A Tragédia Shakespeareana numa Perspectiva Nietzschiana

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  • 8/4/2019 A Tragdia Shakespeareana numa Perspectiva Nietzschiana

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    Universidade Estadual de GoisFaculdade de Filosofia

    Ps-Graduao (Mestrado)

    A TRAGDIA SHAKESPEAREANASOB UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA

    Eduardo Carli de MoraesDisciplina: O trgico na ao Arendt e Nietzsche

    Professor: Adriano Correia

    Goinia, Julho de 2011

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    I. A TRAGDIA GREGA NA PERSPECTIVA NIETZCHIANA

    Nietzsche, filsofo que iniciou sua carreira na rea da filologia, tornando-se mestre na artede interpretar os textos clssicos da Antiguidade greco-romana, demonstra j em suas primeirasobras um rico e extenso conhecimento sobre a produo cultural da civilizao grega. Provam-no

    sua obra dedicada aos filsofos pr-socrticos, A Filosofia Na Era Trgica dos Gregos, ondediscute as concepes de Demcrito, Anaximandro, Herclito, Parmnides, dentre outros, e ONascimento da Tragdia, emque reflete sobre a histria da cultura grega tendo como fio condutor atransformao histrica que gerou, aps o perodo homrico, a tragdia tica de squilo e Sfocles,especulando como esta foi posteriormente assassinada pela ascenso da filosofia de Scrates eseu arauto na dramaturgia, Eurpides.

    O Nascimento da Tragdia um livro de juventude, cujas ideias surgiram sob a influnciaintensa de Schopenhauer e Wagner, escrito em estilo intempestivo e repleto daquela tempestade empeto [Sturm und Drang] que era ento lema dos romnticos. Nesta obra, Nietzsche ousa ver acincia com a ptica do artista, mas a arte, com a da vida... 1 Um dos mistrios que o filsofo se

    dedica a aclarar o seguinte: a mais bem-sucedida, a mais bela, a mais invejada espcie de genteat agora, a que mais seduziu para o viver, os gregos mas como? Precisamente eles tiveramnecessidade da tragdia? Mais ainda da arte?2

    Segundo Nietzsche, a tragdia grega representaria uma sntese entre dois princpiosadversrios, batizados em homenagem aos dois deuses da arte no panteo helnico, Apolo eDioniso. Haveria um extraordinrio antagonismo, tanto de origem como dos fins, que subsiste nomundo grego entre a arte plstica, a apolnea, e a arte no-plstica da msica, aquela de Dioniso 3.Do casamento entre estes princpios aparentemente irreconciliveis, e que segundo Nietzscheestabelecem sua primeira aliana com o advento da tragdia tica, surge esta notvel obra-de-artemesclada e indita: a tragdia musical grega, a um s tempo apolnea e dionisaca.

    O apolneo, que representaria uma divinizao do princpio de individuao de que tantofala Schopenhauer em O Mundo Como Vontade e Representao, preza pela conservao daindividualidade, da razo, da medida, da moral. Apolo nos aparece como a divinizao do

    principium individuationis,escreve Nietzsche:Essa divinizao da individuao, particularmente se for considerada como imperativa e

    prescritiva, no conhece seno uma nica lei, o indivduo, isto , a manuteno doslimites da personalidade, a medida, no sentido helnico. Apolo, como divindade tica,exige dos seus a medida e, para poder conserv-la, o conhecimento de si. E assim, necessidade esttica da beleza vem se juntar a disciplina desses preceitos: 'Conhece-te a ti

    mesmo!' e 'Nada em demasia!' - enquanto a autopresuno e o exagero so os demnioshostis da esfera no-apolnea e, nessa qualidade, pertencem realmente ao tempo pr-apolneo, poca dos Tits e do mundo extra-apolneo, isto , ao mundo brbaro. Porcausa de seu amor titnico pelos homens, Prometeu acabou sendo dilacerado pelo abutre;

    por causa de seu excessivo saber que o levou a decifrar o enigma da esfinge, dipo foiarrastado num turbilho inextricvel de monstruosos crimes: assim que o deus de Delfosinterpretava o passado grego.

    J o princpio dionisaco responsvel pela abolio do eu tpica dos estados deembriaguez ou xtase mstico, estado aparentado quilo que Romain Rolland, num conceito quetornar-se-ia caro a Freud, chamava de sentimento ocenico. O apolneo fala em prol do Eu; o

    1 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragdia. So Paulo: Cia das Letras. P. 16.2 Op cit. P. 14.3 Op Cit. Captulo 1. P. 27. Ed. Escala.

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    dionisaco, em prol da dissoluo do Eu no todo. O apolneo socrtico, racionalista, sensato; odionisaco pago, sensualista, desmesurado. No templo de Apolo, os estandartes so oConhece-te a ti mesmo! e o Nada em Demasia!; j o deus Dioniso, apesar de no ter templofixo (os rituais em sua homenagem so celebrados nos carnavais, nas festas, nas danas, nasorgias...), sugereria a seu entusiasta algo como: Dissolve teu Eu naquilo maior que Ti! eEmbriague-se at esquecer-se de si mesmo! Nos rituais dionisacos gregos, sugere Nietzsche, era

    como se a natureza soluasse por seu despedaamento em indivduos e como se quisesse reunific-la misticamente (...sob o grito de jbilo mstico de Dionsio, rompido o feitio da individuao efica franqueado o caminho para as Mes do Ser, para o cerne mais ntimo das coisas... 4).

    Seja por influncia da beberagem narctica, da qual todos os povos e homens primitivosfalam em seus hinos, ou com a poderosa aproximao da primavera a impregnar toda anatureza de alegria, despertam aqueles transportes dionisacos por cuja intensificao osubjetivo se desvanece em completo auto-esquecimento. (...) Sob a magia dodionisaco torna a selar-se no apenas o lao de pessoa a pessoa, mas tambm a naturezaalheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliao com seu filho

    perdido, o homem. (...) Agora, graas ao evangelho da harmonia universal, cada qualse sente no s unificado, conciliado, fundido com seu prximo, mas um s, como se ovu de Maia tivesse se rasgado e, reduzido a tirar, esvoaasse diante do misterioso Uno-

    primordial5.

    4 Op Cit. P. 92.5 Op Cit. P. 30-31.

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    II. O SOCRATISMO E A MORTE DA TRAGDIA

    Desta aliana apolnea-dionisaca, teriam surgido as mais clssicas das tragdias de squilo(Prometeu Acorrentado) e Sfoles (dipo Rei, Antgona). Mas se perguntssemos a Nietzsche quemfoi que matou a tragdia, ele apontaria um dedo indicador acusatrio ao homem que Atenascondenou a beber a cicuta: Scrates. Em Scrates, se materializou um dos aspectos do helenismo,

    aquela claridade apolnea, sem mescla de nada estranho6

    . com ele que uma tendnciaantidionisaca ir ganhar uma expresso inauditamente grandiosa7. Este lgico desptico, estemistagogo da cincia, que no gostava das tragdias e dissuadia seus disspulos de frequentar

    peas trgicas, foi o carrasco da arte que tinham criado Sfocles e squilo. Basta imaginar asconsequncias das mximas socrticas: 'Virtude saber; s se peca por ignorncia; o virtuoso omais feliz'; nessas trs frmulas bsicas jaz a morte da tragdia..., aponta Nietzsche8. Em contrastecom isto, a tragdia, que surgiu da profunda fonte da compaixo, pessimista por essncia. Aexistncia nela algo de extremamente horrvel e o ser humano algo realmente insensato. O herida tragdia no fica em evidncia, como pensa a esttica moderna, na luta com o destino etampouco sofre o que merece. Pelo contrrio, precipita-se em sua desgraa cegamente e de olhosvendados.9

    Scrates o prottipo do otimista terico, escreve Nieztsche. Ele possui f naescrutabilidade da natureza das coisas e atribui ao saber e ao conhecimento a fora de umamedicina universal, percebendo no erro o mal em si mesmo10. Scrates, pois, o primeirohomem terico, o precursor ancestral da cincia, tida por Nietzsche como a oposio mais ilustre considerao trgica do mundo):Todo o nosso mundo moderno est preso na rede da culturaalexandrina e reconhece como ideal o homem terico, equipado com as mais altas foras cognitivas,que trabalha a servio da cincia, cujo prottipo e tronco ancestral Scrates. Todos os nossosmeios educativos tm originariamente esse ideal em vista...11

    Com o socratismo vem ao mundo uma profunda representao ilusria: a inabalvel f deque o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge at os abismos mais profundos do ser e que o

    pensar est em condies, no s de conhec-lo, mas inclusive de corrigi-lo.... Atitude esta queNieztsche no poupa de rotular como uma sublime iluso metafsica12. Pois h aquilo que acincia no explica, aquilo que a assombra, aquilo que derruba sua f em si mesma. Pois todohomem de cincia acaba por tropear, e de modo inevitvel, em tais pontos fronteirios da

    periferia, onde fixa o olhar no inesclarecvel13.

    Sob a influncia do socratismo, nasce a dramaturgia de Eurpides: a divindade que falavapor sua boca no era Dionsio, tampouco Apolo, porm um demnio de recentssimo nascimento,chamado Scrates. Eis a nova contradio: o dionisaco e o socrtico, e por causa dela a obra de arte

    da tragdia grega foi abaixo... o mais esplndido templo jaz em runas...

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    Este socratismo estticoassassina o trgico e o dionisaco ao exigir que tudo fosse inteligvel e compreensvel para quepudesse ser belo. A arte estava se tornando engessada pela razo, e Scrates nascia como umadversrio, inimigo em franca batalha contra o deus Dionsio.

    Em Nieztsche, comea a ser tirada a coroa de rainha da cabea presunosa da Razo, que

    6 NIETZSCHE. Scrates e a Tragdia. Apndice Filosofia na Era Trgica dos Gregos. So Paulo: Escala. P. 134.7 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragdia. So Paulo: Cia das Letras. P. 90.8 Op Cit. P. 89.9 Op Cit. P. 136.10 Op Cit.

    11 Op Cit. P. 109.12 Op Cit. P. 93.13 Op Cit. P. 95.14 Op Cit. P. 79.

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    havia sido coroada pela primeira vez por Scrates e que havia recebido novo glorioso coroamentopela vitria do Iluminismo contra as trevas medievais. No tempo de Nieztsche, porm, umadesconfiana em relao aos poderes da cincia j se espraiava: o Fausto de Goethe, homem dotadode uma imensa sede de saber, mas que descobre-se insatisfeito e insacivel, entregando-se magia eao diabo, um mito-smbolo do homem moderno que comea a pressentir os limites daqueles

    prazer socrtico de conhecimento e, do vasto e deserto mar do saber, ele exige uma costa15.

    Nietzsche no cessar de denunciar a iluso que est por detrs desta crena cega nospoderes da cincia, que se arroga o poder de sondar o ser mais ntimo das coisas, exilando para oreino da mentira e da fico toda a arte e toda a mitologia. A enorme bravura e sabedoria deKant e Schopenhauer, escreve Nietzsche, conquistaram a vitria mais difcil, a vitria sobre ootimismo oculto na essncia da lgica, que , por sua vez, o substrato de nossa cultura. 16

    A arte trgica apolneo-dionisaca, ao contrrio da arte fiel aos princpios do socratismoesttico, no nos esconde os horrores da condio humana, no os varre para baixo de tapetes esempre nos h de fazer reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um dolorosoocaso17. Mas isto no significa que seu sentido esteja no ensinamento de que os bens deste mundo

    no seriam dignos de apego, o que conduziria ao que Nietzsche chama de resignacionismo deSchopenhauer; segundo O Nascimento da Tragdia, esta forma de arte nos faz perceber, para almdo indivduo, a exuberante fecundidade da vontade do mundo e nos estende o convite para quenos abracemos ao uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos...; por isso, a tragdiano cai sobre nossa espinha intentando destruir-nos: um consolo incomparvel deve ser prprio verdadeira tragdia.18 Segundo Nietzsche, os gregos devem servir como nossos luminososguias19, pois para eles a tragdia era uma necessria beberagem curativa que a culturacontempornea faria bem em ressuscitar para curar-se de sua prpria cultura ressecada pelosocratismo!

    15 Op Cit. P. 109.

    16 Op Cit. P. 110.17 Op Cit. P. 102.18 Op Cit. P. 102-103.19 Op Cit. P. 136.

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    III. NIETZSCHE E SHAKESPEARE: UM DILOGO POSSVEL?

    As reflexes de Nietzsche sobre Shakespeare esto dispersas em aforismos de vrias obras enos indicam que, ainda que no haja uma anlise sistemtica da obra do dramaturgo ingls, ofilsofo alemo nos oferece muitos elementos de reflexo sobre as criaes do autor de Hamlet,

    Otelo, Macbeth, King Lear e tantas outras tragdias. Em Shakespeare pode-se encontrar umasabedoria tica tal que, diante dela, o socratismo aparece como algo impertinente e pedante20,escreve Nietzsche, apontando que a obra trgica shakespeareana no se vincula ao socratismoesttico, sua condenao dos instintos e sua venerao da inteligibilidade. Em Shakespeare as

    paixes humanas mais arrebatadas so descritas e muitos comportamentos motivados por nsiassemi-conscientes tm consequncias tremendas.

    Shakespeare refletiu muito sobre as paixes e, provavelmente por seu temperamento,teve acesso ntimo a muitas delas (os dramaturgos so, em geral, pessoas um tanto ms).Porm no conseguiu, como Montaigne, falar a respeito delas, e colocou suasobservaes sobre as paixes na boca de figuras apaixonadas: o que () torna seus

    dramas to ricos de pensamentos, que eles fazem os demais parecerem vazios... Assentenas de Shakespeare fazem honra ao seu modelo Montaigne. 21

    Em um aforismo deHumano Demasiado Humano que trata da irreligiosidade dos artistas,Shakespeare classificado na ilustre companhia de Homero, squilo, Aristfanes e Goethe comoum autor capaz de lidar com desenvoltura e liberdade diante das supersties e crenas populares deseu tempo:

    Homero est to vontade entre seus deuses, e tem, como poeta, tamanha satisfao comeles, que deve ter sido profundamente irreligioso: com o que a crena popular lhe oferecia

    uma superstio mesquinha, grosseira e s vezes terrvel -, ele lidava to livrementequanto o escultor com sua argila, ou seja, com a mesma desenvoltura que possuamsquilo e Aristfanes, e mediante a qual, nos tempos modernos, distinguiram-se osgrandes artistas do Renascimento, assim como Shakespeare e Goethe.22

    Shakespeare tambm referido quando Nietzsche reflete sobre o culto ao gnio e as ilusesrelacionadas a isto como aquela de acreditar em um talento inato que seria ddiva dos cus:

    Porque pensamos bem de ns mesmos, mas no esperamos ser capazes de algumdia fazer um esboo de um quadro de Rafael ou a cena de um drama deShakespeare, persuadimo-nos de que a capacidade para isso algo sobremaneiramaravilhoso, um acaso muito raro ou, se temos ainda sentimento religioso, umagraa dos cus... s quando pensado como algo distante de ns, como ummiraculum, o gnio no fere (mesmo Goethe, o homem sem inveja, chamavaShakespeare de sua estrela mais longnqua...).23

    J a tese nietzschiana de que o que constitui a dolorosa volpia da tragdia a crueldade parece descrever bem certas peas shakespeareanas, especialmente aquelas mais sanguinolentascomo Titus Andronicus, Ricardo IIIou Macbeth.

    O que produz efeito agradvel na chamada compaixo trgica (...) obtm sua dourato-s do ingrediente crueldade nele misturado. O que o romano, na arena, o cristo, nosxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras e as touradas, o japons de hoje, quandocorre s tragdias, o operrio de subrbio parisiense, com saudade de revoluessangrentas, a wagneriana que, de vontade suspensa, deixa-se tomar porTristo e Isolda

    20 NIETZSCHE. Scrates e a Tragdia. Apndice A Filosofia da Era Trgica dos Gregos. P. 138.21 NIETZSCHE.Humano Demasiado Humano, #176, p. 122. Cia de Bolso.22 NIETZSCHE.Humano Demasiado Humano, #125, p. 91. Cia de Bolso.23 Op Cit. HDM, #162. p. 115. Cia de Bolso.

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    o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, a poo bemtemperada da grande Circe crueldade. Nisso devemos pr de lado a tola psicologia deoutrora, que da crueldade sabia dizer apenas que ela surge ante a viso do sofrimentoalheio: h tambm um gozo enorme, imensssimo, no sofrimento prprio, no fazer sofrera si prprio e sempre que o homem se deixa arrastar autonegao no sentidoreligioso, ou automutilao, como entre fencios e astecas, ou dessensualizao,descarnalizao, compuno, s convulses da penitncia puritana, vivisseco de

    conscincia e ao sacrifizio dellintelletto pascaliano, ele atrado e empurradosecretamente por sua crueldade...24

    Harold Bloom, em seu estudo comparativo entre Milton e Shakespeare, sustenta teses sobreo bardo ingls que o tornam muito prximo da filosofia nietzschiana: Shakespeare nem moralizanem endossa o niilismo, escreve Bloom, e esta dupla rejeio do moralismo e do niilismo seria

    perfeitamente legtima tambm para a descrio de Nietzsche.25 Mas dizer que Shakespeare no nem moralista nem cristo, opinio referendada por Harold Bloom, no equivale a dizer que odramaturgo ingls um imoralista ou um pago. As peas shakespeareanas frequentemente

    problematizam as questes ticas e jurdicas de modo a despi-las de sua aparente simplicidade e

    mostr-las em suas mltiplas determinaes e complexidades.

    Em Shakespeare, no h nem sinal do simplismo ou da ingenuidade daquela viso de mundoque concebe os virtuosos como felizes, os viciosos como desgraados, a recompensa semprerecaindo sobre os santos e a punio sempre sendo infligida sobre os corruptos e inquos. Arealidade retratada por Shakespeare bem mais matizada e complexa; nela, como aponta o

    personagem Escalo, de Medida por Medida, uns sobem custa do pecado, outros caem por causada virtude; alguns saem de uma selva de vcios sem ter que prestar contas de nenhum deles e outrosso condenados por uma nica falta.26.

    Em Shakespeare, no se trata tampouco de sustentar que vivemos em um mundo to fora

    dos eixos e to apodrecido (h algo de podre no reino da Dinamarca...) que tiranos corruptos egenocidas saiam sempre impunes de seus crimes. Em Shakespeare, a impunidade do mal no obrigatria, assim como no o a recompensa do bem. Macbeth e Ricardo III, por exemplo, noescapam punio que no uma punio divina, maneira do monotesmo judaico-cristo, nemuma justia potica alavancada por um deux ex machina, como em Eurpides, mas uma punioda prpria histria, ou seja, de outros agentes histricos que se rebelam contra a tirania e oderramamento de sangue e, atravs da guerra, da revolta ou da conspirao, retiram fora do poderos usurpadores. A ambio desmesurada, o cime destemperado e irracional, a utilizaosistemtica da violncia contra os opositores polticos, tudo isto acaba desgraando seus

    possuidores: Macbeth, Ricardo e Otelo terminam mortos nas respectivas peas.

    Nossa inteno nos captulos que seguem uma tentativa de pr a filosofia nietzschiana, emespecfico suas reflexes sobre a tragdia, a servio de uma interpretao de algumas das principaistragdias de Shakespeare. Dada a riqueza semntica de qualquer grande obra-de-arte, que pode serenfocada por mltiplos aspectos e ser interpretada de muitas formas diferentes, cabe alocar neste

    prefcio a mesma ressalva que anteps Vigostki ao seu estudo sobre Hamlet: a interpretao quelhe d o autor apenas mais uma dentro dessa multiplicidade de possveis interpretaes, que anada obriga.27

    IV. A INOCNCIA DESTROADA E A VIRTUDE SEM RECOMPENSA:

    24 NIETZSCHE. Alm de Bem e Mal, #229, p. 121. Cia das Letras.

    25 BLOOM, Harold. O Cnone Ocidental Os Livros e a Escola do Tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. Trad.Marcos Santarrita. P. 224.

    26 SHAKESPEARE. Medida Por Medida. In: Comdias e Sonetos. 2 ato, 1 cena, pg. 130, Ed. Crculo do Livro.27 VIGOTSKI.A Tragdia de Hamlet. So Paulo: Martins Fontes. Prefcio, XIX.

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    Desdmona e a negao do otimismo socrtico

    A tragdia shakespeariana jamais fornece ao espectador a consolao otimista, tpica do queNietzsche chama de socratismo, que sustenta que a recompensa da virtude a felicidade e a raizde todo o mal est na ignorncia. Analisemos brevemente, na pea Otelo, a figura de Iago, um dosmais memorveis viles de Shakespeare, e descobriremos nele algo que Scrates ou Plato jamais

    poderiam aceitar: uma perfdia triunfante, que consegue de fato atingir os fins cruis aos quais seprope. Sugerir que o mal praticado por Iago seria decorrente de um conhecimento insuficiente darealidade, fazendo seu vcio decorrer de sua falta de saber, seria de um imenso simplismo eequivaleria a desconsiderar intensos afetos por exemplo de inveja, ressentimento e vingana que

    borbulham em segredo em seu peito e o empurram no caminho do desgraamento voluntrio doamor de Otelo e Desdmona.

    A maldade de Iago, to imensa que beira o ininteligvel, um mistrio que a pea deShakespeare s aclara um pouco, deixando ao leitor a tarefa de compreender o mistrio desteaflitivo vilo. Perguntemo-nos a fundo: o que move Iago a agir de modo a destruir o idlio amorosode Otelo e Desdmona? Seria meramente a inveja por testemunhar um casal feliz, a insuportvel

    ferida de continuamente observar as delcias de um amor que ele no pode viver? como se Iagofosse movido por um sdico e destrutivo af de arrasar todos os jardins onde os amantes se deitamentre as flores, movido por um dio cortante contra o triunfo alheio.

    Iago no inveja somente querendo possuir o que o outro possui, mas querendo destruir obem de que o outro goza. Procura trazer para o inferno quem antes curtia em paz seu cu. ummanipulador de homens que os trata como pees num jogo de xadrez e se deleita com o prazerobsceno de v-los expulsos do doce tabuleiro da felicidade. Diante do espetculo insuportvel doamor de Otelo e Desdmona, encharca-se de dio e decide-se tarefa maligna: i'll poison hisdelight!

    E mais: Iago comete as mais monumentais monstruosidades sem nunca deixar que

    suspeitem de seu veneno secreto e sem molhar as mos de sangue. Ele no um bruto ou umselvagem; um vilo que, durante a pea, no apunhala ou atira em ningum, no atentadiretamente contra a vida de pessoa alguma. Iago prfido como poucos personagens na histria daliteratura, mas sua perfdia quase inteiramente verbal: Iago no esfaqueia; Iago fala, persuade,

    semeia a discrdia. E com suas prfidas palavras planta em outros as sementes de paixesexplosivas que, se no forem contidas, levaro amores e felicidades a destroarem-se e reduzirem-se a p. Talvez seja isto o que ele secretamente deseja: que o circo pegue fogo, simplesmente. Queningum tenha o direito de ser feliz quando ele no .

    A tragicidade decorrente da malignidade de Iago s se consuma quando cai a vtimainocente, Desdmona, uma das figuras femininas mais trgicas de toda a obra shakespeariana.Desdmona descrita como a encarnao da virtude e da beleza ( a fair, fine, sweet woman; so

    gentle a nature; she could sing savageness out of a bear; so high and plenteous in wit andinvention). Esta mulher gentil, doce, casta, inteligente e fiel jamais poderia ser vtima de umdestino to atroz caso os cnones seguidos pelo artista fossem aqueles do que Nietzsche chama desocratismo esttico. Shakespeare mostra-se aqui muito mais aparentado tragdia grega desquilo e Sfocles do que um referendador da filosofia platnica. Ora, Desdmona a inocente quemorre, aquela que punida por pecados que no cometeu, aquela cujas inmeras virtudes no sorecompensadas com a felicidade e a paz, como o otimismo socrtico nos convidaria a esperar, mas destruda em sua juventude como uma flor estraalhada pelo temporal da perversidade de Iago e docime desmesurado de seu ttere manipulado, Otelo.

    Em sua investigao sobre A Sabedoria Trgica, conceito fortemente influenciado pela

    filosofia de Nietzsche, Marcel Conche sustenta que um dos elementos que define o trgico operecimento ou a destruio de algo precioso, valioso, valorizado. Em outras palavras, no htragdia na aniquilao do que no vale nada: o trgico provm do doloroso (e frequentemente

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    prematuro) ocaso de algo tido como de valor inestimvel. O que h de mais trgico consiste nestefato: o que existe de mais elevado e de melhor to inexoravelmente destrudo quanto aquilo queno vale nada, escreve Conche. Um pensamento realmente trgico o pensamento para o qualaquilo que tem o mximo de valor tambm aquilo que est inelutavelmente fadado a perecer. 28

    Desdmona timo exemplo disto: era uma mulher muito amada por Otelo, antes dainterveno fatal de Iago; era talvez o ser mais valioso que o mouro de Veneza tinha em sua vida.Seu cime no seria to intenso, alis, se seu apego apaixonado esposa no fosse igualmenteexacerbado. No filme de 1952, dirigido e estrelado por Orson Welles, isto exposto com muitaeloquncia: a terrvel ambivalncia emocional de Otelo, na cena do estrangulamento, escancarada

    pelo tenso confronto com Desdmona no qual mouro simultaneamente beija apaixonadamente aboca daquela que estrangula29. Nada mais trgico do que destruir o que mais amamos, ou sermosdestrudos por aqueles que mais adoramos.

    Se Otelo, Hamlet, King Learetc.contem afinidades estreitas com a tragdia grega, talvezestas afinidades estejam mais claras em destinos como os de Desdemona e Ofelia: tal qual aAntgona de Sfocles, estas moas acabam morrendo jovens, apesar de serem muito virtuosas, demodo que qualquer concluso moralista no pode ser tirada destas obras-de-arte. Elas no

    assinam embaixo da tese, cara a Scrates, de que o comportamento racional e virtuoso conduzirianecessariamente felicidade. Pois a vida humana tambm o entrechoque de foras de diferentesindivduos, muitas vezes com objetivos conflitantes, frequentemente possessos por seus prpriosapetites irracionais, paixes furiosas ou cegueiras enlouquecedoras. Em Otelo, a maldade de Iagotriunfa e destri de fato o casal que intentou destruir. E o triunfo da perfdia, do qual tantas provasnos d a realidade, algo que o socratismo esttico jamais pode aceitar, mas que Shakespeare notemeu retratar com as mais trgicas tintas.

    Otelo tambm a tragdia da precipitao, este vcio to aparentado com a intemperana,como Nietzsche soube sublinhar: Saber esperar algo to difcil, que os maiores escritores nodesdenharam fazer disso um tema de suas criaes. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sfocles

    em Ajax30

    . O mouro de Veneza, se tivesse esta aptido a que se refere Nietzsche, no teria de modoto irrefletido e apressado atentado contra o pescoo de Desdmona. Ele no soube conter osmpetos de sua paixo para realizar, por exemplo, uma investigao racional, fria e sensata dos fatose das evidncias o que provavelmente o levaria a concluir que a famosa evidncia dohandkerchief(o leno que Desdemna supostamente teria presenteado a seu suposto amante...) noera conclusiva, e que uma outra explicao, a verdadeira, poderia ser trazida tona: a perfdia deIago. Mas Otelo no seria uma tragdia se estes personagens agissem sempre de modo racional-socrtico, mantendo seus desregramentos passionais sob rdeas firmes e jamais deixando que odomnio do comportamento casse nas precipitadas mos dos afetos irracionais. Como aponta

    Nietzsche, a paixo no quer esperar; o trgico na vida de grandes homens est, frequentemente,no no seu conflito com a poca e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar

    por um ou dois anos a sua obra; eles no sabem esperar.Alm disso, convm destacar que a genuna tragdia, segundo Nietzsche, concebe como

    desvinculadas a infelicidade e a culpa, algo que a distingue de modo radical das noes crists deraiz platnica que sustentam que o pecado necessariamente a causa de qualquer sofrimento.Contra esta noo de que a dor seria uma punio contra um pecador, Nietzsche destaca, noaforismo #78 deAurora:

    Infelicidade e culpa essas duas coisas foram postas pelo cristianismo na mesmabalana: de modo que, quando grande a infelicidade que sucede a uma culpa, ainda hojea grandeza da culpa involuntariamente medida por ela. (...) Apenas ao cristianismoestava reservado dizer: Eis uma grave infelicidade, e por trs dela tem de se esconder

    28 CONCHE, Marcel. Orientao Filosfica, pg. 230-236, Ed. Martins Fontes.29 O tenso e trgico desenlace fatal de Otelo tambm ganhou excelente representao cinematogrfica na produo

    inglesaA Bela do Palco (Stage Beauty), de Richard Eyre.30 NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano, #61, pg. 57, Cia de Bolso.

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    uma culpa grave, igualmente grave, ainda que no a vejamos claramente!

    Ora, em franco contraste com esta concepo crist, a tragdia grega, que tanto fala deinfelicidade e culpa, embora em sentido bem diferente, est entre os grandes liberadores do nimo,na medida que aos prprios antigos no era dado sentir, sustenta Nietzsche. Na Antiguidade aindahavia realmente infelicidade, pura, inocente infelicidade; apenas no cristianismo tudo se tornacastigo, punio bem merecida: ele faz sofredora tambm a imaginao do sofredor, de modo que

    este, em tudo o que sucede de mau, sente-se moralmente reprovado e reprovvel. (p. 62 e 63)Em Desdmona, Shakespeare criou uma figura realmente trgica, cuja infelicidade no

    decorre de nenhuma culpa (unicamente de uma culpa presumida por Otelo, absolutamenteimaginria e ilusria). Desdmona , tal qual uma herona trgica grega, infelicidade pura emorre, decerto em meio a terrveis sofrimentos, plenamente convicta de sua inocncia e da injustiada punio que recai sobre ela.

    V. MACBETH E A AMBIO SANGRENTA:Tirano assassino no centro do palco

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    Um dos mais bvios aprendizados que a obra de Shakespeare nos fornece este: os homensde maior poder (reis, prncipes, duques...) no necessariamente so homens de sabedoria ou virtude.O fato de que um homem estar sentado em um trono, ou de ter sua cabea ornada com uma coroadourada, no o torna, por isso, algum de inegvel mrito moral. Grande leitor de Montaigne,Shakespeare escancara em muitas de suas obras os ditos jocosos do filsofo francs: Reis eFilsofos defecam, assim como Damas ou "Mesmo ocupando o mais alto trono do mundo, ainda

    sentamos sobre nossa prpria bunda.Exmio conhecedor dos vcios humanos e dos desregramentos passionais - e lcido

    investigador petico das catstrofes causadas por eles -, Shakespeare pariu em Macbeth ainsupervel tragdia da ambio. Como muitos dos protagonistas trgicos de Shakespeare, o casalMacbeth movido porpaixes desmesuradas. E, como tudo em desmesura, elas desregram edanam.

    No h novidade alguma, para quem j se familiarizou com o universo shakespeariano, noapelo que se faz violncia nas altssimas escalas da nobreza e da corte, em que pessoas tofrequentemente so cegadas por uma thriftless and vaulting ambition31 e usam a fora bruta aoinvs da delicadeza diplomtica. Mas Macbeth escancara o quo sanguinrio pode tornar-se um

    tirano, brio pelo domnio poltico, que, maneira de um vampiro, quanto mais sangue bebe, maisse embriaga e mais sangue derrama

    Nieztsche, no aforismo de Aurora em que interpreta a pea shakespeariana, afirma:Engana-se quem pensa que o teatro de Shakespeare tem efeito moral e que a viso de Macbethafasta do mal da ambio; e engana-se novo se acha que o prprio Shakespeare sentiu como ele.(#240) Ou seja, Nietzsche sustenta que qualquer interpretao moralista ou socrtica de Macbethfalsearia a obra de Shakespeare, corrompendo-a com um reducionismo insustentvel. Na sequncia,

    Nietzsche expande suas reflexes para outras tragdias clssicas para demonstrar maisprofundamente suas posies:

    Vocs acham que Tristo e Isolda do um ensinamento contra o adultrio, ao sucumbir

    em virtude dele? Isso significaria pr os poetas de cabea para baixo: os quais,especialmente Shakespeare, so enamorados das paixes em si, e no de suas disposiesmrbidas. (...) No a culpa e seu horrvel desfecho que lhes importa, a Shakespeare e aSfocles (em Ajax, dipo, Filoctetes): teria sido fcil, nesses casos, fazer da culpa aalavanca do drama, mas certamente isso foi evitado. O autor de tragdias tambm nodeseja, com suas imagens da vida, predispor contra a vida! Ele exclama, isso sim: oencanto supremo, essa existncia estimulante, cambiante, perigosa, sombria e s vezes

    banhada de sol! uma aventura viver tomem a o partido que quiserem, ela sempre teresse carter! Assim fala ele, do interior de uma poca intranquila e plena de fora, meiobria e entorpecida por sua profuso em sangue e energia do interior de uma poca maismalvada que a nossa...32

    Macbeth a descrio pormenorizada da bem-sucedida ascenso ao trono realizada peloregicida Macbeth, os atos sanguinrios de que ele faz uso para manter-se no poder e, por fim, olevante militar que o destrona. Nada mais distante, novamente, do cnone do socratismo esttico,que jamais aprovaria uma obra-de-arte com um protagonista desta natureza (a no ser que a tramaservisse como ilustrao moralista, que edificaria o espectador ao convid-lo a afastar-se dos vciosali representados...).

    H algo de muito podre no reino da Esccia. Have we eaten on the insane root that takesthe reason prisoner?, pergunta-se Banquo. Todo a ambientao emocional da pea sugere que ainsnia, e no a fria e contenedora razo, que est vigente na maioria dos espritos A paixo

    pelo trono, a fascinao pela coroa, faz com que Lady Macbeth e seu esposo mancomunem-se para

    31 SHAKESPEARE, William. Macbeth. In: The Plays and Sonnets of William Shakespeare. Volume II. Coleo GreatBooks of the Western Word da Encyclopedia Britannica. Todas as citaes em ingls desta pea foram retiradasdesta edio.

    32 NIETZSCHE. Aurora. #240.

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    assassinar o Rei Duncan. Antes do crime, Macbeth implora s estrelas que se escondam e noespiem o ato grotesco de traio que est prestes a perpetrar: Stars, hide your fires; let not light

    see my black and deep desires! Depois do crime (I have done the deed), vai progressivamentedescobrir que a mancha no fcil de lavar, ao contrrio da ingnua medicina sugerida por LadyMacbeth: a little water clears us of this deed.

    Macbeth no saiu inclume do ato: assassinou seu prprio sono (Macbeth does murdersleep, the innocent sleep). E descobriu que para esconder um homicdio ser preciso cometermuitos mais. E que todo homem assassinado tem aqueles que o amavam e que prometem ving-lo.A tirania no tarda em despertar a revolta. A revolta no demora em desaguar na guerra. Daambio individual catstrofe coletiva, h s um msero passo, que homens polticosirresponsveis no cessam de dar, para desgraa de todos. Em uma de suas peas mais ttricas esanguinolentas, talvez s comparvel neste quesito a Titus Andronicus, Shakespeare no poupa nastintas ao descrever as podrides de seu Macbeth: Not in the legions of horrid hell can come a devilmore damned in evils to top Macbeth.

    A nica coisa desencadeada pela violncia mais e mais violncia, assim como toda mentirasimples gera um squito de mentiras necessrias para sustentar a mentira primeira, numa espiral

    infernal que s sossegar quando os campos de batalha, entulhados de corpos, exigirem uma trocade regime

    Mas seria muito raso fazer de Shakespeare um moralistinha a dizer que o crime nocompensa e que h sempre um castigo para todo ato imoral. O que o gnio shakespeareano nosmostra, na verdade, so as complexas maquinaes do afeto humano que conduzem aodesregramento sanguinrio, s barbaridades passionais, descrevendo na sequncia as inelutveisconsequncias concretas, tanto no dilacerado mundo subjetivo quanto no domnio scio-poltico,destes grandes crimes.

    E se as pginas de Shakespeare esto to repletas de sabedoria pois ele conheceu a fundo omaligno. Mas compreender o maligno uma coisa; aplaudi-lo outro. Fazer o retrato verossmil de

    vilanias diferente de fazer o elogio delas. Shakespeare, ao invs de nos predispor contra a vida,nos ajuda a compreend-la e viv-la melhor, estando longe de referendar o pessimismo e o niilismocontra os quais Nietzsche tanto batalhou. Shakespeare pe seu imenso gnio a servio dacompreenso do Mal, mas jamais faz com que esta compreenso lhe leve aquiescncia ou resignao. Sabe muito bem que a intemperana foi a desgraa de muitos reis: boundlessintemperance in nature is a tyranny; it has been the untimely emptying of the happy throne and fallof many kings (p.304). E conhece muito bem os efeitos corruptores do poder absoluto para osescrpulos morais do sujeito, como a seguinte confisso de Malcolm, quando imagina-se alado aotrono, mostra to bem:

    were I king, I should cut off the nobles for their lands,Desire his jews and this others house;

    And my more-having would be as a sauce

    To make me hunger more; that I should forge

    Quarrels unjust against the good and loyal,

    Destroying them for wealth.

    ()

    Had I power, I should

    Pour the sweet milk of concord into hell,Uproar the universal peace, counfound

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    All unity on earth.

    ACT IV, SCENE III

    Macbeth, um dos viles mais sombrios de Shakespeare, nos d calafrios por lanar-seneste turbilho fatal da ambio sem a mnima lucidez. No prev a prpria desgraa e se fia emduvidosas profecias benvolas de bruxas brincalhonas. Quando o exrcito ingls est prestes aderrub-lo de seu trono manchado de sangue (para usar a expresso que batizou a adaptaocinematogrfica de Kurosawa), ele enfim percebe que fez tudo em vo e que no escapar docastigo da Histria.

    Num dos monlogos mais clebres de Shakespeare, o tirano sanguinrio, s beiras de serdestronado, diante do cadver de sua esposa (Lady Macbeth) suicida, concebe a vida como nadaalm de uma histria contada por um idiota, cheia de som e fria, e significando nada. Prova deque Shakespeare, sculos antes do Turguniev de Pais e Filhos e do Dostoivski de Os Demnios,

    j retratava e punha em discusso a questo do niilismo, debate que ser to crucial tambm nointerior da reflexo nietzschiana. E prova, tambm, de que o moralismo fcil e ingnuo nunca d as

    caras nas grandes peas do bardo ingls e que elas nos oferecem muito alimento para meditar sobrea arte da tragdia, desde suas razes na Grcia, e sua capacidade mpar de nos fazer vivenciar osmaiores dramas da condio humana.

    Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,

    Creeps in this petty pace from day to day

    To the last syllable of recorded time,

    And all our yesterdays have lighted fools

    The way to dusty death. Out, out, brief candle!Lifes but a walking shadow, a poor player

    That struts and frets his hour upon the stage

    And then is heard no more. It is a tale

    Told by an idiot, full of sound and fury,

    Signifying nothing.

    MACBETH

    ACT V. SCENE V.