderemos pensá-lo como “um saco de

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batatas”, sem forma e sem resistência, ou pensá-lo como “um saco de batatas que para em pé”, que existe, se reproduz e, sobretudo, continua perpetuando a resistência (ABRAMOVAY,1992).

• Globalização neoliberal, chantagem locacional, mecanismos de controle de terras e acumulação via espoliação: A ressignificação da acumulação primitiva

Tendo em vista as grandes mudanças promovidas desde a década de 1970, pela aceleração violenta do processo de globalização com a fase neoliberal, é fundamental tecer uma análise a respeito dos mecanismos utilizados para a manutenção do processo de reprodução ampliada do capital. Em um contexto de uma economia global-informacional, articulada por fluxos, as manifestações espaciais desse processo de interação desigual do fenômeno globalização/fragmentação se dão no conflito global/local. Dessa forma, certas cidades passam a assumir papéis centrais na economia mundial, sendo articuladas de acordo com os interesses privados internacionais do capitalismo e, consequentemente, tornando-se palcos das transformações e contradições inerentes à reprodução do capital.

Busca-se hoje pelo mundo, além de incentivos fiscais, uma mão-de-obra barata e ausente de leis trabalhistas. As tecnologias de informática que surgem, no “meio-técnico-científico-informacional” de Santos (2006), permitem a desconexão física entre a localização da indústria e o mercado consumidor. Passa-se a fragmentar a gestão e a execução com o movimento de terceirização internacional. A globalização apoia-se nessa fragmentação, utilizando as diferenças dos lugares a seu favor.

Nessa relação da lógica global com o local, vemos simultaneamente o lugar como reprodutor e gerador de conflito com as tendências globais. Portanto, vemos que “cada lugar é, à sua maneira, o mundo”, como analisa Santos (2006). Porém, é importante entender a maneira assimétrica com que se dá essa relação, pautada em um jogo de forças essencialmente desigual.

Devemos entender a desregulação e a mobilidade acrescida como estratégias territoriais, tendo em vista a reorganização permanente do modo de funcionamento do sistema, que permitem a chamada “chantagem locacional”, também conhecida por “guerra dos lugares”, que se refere ao confronto dos atores locais. Esses processos de desregulação e deslocalização também acompanham um conflito ambiental, como mostra Acselrad (2009), onde há uma alocação concentrada dos riscos sobre os mais pobres, permitida por meio de pressões e ameaças dos portadores de poder. O que é visto como “intolerável” ou “arriscado” é constrangido pelas condições impostas pelas empresas, o que evidencia a desigualdade das relações de poder (ACSELRASD, 2009).

É criado um imaginário de flexibilidade, liberdade, mascarando o controle dos fluxos econômicos e simbólicos. A chantagem da deslocalização, escondida por uma suposta liberdade de mercados, que buscam atrair esses investimentos, está inserida nesse contexto, sendo uma das marcas dessa etapa histórica do capitalismo. Essa etapa é marcada pelos processos de “acumulação via espoliação” ou “acumulação por despossessão”, segundo Harvey (2004), como estratégia de superar suas “crises cíclicas” de superprodução a partir de um ambiente “exterior”.

É importante ressaltar que o capitalismo requer algo “fora de si mesmo”, ou nas palavras de Harvey (2004, p, 118), “cria, necessariamente e sempre, seu próprio ‘outro’”. Como ele mostra, o capitalismo pode usar algum tipo de exterior preexistente, como produzi-lo ativamente. O processo de acumulação primitiva, que constitui uma importante força de acumulação por meio do imperialismo, revela uma ampla gama de

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processos, como a “mercadificação” e privatização da terra, a expulsão violenta de populações camponesas, a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns e a mercantilização da força de trabalho e a supressão de formas alternativas, em processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos. A época em que grandes massas humanas são repentina e violentamente despojadas de seus meios de subsistência e jogadas ao mercado sob a forma de proletários privados de tudo, como afirma Marx, que deu destaque à expropriação do produtor rural. O Estado, que teve papel fundamental no apoio e na promoção desses processos continua a ter função vital para o desenvolvimento capitalista, só que atuando de outra forma.

O capitalismo sempre precisa de um fundo de ativos externos para enfrentar e contornar pressões de sobreacumulação, conforme já foi dito. Se esses ativos, como a “terra nua” e novas fontes de matérias-primas, não estiverem acessíveis, o capitalismo tem de produzí-los de alguma maneira. Dentre essas novas fronteiras de expansão, estão novos mercados e novos territórios “ativos”, tanto naturais como organizacionais, conforme destaca Acselrad (2009).

Todas as características da acumulação primitiva que Marx enfatizou ainda permanecem fortemente presentes, como mostra Harvey. A privatização de indústrias, a formação de um proletariado sem-terra e a substituição da agricultura familiar pelo agronegócio são exemplos contundentes disso. Outros mecanismos da acumulação primitiva mencionados foram aprimorados, passando a desempenhar atualmente um papel bem mais intenso do que no passado. O capital financeiro e o sistema de crédito, que assumem posições centrais no capitalismo contemporâneo (evidenciadas pela atual crise do capital), tornaram-se grandes instrumentos de espoliação. A escalada de destruição dos recursos ambientais globais e a corporativização e privatização de bens até agora públicos indicam essa nova onda de expropriação dos recursos comuns. A “acumulação por espoliação”, assim, libera amplos campos a serem apropriados pelo capital sobreacumulado. Funciona como atualização da acumulação primitiva, onde, através de mercantilização e privatização (e utilizando também a violência), busca novas fronteiras para a expansão do capital.

Peluso e Lund (2011) também destacam os mecanismos de “land control”, como práticas que fixam ou consolidam formas de acesso, reinvindicação ou exclusão, apoiadas nos processos de cercamentos, territorialização, legalização e violência. Mostram que essas novas fronteiras de controle de terras e recursos, ou “land grabbing”, estão sendo ativamente criadas, gerando lutas que envolvem atores, contextos e dinâmicas variadas. Os autores também relacionam essas práticas com momentos históricos anteriores, caracterizando-as como parte de um “novo movimento de cercamentos”. Porém, destacam como novos alguns mecanismos de controle de terras, assim como as justificativas e as alianças, além do próprio contexto político e econômico do neoliberalismo. Nesse contexto, novas e velhas formas de apropriação se combinam de maneira complexa, combinando também aspectos de controle legalizado ou adquirido brutalmente, evidenciados na expressão “the rifle and the title”, Peluso e Lund (2011). Portanto, podemos concluir que a sofisticação dos mecanismos e a crescente complexificação dos atores e das relações sociedade-natureza não tornaram a apropriação de terras e suas formas de controle menos violentas.

• Brasil agrário: Uma reprodução de desigualdades Devemos partir do pressuposto que cada momento histórico corresponde a uma

espacialidade própria e consequentemente a uma relação entre campo e cidade singular. Porém, precisamos ter em mente que alguns elementos são passíveis de permanencia no

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espaço, cristalizações hegemônicas que moldam o ambiente e buscam uma constante manutenção. Construções sociais e desigualmente produzidas criam e recriam ferramentas que servem para sua reprodução como classe dominante.

Assim se configura todo desenvolvimento agrário brasileiro. Uma geo-história perversa e desigual que de alguma forma se acumula no tempo e nunca extingue suas raízes coloniais e concentradoras. “... Nesses 500 anos de colonização, de formação da civilização brasileira e de ocupação de nosso território, tivemos a rigor apenas três modelos...” (OLIVEIRA, 2005, p.7). O primeiro modelo adotado foi o agroexportador, baseado principalmente em uma estrutura de plantations que tinha como características básicas a utilização de grandes extensões de terras, monocultura, venda para o mercado externo e a utilização de força de trabalho escravo. Uma gestão territorial feita externamente pela coroa portuguesa, tendo em vista o período do colonialismo.

“... até a proclamação da República, toda a produção de nossa sociedade era organizada em torno da produção de produtos agrícolas destinados a exportação para a metrópole europeia. Assim, o colonizador impôs ao nosso povo e ao nosso território que a prioridade era produzir bens de que eles precisavam e não do que o nosso povo precisava.” (OLIVEIRA, 2005, p.8).

O modelo de industrialização dependente foi adotado por uma crise generalizada das contradições da organização econômica anterior. “O crescimento da nossa população e sua urbanização gerava novas necessidades e não se podia continuar dependendo de comprar tudo da Europa, como acontecia até então” (OLIVEIRA, 2005). Como mostra Oliveira, a crise também muda a estrutura social e desloca o centro do poder do campo para a cidade.

Essa crise vai se aprofundando, começando a surgir fábricas, aumenta o processo de urbanização e a “necessidade de produzir alimentos. E tudo isso eclode numa crise política, chamada de revolução de 1930, quando a nascente burguesia industrial brasileira destrona a oligarquia rural (apelidada de política do café-com-leite) e muda-se então o modelo econômico predominante”.

Como mostra Oliveira, resgatando o termo “modelo de industrialização dependente” de Florestan Fernandes, o processo de instalação de fábricas foi muito rápido e totalmente dependente do capital estrangeiro. Esse período foi de especial importância, pois contribuiu para o avanço da desigualdade à posse da terra, tendo em vista a formulação da Lei de Terras de 1850, que restringiu seu acesso mediante ao dinheiro. Assim, cria-se mais uma vez um mecanismo de “land control” (PELUSO & LUND, 2011), que concentra a terra na mão de poucos e expulsa a população para as cidades, engrossando a oferta de mão-de-obra necessária para a crescente industrialização.

Em 1980, esse modelo dependente começa entrar em crise, resultando assim em uma mudança política radical que se conclui pós anos 90 com o governo do Collor e se consolida com a gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Esse pacote político foi denominado de neoliberalismo, e era de fundamental importância para viabilizar o novo modelo para a acumulação do capital, o agronegócio.

“Esse novo modelo econômicos exigia liberdade total para o funcionamento do capital estrangeiro e financeiro. Sem controle do Estado. Sem controle da sociedade ou regras nacionais. E liberdade total para explorar os trabalhadores e os consumidores.” (OLIVEIRA, 2005, p. 15).

Algumas características podem ser elencadas para caracterizar o agronegócio; o controle agrícola pelos grandes grupos transnacionais, o estímulo à implantação de

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grandes fazendas para exportação de grãos, o processo de concentração e desnacionalização da terra, a destruição do papel do setor público agrícola e um novo modelo tecnológico, caracterizado pela “revolução verde”. Assim o agronegócio se torna a força hegemônica atual, gerando um agravamento das desigualdades e uma grande complexificação no que tange as formas de resistência ao modelo, principalmente pela sua articulação de várias dimensões como comércio, indústria, poder político, poder financeiro e, sobretudo, a produção midiática, propagandista, que produz novos mitos e reproduz velhos mitos para tornar a caminhada hegemônica do agronegócio mais fluida.

Assim, a natureza do desenvolvimento agrário no Brasil foi sempre pautada na reprodução de poderes elitistas, numa estrutura fundiária concentradora que preserva raízes em um colonialismo mal acabado e em um acúmulo de desigualdades. Os centros de poderes (entendidos como multidimensionais) foram deslocados durante o tempo, numa relação entre campo/cidade que pode ser entendida a partir dos conceitos de Ruy Moreira de fusão, separação e o momento atual de refusão, onde as fronteiras entre campo e cidade ficam menos perceptíveis e a escala do urbano e do valor de troca tornam-se hegemônicas no espaço. Esse processo denominada por Francisco de Oliveira como “atraso da vanguarda” e lembrado por Frederico Daia Firmino, resume bem o atual processo de desenvolvimento capitalista no campo brasileiro, que alia tecnologia de ponta com mão-de-obra semi-escrava. Além de ser um processo multiescalar, na medida em que reproduz uma política imperialista no “cone sul”, justificada por um discurso bem conhecido de almejo ao desenvolvimento e inserção no circuito internacional.

• “Urbanidades no rural”: Evidências da integração do espaço geográfico pela racionalidade urbana

É fundamental reconhecer o espaço geográfico como “totalidade em movimento” (RUA, 2011) uma vez que o espaço como um todo é produto das relações sociais de produção, que, movidas pela diferenciação espacial, estão em constante transformação. Dessa forma, modificam-se as práticas e os padrões produtivos para manter o espaço desigual, fragmentado. O rural e o urbano devem ser vistos como dimensões dessa totalidade, ou formas-conteúdo distintas, porém integradas. Outro aspecto que precisa ser enfatizado são as relações de poder que ocorrem nesse espaço, cujo motor da diferenciação espacial é a divisão do trabalho (RUA, 2011) Dessa forma, foi construída historicamente uma supremacia do urbano sobre o rural, sendo as relações entre ambos profundamente assimétricas. A legitimação dessa hierarquia se dá por distintos mecanismos, onde a própria linguagem expressa relações de poder. É dessa maneira que o espaço rural foi, ao longo da história, associado ao atraso e representado como inferior, involuído e primitivo, em oposição ao desenvolvimento e à modernidade do espaço urbano.

Porém, percebe-se que o espaço rural se complexifica na atualidade, dificultando a distinção em relação ao ambiente urbano. Isso ocorre devido à lei de reprodução ampliada do capital, caracterizada por ser crescente, expansiva. Ou seja, como a tendência do capital é se expandir e dominar progressivamente todos os ramos e setores da produção, a lógica da mercadoria tende a integrar o espaço como um todo, o que resulta na geração de novas atividades e funções para rural, além de novas tendências e perspectivas que passam a aparecer.

Assim, vemos que o rural não se opõe ao urbano enquanto símbolo de modernidade, como destaca Silva (2001). Apesar do atraso, da violência, associados a

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razões históricas, há a emergência de um novo rural, movido pelo agrobusiness e com novos sujeitos sociais. Entre eles, Silva destaca os neo-rurais, os moradores de condomínios rurais de alto padrão, empregados domésticos e aposentados (abrigados em loteamentos clandestinos), os agricultores familiares pluriativos, e os mihões de “sem-sem” (crescente categoria de excluídos e desorganizados). A precariedade no acesso a terra e a ausência de carteira assinada, luz elétrica, água canalizada e esgoto não são características que se restringem ao rural, aparecendo com grande intensidade nas pequenas e médias cidades.

Esse “novo rural” é caracterizado também pelo número crescente de pessoas ocupadas em atividades não-agrícolas. O êxodo rural é “compensado” com o crescimento dessas atividades. A dinâmica agrícola, embora fundamental, já não determina sozinha os rumos da demografia no campo. A tendência da urbanização fez com que as áreas rurais se organizassem econômica, social e culturalmente de acordo com os requerimentos urbanos, evidenciando o jogo de forças desigual que ocorre.

Nesse movimento complexo e contraditório de “desenvolvimentos geográficos desiguais” (HARVEY, 1996), são criados novos imaginários sobre o espaço rural, apoiados também no “pensamento verde”, que revaloriza o campo como sinônimo de harmonia e tranquilidade em oposição ao caos da cidade. Relacionada a ressignificação dos lugares rurais, está a negociação entre os atores locais e supralocais, já mencionada anteriormente. Assim, é percebida a importância da lógica simbólica na produção desse espaço híbrido.

As chamadas “urbanidades no rural” (RUA, 2011) aparecem como evidência desse espaço híbrido, unificado sob a lógica do mercado. Estas “seriam todas as manifestações materiais e imateriais com caráter inovador em áreas rurais, sem que, por isso, fosse identificado tal subespaço como urbano”, como mostra Rua (2011, p. 4), que completa:

Considera-se que as urbanidades podem ser constituídas por uma enorme gama de manifestações, que incluem, em seus aspectos materiais, a melhoria da infra-estrutura e dos meios de comunicação, novas formas de lazer, a segunda residência, o turismo, as indústrias, o acesso a bens de consumo coletivos, especulação imobiliária e o preço da terra, novas relações de trabalho, direitos trabalhistas, aposentadoria rural, dentre outros indicadores a relevar. Como aspectos imateriais poderiam ser citados os valores, a moda, a preocupação com a segurança, os costumes e os hábitos difundidos pela mídia que alteram sobremaneira a vida cotidiana rural. No dizer de Léfèbrve, (2001, p. 12) “ uma racionalidade divulgada pela cidade”.

Portanto, percebemos a força que assumem as representações do espaço, um sistema de signos e códigos de representação dominante, o que expressa o peso da lógica simbólica no exercício do poder. É notável também a crescente complexidade de comprender o rural e diferenciá-lo do urbano, o que gera, pela ênfase na separação, recortes arbitrários e incoerentes. Esse estudo evidencia a necessidade de comprender o espaço através de suas múltiplas dimensões e escalas, para demonstrar a importância dos lugares enquanto pontos de resistência.

• Contexto geo-histórico da região Fluminense O espaço fluminense foi palco de diversas transformações que atingiram suas

localidades de maneiras diferenciadas. Sobretudo durante o século XX, o espaço agrário sofre aceleradas mudanças influenciadas por uma constante transformação na dinâmica

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capitalista de acumulação que se movimenta através de ciclos específicos, e mescla-se em novos e velhos elementos para a constante ampliação do capital.

Até o início de século XX, a organização do espaço fluminense era hegemonizada pelo capital agrário e pelo mercantil (ALENTEJANO, 2005). Assim, as regiões que apresentavam centralidade nesse ordenamento territorial eram aquelas que tinham capacidade de materializar a lógica econômica específica desse período. A região do Vale do Paraíba, região das baixadas ao leste da Baixada da Guanabara, a região da Baixada da Guanabara em si e a região sul e noroeste do Estado, passando pela Serra dos Órgãos (ALENTEJANO, 2005), desempenhavam uma hegemonia, pois aliavam particularidades ambientais e interesses econômicos.

As primeiras décadas do século, como mostra Alentejano, marcam o impulso inicial da metropolização e “desruralização”, tendo em vista a decadência das oligarquias cafeeiras e o surgimento de uma burguesia industrial. Assim muda-se a lógica de acumulação que se materializa no espaço e exerce um novo ordenamento territorial. Sobretudo no período que vai de 1940 a 1964 o processo de metropolização acelera-se e algumas regiões do interior sofrem grandes esvaziamentos populacionais.

O auge da “desruralização” se constrói no período que vai de 1964 a 1980, tendo como principais motivos,

... as mudanças estruturais na atividade canavieira; a enorme expansão da atividade turística e com ela a especulação imobiliária; a desarticulação da resistência dos trabalhadores rurais pela repressão militar, o que eliminou umas das poucas forças contrárias ao processo dominante de urbanização/metropolização (ALENTEJANO, 2005)

Posteriormente a consolidação desse processo, começa a se observar investimentos à modernização da agricultura, incentivo ao avanço do turismo e uma consequente especulação imobiliária. Assim, como já mencionado, o espaço se complexifica na medida em que o capital impõe uma nova lógica acumulativa na articulação de fatores externos, que ganham novo valor. Instaura-se então, a fase de desconcentração industrial, aliada a uma política de valores neoliberais, propiciando uma supressão das forças locais frente às grandes corporações.

Regiões antes esquecidas ganham uma revitalização para que se adequem aos novos padrões de acumulação. Nesse sentido, o capital volta sobre si mesmo, criando ou/e preservando mecanismos para a contínua obtenção de lucro. Os conflitos de 1950/60 eram resultado da luta dos trabalhadores rurais frente à capitação de terras para absorver a crescente metropolização. Pós anos 80, a luta será por sobrevivência e emprego. Assim, devemos ter em mente que as resistências contra-hegemônicas também devem acompanhar a transformação da lógica hegemônica.

• Formação de identidades e territórios : Aspectos percebidos em campo Como já foi mencionado, a lógica simbólica é um fator determinante no que tange

a produção do espaço. Devemos ter em mente que um discurso nunca é neutro, ou seja, sempre carrega uma forma de ver o mundo, uma ideologia específica. Carrega poder quando afirma-se verdadeiro, além de ser um dos instrumentos por onde o poder circula, contendo diversas intencionalidades, como mostra Hall (2002). O poder expressa sempre uma relação e por isso, pressupõe um “outro”. Ao apontar os defeitos e as diferenças desse “outro”, o discurso se afirma como superior.

Associado ao discurso ocidental está o pensamento que aponta a supremacia do urbano sobre o rural, com uma série de associações ao atraso e à falta de desenvolvimento, conforme demonstrado anteriormente. Os aspectos imateriais das

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“urbanidades no rural” (RUA, 2011) como valores, moda, costumes e hábitos difundidos pela mídia, apesar de estarem em constante renovação, tem implicâncias significativas no modo de vida e na formação de identidades. A racionalidade imposta pela cidade, assim, gera mudanças profundas e que são materializadas no próprio espaço com novas formas e funções. São símbolos e representações do espaço que são inclusive reproduzidas pelos habitantes de áreas rurais, integrados ao “fenômeno urbano”.

De acordo com Benedetto (2010), a identidade, considerada como os valores assumidos dentro de um sistema relacional, se reproduz automaticamente, cria vínculos, referências múltiplas, implica um processo coletivo e determina maneiras de pensar, como construção social totalizadora. A autora incorpora o conceito de território neste esquema de pensamento, mostrando que “responde à lógica de codificação do espaço por meio da significação”(BENEDETTO, 2010, p. 7). Esta lógica do sentido, destacada pela autora é uma das formas da complexa construção da estrutura e organização territorial. Assim sendo, podemos verificar como as identidades influenciam na produção de discursos e, da mesma maneira, como os discursos implicam na “dissolução” ou formação de novas identidades. As identidades territoriais, dessa maneira, são assumidas como próprias, se posicionando frente a um “outro”. Benedetto mostra assim essa relação:

Es decir, que posicionan a partir de las “ventajas y desventajas” que se contabilizan a partir de una caracterización y comparación con “otro” (en este caso, ese otro, puede ser una población o comunidad, un departamento, una provincia, una región, etc).

Haesbaert (1997) tem muito a contribuir na discussão que envolve as identidades. O autor apresenta o conceito de território a partir de suas variadas dimensões. Por um lado, mostra uma dimensão de caráter político, jurídico, numa ordenação mais concreta do espaço como estratégia de domínio. Por outro, mostra uma dimensão cultural, simbólica, ou seja, um outro tipo de apropriação e controle pela identidade territorial atribuída pelos grupos sociais que ali vivem. Nesse sentido, a lógica do urbano, mais ampla, entra em conflito com a lógica do lugar. Como já mencionado, o lugar também pode funcionar como reprodutor dessa lógica hegemônica, onde ocorre uma urbanização comportamental, uma difusão de um modo de viver. E isso foi percebido com clareza no trabalho de campo realizado.

Os estudos que cercam o conceito de identidade evidenciam a complexidade do tema e a sua incapacidade de ser entendida a partir de discussões simples. Diversas correntes teóricas se empenham nessa área de estudo a fim de compreender aspectos desse fenômeno a partir de diferentes enfoques. Para se compreender a dimensão da identidade, devemos nos descolar do simplismo teórico e mergulhar em um pensamento relacional, que possibilite o desvendamento do emaranhando de elementos que cercam a identidade. Elementos materiais se mesclam a elementos imateriais, numa relação complexa entre individuo e espaço. Isso gera um constante movimento transescalar, isto é, a construção identitária, de maneira mais simples, é composta por esta relação entre ser e o espaço, mais ganha seu grau de complexidade quando destrinchamos o “ser” e o “espaço”. O ser, tanto pode ser um indivíduo como uma sociedade com uma identidade bem estabelecida, que influencia e é influenciada pelo espaço em diferentes escalas, tanto na localidade em que vivem como na escala global.

“... em meio ao emaranhado teórico acerca da noção de identidade, pode-se dizer que a compreensão da concepção de identidade como construção social – e não como algo essencial, inerente ao agente – já é uma quase unanimidade, pelo menos na antropologia contemporânea (Anjos,

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1998, p. 123 apud Schnadelbach, 2004)”. “Deste mesmo modo, é fato que a construção social da identidade pode ser realizada não só pelo individuo, enquanto ser particular, mas também e principalmente, por grupos sociais (como os grupos étnicos, por exemplo) e pelas culturas nacionais, as quais ao produzir “sentido sobre a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades” (Hall, 1998, p. 51).

Assim, para grande parte dos autores, como Barth (1998) a identidade não é inerente a grupo algum, não é uma essência imutável transmissível de gerações em gerações, mas é construída, modificada, transformada conforme o estado das relações sociais. Outros autores como Bourdieu (2002), além de defender a ideia de que a identidade é socialmente construída, também chama atenção para o fato de que esse processo esta permeado por jogos de poder, que podem ser mais perceptíveis ou não, mais que agem diretamente na distinção dos indivíduos ou grupos identirarios. Assim, o autor promove um importante complemento ao estudo de identidade, o estado de permanente conflito.

A entrevista efetuada em Vargem Grande, bairro onde se apresenta um elevado grau de urbanização, comprova a força dos aspectos simbólicos na construção de valores identitários. Um dos entrevistados ratifica a oposição entre campo cidade, onde reproduz a supremacia do modo de vida urbano. Assim, é perceptível a articulação da produção hegemônica do espaço, na medida em que a desigualização das parcelas do espaço é incorporada ao discurso do senso comum, evidenciando um jogo de força essencialmente desigual.

B. Procedimentos da investigação empírica

• Trabalho de campo: pontos O trabalho de campo realizado nos municípios de Teresópolis e Nova Friburgo

tinha como objeto principal o processo de complexificação da questão agrária tendo em vista o atual momento de refusão das dimensões urbano e rural. Para uma base teórica, contamos uma ampla bibliografia e diversas discussões no grupo de pesquisa, que propiciaram um melhor entendimento acerca do assunto a partir de diferentes pontos de vista. Nesse sentido, o campo forneceu a empiria necessária para que pudéssemos identificar as materializações dos aspectos teóricos estudados no decorrer da pesquisa. Assim, o trabalho de campo em si foi dividido em quatro pontos, onde foram realizadas diversas entrevistas com moradores e trabalhadores da região. As perguntas foram direcionadas principalmente aos eixos da transformação na paisagem e das relações de trabalho. Buscou-se assimilar as opiniões dos entrevistados e discernir as diferentes visões a respeito dos processos mencionados.

Ponto 1: A primeira (figura 1) parada, localizada no município de Teresópolis foi

importante para percebemos o quanto é difícil dar conta da complexidade do real. O sítio do senhor Zé Carlos (figura 1), na qual havia o cultivo predominantemente de alface hidropônico, tinha sete funcionários (todos sem carteira assinada) e ainda contava com o trabalho familiar por parte do “patrão”. Que classificação poderíamos dar a essa forma de organização? Será que poderíamos assemelhar o senhor Zé Carlos a um capitalista, ou a um produtor familiar? Tais questionamentos nortearam todo esse primeiro ponto, pois nos deu o exemplo materializado do processo de complexificação do rural. Além disso, esse ponto nos levou a perceber como a escala urbana, do valor de troca incorpora o espaço como um todo. A seleção pelo uso da técnica de hidroponia ou

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pela predominância do cultivo de alface mostra o mercado agindo como seletor e impositivo na agricultura de forma geral.

Figura 1: cultivo predominantemente de alface com a utilização da técnica de hidroponia no sítio do senhor Zé Carlos. Ponto 2:

O ponto 2 se localizou numa região denominada de Barracão dos Mendes, no município de Nova Friburgo e foi lá que conseguimos ver uma paisagem mais homogênea, tendo em vista o predomínio de plantações de hortaliças de forma geral. Tivemos mais contato com uma forma mais genuína de produção familiar, além de perceber mais claramente os diversos mecanismos de posse da terra. Percebemos muitas sobreposições de sujeitos, como por exemplo, a personificação de arrendatário, meeiro e transportador em uma só pessoa.

Apesar de empiricamente a paisagem se mostrar homogênea, observou-se a complexidade das “posições” sociais, que claramente correspondem a uma hierarquia associada à posse da terra. Assim, ter o título da mesma significa um maior controle sobre os demais atores sociais e consequentemente uma maior participação nas tomadas de decisões.

Ponto 3: Nossa terceira parada (figura 2) correspondeu a CEASA de Nova Friburgo que,

apesar de estar no final do expediente geral de comércio, foi de suma importância, pois conseguimos entender um pouco do circuito comercial e sua ligação direta com os dois primeiros pontos. O sujeito do “transportador”, ou “atravessador”, evidenciou outro jogo de hierarquização, também resultante de relações desiguais e de uma capacidade de decisão diferenciada por elementos específicos. Pode ser a terra, exemplo do ponto 2, ou como nesse caso, a posse de um transporte de carga.

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Figura 2: CEASA localizada no município de Nova Friburgo

Ponto 4: A quarta parada se localizou no bairro de Vargem Grande, no município de

Teresópolis. A paisagem da região se contrastou com os pontos 1 e 2, na medida em que se observou uma difusão urbana mais elevada. Havia uma grande expansão de condomínios fechados de alto padrão e uma diminuição da agricultura.

O bairro se mostra como um bom exemplo do processo de hibridez do espaço, que configura uma imposição da escala urbana e suas consequentes contradições.

Frente à multidimensionalidade do espaço, sua transformação acompanha uma mudança também social, percebida pelos relatos de alguns moradores da região. As identidades se modificam e seguem a tendência espacial específica, tornando a imposição da lógica urbana mais consensual. A agricultura que antes era percebida como lógica dominante, hoje perde este posto para os valores urbanos, passando a ser interpretada como minoria, atrasada e até como uma forma de resistência ao novo modelo “mais evoluído”.

Esses pontos diversificados serviram como comparações com Vargem Grande (Teresópolis), nosso foco específico de interesse.

Conclusões parciais: Apesar de resultados embrionários, tentamos apreender o processo de mudança

identitária de pessoas que residem no bairro de Vargem Grande, no município de Teresópolis como exemplo do objeto amplo da pesquisa sobre a atual hibridez do espaço e a sobreposição de valores agrários e urbanos.

Nesse sentido, realmente conseguimos observar grandes transformações espaciais acompanhadas de mudanças sociais no bairro de Vargem Grande. Uma visível

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refuncionalização de certas localidades, com novos empreendimentos e atividades, assim como os relatos de habitantes da região, demonstram a grande transformação. É notável a maneira complexa e contraditória com que se dá o desenvolvimento do capitalismo no campo, o que representa o grande desafio acadêmico de entender as novas dinâmicas territoriais, com a difusão da racionalidade do urbano e a consequente ressignificação do rural. A desigualdade de forças com que se dá o processo, expressa a necessidade de uma análise que contemple variadas escalas, assim como as diversas dimensões e mecanismos de exercício de poder.

Como a luta deve ser contra o capital, segundo Silva (2001), apenas adquirir a terra não representa as mudanças necessárias. A reforma agrária, que constituiu-se em instrumento político dos governos para frear movimentos reolucionários, não representa uma alteração estrutural, não modifica o modo de produção, mas o renova. Assim, Silva (2001) fala em “revolução agrária”, que implica, necessariamente, “na transformação da estrutura fundiária realizada de forma simultânea com toda a estrutura social existente, visando a construção de outra sociedade” (SILVA, 2001, p. 68).

As entrevistas efetuadas em campo comprovam a complexidade do rural na medida em que cada vez mais se torna difícil delimitar fronteiras entre campo e cidade. Essa transformação se materializa também nas práticas sociais e na formação de novos valores indenitários. Enquanto em alguns momentos da história, a realidade nos mostrava uma relação urbano-rural mais clara, ou seja, uma percepção dos aspectos diferenciadores entre urbano e rural mais notável, hoje, essa dicotomização não se faz mais presente. A escala global da urbanização, do valor de troca, difunde-se facilitada por canais mais fluidos, que em sua materialização promove um movimento transescalar aglutinando as parcelas do espaço. Trata-se de um processo aparentemente homogêneo, mas que intrinsecamente, carrega um jogo de forças assimétricas. Podem ser percebidos alguns resultados preliminares associados às mudanças crescentes no bairro de Vargem Grande. As transformações ocorrem tanto dentro do bairro, como na sua relação com seu exterior. Está em curso, uma visível (re)funcionalização material, ligada ao estabelecimento de empreendimentos como condomínios de alto padrão e o aumento do preço da terra, assim como os aspectos imateriais, ligados aos discursos de supremacia da racionalidade urbana sobre a rural e às decorrentes transformações identitárias.

Assim, Vargem Grande materializa as contradições do processo de urbanização, nos propondo uma contínua gama de questionamentos, e uma necessidade de analise que perceba o espaço como integrado, associado à lógica geral do capital, mas realizado de maneiras diferenciadas e desiguais nas localidades. As práticas sociais e os valores identitários expressam a complexidade das mudanças. Por um lado, é percebido um movimento de resistência de certos valores e práticas rurais. Por outro, alguns dos entrevistados demonstraram a incorporação e valorização de valores e práticas urbanas, ressaltando sua supremacia e reproduzindo o discurso hegemônico. Tais contradições fomentam a continuidade dos estudos em relação à dialética entre a hibridização e fragmentação do espaço, objetivando compreender quais os fatores que levam às transformações identitárias em localidades distintas. Portanto, já que a lógica do capital integra o espaço como um todo, também devem se integrar os movimentos de resistência contra tal imposição. Deve ser dada maior importância aos lugares, onde se manifestam essas relações em resistência e onde ocorre o conflito entre as identidades territoriais. Essa tensão, porém, precisa ser integrada a uma lógica mais ampla de resistência, passando de lutas particulares a uma universalidade.

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