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44 A todos que tocaram e Tocam o Tambor na esperança de harmonizar e humanizar as divindades Foto: arquivo pessoal Mestre em Teoria e História da Arte pela Escola de Belas Artes/UFBA e doutorando pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na UFBA Professor universitário da UNEB e CEFET-BA, escritor, poeta,músico e compositor. M uito ainda se tem de conhecer sobre o poten- cial musical do continente africano. Porém, o pouco que se sabe nos demonstra que a músi- ca, em especial o ritmo, é a essência da sua imagem. Em- bora quando se fale na África lembre-se dos tambores, a sua exuberância musical não se concentra nos instrumen- tos percussivos. A sua criatividade percorre do exercício vocal, de sonoridade particular, até a execução de instru- mentos dos mais diversos timbres. Em relação a nossa cultura, a África é louvada pela in- corporação no nosso cotidiano dos parâmetros básicos da nossa musicalidade. Sua presença em nosso meio deve-se à perseverança do povo vindo para cá na condição de escravo, e nisso está um aspecto fantástico que é memorização dos padrões rítmicos em uma mente tão atribulada e violentada pelo caráter repressivo e devastador do ambiente escravo- crata. A grande maioria dos instrumentos de resistência trazi- dos para o novo mundoclassifica-se como membrafones, tambores dos mais diversos tipos morfológicos e de timbres empregados nas mais diversas manifestações, de uso e ri- tual religioso ou nas atividades profanas, como é o caso da trilogia dos tambores sagrados do candomblé e dos tambo- res de formatos diversificados, posicionados na horizontal, a exemplo dos tambores Batas Cubanos, ou outros confeccionados em tronco único de uma espécie de árvore sagrada, chamados de Ilus, encontrados no Maranhão, ou os tambores falantes de Porto Novo. No Brasil, a trilogia de tambores sagrados: Rum, Rumpi e Lé articula a men- sagem rítmica e melódica

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A todos que tocaram e Tocam o Tambor na esperança de harmonizar e humanizar as divindades

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Mestre em Teoria e História da Arte pela Escola de Belas Artes/UFBA e doutorando pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na UFBA

Professor universitário da UNEB e CEFET-BA, escritor, poeta,músico e compositor.

Muito ainda se tem de conhecer sobre o poten-cial musical do continente africano. Porém, o pouco que se sabe nos demonstra que a músi-

ca, em especial o ritmo, é a essência da sua imagem. Em-bora quando se fale na África lembre-se dos tambores, a sua exuberância musical não se concentra nos instrumen-tos percussivos. A sua criatividade percorre do exercício vocal, de sonoridade particular, até a execução de instru-mentos dos mais diversos timbres.

Em relação a nossa cultura, a África é louvada pela in-corporação no nosso cotidiano dos parâmetros básicos da nossa musicalidade. Sua presença em nosso meio deve-se à perseverança do povo vindo para cá na condição de escravo, e nisso está um aspecto fantástico que é memorização dos padrões rítmicos em uma mente tão atribulada e violentada pelo caráter repressivo e devastador do ambiente escravo-crata.

A grande maioria dos instrumentos de resistência trazi-dos para o novo mundoclassifica-se como membrafones, tambores dos mais diversos tipos morfológicos e de timbres empregados nas mais diversas manifestações, de uso e ri-tual religioso ou nas atividades profanas, como é o caso da trilogia dos tambores sagrados do candomblé e dos tambo-res de formatos diversificados, posicionados na horizontal, a exemplo dos tambores Batas Cubanos, ou outros confeccionados em tronco único de uma espécie de árvore sagrada, chamados de Ilus, encontrados no Maranhão, ou os tambores falantes de Porto Novo.

No Brasil, a trilogia de tambores sagrados: Rum, Rumpi e Lé articula a men-sagem rítmica e melódica

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da comunicação com as di-vindades, fazendo-as movi-mentar-se nas coreografias que revelam aos olhos de todos a odisséia de Orixás, Voduns, Inquices e Cabo-clos, reportando-se à histó-ria, ao mito, às propriedades e às virtudes dos mesmos, com a mesma finalidade de repercutir mensagens que tem os Tambores Falantes na África.

O uso profano dos tam-bores se incorpora às ma-nifestações públicas, à base rítmica das canções, dando identidade e diversos esti-los musicais. Na África, por ocasião da coroação de um Rei de Kêto, os tambores soam vibrantes em reve-rência ao novo monarca. É importante destacar que o tambor do Rei tem o dom da verdade e é usado não só para transmitir mensagens decisórias do Rei, como também tem a propriedade de ser o tambor-mãe, aquele que emite o som que afina-rá todos os outros instrumentos, pois todos devem soar na tonalidade ma-jestosa do Tambor do rei, nem muito acima e nem muito abaixo.

Um tipo de tam-bor especial de utilização litúrgica na solenidade aos mortos na África é a cuíca, que no

Brasil passou a ter utiliza-ção profana nas bases rítmi-cas das Escolas de Samba. A cuíca é tocada solenemente nos rituais mortuários na re-gião próxima ao Rio Uemê, no Benin, na África. No Brasil, nos ritos funerários, utiliza-se a cabaça que bóia numa vasilha com liquido devidamente preparado e percutida por Aquidavis.

A cabaça também faz parte da caixa sonora dos berimbaus, nos seus mais diversos tamanhos e fina-lidades. A grande maioria dos instrumentos de cabaça pertence ao grupo dos ins-trumentos idiofones usados como chocalho, tendo em seu interior sementes ou pequenos seixos. Um tipo especial de instrumento idiofone é shequerê, onde a cabaça é revestida por uma rede de sementes ou búzios em volta da mesma.

Um outro instrumento idiofone é conhecido como agogô que é confeccionado

com duas campânulas de metal, preferencial o ferro, e percutido por uma vareta, também de metal. Por vezes, em lugar do agogô de cam-pânula dupla, encontramos o Gan de apenas uma cam-pânula, percutido também por uma vareta de ferro. Em outras manifestações, en-contramos em substituição ao agogô e ao Gan, a utili-zação de enxadas como ins-trumento de percussão me-tálica com uma sonoridade peculiar.

Podemos classificar como idiofone o Adjá, instrumen-to de campânula dupla, ou não, símbolo da autoridade do líder religioso e só ape-nas manipulada por ele ou alguma outra autoridade re-ligiosa por sua importância litúrgica.

Temos os instrumentos cordofônicos, de corda, arco e caixa sonora percutido por fricção ou percussão, como é o caso do berimbau ou ou-tros tipos de arcos musicais,

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inclusive aqueles encon-trados na África, cuja cai-xa de ressonância é a cavi-dade bocal do tocador, pois o instrumento é preso entre os dentes, técnica muito utilizada na África Cen-

tral. A listagem seria longa se analisássemos os instru-mentos à base de sopro, as variedades de vocalizações etc., o que importa no mo-mento é a repercussão des-ta fantástica criatividade africana em nossa vida, em especial a religiosa levando em conta a diversidade cul-tural daquele continente.

É importante esclarecer que este registro resulta da observação da música como um produto típico do comportamento huma-

no no contexto social, um fenômeno artístico e uma síntese expressiva de um contexto sagrado, influen-ciando a vida do homem no exercício da fé, do pon-to de vista da cosmovisão

afro-brasileira, conhecida como Candomblé.

Já os Orin, as cantigas dos santos, caracteriza-dos por sua riqueza rítmi-ca e melódica, são formas igualmente belas, porém, mais branda, de louvação empregada em festas e ce-lebrações a determinadas divindades, com o propósi-to funcional de solicitar e celebrar a chegada do san-to ao ambiente adequado a um rito específico.

Um Orin carrega uma

boa parte informativa da característica do Orixá e re-presenta uma manifestação intermediaria entre exorta-ção fidedigna dos poderes sagrados das divindades contidas nas louvações de Àdúrà, acrescida da musi-calidade característica de um Oríkì nos aspectos rít-micos, poéticos e melódi-cos.

Os Ibá, Àdúrà, Oríkì e Orin, rezas, saudações, evocações e cantigas, nes-tes casos, formas poéticas da tradição Yorubá, encon-tram similaridades nas ex-pressões litúrgicas das ou-tras nações de candomblé, quer Angola, Gege, etc., com igual importância e beleza.

Essas manifestações fornecem um riquíssimo material para observação de caráter histórico, an-tropológico, sociológico e psicológico das diversas etnias que contribuíram para formação brasilei-ra. Funcionam também, e principalmente, para o deleite dos apreciadores do belo, dos que se dei-xam levar pelo embalo da sonoridade mágica, des-tacando-se num momento de rara beleza, chamando a atenção para a memória de muitos que não deixaram os tambores silenciarem, lembrando que o atabaque é um OSUNKUNSERIN - aquele que chora e ri.