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    Universidade Federal de Minas Gerais

    Escola de Belas Artes

    Programa de Ps-graduao em Artes

    A Traduo do Som por Imagens

    Pedro de Filippis Sette e Cmara

    Belo Horizonte, julho de 2010

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    The Painting of Sounds, Noises and Smells

    A relao simbitica entre som e imagem gerou, ao longo do tempo, vertentes de

    pesquisa que nos servem de base para melhor compreendermos a evoluo do

    pensamento sobre tal relao. Os experimentos resultado dessas pesquisas caracterizam

    bem a esttica do movimento responsvel.

    O futurismo italiano do incio do sculo XX foi o movimento precursor. No manifesto

    The Painting of Sounds, Noises and Smells de 1913, Carlo Carr deixa clara a

    obsesso pela desmistificao das relaes entre os sentidos e suas tradues plsticas.

    Segundo o autor, antes do sculo XIX, pintar era a arte do silncio, os Renascentistas

    nunca visaram a possibilidade de pintar sons, rudos e odores nos seus quadros.

    Mesmo no sculo XX, os Impressionistas falharam ao tentar combinar tal relao. Carr

    critica deliberadamente o mtodo ingnuo e conservador dos artistas do movimento que

    tentaram traduzir os sons e odores em suas obras.

    No manifesto, Carlo Carr intima interpretao da arte futurista com a quebra dos

    valores acadmicos, serenos e mumificados, que segundo ele, so puramente

    intelectuais e no traduzem fielmente a real sensibilidade do artista futurista que pinta

    sons, rudos e odores. Segundo ele:

    Any succession of sounds, noises and smells impresses on the mind anarabesque of form and color. We Futurists painters maintain that sounds,noises and smells are incorporated in the expressions of lines, volumesand colors just as lines, volumes and colors are incorporated in thearchitecture of a musical work. (CARR, The Painting of Sounds, Noises

    and Smells, 1913)

    Outro autor do mesmo movimento responsvel por pesquisas que reforaram as idias

    de Carlo Carr foi Luigi Russolo, pintor e compositor futurista autor do manifesto

    L'Arte dei Rumori (A arte dos rudos), no qual defende que a vida contempornea era

    demasiado ruidosa e que os rudos deveriam ser utilizados na msica. Ao aprofundar

    durante anos os conceitos de rudo com os seus instrumentos prprios intitulados

    intonarumori, Russolo volta suas pesquisas para as artes plsticas ao pintar o quadro

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    La musica em 1911, no qual tentou traduzir os efeitos harmnicos, meldicos e

    rtmicos da msica em uma tela.

    La musica, Luigi Russolo (1911)

    Os manifestos do movimento futurista do incio do sculo XX refletem claramente a

    ansiedade pela ruptura do conservadorismo que dominava as classes consumidoras de

    arte naquele momento. O prprio fato da revoluo ter-se dado em forma de manifesto

    comprova a revolta dos artistas futuristas que, de certa forma, no enxergavam brechas

    para propor uma arte que contradizia quase toda esttica abordada at o momento. O

    manifesto The Painting of Sounds, Noises and Smells no foge dessa crise, ele vai

    alm ao propor a compreenso de uma relao abstrata que abrange todos os sentidos

    humanos e que requer uma grande sensibilidade artstica.

    The eye and the ear

    Outro exemplo claro dessa relao simbitica expressada por artistas do sculo XX o

    filme The eye and the ear, realizado pelo casal polons Franciszka e Stefan

    Themerson na Inglaterra, entre 1944 e 1945. O filme se apresenta como um

    experimento que busca propiciar, atravs dos recursos audiovisuais, uma impresso para

    o olho que se compara a experincia vivenciada pelos ouvidos. Para esse propsito

    foram selecionadas quatro msicas do compositor polons Karol Szymanowski

    Sopiewnie.

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    As quatro msicas servem de base para diferentes mtodos de interpretao

    cinematogrfica adotados pelos realizadores. Essas interpretaes so narradas em off

    como um recurso no-diegtico e livre de referncias geogrficas. Elas ocorrem antes de

    cada experimento, que se apresentam por animaes ou construes abstratas usando a

    gua como principal elemento de interao.

    Na primeira msica aplicado o mtodo de interpretao emocional, no qual as imagens

    tentam traduzir o que a letra da msica passa atravs de uma relao puramente

    semitica. A letra no est presente nessa verso da msica, o violino que substitui a

    melodia da voz, permitindo s imagens um total domnio do imaginrio, antes criado

    pela resposta emocional letra.

    A letra da msica nos descreve uma floresta densa com arbustos que se contorcem,

    assim como a imagem, que nos apresenta uma animao de uma planta se expandindo e

    se contorcendo criando novos ramos e folhas. Essa imagem intercalada com a imagem

    de folhas que caem na tela em sincronia com o solo do violino, que tambm soa como

    uma queda nas notas tristes e derramadas.

    A gua um elemento presente nessa primeira parte, ela reflete os momentos de tenso.

    No primeiro momento, a gua aparece ao fazer flutuar um galho cheio de folhas em uma

    sequncia rodada de trs pra frente e em alta velocidade, com ondas que se retraem

    devido ao movimento invertido do galho, sempre sincronizadas com os momentos de

    maior tenso musical. Os cortes secos tambm so bem pontuados pela trilha, que em

    seguida entra em sincronia novamente com as ondas na gua, fazendo parecer que os

    instrumentos provocam o movimento, que

    agora ganhou uma dimenso bruta e tensa.Ao final da primeira msica pode-se

    perceber a sombra de um cavalo direita do

    enquadramento, este mereceu a cena final

    justamente por ser o mesmo animal

    mencionado na ltima linha da letra da

    msica original.

    The eye and the ear: 1

    st

    song

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    Na segunda msica analisada a partitura. Nesse mtodo, cada grupo de instrumentos

    est representado por uma figura ilustrativa diferente, a projeo simultnea de vrias

    figuras reflete o volume da orquestra. O compasso marcado por barras visuais.

    As formas obtidas nesse segundo trecho resultaram de vrias tcnicas

    experimentadas por Franciszka e Stefan Themerson. Segundo Marcin

    Gizycki em seu artigo sobre os autores no site da galeria londrina Lux,

    as formas de linhas no centro da animao foram feitas com bastes de

    vidro. As formas triangulares com efeito esfumaado resultaram de um

    feixe de luz emitido por lmpadas pequenas cruzando lentes especiais.

    Outras formas foram concebidas atravs da sobreposio de papis

    cortados cruzando um feixe de luz.

    A projeo das formas acompanhada pela projeo de fragmentos da

    obra Nativit do pintor italiano Piero della Francesca. No quadro, Piero

    retratou arcanjos tocando alades e cantando para um recm nascido em

    um cenrio buclico com animais e campos floridos ao fundo, o que

    justifica o uso da trilha St. Francis, de Karol Szymanowski, na qual a

    letra insiste ao repetir citaes sobre pssaros, flores e bichos, arcanjos

    cantando glria do poder divino. As imagens em close-up das faces

    dos arcanjos cantando entram em sincronia com a voz da msica, dando

    vida s vozes da obra de Piero e instigando crena da trilha diegtica

    direta. The eye and the ear: 2nd song

    A projeo trabalhada em sincronia com a trilha, os instrumentos e vozes so

    ilustrados pelas diversas formas que interagem de acordo com a dinmica da msica. Oefeito esfumaado triangular surge no meio do enquadramento e na hora do efeito

    vibrato da voz, com a inteno clara de real-lo entre as demais figuras representativas.

    Na terceira msica, os instrumentos so representados por formas geomtricas que

    variam a sua espessura de acordo com o tom. A voz marcada por linhas horizontais,

    que tambm oscilam de acordo com a variao do tom. Para simplificar o problema de

    coordenar vrios grupos de instrumentos ao mesmo tempo, como violino 1 e 2 por

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    exemplo, foram adotadas apenas formas geomtricas bsicas que se sobrepe indicando

    esses vrios grupos.

    Essa parte especfica, a nica que no manteve relaes indiretas com o tema ou letra

    da msica, dessa forma, podemos concluir que as relaes histricas esto totalmente

    afastadas somente nesse trecho do experimento. Essas relaes so cruciais para

    interpretarmos a natureza e finalidade de um processo experimental como esse que, por

    hora, promete uma traduo literal da estrutura musical executada, livre de referncias

    culturais.

    The eye and the ear: 3rd song

    O trecho aposta na sincronia com a trilha, porm percebe-se que h momentos

    asincrnicos nos quais elementos esto visveis sem a presena da trilha e vice-versa.

    A quarta e ltima msica adota duas interpretaes distintas: o tema e o ritmo. Ainterpretao do tema da trilha que fala sobre o

    afogamento proposital da rainha Wanda, que

    tambm d o nome msica. O afogamento

    representado artisticamente por imagens

    melanclicas de uma mo sob a gua. A

    interpretao rtmica, que sugerida pelo

    movimento montono das ondas na gua emsincronia com o tempo da msica. The eye and the ear: 4th song

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    Citando novamente o artigo de Marcin Gizycki sobre o filme, ele descreve que nessa

    parte foi usado um recipiente de vidro cheio de gua, onde as ondas foram provocadas

    por pequenas bolas de argila. Todo o processo foi filmado com a cmera de baixo do

    recipiente apontada para cima.

    Em seu artigo, Gizycki faz uma observao relevante sobre a obra, ele diz que o filme

    se assimila a outros de autores como Oskar Fischinger, Len Lye ou Norman McLaren,

    mas que se destaca em um ponto, enquanto esses mencionavam a tentativa de criar

    equivalncias visuais e sonoras, os Themersons trataram o assunto de forma mais

    cientfica. Sua experincia, como eles mesmos a intitularam, foi uma forma de analisar

    visualmente uma estrutura musical, com comentrios que explicavam precisamente cada

    mtodo e elemento utilizado. Em 1983 Stefan Themerson publicou a seguinte nota

    sobre seu filme:

    Experiment exercising to see the result. We planned Europa not as anexperiment in this sense but as a work of art. Yet The Eye and the Ear wasdone as a consciously designed experiment. Not every avant-garde dealtwith experiments and not every experiment equalled avant-garde. (StefanThemerson, 1983).

    O filme The eye and the ear foi o ltimo do casal Franciszka e Stefan Themerson.

    A traduo do som por imagens

    Considerando toda a abordagem da relao simbitica entre som e imagem levantada

    aqui e suas possibilidades narrativas, foi produzido um vdeo curto que oferece uma

    discusso mais aprofundada acerca da influncia das relaes culturais na traduo do

    som por imagens.

    Na terceira parte do filme abordado The eye and the ear essas influncias foram

    descartadas pela narrativa por se submeterem linguagem das imagens universais como

    traduo da estrutura musical. Outro filme que pode servir de exemplo para ilustrar essa

    discusso a animao Synchromy de Norman McLarem, que tambm nos apresenta

    uma traduo imagtica literal do som projetado ao usar a tcnica de pintar as mesmas

    formas na partes visuais e nas partes sonoras da pelcula.

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    No entanto, no vdeo produzido para esse artigo, mesmo com a presena da sincronia

    entre som e imagem, uma trilha puramente diegtica e a traduo literal do som por

    imagens, possvel relacionar os dois sentidos apenas por referenciais culturais,

    afastando as conexes racionais estabelecidas.

    Vdeo: Estudo sobre a imagem dos sons

    Nesse exemplo produzido, o som, afastado da imagem, encontra outros meios de

    estabelecer conexes que reconstituem a unidade. O organograma abaixo pode

    exemplificar melhor a relao proposta:

    IMAGEM RELAES CULTURAIS SOM

    Madeira Tribal PercurssivoCouro Ritual Xil acstico

    Mo Brasil Couro

    Temperatura da cor frica Loop

    Estabelecidas essas conexes, pode-se concluir que a imagem e o som independem de

    relaes tcnicas e racionais para propiciarem uma experincia de equivalncia sonora e

    imagtica. Nesse caso, a equivalncia fruto da conexo cultural distinta de cada

    elemento.

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    Referncias Bibliogrficas

    CARR, Carlo. The Painting of Sounds, Noises and Smells. Itlia, 1913.

    RUSSOLO, Luigi. L'Arte dei Rumori. Itlia, 1913.

    GIZYCKI, Marcin. The Films of Stefan and Franciszka Themerson. Londres, 1987.Disponvel em:http://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).html

    RODRIGO, Jlio. Som e Imagem na arte do sculo XX, uma relao simbitica.Brasil, 2010. Disponvel em:

    http://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/

    The Themersons Films. Disponvel em:http://www.themersonarchive.com/Untitled%20Document.htm

    Art Now: Lightbox Stefan and Franciszka Themerson. Disponvel em:http://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/artnow/themerson/default.shtm

    http://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).htmlhttp://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).htmlhttp://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).htmlhttp://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/http://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/http://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/http://www.themersonarchive.com/Untitled%20Document.htmhttp://www.themersonarchive.com/Untitled%20Document.htmhttp://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/artnow/themerson/default.shtmhttp://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/artnow/themerson/default.shtmhttp://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/artnow/themerson/default.shtmhttp://www.themersonarchive.com/Untitled%20Document.htmhttp://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/http://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2010/05/08/som-e-imagem-na-arte-do-seculo-xx-uma-relacao-simbiotica/http://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).htmlhttp://www.luxonline.org.uk/articles/the_films_of_stefan_and_franciszka_themerson(1).html