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ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS Elementos de identificação e cotejo com institutos assemelhados DOUTORADO EM DIREITO CIVIL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2006

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ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR

A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS Elementos de identificação e cotejo com institutos

assemelhados

DOUTORADO EM DIREITO CIVIL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2006

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ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR

A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS Elementos de identificação e cotejo com institutos

assemelhados

Tese apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Civil, sob a orientação do Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO - 2006

Meus agradecimentos aos Excelentíssimos Senhores Doutores integrantes da Banca e a todos os que me ajudaram nessa árdua cami-nhada, e que deixo de nominar para não cometer a injustiça de esquecer de alguém. Minha especial homena-gem, contudo, ao ilustre Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a quem tive a honra de ter como Orientador e o privilégio de ter como amigo. Meus mais sinceros agradecimentos a tão ilustre jurista, cujo apoio incondicional mostrou-se essencial à conclusão do presente trabalho.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO - 2006

Banca Examinadora

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Para Vera, Simone, Bruno e meus pais. Este trabalho é dedicado a vocês.

Resumo O objetivo principal do presente trabalho é realizar a abordagem sistematizada da

boa-fé considerada como norma de conduta, de modo a suprir uma lacuna existente em

nossa doutrina, e que pode ser constatada pela verificação de que embora a boa-fé objetiva

seja mencionada com grande freqüência, geralmente o é apenas como um simples reforço

lingüístico, sem qualquer precisão científica ou terminológica. Além disso, os poucos

autores que se dedicaram ao exame da boa-fé centraram seus estudos nas relações

contratuais, em inaceitável redução de assunto que se mostra extremamente amplo. Assim,

buscou-se demonstrar e exemplificar a aplicação do princípio em outras áreas do Direito,

como o Direito Administrativo e o Direito Processual. Buscou-se, ainda, a decomposição

da boa-fé em seus principais elementos constitutivos, de modo a que também fosse possível

identificar as diversas subespécies de institutos que derivam da boa- fé, cada um com suas

características próprias e sendo distinto dos demais. A partir dessa decomposição, foi dada

ênfase no estudo do venire contra factum proprium, cujos elementos constitutivos foram

individual e minuciosamente abordados, o que permitiu não apenas a elaboração de uma

definição para o instituto, mas também o cotejo mais preciso com institutos assemelhados,

tais como o tu quoque, a exceptio doli, a suppressio, etc. Para o atingimento de tais

objetivos, partiu-se do exame da fides dos romanos, passando pela sua recepção e

atualização, levada a cabo pelo trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, e pela sua

inclusão no Código Civil francês. Seguiu-se, ainda, o caminho trilhado pelos tribunais

franceses, no exame dessa boa-fé agora codificada, com sua nítida influência no direito

civil alemão, de onde saltou para o Código Civil grego, para o Código Civil português e,

finalmente, para o atual Código Civil brasileiro. Neste último, buscou-se a identificação de

várias disposições legais que, no fundo, nada mais são do que hipóteses de aplicação do

venire, ainda que nosso Código Civil, em nenhum momento, faça referência a tal instituto

e, a partir dessa identificação construiu-se a buscada definição da figura do venire contra

factum proprium , composta dos seus elementos caracterizadores.

Abstract

The main purpose of this paper is to realize the systematic approach regards good-

faith, considered a conduct norm in a way that supplies the existing lacuna in our doctrine,

which can be ascertained by checking that although the objective good-faith is frequently

mentioned, it is usually done as a simple linguistic reinforcement lacking any scientific or

terminologic accuracy. Moreover, the few authors who dedicated themselves to the

examine of good-faith focused primarily on contractual relations , showing this

unacceptable tendency to decrease the discussion around this topic when there is so much

to talk about it. Thus it was tried to demonstrate and to exemplify the principle application

in other fields of the Law, such as the Administrative Law and Processual Law. It was also

tried to decompose the good-faith into its principals constitutes elements, in a way that was

possible to identify the several subspecies of institutes that are originated from good-faith,

each one with its own characteristics, been really different from others. From this

decomposition the studies about venire contra factum proprium were emphasized, of which

the constitutes elements were individually and detailed described and commented, what

allowed not only the elaboration of a definition for the institute but also a preciser collation

for similars institutes, such as tu quoque, exceptio doli, suppressio, etc. To reach those

purposes the romans fides were examined, going through its reception and modernization

and its inclusio n on the french Civil Code. It can also be found in here the path chosen by

the french court in the exam of this codified good-faith, with its clear influence in the

german civil law, where it went toe the greek, portuguese and finally the brazillian civil

code. In its last one it was identified several legal dispositions that, deep inside, are nothing

more than application hypothesis of venire even though our Civil Code never mention such

institute, and from this identification was built a definition for venire contra factum

proprium with its characterizing elements.

Resumé

L´objectif principal de ce travail est la réalisation d´un exposé systématique de la

bonne foi, autant que règle de conduite, dans le but de remplir une lacune qui existe à la

doctr ine e qui peut être verifiée par la constatation que malgré la bonne foi objective soit

prononcée très fréquemment, dans la plupart des cas l´expression n´est utilisée que comme

un simple élément linguistique, sans aucune précision cientifique ou terminolo gique. En

outre, les auteurs qui ont dédié leurs études à la bonne foi, l´ont fait spécifiquement sur les

rapports contractuels, ce qui signifie une réduction inacceptable d´un objet très vaste. Cela

étant, on a essayé de démontrer et exemplifier l´application du principe de la bonne foi à

d´autres parties du Droit, comme le Droit Administratif et le Droit Processuel. On a aussi

essayé de décomposer la bonne foi en ses éléments constitutifs, de manière à identifier

également les plusieurs subdivisions d´instituts qui s´originent de la bonne foi, chacun

ayant ses caractéristiques individuelles, qui les font différents des autres. À partir de cette

décomposition, on a relevé l´étude du venire contra factum proprium, dont les éléments

constitutifs ont été traités individuellement et en detail, ce qui a permis pas seulement la

construction d´une définition pour l´institut, mais aussi la comparaison plus précise avec

des institus similaires, comme le tu quoque, l exceptio doli, la suppressio etc. Pour atteindre

ces objectifs, on a parti de l´étude de la fides des romains, en passant par sa récéption et son

actualisation, concretisée par le travail des glossateurs et des post-glossateurs, et par son

inclusion dans le Code Civil Français. Ensuite on a parcouri le chemin suivi par les cours

françaises, en ce qui concerne l´examen de cette bonne foi, maintenat codifiée, avec sa

nette influence sur le Droit Civil Allemand, d´où elle est partie por arriver au Code Civil

Grec, au Code Civil Portugais et, finalement, à l´actuel Code Civil Brésilien. Sur ce dernier

on a essayé d´identifier plusieurs règles qui, vraiment, signifient des hypothèses

d´aplication du venire, malgré notre Code ne mentionne pas cet institut. A partir de cette

identification, on a construit la definition visée du venire contra factum proprium , composé

de ses éléments caractéristiques.

Sumário

Introdução. 10

1. Desenvolvimento histórico da boa- fé. 24

1.1. Considerações gerais. 24

1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu. 40

1.3. O direito europeu pré-codificações. 47

1.4. A boa-fé após o Código Civil francês. 60

1.5. A boa-fé no Direito Civil Alemão. 75

1.6. A boa-fé objetiva e seu aspecto normativo. Tendência expansionista. 99

1.7. A boa-fé objetiva no Direito Público e no campo processual. 136

1.8. A responsabilidade pré e pós-contratual e a complexidade das obrigações. 154

1.9. As conseqüências jurídicas da proteção conforme o princípio da boa- fé. 230

2. Violações típicas da boa- fé. 255

2.1. Considerações gerais. 255

2.2. O abuso do direito. 258

2.3. O venire contra factum proprium. 294

2.3.1. Considerações gerais. 294

2.3.2. Elementos característicos. 301

2.3.2.1. Os comportamentos contraditórios. 324

2.3.2.2. A contradição. 365

2.3.2.3. O dever acessório que está sendo violado. 380

2.3.3.4. Um conceito para o venire contra factum proprium. 393

2.3.3. Conseqüências jurídicas do venire contra factum proprium. 393

2.4. Tu quoque. 409

2.5. Suppressio e surrectio. 421

Conclusão. 447

Referências bibliográficas 456

10

A teoria dos atos próprios: elementos para a sua identificação e para o seu cotejo com institutos assemelhados.

Uma lei imutável não se pode conceber, senão numa sociedade imóvel.

Jean Cruet

Introdução.

O Código Civil de 1916, tomando por paradigma os Códigos

francês e alemão (principalmente o primeiro), simplesmente não tratou da

boa-fé, exceto em regra localizada e pontual, específica para o contrato de

seguro (art. 1.443, do Código Civil de 1916). Apesar disso, no entanto, já era

muito comum que a doutrina e a jurisprudência pátrias se referissem com

freqüência ao tema, principalmente em virtude da grande influência por nós

recebida, direta ou indiretamente, dos tribunais alemães.

Essa influência indireta, à qual nos referimos, é porque as

decisões dos tribunais germânicos serviram de clara fonte de inspiração para

alguns Códigos alienígenas, como o grego e o português, e estes, por sua vez,

acabaram influenciando o texto do nosso Código Civil vigente, como

abordaremos em detalhes, ao longo do presente estudo. Por outro lado, em

virtude do grande lapso temporal decorrido entre a apresentação do projeto de

lei e a sua efetiva transformação em um Código Civil, a doutrina e os tribunais

não se quedaram inertes, e começaram a fazer referências e a elaborar textos

que enfocam a boa-fé e suas conseqüências.

No entanto, não se pode deixar de notar que tais referências, de

um modo geral, começaram a ser feitas de um modo pouco sistematizado, ou

mesmo sem sistematização alguma, o que pode ser atribuído, conforme

11

acreditamos, à inexistência quase que completa de obras doutrinárias que

tivessem o assunto “boa-fé” como seu principal foco de estudo, uma vez que

os textos que tratavam do assunto, de um modo geral, faziam-no apenas de

modo passageiro, ao se referirem aos princípios contratuais, incluindo dentre

eles o da boa-fé, e mesmo assim, no mais das vezes, apenas se limitando a

comentar que os contratantes deveriam se comportar de boa-fé, sem maiores

explicações sobre o que seria tal comportamento.

Essa falta de sistematização pode ser notada, inclusive, pelo fato

de que em algumas situações, os tribunais pátrios se referiam à boa-fé apenas

como um reforço lingüístico, pois na verdade a questão a ser decidida já

encontrava tratamento legal específico, e a decisão já havia sido tomada com

esteio nessa norma positivada, sem que houvesse qualquer real necessidade de

que se fizesse menção à boa-fé. Em outras palavras, muitas vezes se tratava de

uma ilegalidade pura e simples, e não de atuação do princípio da boa-fé, e essa

distinção não costumava ser feita em várias situações concretas. Ou, ainda,

pelo fato de serem usadas, para “explicar” o que seria a boa-fé, expressões

vagas e imprecisas, cujo preenchimento variava ao sabor das convicções

pessoais de cada intérprete.

Por outro lado, e principalmente pelo fato de que todo o estudo da

boa-fé, desenvolvido no direito germânico, foi inicialmente ligado às relações

contratuais, o que se podia notar era que as menções à boa-fé se limitavam

precisamente ao campo dos contratos, como se o instituto não fosse de

aplicação geral, vale dizer, como se não se tratasse de um regramento que se

aplica não apenas a todos os campos do direito privado, mas também ao

direito público, ou seja, para a regência das relações entre a administração

pública e os administrados. Aliás, é até desnecessário que se ressalte a extrema

importância que decorre do fato de que também a administração pública

12

deverá seguir uma conduta balizada pela boa-fé, sendo que, precisamente em

virtude de tal importância, dedicamos um item específico para o tratamento do

mesmo (item 1.7).

Outra questão que se mostra significativa, para o estudo dos

temas ligados à boa-fé, é a que diz respeito às dificuldades lingüísticas. Ao

contrário da língua alemã, sempre muito precisa e específica, não temos

expressões, no vernáculo, que por si só permitam identificar se se trata da boa-

fé como uma norma de conduta (objetiva) ou da que se liga aos aspectos

psicológicos do sujeito (subjetiva), ou seja, ao conhecimento ou

desconhecimento de um fato ou à intenção subjacente à prática de um ato.

Essa adoção de uma expressão única, para a indicação de dois

aspectos da boa-fé que se mostram completamente distintos, serve como

moldura a realçar a necessidade de estudos mais detalhados, acerca da boa-fé,

pois faz com que tenham que ser redobrados os cuidados para a conceituação

e a identificação dos elementos característicos de cada uma dessas duas

hipóteses de boa-fé, sob pena de se ter dificuldade em identificar até mesmo o

verdadeiro significado de um determinado texto legal que a ela se refira. E

veja-se que não há qualquer exagero, quando nos referimos à dificuldade de

captação do real sentido da expressão, pois essa interpretação errônea do

sentido do texto legal, especificamente em relação à boa-fé, já ocorreu alhures.

Com efeito, desde o começo do século XIX que o Código Civil

francês já apontava que as convenções que tenham sido validamente formadas

devem ser executadas de boa-fé (art. 1.134). No entanto, precisamente em

decorrência da absoluta falta de domínio doutrinário sobre o tema, tal norma

foi interpretada nos mesmos moldes em que os glosadores e pós-glosadores

haviam colhido a boa-fé dos textos romanos, ou seja, como se fosse apenas

referente à ciência ou à ignorância de uma determinada circunstância ligada ao

13

contrato. Em outras palavras, como se fosse a boa-fé subjetiva. Hoje, o mesmo

texto legal é facilmente lido como sendo referente à boa-fé objetiva, ou seja,

como imposição de uma norma de conduta a ser observada pelos contratantes.

É esse tipo de equívoco, que certamente atrasou em várias décadas o

desenvolvimento adequado do estudo da boa-fé, que só poderá ser evitado

com o exame doutrinário sistemático do tema.

Nos últimos anos, felizmente, a situação começa a se alterar, e

começam a surgir algumas poucas obras cujo enfoque principal está centrado

na questão da boa-fé. Esse aumento na quantidade de trabalhos específicos

sobre o tema, em grande parte, foi ainda impulsionado pela aprovação, depois

de mais de duas décadas e meia, do Código Civil de 2002, que em seu artigo

421, dentre outros, trouxe a explicitação do princípio da boa-fé.

Contudo, não se pode deixar de observar que o estudo doutrinário

do tema ainda é muito incipiente entre nós. Além disso, a hipertrofia das

relações contratuais se manteve, ou seja, a quase totalidade dos trabalhos

recentes diz respeito ao estudo da boa-fé nas relações contratuais, embora

apanhando, também, algumas variações “internas” do assunto, como o exame

da mesma em relação aos momentos pré e pós-contratuais e a análise da boa-

fé aplicada às relações (contratuais) de consumo, mas deixando de lado outras

áreas importantes das relações jurídicas, não apenas no direito privado, mas,

principalmente, no direito público, onde são muito escassas as obras referentes

ao tema.

Além disso – e, ainda mais, pior do que isso –, pode-se apontar

que está ocorrendo, em relação às diversas facetas que podem ser apresentadas

pela boa-fé, a repetição do mesmo problema que ocorreu quanto ao estudo da

boa-fé em si mesma. Expliquemos melhor.

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Como mencionamos acima, durante muito tempo nossos autores

ou ignoravam a boa-fé ou apenas se referiam ao tema de modo breve, sem a

preocupação de maiores detalhes ou esclarecimentos, incluindo-a sem muitas

explicações entre os princípios contratuais. Pois bem, agora que a boa-fé

começa a ser estudada mais amiúde, pelos nossos doutrinadores, o que se

percebe é que apenas de modo passageiro são mencionadas as diversas

hipóteses de concretização da mesma, e que embora tendo todas a mesma

fonte, apresentam características que, pelo menos em tese, as diferenciam de

modo nítido (na prática, como veremos, essa diferenciação nem sempre é

assim tão clara). E foi essa falta de abordagem das “subespécies” da boa-fé, na

verdade, que motivou o presente trabalho.

Com efeito, o que desde logo se adianta é que a expressão “boa-

fé”, na realidade, é bastante ampla, abrangendo um grande leque de situações

que, sendo embora todas originárias da mesma fonte (essa mesma boa-fé),

apresentam alguns traços peculiares, que permitem diferenciá-las umas das

outras, e aí chegamos a figuras importantíssimas e de grande aplicação prática,

como o venire contra factum proprium, o tu quoque, a suppressio e a

surrectio, o abuso do direito, etc, e que de um modo geral ou são ignoradas

pela doutrina ou apenas são mencionadas en passant, sem o cuidado de

maiores esclarecimentos. Precisamente, como dissemos, como antes ocorria

em relação à boa-fé em si mesma.

Uns poucos autores, quando muito, se referem com um pouco

mais de vagar à figura do abuso do direito, que sem sombra de dúvida é a

mais conhecida de todas essas variações da boa-fé, até mesmo pelo fato de se

tratar de tema que foi há muito desenvolvido pela jurisprudência dos tribunais

franceses, antes mesmo do surgimento do Código Civil alemão, e que por essa

razão influenciou fortemente nossos autores. No entanto, não costumam

15

nossos juristas observar que o abuso do direito, na realidade, também é figura

que se mostra bastante ampla, abrangendo as outras situações mencionadas,

como, por exemplo, o venire contra factum proprium.

Assim, se por um lado é verdade que uma situação que poderia

ser enquadrada como um caso de venire também pode ser apresentada como

hipótese de abuso do direito (pois aquela é uma hipótese deste), por outro,

também é certo que tal situação poderia ter sido qualificada de modo mais

preciso, uma vez que a figura do venire contra factum proprium apresenta

características próprias, que permitem destacá-la dentre as figuras que se

inserem no abuso do direito, para um exame mais detalhado e minucioso. O

abuso do direito, portanto, também precisa ser examinado com maior riqueza

de detalhes, para que melhor se possa compreender a figura do venire, uma

vez que esta se insere no campo mais amplo daquele.

Da mesma forma, existem situações em que nossos tribunais

abordam hipóteses que claramente poderiam ser enquadradas como casos de

venire contra factum proprium, ou de suppressio, ou de tu quoque, etc, mas

em geral o fazem sem qualquer preocupação com tais figuras decorrentes da

boa-fé, apenas cuidando de realçar quais são as características do caso

concreto, mas sem a preocupação de fazer o mais adequado enquadramento

jurídico. Em outros casos, ainda, o enquadramento vem a ser feito, de modo

incorreto, denominando-se de venire contra factum proprium, por exemplo,

situação que na realidade seria mais bem enquadrada como sendo de tu

quoque. Todas essas situações, naturalmente, serão abordadas no

desenvolvimento do presente estudo, na busca de serem fornecidos elementos

mais precisos para as distinções.

Nosso objetivo, na presente tese, está voltado precisamente para

essas subespécies da boa-fé, em especial o venire contra factum proprium,

16

possivelmente o que encontra maior aplicação concreta no quotidiano. Mas é

evidente que não se buscou, tão-somente, a abordagem da figura do venire,

isolada, fora de contexto, e considerada de modo integral, pois é certo que

uma análise feita dessa forma teria o pecado mortal de tornar praticamente

ininteligível o venire.

A estratégia adotada, portanto, foi a de fazer uma abordagem

inicial macro, de modo a situar a figura do venire no plano mais amplo e

genérico da boa-fé, para depois partir para um exame atomizado, buscando a

decomposição do venire em seus menores elementos, os quais são em seguida

examinados com uma lupa, de modo minucioso e detalhado, de modo a

facilitar a identificação da figura e, mais do que isso, possibilitar o adequado

cotejo entre as diversas hipóteses de concretização da boa-fé. Buscou-se,

portanto, suprir uma lacuna existente em nossa doutrina, acerca do tema, tendo

em vista que as poucas obras que o abordam, como dissemos linhas atrás, em

geral o fazem de modo passageiro e superficial, sem se preocupar com o

exame minucioso dos seus componentes.

Vejamos, em seguida, qual foi a estrutura que se deu ao presente

estudo e os motivos de tê-la adotado.

Como as figuras a serem abordadas decorrem da boa-fé, logo de

início buscou-se o resgate histórico da mesma, vale dizer, fizemos o estudo do

desenvolvimento da mesma, a partir da fides dos romanos, passando pela sua

qualificação como bona fides, abordando inclusive a sua transposição, ainda

no direito romano, do campo dos direitos reais para o direito obrigacional,

onde iria fincar suas mais sólidas raízes, e também pelo campo processual.

Mas a visão que os romanos tinham sobre a boa-fé de nada nos serviria, se

tivéssemos deixado de lado a aferição do modo pelo qual essa boa-fé foi

absorvida pelo direito posterior e acabou chegando até nós. Passamos, então,

17

por sobre a Idade das Trevas (Idade Média), e chegamos aos séculos XVII e

XVIII, com o chamado fenômeno da recepção.

Uma parte significativa do direito romano, notadamente em

relação ao direito das obrigações, foi primeiramente compilada pelo trabalho

dos glosadores e, posteriormente, atualizada (para a época) pelo trabalho dos

pós-glosadores, tudo isso na fase que antecedeu às grandes codificações

européias, que tiveram início no começo do século XIX, com o Código Civil

francês, mais precisamente em 1806. Ora, se o direito romano foi recebido

pelos juristas europeus, é muito fácil de se concluir que o mesmo teve

marcante influência nos Códigos Civis da Europa, e, por conseqüência, nos

Códigos do mundo inteiro, pois é sabido que tais Códigos, notadamente o

francês e, quase um século depois, o alemão, foram refletidos pelas legislações

de todo o mundo civilizado, inclusive o Código Civil brasileiro de 1916.

Foi por essa razão, vale dizer, por ter sido tão ampla e tão

importante a influência do direito romano nas legislações mais recentes do

mundo inteiro, inclusive a nossa, que nos pareceu essencial, para uma melhor

compreensão da visão atual que se tem sobre a boa-fé (e que, na realidade,

segundo nos parece, ainda está em formação), que fizéssemos esse resgate

histórico, esse exame da boa-fé desde a sua origem primeira, entre os

romanos, e passando em seguida pelas principais etapas de sua evolução,

dentre as quais se mostra de fundamental importância esse mencionado

fenômeno da recepção, porta de entrada da fides romana no direito moderno.

Feito o exame sobre como se deu essa recepção do direito romano

na Europa, em seguida passamos a analisar as principais características do

direito europeu no período anterior ao começo das grandes codificações, com

rápidas pinceladas sobre o racionalismo e o direito natural, que se mostraram

de grande importância, por exemplo, para a visão do direito como um sistema,

18

e não como um simples agrupamento de regras. Na fase das codificações,

nosso exame mais detido, como não poderia deixar de ter sido, ocorreu em

relação ao direito civil francês e ao alemão, esses que foram os grandes

influenciadores do nosso próprio direito civil, mas não deixando de realçar as

diferenças entre as visões francesa e alemã acerca do princípio da boa-fé.

Em relação ao direito civil germânico, inclusive, percorremos o

interessante caminho da boa-fé, a partir dos tribunais tedescos, passando pelo

Código Civil grego e, daí para o segundo Código Civil português, de 1966, de

onde acabou migrando para o atual Código Civil brasileiro, em uma trilha que

durou mais de um século. E com essa “viagem” foi concluída a abordagem da

parte histórica da boa-fé, à qual dedicamos cerca de um sexto do

desenvolvimento do trabalho.

Na seqüência, passamos a examinar algumas questões relevantes

acerca da visão atual que se tem da boa-fé, com destaque para o seu caráter

normativo (ou seja, a boa-fé enquanto norma de conduta) e a sua tendência

expansionista, de modo que sua aplicação passa a se dar em todos os ramos do

direito. É que essa boa-fé agora se apresenta como um princípio geral e

fundamental, cujo assento pode ser encontrado diretamente no tecido

constitucional, mais precisamente na solidariedade social, que se apresenta

como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa,

conforme se encontra expresso no art. 3º, I, da Constituição Federal.

Ora, uma vez verificado que a boa-fé normativa tem fundamento

constitucional e que se constitui em um princípio fundamental, fica fácil de ser

explicado o seu caráter expansionista, ou seja, a sua extensão a todos os ramos

do direito, ultrapassando não apenas as fronteiras do direito civil, mas, muito

mais do que isso, indo além das fronteiras do direito privado, até se espraiar

pelo direito público e pelo direito processual, campos onde um perfunctório

19

exame poderia transmitir a errônea idéia de que o instituto da boa-fé não seria

capaz de encontrar aplicação. Face à relevância do tema e por se tratar de

assunto que, até o presente momento, foi tão pouco desenvolvido pela nossa

doutrina, dedicamos um item específico (item 1.7) ao exame desse espraiar da

boa-fé em geral – e do venire contra factum proprium em particular – pelos

campos do direito processual e do direito público.

Em seguida, contudo, ou seja, especificamente no item 1.8,

retornamos para a aplicação da boa-fé que se mostra como a mais comum no

quotidiano, ou seja, em relação ao direito obrigacional, principalmente em

relação aos contratos. Nessa parte do trabalho foi feita a abordagem acerca dos

estudos de Rudolf von Jhering sobre a existência de uma responsabilidade pré

e pós-contratual, vale dizer, que se forma antes mesmo do contrato chegar a

ser celebrado e que persiste depois de sua extinção pelo cumprimento. Esses

estudos de Jhering se mostraram cruciais para que se percebesse que uma

obrigação, na realidade, não pode ser considerada como um todo unitário,

sendo composta, isso sim, por um complexo que se apresenta formado,

simultaneamente, por prestações principais e por prestações acessórias, sendo

que a decomposição da boa-fé nestas últimas foi a grande mola propulsora de

toda a evolução do exame da boa-fé enquanto norma de conduta.

Por último, no que se refere a essa abordagem dos aspectos gerais

e atuais da matéria, passamos a examinar as conseqüências concretas da

aplicação do princípio da boa-fé, ou seja, como se dá e qual o resultado da

incidência do princípio da boa-fé em uma hipótese real. Na realidade, apenas

se mostra possível que examinemos as situações mais comuns, pois a

amplitude da boa-fé é tamanha que se torna simplesmente impossível o exame

completo de todas as situações práticas (e, portanto, impossível também se

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mostra o exame de todas as conseqüências práticas) que podem surgir no

quotidiano.

Assim, tais conseqüências podem ser de diversas espécies, tais

como a intervenção judicial sobre o próprio conteúdo do contrato, de modo a

invalidar ou a modificar, conforme o caso, uma determinada cláusula, ou a

determinação para que um dos sujeitos contratuais adote um comportamento

positivo ou negativo, ou a determinação judicial para que o contrato seja

rescindido, ou, ao contrário, para que o mesmo seja mantido por mais algum

tempo, ou, ainda, a condenação ao pagamento de uma indenização, etc. Enfim,

são variados os resultados que decorrem da incidência do princípio da boa-fé,

mudando de uma situação para a outra, mas sempre buscando, em cada caso

concreto, qual é a solução que mais adequadamente protege a boa-fé do

sujeito.

Um desses resultados que se mostra de acentuada importância

prática é a possibilidade de que, em decorrência do princípio da boa-fé, um

negócio jurídico cuja nulidade se encontra expressamente determinada pela lei

venha a produzir todos os efeitos de um negócio válido. E, ao contrário do que

geralmente se afirma, entendemos que esses efeitos poderão ser produzidos

não apenas quando se trate da hipótese de nulidade decorrente de vício formal,

mas também, em certas e especiais circunstâncias, até mesmo quando se tratar

de nulidade que tenha a sua causa na incapacidade absoluta de um dos sujeitos

envolvidos.

E com o exame dessas conseqüências da incidência concreta do

princípio da boa-fé, encerramos essa análise dos aspectos gerais do princípio

da boa-fé, na visão da moderna ciência do direito, sendo que dedicamos a essa

análise cerca de um terço de todo o trabalho. Passamos, em seguida, ao exame

das situações que se constituem em violações típicas da boa-fé, objetivo maior

21

do presente estudo e ao qual foi dedicada, aproximadamente, a metade de todo

o desenvolvimento do mesmo.

No segundo capítulo do trabalho, o estudo das violações típicas

da boa-fé (ou, mais adequadamente, dos casos típicos de proteção à boa-fé) se

inicia pela figura do abuso do direito, por se tratar de figura bastante ampla e

genérica, dentro da qual se enquadram várias outras. Além disso, foi com as

decisões judiciais sobre o abuso do direito, que tiveram origem na França e

depois foram assimiladas e desenvolvidas pelos tribunais alemães, que se

iniciou o estudo moderno dessas figuras ligadas à boa-fé. A primeira

abordagem que é feita, acerca do abuso do direito, é a que se refere à

denominação do mesmo, colocando-se em destaque a erronia dos vários textos

doutrinários e mesmo legais que se referem ao abuso de direito, quando o

correto é falar-se em abuso do direito. Mostramos, em seguida, que a idéia

central do tema é a de que todo direito, ao ser deferido pela sociedade ao seu

titular, está vinculado a uma causa, uma finalidade que o justifica, e que ao

mesmo tempo lhe serve de limite, e nos casos em que tal finalidade é

desconsiderada é que se tem a hipótese do abuso.

Como um subitem do abuso do direito, em seguida o trabalho faz

a análise da exceptio doli , figura que teve grande importância, e que inclusive

foi desenvolvida para o esteio das decisões dos tribunais alemães, ao mesmo

tempo em que os tribunais franceses apoiavam suas decisões na figura do

abuso do direito. Mostramos, inclusive, que quando os tribuais germânicos

começaram a também fazer referência à figura do abuso do direito, a exceptio

acabou por ser praticamente abandonada, face à grande afinidade entre as duas

figuras (afinidade essa que levou à inclusão da exceptio como um subitem do

abuso). Hoje a exceptio quase que desapareceu por completo da jurisprudência

e, por conseqüência, deixou de despertar o interesse da doutrina.

22

A partir daí, a abordagem passa a se concentrar especificamente

na figura que se constitui no objeto central do presente estudo, o venire contra

factum proprium. Após traçar uma breve visão panorâmica geral sobre o

venire, começamos a buscar os sinais do venire no nosso Código Civil atual. É

evidente que não se encontrará, no nosso Diploma Civil, disposição expressa

que remeta ao venire. No entanto, realçamos diversas disposições legais que

claramente se apresentam como sendo casos de aplicação concreta e específica

do venire, e não apenas em relação ao direito contratual, pois tais disposições

se encontram presentes, também, em outros livros do nosso Código Civil.

Nesse realce de alguns dispositivos legais, mostramos inclusive que, em

alguns casos, a contradição entre dois comportamentos, por ser justificada, é

explicitamente admitida pela norma legal, conclusão essa que se mostra

importante para que, mais à frente, possamos fazer o exame em separado de

cada um dos elementos que compõem a figura do venire.

No exame desses elementos pontuais que compõem o venire, é

feita a separação entre os dois comportamentos do sujeito e a contradição

inaceitável que se verifica entre eles e, a partir desse ponto, cada um desses

elementos é ainda decomposto em elementos menores, para que o exame

possa ser feito do modo mais minucioso possível, dentro do nosso declarado

objetivo de permitir a identificação mais segura do venire e de permitir a sua

mais precisa comparação com outros institutos assemelhados, também

derivados da boa-fé.

Finalmente, concluído o exame do venire contra factum

proprium, passamos a examinar os principais traços de caracterização do tu

quoque e da suppressio (e surrectio), figuras que com freqüência são

confundidas com o venire. Esse exame, contudo, é feito de forma breve, pois

não se constituem no objetivo do presente trabalho, e por isso nos limitamos à

23

busca dos elementos que se mostrem suficientes para caracterizar as distinções

e as semelhanças entre tais figuras e o venire.

Por último, convém ressaltar que, ao longo de todo o

desenvolvimento do trabalho, buscamos a todo instante apresentar exemplos

concretos, ou seja, situações que possam ser apresentadas como aplicações

práticas do que estava sendo examinado em teoria. Isso foi feito não apenas

pela farta indicação de decisões dos tribunais, tanto alienígenas quanto pátrios,

mas também com o freqüente recurso à pura e simples construção de situações

hipotéticas. Entendemos que esse recurso a situações concretas (ou, pelo

menos, possíveis de concreção), ou seja, que aparecem com os contornos e

com a moldura da vida quotidiana, facilita sobremaneira o acompanhamento

do desenvolvimento puramente teórico do assunto.

Em apertadíssima síntese, eis aí todo o conteúdo deste trabalho.

24

1. Desenvolvimento histórico da boa-fé.

1.1. Considerações gerais.

A boa-fé encontra larga aplicação no Direito em geral, mas em

particular se destaca a sua vasta utilização no direito privado. Se questionado

sobre a mesma, qualquer profissional da área jurídica, com certeza, dirá que

conhece o princípio da boa-fé. Instado a transformar esse conhecimento em

um conceito, no entanto, poucos serão os que ousarão fazê-lo, e entre os que o

fizerem, certamente não haverá dois conceitos idênticos. Trata-se, como se vê,

de “algo que el jurista práctico entiende perfectamente sin llegar a

formulárselo”1.

Na realidade, essa dificuldade conceitual tem razões históricas,

estando intrinsecamente relacionada com a noção de boa-fé que veio dos

romanos e a sua respectiva recepção no direito civil europeu, notadamente em

França, com a primeira codificação (Código Civil de 1806), e na Alemanha,

onde surgiu a segunda codificação civil (1900) que marcou fortemente o

direito civil dos demais países (inclusive o Brasil).

Ao longo desses dois últimos séculos, desde o começo da

vigência do Código Civil de Napoleão, os juristas vêm tentando completar

adequadamente as normas legais que, de modo geral e aberto, se referem à

boa-fé. E nessa busca, o que se tem visto é uma grande diversidade de

definições, que em boa parte se apresenta como resultado de uma profunda

vinculação que existe entre a boa-fé e os fatores ético e axiológico, pois como

nessas matérias existe acentuada disparidade de critérios, a relatividade das

1 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 34.

25

soluções encontradas se traduz em matizes diversos a respeito de todos os

conceitos que com elas se relacionam2.

Na verdade, como veremos em seguida, pode-se apontar que

antes mesmo da vigência do Código Civil francês já se verificava a busca de

um conceito científico para preencher a referida expressão, o que ora era feito

com o apoio em noções metajurídicas, ora era buscado dentro do próprio

direito.

Esse panorama, na realidade, não mudou muito até os dias de

hoje. No entanto, é inegável que houve um grande avanço no tema, podendo-

se apontar, como o mais importante desses avanços, a diferenciação entre a

boa-fé como regra objetiva de conduta e a boa-fé esteada na ignorância, ou

seja, no desconhecimento de determinadas circunstâncias do caso concreto.

Essa distinção3, que hoje se nos apresenta como extremamente

simples, nem sempre foi tão clara, sendo renitente, por várias décadas, a

2 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 77. Mas deve-se observar, como bem alerta a ilustre autora espanhola, que a vinculação com a ética e a axiologia não justifica uma relativização absoluta do conceito de boa-fé, sob pena de ser privada de seriedade qualquer intenção conceitual. Na realidade, continua a autora, se por um lado é certo que a validade das normas morais e a estimação dos valores dependem das condições particulares de cada pessoa, por outro, é inaceitável a idéia de que não se podem formular normas morais médias ou gerais, que possam servir para caracterizar uma época ou uma comunidade específica (Ob. Cit., p. 78). 3 O presente trabalho está focado, primordialmente, no estudo da boa-fé normativa, ou seja, da boa-fé como norma objetiva de conduta. No entanto, logo de início deve-se alertar que se pode falar em distinção entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva, mas não em independência daquela em relação a esta. Com efeito, a boa-fé objetiva, como veremos adiante (vejam-se os itens 1.6 e 1.8), diz respeito à proteção à confiança e à legítima expectativa do sujeito, enquanto a boa-fé subjetiva diz respeito ao desconhecimento de uma determinada circunstância. Logo, se o sujeito não desconhece a circunstância, nem ao menos chegou a criar a justa expectativa, não se formou em seu interior a confiança. Pode-se dizer, por isso, que a boa-fé objetiva pressupõe a boa-fé subjetiva, englobando-a. Vejamos um exemplo, que ajudará a clarear essa afirmação. Suponha-se que em um contrato de locação não residencial de um imóvel, com prazo indeterminado, e que por isso pode ser rescindido a qualquer tempo pelo locador, este é procurado pelo locatário, que requer a sua concordância para que seja realizada, nesse imóvel, obra de elevado valor, que permitirá significativo aumento de ganhos pelo locatário, em sua atividade empresarial. Concordando o locador, o locatário realiza a obra. Alguns poucos meses depois, no entanto, o locador denuncia o contrato, pedindo a devolução do imóvel, sendo que o tempo decorrido, claramente, não é suficiente para que o locatário tenha recuperado o seu alto investimento. Nesse caso, quando o locador concordou com a realização da obra, criou-se no locatário uma legítima expectativa, a confiança de que o locador não romperia o contrato antes de decorrido o tempo suficiente para a recuperação do investimento que fizera. Logo, a atuação do princípio da boa-fé levará a que seja protegida essa legítima expectativa criada pelo locatário, impedindo-se que a denúncia produza seus

26

confusão que entre os dois conceitos se fazia, e que em última análise

misturava em um mesmo caldeirão os conceitos de boa-fé subjetiva e boa-fé

objetiva, impedindo o adequado desenvolvimento científico deste último.

O grande entrave que sempre se apresentou à abordagem

adequada da questão, sem sombra de dúvida, foi o fato de que a boa-fé, na

realidade, é uma criação do direito, mas tratando-se de uma criação que, na

sua própria gênese, por definição, sempre terá que se mostrar inacabada, por

isso que estará sempre a requer um complemento que depende dos valores

vigentes em cada época4.

Dito em outras palavras, a boa-fé está sempre e indissoluvelmente

ligada aos fatores sócio-culturais de um determinado lugar e momento. E

efeitos de imediato, devendo-se aguardar, antes que isso ocorra, o tempo necessário à recuperação dos gastos, pelo locatário. No entanto, suponha-se que, nessa mesma situação narrada, o locador, ao concordar com a obra, tivesse informado ao locatário que, em uns poucos meses, precisaria retomar o imóvel, e mesmo assim o locatário resolveu levar a obra a cabo. Ora, nesse caso, o locatário sabia que o imóvel seria em breve retomado pelo locador, e por isso não se pode dizer que teria surgido no locatário a legítima expectativa de que o imóvel não seria pedido de volta tão cedo, pelo locador, pois ele sabia que esse pedido de devolução seria feito. Logo, se não havia o desconhecimento da circunstância (ou seja, se não havia a boa-fé subjetiva), parece evidente que não surgirá a legítima expectativa, a confiança a ser protegida, e por isso não se poderá falar em boa-fé objetiva do locatário. Como se disse, pois, para que haja a concretização da boa-fé objetiva, é necessária a presença da boa-fé subjetiva. Parece-nos que é nesse mesmo sentido a afirmação de Bruno Lewicki, quando diz que os dois aspectos da boa-fé, objetivo e subjetivo, “divergem entre si na mesma medida em que se complementam”. Cf. Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 57. 4 Afirmando exatamente o contrário, ou seja, no sentido de que a boa-fé é um dado da realidade, e não uma criação arbitrária e técnica do Direito, veja-se a lição de Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , pp. 78-81. Curiosamente, no entanto, a oposição entre a afirmação que fizemos acima e a feita pela ilustre autora é apenas aparente. Com efeito, ao afirmar que a boa-fé não é criada pelo Direito, mas por ele apropriada a partir do recurso à realidade social, aponta a autora que tal recurso vem determinado pela necessidade de se vincular o ordenamento jurídico às considerações ético-axiológicas vigentes, e o legislador nada cria, mas apenas, partindo da realidade, atribui à boa-fé certos conteúdos e lhe impõe determinadas limitações, sendo que estas conferem, em cada ordenamento concreto, determinados traços que, sem afetar a essência do princípio da boa-fé, modificam sua aplicabilidade, seu alcance e seus efeitos. “El caso de la buena fe es el segundo, la ley parte de algo que está em la natureza, pero matiza su significado transformándolo em um concepto jurídico. Pero, rei teramos, el punto de partida es la realidad, no hay creación arbitraria de um concepto”. Mas, como se vê, apesar das afirmações iniciais diametralmente opostas, o que se tem, na essência, é a idéia de que a boa-fé será sempre um conceito intimamente ligado às condições sociais, às noções éticas e aos valores vigentes em cada época. Tal idéia tanto pode ser colhida no texto acima quando na lição da autora mencionada, ainda que acima se sustente que a boa-fé é uma criação do Direito, que não o fez de modo arbitrário, mas levou em consideração, previamente, a realidade social, enquanto na obra de Delia Rubio esteja a afirmação de que a boa-fé já existia nessa realidade social, apenas tendo sido apreendida pelo Direito.

27

como tais fatores influem fortemente na própria definição dos contornos da

ordem jurídica vigente, com extrema facilidade se pode perceber que a boa-fé

sempre refletirá uma determinada cultura jurídico-social, vale dizer, sempre

estará a espelhar uma ordem jurídica e social, o que a toda evidência impede

que se possa obter um conceito definitivo e acabado para a mesma. A grande

problemática com que se depara o cientista do direito, portanto, é avaliar como

se dá esse processo e qual será o conteúdo refletido na ordem jurídica.

No dizer de Los Mozos5, o problema é que a aplicação do

princípio da boa-fé faz penetrar no ordenamento jurídico um elemento natural,

propriamente extrajurídico, mas que em virtude desse ingresso passa a formar

a própria regra jurídica, o que provoca a necessidade de que os juristas

busquem identificar como se dá esse ingresso e qual o conteúdo extrajurídico

que passa a fazer parte da regra jurídica.

As observações acima servem para, desde logo, alertar o leitor no

sentido de que neste trabalho não será encontrada uma definição universal e

completa para a boa-fé, pelo simples fato de que tal definição não existe.

Como diz, sem meias palavras, Béatrice Jaluzot6, “a boa-fé é uma noção que

não pode ser definida”. Aliás, o simples exame do nosso direito positivo já

permite verificar que em um mesmo ordenamento, conforme a hipótese que

esteja sendo tratada pelo legislador, são múltiplas e variadas as definições que

podem ser obtidas para a boa-fé.

Com efeito, no artigo 1.201, do Código Civil, verifica-se que o

conceito de boa-fé se refere ao possuidor que ignora o vício ou obstáculo que

impede a aquisição da coisa, o que significa que a boa-fé é sinônimo de

ignorância. No artigo 1.256, no entanto, o mesmo diploma material aponta que 5 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 15. 6 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 79, n° 289.

28

está de má-fé o proprietário que, estando presente, não impugnou o trabalho

de construção ou lavoura feito por terceiro em seu terreno, o que leva a

concluir que a boa-fé, neste caso, consistiria em um comportamento ativo do

proprietário, que deveria se opor à atuação desse terceiro.

No artigo 1.561, ainda do Código Civil, verifica-se que produzirá

os efeitos do casamento válido aquele no qual, embora anulável ou mesmo

nulo, pelo menos um dos cônjuges estava de boa-fé, sendo considerado como

tal o cônjuge que, no momento em que se realizou o casamento, não tinha

conhecimento da causa que tornava o matrimônio anulável ou mesmo nulo,

sendo, contudo, que mesmo a descoberta posterior do vício não impede que

continue a ser tratado como sendo cônjuge de boa-fé, por isso que será

favorecido com todos os efeitos benéficos do casamento, até o dia da sentença

anulatória7. Novamente a ignorância, mas agora restrita a um único e exato

momento: o da celebração do casamento.

No artigo 1.826, por sua vez (em regra que também se mostra

aplicável aos efeitos da posse quanto aos frutos, benfeitorias e deteriorações,

previstos nos artigos 1.214 a 1.222), verifica-se que aquele que, na qualidade

de herdeiro (ou mesmo sem título), possui herança que, no todo ou em parte,

pertence a terceiro, ainda que de nada soubesse quanto ao fato de não ser o

verdadeiro herdeiro, caso venha a ser vencido na demanda, passará a ser

considerado de má-fé a partir da citação. A boa-fé, aqui, não depende do

desconhecimento em si mesmo, mas da combinação entre a citação e o

resultado da demanda.

Como se percebe, a partir dessa breve amostragem, têm-se aí

quatro conceitos nitidamente distintos. Na primeira situação (art. 1.201), com

efeito, verifica-se que o conceito de boa-fé aborda aspecto puramente 7 Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Introdução ao Direito de Família, pp. 90-91.

29

subjetivo, ou seja, decorre da ignorância de uma determinada circunstância de

fato: se o possuidor tinha conhecimento dessa circunstância, estava de má-fé

e, se não tinha tal conhecimento, é considerado possuidor de boa-fé. Na

segunda hipótese (art. 1.256), contudo, o aspecto subjetivo já não se mostra

suficiente, pois o conceito de boa-fé já passa a ser relacionado com um dever

de agir do proprietário, que será considerado de má-fé se nada fizer para

impedir o terceiro de construir ou plantar em seu imóvel.

Na terceira e na quarta situações enfocadas (arts. 1.561 e 1.826),

no entanto, embora em ambas a questão da boa-fé volte a se relacionar com o

aspecto subjetivo do conhecimento ou desconhecimento de determinada

circunstância de fato, verifica-se significativa distinção entre as duas. De fato,

na hipótese do casamento, ainda que tenha descoberto o vício que o torna

nulo, o cônjuge continua a ser tratado de boa-fé, até o trânsito em julgado da

sentença anulatória. Dessa forma, o desconhecimento no momento da

celebração fez com que o cônjuge fosse considerado como sendo de boa-fé,

mas o conhecimento posterior não afasta essa qualificação como cônjuge de

boa-fé.

Na situação do que possui a herança, no entanto, se o mesmo não

sabia dos motivos pelos quais não era o verdadeiro herdeiro (por exemplo, no

caso do irmão do de cujus que recebeu a herança por ser desconhecida a

existência de um filho do mesmo), será considerado como possuidor de boa-

fé. No entanto, vindo a ser citado, ainda que continue a acreditar que de fato é

o herdeiro (ou seja, ainda que continue a desconhecer a circunstância que o

impede de possuir, pois é certo que a citação não tem o condão de, por si só,

fazer surgir o conhecimento da realidade), passará a ser considerado, a partir

daí, como pessoa de má-fé, mas isso estando condicionado ao resultado da

ação contra ele ajuizada.

30

Veja-se que, nessa primeira abordagem, todas as definições de

boa-fé, apesar das diferenças, podem ser relacionadas com os aspectos

íntimos, psicológicos, da pessoa envolvida, ora referindo-se ao conhecimento

ou desconhecimento de uma circunstância fática, ora à culpa dessa mesma

pessoa (negligência por nada ter feito). E apesar desse liame entre elas, como

vimos, as diferenças ainda assim podem ser facilmente detectadas, em alguns

casos se mostrando acentuadas.

O fosso aumenta, no entanto, se observarmos que existem outras

situações em que a lei não se satisfaz com a abordagem dos aspectos internos

do sujeito, buscando ainda a influência de fatores externos. Assim, por

exemplo, nos termos do artigo 187 do Código Civil, a boa-fé se apresenta

como sendo um limite imposto ao exercício de um direito, ou seja, como um

fator externo que se impõe à atuação do titular de um direito ao exercê-lo, e

que uma vez ultrapassado faz com que seja ilícito tal exercício.

Pode-se apontar, igualmente, o artigo 113 do Código Civil, que

determina que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-

fé, por isso que, em tal situação, mais uma vez, tem-se a boa-fé como

elemento externo ao sujeito8, e tanto assim que invocada para interpretar os

negócios que esse mesmo sujeito já celebrou. Da mesma forma, na conclusão

e na execução de um contrato, determina o artigo 422 que os contratantes

observem o princípio da boa-fé.

8 Nesse sentido a lição de Moreira Alves, que ao analisar o artigo 113, do Código Civil, ensina que “a boa-fé a que alude esse dispositivo não é evidentemente a boa-fé subjetiva, fato psicológico em que, quando conceituado como convicção de não se estar ofendendo direito alheio, se levam em consideração também valores morais de honestidade e retidão, mas sim, a boa-fé objetiva que se caracteriza como regra de reta conduta do homem de bem no entendimento de uma sociedade em certo momento historico. É, portanto, ao contrário do que ocorre com a boa-fé subjetiva, algo exterior ao sujeito, vinculando-se ao dever de cooperação que se exige nas relações obrigacionais, e regra de interpretação que ora conduz a um resultado integrador das obrigações assumidas, ora a um resultado limitador delas...”. Cf. José Carlos Moreira Alves, O novo Código Civil brasileiro e o direito romano – seu exame quanto às principais inovações no tocante ao negócio jurídico. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 120.

31

Como se vê, nessas três últimas disposições legais mencionadas,

em todas elas a boa-fé apresenta, em comum, o fato de se apresentar como

elemento externo ao sujeito, e não mais como um elemento interno ligado ao

mesmo. Apesar desse fator comum, no entanto, são muito claras as diferenças

entre cada uma das situações, eis que a boa-fé, como fator externo, pode se

apresentar como um limite previamente estabelecido à atuação concreta do

sujeito (art. 187), como uma diretriz interpretativa dos atos por ele praticados,

ou mesmo com a generalidade de um princípio, que se infiltra por todo o

ordenamento jurídico.

O primeiro grupo de situações acima apontadas, ou seja, as que

relacionam a boa-fé com os aspectos íntimos e psicológicos do sujeito, estão

ligados ao que se denomina de boa-fé subjetiva, enquanto que o segundo, o

que apresenta a boa-fé como um fator externo, relaciona-se à chamada boa-fé

objetiva9.

A denominação, no entanto, não difere, em ambos os casos sendo

usada, pela lei, a expressão “boa-fé”, ao contrário, por exemplo, do direito

alemão, onde são usadas expressões distintas para a boa-fé subjetiva (guter

Glauben) e para a boa-fé objetiva (Treu und Glauben), o que facilita a mais

rápida distinção10. Além disso, e principalmente, como vimos acima, mesmo

9 Há quem prefira usar as denominações “boa-fé-crença” e “boa-fé-lealdade”, sendo a primeira a posição de quem ignora determinados fatos e pensa, portanto, que sua conduta é legítima e não causa prejuízos a ninguém; a segunda é referente à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu dever, pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico. Cf. Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho, p. 425. Também Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo , p. 45, prefere “distinguir la buena fe-creencia y la buena fe-lealtad. La primera se refiere a la buena fe de quien cree obrar con arreglo a derecho, aunque fundado en una creencia equivocada, excusable por una apariencia engañosa. La segunda trata de la conducta de la persona que considera cumplir realmente con su deber. Supone una posición de honestidad que lleva implícita la plena conciencia de no engañar, ni perjudicar, ni danar. Implica la convicción de que las transacciones se cumplen normalmente, sin abusos ni desvirtuaciones”. 10 Na realidade, a doutrina alemã, com a precisão que lhe é peculiar, vale-se dessa dualidade objetividade/subjetividade como um dos critérios para diferenciar a boa-fé no direito das coisas da boa-fé no campo das relações contratuais. A primeira, ou seja, no direito das coisas, seria a boa-fé subjetiva, ligada ao estado de espírito do sujeito, que conhece ou ignora os vícios do seu título, enquanto a segunda seria objetiva,

32

dentro de cada uma dessas modalidades de boa-fé encontramos diferenças

marcantes.

Todos esses fatores, como facilmente se pode imaginar, têm-se

constituído, ao longo da evolução da análise da boa-fé pela Ciência do Direito

(e até hoje se constituem), em obstáculo quase intransponível à obtenção de

um conceito abstrato e teórico que se mostre satisfatório. Muito pelo contrário,

embora algumas linhas mestras abstratas possam ser traçadas, sempre haverá

de se mostrar indispensável a análise minuciosa do caso concreto onde tais

linhas devam ser aplicadas, sendo inviável que se atinja solução adequada

apenas em função das normas e valores que informam o sistema.

Na lição de Los Mozos11, distingue-se na atualidade um

pensamento aporético (ou problemático) e um pensamento sistemático (ou

axiomático). O primeiro busca a solução de cada problema depois de avaliar

as circunstâncias da situação concreta onde esse mesmo problema foi

detectado, e com ele se relaciona a tópica, enquanto o segundo busca,

primordialmente, a sistematização dos conceitos e das soluções que serão

usados em cada caso concreto.

não dependendo do sujeito, mas sim de valores que dele independem. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 80, n° 291. 11 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 19-20.

33

No pensamento tópico12 (aporético), não há como se fazer a

sistematização dos conceitos, de modo a que tenham aplicação ampla, pois

com isso se perderia a sua finalidade específica, e é nessa situação que se

enquadra o princípio da boa-fé, que não pode ser considerado senão como um

conceito tópico, cujo conteúdo não consegue encontrar guarida em um

conceito único, válido para todo o sistema. Nesse mesmo sentido, afirma

Béatrice Jaluzot13 que a boa-fé é o instrumento de uma justiça feita caso a

caso, o que inclusive levou a Corte Federal da Alemanha a expressar sua

intenção de não sistematizar as condições para a sua aplicação14.

A sistematização, portanto, prossegue Los Mozos15, não pode ser

feita de modo arbitrário, sem que se faça o necessário enquadramento do

indivíduo na realidade que o cerca, assim como sua vinculação a determinados

problemas que se apresentam de modo permanente em um complexo

problemático determinado e real, tais como o negócio jurídico, a proteção da

confiança, etc. 12 Nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr., “a tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras <fórmulas de procura> de solução de conflito. Noções-chaves como <interesse público>, <vontade contratual>, <autonomia da vontade>, bem como princípios básicos como <não tirar proveito da própria ilicitude>, <dar a cada um o que é seu>, <in dubio pro reo>, guardam um sentido vago, que se determina em função de problemas como a relação entre sociedade e indivíduo, proteção do indivíduo em face do Estado, do indivíduo de boa-fé, distribuição dos bens numa situação de escassez, etc., problemas estes que se reduzem, de certo modo, a uma aporia nuclear, isto é, a uma questão sempre posta e renovadamente discutida e que anima toda a jurisprudência: a aporia da justiça”. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Prefácio do Tradutor. In: Viehweg, Theodor. Tópica e Jurisprudência, p. 3. 13 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 103, n° 370. No entanto, é necessário que se alerte que a referida autora menciona, na mesma obra e local citados, que, ao lado dessa parte que ela denomina de subjetiva, e que só pode ser aferida caso a caso, existe também uma parte objetiva, que segundo ela não varia em função das circunstâncias, e que consiste nos usos e nos valores. 14 Nas atentas palavras de Teresa Negreiros: “A boa-fé constitui um exemplo riquíssimo de como o Direito é indissociável de sua aplicação”. Cf. Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, p. 19. 15 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 21.

34

Assim, conclui o respeitado jurista espanhol, o sistema jurídico

deve ser funcional, buscando sua concreção não nas leis positivadas (sistema

teórico), mas principalmente nos princípios de valoração que a prática

desenvolve e que podem ser extraídos da lei, mas são sempre descobertos e

comprovados no problema concreto. Dessa forma, prossegue o festejado autor,

não é o sistema, em sentido racional, que se deve constituir no centro do

pensamento jurídico, mas sim o problema16, o que torna impossível, como dito

acima, tendo em vista a diversidade de situações possíveis, que se elabore um

conceito geral de boa-fé17.

Nos próximos itens, buscaremos traçar uma linha evolutiva do

conceito de boa-fé, até que se atinja o conceito atual, para ao final

apresentarmos as “linhas mestras abstratas” acima mencionadas, mas sempre

com freqüentes remissões a situações concretas, que melhor ajudem à

compreensão adequada do tema, e de modo a nos permitir, inclusive, a mais

fácil diferenciação dos institutos que decorrem da boa-fé, institutos esses cuja

análise se constitui no objeto principal do presente trabalho.

Antes de prosseguirmos, contudo, convém observar que, nessa

abordagem coordenada de aspectos abstratos com situações concretas, com

alguma freqüência precisaremos nos valer do direito positivo. É que a

dogmática jurídica, como bem afirma Menezes Cordeiro, deve ser muito mais

do que um simples elemento de captação do material jurídico, devendo

também permitir que seja racionalmente verificada e feita a crítica das

16 Aliás, nas palavras do próprio Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, “a tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica” (p. 17), ou seja, trata-se de “uma techne do pensamento que se orienta para o problema ” (p. 33). 17 Em certa medida, tal posição se apresenta coincidente com a que é apresentada por Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito , p. 54. Diz o jurista gaúcho que o sistema é uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais. Ora, essa hierarquização tópica nada mais é, segundo nos parece, do que o cerne da idéia de Los Mozos, ou seja, o topo da hierarquia será ocupado por um princípio indeterminável em abstrato, só podendo ser apontado com precisão segundo as circunstâncias tópicas do caso concreto.

35

soluções porventura encontradas, ou seja, deve atender às necessidades da

vida, e por essa razão não pode ficar alheia aos elementos do direito posto, sob

pena de tornar qualquer debate alheio ao Direito e à sua Ciência18.

No entanto, e de um certo modo até paradoxalmente, importante é

que se alerte que no estudo da boa-fé objetiva, campo onde preferencialmente

se situam a Teoria dos Atos Próprios e os demais institutos que lhe são

assemelhados, em geral se mostrarão impossíveis a interpretação e a aplicação

tradicionais da lei, fazendo-se a subsunção do caso concreto à mesma. O

problema é que a boa-fé objetiva, embora esteja, a toda evidência (e a todo

instante), inserida no ordenamento jurídico, de uma certa forma se mantém

fora da norma legal.

Com efeito, facilmente se verifica que as normas legais que

fazem menção à boa-fé não têm, por si sós, uma solução para o caso concreto,

vale dizer, não contêm em seu bojo uma decisão a ser aplicada pelo juiz por

meio da subsunção, ao contrário do método aplicativo tradicional.

Quando o Código Civil, por exemplo, menciona que nas

obrigações provenientes de ato ilícito o devedor deve ser considerado em

mora desde o momento em que o praticou (art. 398), o juiz considera a norma

legal como sendo a premissa maior. Ao examinar um caso concreto, verifica

que “A” deve pagar a “B” uma indenização decorrente de um ato ilícito, e tal

situação real é considerada como a premissa menor. Faz, então, a subsunção,

concluindo com facilidade que “A” está em mora desde o momento em que

praticou o ato que deu origem à dívida, e portanto deverá responder pelos

juros da mora desde o referido momento.

No entanto, veja-se que quando o mesmo Diploma Civil manda

que os direitos sejam exercidos dentro dos limites impostos pela boa-fé (art. 18 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 30-31.

36

187), sob pena de se caracterizar o exercício abusivo, a norma legal mais se

assemelha a uma lacuna, a ser preenchida pelo aplicador, uma vez que não dá

a este qualquer critério para que possa aferir quais são esses limites traçados

pela boa-fé, e o limite dependerá unicamente da atuação do próprio juiz.

Como se vê, portanto, a boa-fé é buscada em virtude da

determinação que emana da ordem legal, mas o seu conteúdo não está – e,

como veremos, nem poderia estar – na lei, mas sim na própria decisão judicial,

que deverá buscar-lhe o melhor preenchimento para as circunstâncias do caso

concreto em exame. Em outras palavras, a compreensão da boa-fé objetiva

decorre muito mais da atividade jurisprudencial do que da análise teórico-

doutrinária dos textos legais.

É evidente que, com a evolução da jurisprudência, torna-se

possível que os estudos se encaminhem para uma sistematização da matéria, o

que facilita sobremaneira a análise dos casos futuros, que se torna mais segura,

uma vez que, em sua maioria, tais casos tenderão a ser enquadrados nas

situações já organizadas de modo científico. Como bem aponta Béatrice

Jaluzot19, é o estudo jurisprudencial e doutrinário que permite que nos

aproximemos do conteúdo da boa-fé.

Por outro lado, no entanto, também não se pode perder de vista

que as decisões judiciais jamais se consolidarão até o ponto de esgotar todas

as novas hipóteses que poderão surgir, vale dizer, sempre surgirão situações

que até então não haviam sido abordadas, com nuances e características

próprias, o que faz com que o estudo de fenômenos como o da boa-fé esteja

em evolução permanente e contínua, sempre havendo espaço para novas

19 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 79, n° 289.

37

construções e, ao mesmo tempo, sempre havendo uma necessária e

insuperável indefinição conceitual.

O sistema jurídico, como se sabe, está em incessante interação

com o meio social onde encontra sua aplicação, em uma troca recíproca de

conceitos e de soluções, e por isso as inovações sociais repercutem quase que

de imediato no ordenamento jurídico, e com freqüência surgem situações que

são alheias às normas legais ou em relação às quais é quase nenhum o

tratamento dispensado pelo direito posto. E é exatamente nessas situações,

pouco ou nada reguladas pela lei, que com mais intensidade se mostra

aplicável a boa-fé, exatamente por ser um conceito estranho à lei, não podendo

ser por esta aprisionado.

Tome-se, a título de exemplo, a questão do abuso do direito,

prevista em nosso ordenamento, unicamente, no artigo 187 do Código Civil,

sem que se possa encontrar qualquer norma legal que cuide de explicar em

maiores detalhes sobre o tema. Ora, em qualquer relação jurídica, onde um

dos sujeitos estará sempre exercendo um ou mais direitos subjetivos, haverá

sempre um largo espaço para a atuação do juiz, com esteio no conceito de

abuso do direito, o que tem a inegável vantagem de permitir que possam ser

corrigidas eventuais distorções – ou mesmo injustiças – decorrentes da

aplicação direta da norma legal.

Tomemos, como exemplo ainda mais específico, para tornar mais

clara a afirmação, um caso que ocorre na prática com muita freqüência, que é

o trabalho do empregado doméstico em extensas jornadas, inclusive aos

domingos e feriados.

O problema começa porque a lei, ao tratar das horas extras e do

Repouso Semanal Remunerado, expressamente exclui o empregado doméstico

da sua abrangência, como se pode observar no Decreto-Lei nº 5.452, de

38

01.05.1943 (CLT), art. 7º, a, e na Lei nº 605, de 05.01.1949, que trata do

Repouso Semanal Remunerado e, em seu artigo 5º, a, explicitamente declara

que seus dispositivos não são aplicáveis aos empregados domésticos. Ao

entrar em vigor, contudo, a atual Constituição Federal determinou, em seu

artigo 7º, parágrafo único, que aos domésticos fosse deferido o Repouso

Semanal Remunerado, preferencialmente aos domingos, continuando a não se

lhe aplicar, contudo, as regras sobre horas extras, previstas na CLT.

Tem-se, portanto, com grande freqüência, a seguinte situação: a

empregada doméstica trabalha em jornadas muito extensas, por vezes

começando antes das 07:00 horas e terminando por volta de 20:00 horas, ou

mesmo depois disso. Ainda, é também muito comum que a empregada

doméstica trabalhe em dias feriados ou mesmo aos domingos. Ora, a única

norma legal a tratar sobre o assunto, como acabamos de mencionar, é o

dispositivo constitucional (CF, art. 7º, parágrafo único), que assegura ao

doméstico o direito ao Repouso Semanal Remunerado, preferencialmente aos

domingos.

O que deve fazer o juiz, portanto, em tais situações? Condenar o

empregador ao pagamento de horas extras ao doméstico? O problema é que do

direito às horas extras são expressamente excluídos esses empregados pela

norma legal. Determinar que o empregador forneça o dia de repouso,

preferencialmente aos domingos? O problema, agora, é que em geral, quando

o empregado busca a Justiça do Trabalho, já não mais trabalha para aquele

empregador, e por isso a determinação não teria qualquer objeto. O que fazer,

então?

No enfrentamento dos casos concretos, a primeira e óbvia

conclusão a que chegaram os juízes do trabalho, foi no sentido de que a falta

de regulamentação da matéria, caso implicasse na ausência de qualquer

39

conseqüência, estaria sendo transformada em manifesta injustiça. A segunda,

foi no sentido de que o empregador doméstico, ao exercer seu direito de exigir

a prestação dos serviços por parte do empregado, em troca do pagamento dos

salários, deveria exercê-lo dentro dos limites que se impõem a todo e qualquer

exercício de direitos subjetivos, sob o risco de se configurar o abuso.

A partir de tal constatação, com uma certa facilidade pôde ser

preenchida a lacuna existente na lei, pois o que se verificou foi que o

empregador doméstico, ao exigir o trabalho em extensas jornadas, que se

mostram desarrazoadas, ou o trabalho nos dias feriados ou em todos os

domingos, estava exercendo de modo abusivo o seu direito, extrapolando os

limites que a boa-fé impõe a tal exercício. Logo, tal empregador deve ser

condenado a pagar ao empregado doméstico uma certa quantia, que, se não

poderá ser paga a título de horas extras, face à expressa exclusão legal, deverá

sê-lo a título de indenização em virtude de ato ilícito, consistente no exercício

abusivo do direito de exigir a prestação dos serviços.

Como se vê, portanto, o juiz recebeu, para decidir, situação

concreta que se encontra sujeita a quase nenhuma regulamentação legal e, para

decidi-la, precisou preencher os claros legais. Ao fazê-lo, lançando mão do

conceito de boa-fé (e dos institutos que dela derivam), além de suprir uma

lacuna legal, corrigiu uma situação que poderia se caracterizar em manifesta

injustiça, caso fosse simplesmente aplicada a norma legal que exclui os

domésticos do âmbito de aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho.

Além disso, como também já havíamos alertado linhas atrás,

quanto mais avançar o tratamento jurisprudencial dado à questão, mais seguro

se tornará o enfrentamento da mesma, que poderá ser enquadrada em uma

sistematização que permita prever, com razoável acerto, a solução a ser

aplicada aos futuros casos concretos que se mostrem similares, solução essa

40

que se tornará previsível em seus diversos aspectos, inclusive quanto aos

parâmetros de apuração do valor a ser fixado para a indenização.

Deve-se alertar, contudo, para um sério risco, do qual se deve

fugir, que é o da tentação de preencher o espaço aberto pela indefinição

conceitual de boa-fé com outros conceitos que também se mostram vagos e

indefinidos, e que também são externos à norma legal. Assim ocorre, por

exemplo, quando se busca dizer que os limites da boa-fé são aqueles impostos

pela eqüidade, ou quando se diz que age de boa-fé quem age com equilíbrio

ou conforme a ética.

O problema, que se mostra bastante evidente, é que essas

expressões também não estão conceituadas pela lei, e continuarão a requerer a

atuação do juiz, para o seu preenchimento em cada caso concreto, o que

significa que não se resolveu coisa alguma, mas tão-somente se fez a

substituição de uma expressão indefinida por outras que igualmente o são.

Ademais, substituir a boa-fé por expressões que, supostamente, resolveriam o

problema do seu conteúdo, na realidade seria o mesmo que afirmar que a boa-

fé não se mostra funcional, não podendo ser aplicada nas soluções jurídicas

em virtude da inviabilidade de se construir um conteúdo próprio, por isso que

se teria mostrado indispensável a substituição. E a construção desse conteúdo

próprio é perfeitamente viável, como pretendemos demonstrar mais à frente.

1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu.

Não se nota, nos autores modernos, qualquer interesse no estudo

da fides romana, o que pode ser facilmente explicado quando se observa que,

na realidade, o instituto chegou ao direito moderno através do direito europeu,

que o recebeu e modificou. Mais interessante tem se mostrado, por isso, o

41

estudo da boa-fé nos países da Europa, principalmente a Alemanha, Portugal e

França, destacando-se esta última face à grande contribuição, para o direito

civil em geral, em que se constituiu a primeira grande codificação, e de modo

especial, quanto à boa-fé, sobressaindo-se a Alemanha, onde o estudo do

assunto teve incomparável desenvolvimento. Mas veja-se, contudo, que há

quem alerte que não é possível determinar o conteúdo e a forma da boa ou má-

fé a não ser observando a enorme diversidade de aplicações da fides no campo

do Direito20.

De qualquer modo, ainda que brevemente, não é demais

mencionar que a primitiva fides romana, na realidade, desdobrava-se em

diversos significados, podendo-se apontar, à guisa de exemplo, a fides-sacra,

prevista na Lei das XII Tábuas, através da qual se cominava sanção religiosa

contra o patrão que defraudasse a fides do cliente21, a fides-facto, que não

apresentava qualquer conotação religiosa ou moral, ligando-se à questão da

garantia de alguns institutos, e a fides-ética, que também se referia à noção de

garantia, mas agora consistente na qualidade de uma pessoa, por isso que

eivada de um conteúdo moral22. Na realidade, todos os povos da antiguidade,

os romanos em especial, davam extraordinária importância à fides, inclusive

revestindo-a de um conteúdo religioso e informando toda a vida e a

consciência social23.

Mas havia, ainda, outros sentidos para a fides romana. Assim, por

exemplo, a fides-sacra poderia ser ainda dividida em fides-poder e em fides-

promessa, a primeira referente à posição do patrão, que detinha poderes de

20 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 22. 21 A clientela, entenda-se, consistia em uma das classes que compunham a estratificação social romana, cujos integrantes, os clientes, estavam situados entre o cidadão livre e o escravo, e que assumiam deveres de lealdade e de obediência ao patrão, em troca da proteção. 22 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 55-56. 23 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 22.

42

direção, e a segunda referente à possibilidade de uma pessoa ser recebida na

fides (na proteção) de outra, sem que o fosse por transmissão hereditária, ou

seja, a fides-promessa implicava em uma sujeição à fides-poder. Além disso,

pode-se ainda apontar que a fides também surgiu nas relações externas de

Roma com outros povos, sendo que inicialmente se referia a tratados

igualitários, firmados entre Roma e outros Estados, e depois, com o aumento

do poderio de Roma, à simples submissão desses outros Estados por meio da

força24. Tratava-se da fides populi Romani25.

Como se vê, a partir dessa brevíssima amostragem, é facilmente

justificado o atual desinteresse científico pelo estudo da fides romana

primitiva, eis que seus contornos não guardam a menor semelhança com

qualquer das diversas abordagens atuais possíveis para a boa-fé. Evoluiu,

contudo, o instituto, e da fides passou-se à fides bona, sendo que esta

significava, na opinião dominante, a fidelidade à palavra dada, com o dever de

cumprimento da promessa, o que fazia com que surgissem efeitos jurídicos e

fosse possível a ação no caso de certos contratos que não eram reconhecidos

pelo ius civile26.

Em outras palavras, os contratos, no direito romano, em princípio

só eram válidos se fosse seguido um minucioso formalismo, não decorrendo

efeitos jurídicos, vale dizer, não ficando vinculadas as partes, se as fórmulas

sacramentais não fossem seguidas de modo rigoroso. A partir da fides bona o

pacto entre as partes passa a ter força vinculante, ainda que não houvesse

qualquer fórmula prevista, para ser seguida pelas partes pactuantes, pois

24 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 59-65. 25 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 23. 26 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 192.

43

deveria ser mantida a palavra reciprocamente comprometida. São os contratos

de boa-fé.

Essa qualificação ética (bona) da fides foi uma necessidade

imposta pelo desenvolvimento do comércio. É que, com a expansão do

Império Romano, houve um grande impulso nas relações comerciais entre

romanos e estrangeiros, independentemente de qualquer tratado internacional,

e a partir daí surgiu um novo complexo jurídico, fora do ius gentium, que tinha

como elemento vinculante e princípio normativo precisamente essa fides

qualificada como bona: partia-se de um conceito que correspondia à

confiança, que exprimia uma relação de fidúcia. E os pretores, especialmente

os pretores peregrinos, passaram a reconhecer e sancionar esse complexo de

relações que nasciam com amparo no critério normativo da boa-fé27.

Não é demais observar que atualmente, ao contrário, todos os

contratos são de boa-fé, não dependendo dessas fórmulas sacramentais

rigorosas, que foram prestigiadas apenas no primeiro período do Direito

Romano, mas que já perderam prestígio no período clássico, e hoje não

passam de uma curiosidade28.

27 Giuseppe Grosso, verbete Buona fede – La Tradizione Romana, In: Calasso, Francesco (Coord.), Enciclopédia del Diritto, V, p. 662. “ ...il grande impulso che tali rapporti ricevettero dall’espansione di Roma al di là dei mari, e dallo sviluppo del comercio che l’ha accompagnato, sin dal chiudersi della prima guerra punica, diede luogo al formarsi di un nuovo complesso giuridico – noto sotto il nome di ius gentium – elemento vincolante e principio normativo fu appunto la fides, colla ulteriore qualifica etica di bonna, e cioè fides bona o bona fides: da un concetto di rispondenza ad un affidamento, che esprimeva un rapporto di fiduciaretà, generalizzato... Il pretore (più specificamente il praetor peregrinus...) diede sanzione al complesso di rapporti che ne nasceva, appunto coll’assumere come criterio normativo la fides bona... La fides bona come criterio obiettivo plasmava cosi la forza vincolante di negozi e rapporti che formavano un complesso giuridico assunto come prius rispetto alla sanzione processuale, alla stessa guisa del ius civile, e che fu quindi assorbito nel ius civile quando si affermò la contrapposizione di questo ad un ius honorarium o praetorium, che rovesciava i rapporti fra diritto sostanziale e tutela processuale”. 28 Sobre o tema, vale conferir a lição de Louis Josserand, O Desenvolvimento Moderno do Conceito Contratual. In: Revista Forense, n° 72, Dezembro de 1937, p. 533. “...todos os contratos, no direito moderno, são de boa-fé; a noção do contrato de direito estrito, tão acreditada no Direito Romano da primeira época, porém já fortemente desprestigiada no período clássico, ficou reduzida, em nossos dias, quase à situação de uma curiosidade jurídica”.

44

Dentre os aspectos dessa evolução mencionada no parágrafo

anterior, foram marcantes os que se referem ao valor vinculante do negócio

jurídico não solene e à ampliação do papel criador da jurisprudência,

notadamente com os bonae fidei iudicia, cujo fundamento era o suporte dos

poderes do juiz pela própria fides, e que se constituíram em forte elemento de

ligação entre o direito material e a tutela processual, com um modo próprio de

interpretação do conteúdo dos negócios jurídicos29. Vejamos como isso se

deu.

O direito romano, como se sabe, não se baseava na ordenação

sistemática dos direitos subjetivos abstratos, mas sim na previsão de ações

para os diversos casos concretos. Pois bem, aquelas pretensões que eram

apresentadas com esteio na fides, passaram a ser denominados de bonae fidei

judicia. A característica marcante é que, nos litígios dos bonae fidei judicia,

não se buscava apenas uma composição formal, mas a solução material para o

mesmo, devendo-se descer até o aspecto material da questão. De modo mais

claro, o pretor não se limitaria ao fato central, apresentado como causa de

pedir, mas deveria levar em consideração os fatos ligados ao litígio de modo

periférico.

Dito de modo mais simples, o direito contratual romano, que até

então reconhecia os contratos formais, ou seja, cuja celebração atendia a

fórmulas sacramentais rígidas, passa a reconhecer, também, com base na fides,

os que não dependiam de uma solenidade especial ou fórmula sacramental

para a sua eficácia, e o que se vê é o surgimento de uma dicotomia entre os

contratos de direito estrito e os contratos de “boa-fé”, sendo que os primeiros

eram os contratos formais (do direito civil, ou quiritário), e os segundos, como

29 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 24-25.

45

já mencionado, os que eram eficazes mesmo não tendo obedecido a qualquer

solenidade específica30.

Nessa tarefa, de buscar a solução material mais adequada,

avultava a natureza pretoriana das regras criadas, vale dizer, na solução de

casos concretos que lhes eram apresentados, os pretores começaram a criar

soluções concretas, inclusive com relação às exceções que poderiam ser

apresentadas pelo réu (por exemplo, a possibilidade de ser argüida a

compensação, embora o crédito do réu, contra o autor, não estivesse ligado à

causa de pedir). Colocou-se essa observação em destaque porque, na

realidade, até hoje, como já mencionamos brevemente acima, essa atuação

pretoriana é fundamental para a compreensão do sentido da boa-fé.

No direito romano clássico, portanto, o que se pode verificar é

que a fides bona se apresentava como uma norma de forte conteúdo ético,

referente ao comportamento honesto e leal e que estava de acordo com os

costumes respeitados nos negócios. Apresentava, ainda, face à atuação

pretoriana, alguns característicos bem definidos, como por exemplo a rejeição

ao dolo e a possibilidade de compensar as dívidas. Essa rejeição do dolo deu

origem à exceptio doli, sobre a qual falaremos mais à frente, no presente

trabalho.

Do campo do direito obrigacional, transporta-se a bona fides para

o campo dos direitos reais, mas agora com significado completamente distinto,

passando a significar um estado psicológico de desconhecimento, por parte do

adquirente, de vícios que o impediriam de adquirir a propriedade, e que

encontrava aplicação como um dos pressupostos na aquisição da propriedade

pela usucapião, o que, aliás, embora com outra roupagem (restrita a apenas

uma das diversas espécies de usucapião), até hoje ainda ocorre. 30 Humberto Theodoro Júnior, O contrato e seus princípios, p. 33.

46

Na realidade, como explica Menezes Cordeiro31, originalmente a

usucapião operava em prazos bastante curtos (apenas dois anos para os

imóveis e um ano para os moveis) e não exigia posse qualificada, o que se

justificava por se tratar de uma pequena cidade cuja economia era fundiária, o

que facilitava ao proprietário a imediata interrupção de qualquer posse

ilegítima. Mas era exigido que a posse não fosse furtiva e nem violenta, e é

nessa exigência que se encontra o germe que, mais tarde, viria a se

transformar na bona fides aplicada aos direitos reais, pois o enorme

alargamento do império romano, com grandes distâncias a percorrer e as

prolongadas ausências dos cidadãos, pelas exigências do serviço militar,

fizeram com que passassem a ser impostas, paulatinamente, maiores

dificuldades à aquisição da propriedade pela usucapião.

A partir daí, vale dizer, a partir de seu uso em relação à

ignorância do vício da posse, a bona fides se espalha para outros ramos do

ordenamento jurídico romano, como por exemplo o casamento, mas sempre

com esse mesmo sentido psicológico, ou seja, traduzindo o desconhecimento

de uma certa circunstância ou de um determinado vício.

A bona fides se espraia de tal forma que pode mesmo ser

considerada como um “princípio geral” do direito romano, que passa a ser

voltado para a solução de casos concretos, sem que haja a preocupação de um

desenvolvimento técnico da mesma, que ficou carente de uma definição.

Na realidade, mais adequado se mostraria dizer que a bona fides,

para os romanos, era informadora de todo o ordenamento social e jurídico,

impondo que nas relações interpessoais e nos comportamentos em geral fosse

observada a fidelidade, embora não houvesse qualquer preocupação em

apresentar um conceito único ou mesmo em identificar uma origem única para 31 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Direitos Reais , pp. 671-672.

47

todas as situações onde a mesma encontrava aplicação, até porque, como já

comentamos acima, não era próprio dos romanos o pensamento abstrato e

sistematizado, mas sim o pensamento problemático, tópico, voltado para a

solução de cada caso concreto específico.

De modo generalizante, contudo, pode-se afirmar que, para os

romanos, seria de boa-fé o que correspondesse, no caso concreto, à idéia de

fidelidade, tanto em relação ao conteúdo da relação jurídica quanto em relação

ao comportamento que se esperava dos sujeitos envolvidos32.

1.3. O direito europeu pré-codificações.

Após o surgimento da Europa, por volta do século IX, tem início

um estudo científico do direito, que passa a ser visto como Ciência, e assim

estudado nas universidades, notadamente nos séculos XIII e XIV, quando

surgem essas escolas superiores. E a base desse estudo científico foi

precisamente o Corpus Iuris Civilis, de Justiniano, monumento do direito

romano. Como se vê, portanto, a recepção33 do direito romano pelo direito

europeu está na base da abordagem científica deste último, que com esses

contornos passa a ser estudado nas universidades.

32 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 26-27. 33 Referindo-se ao direito alemão em particular, mas também mencionando o direito europeu em geral, Wieacker aponta a recepção prática, ou seja, a “grande subversão do antigo direito privado alemão pelo predomínio do direito justinianeu na teoria do direito privado, na legislação e na aplicação do direito”, como tendo sido “ a época fundamental da história do direito privado alemão da época moderna”. E esclarece que não se tratou de um caso isolado, pois “a difusão dos métodos científicos e da dogmática jurídica dos glosadores e dos conciliadores atingiu, pelo contrário, a maior parte dos países europeus”. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno , pp. 129-130. E, ainda na mesma obra, esclarece o autor que “a história do direito privado moderno inicia-se, na Europa, com a redescoberta do Corpus Iuris justinianeu. Uma ciência jurídica européia surgiu, quando, pelos inícios da Alta Idade Média, as formas de comentário e de ensino do trivium, herdadas da antiguidade, fora m aplicadas ao estudo do Corpus Iuris justinianeu” (p. 11).

48

Papel importante, nessa recepção, foi o desempenhado pela Igreja

Católica. Como se sabe, a partir do século III, com o Imperador Constantino, o

cristianismo se constituiu em uma grande força do Império Romano. A Igreja

desenvolveu o seu direito próprio, o Direito Canônico, sendo que este, em

grande parte, assemelhava-se ao próprio direito romano, apenas trazendo

adaptações aos novos valores do cristianismo. Assim, a difusão das normas de

direito canônico, em primeiro lugar, acabou por servir de veículo facilitador

para a posterior absorção direta do direito romano, o que foi também facilitado

pela adoção do latim como língua oficial.

E tanto foi assim que várias regulamentações jurídicas foram

recebidas pelo direito civil a partir da Igreja Católica, como por exemplo a

questão das relações pessoais do direito de família, as fundações, os

testamentos, etc. Tão importante quanto a assimilação desses institutos, no

entanto, foi a absorção de alguns métodos que eram usados há muito tempo

pela Igreja. É que, ao contrário do direito secular, a ordem jurídica da Igreja,

desde a Alta Idade Média, já resguardava as suas tradições pelo uso da escrita,

da redação documental, e pelo ensino sistematizado em escolas. Ao contrário

do que ocorria com o “direito profano”, o direito canônico não buscava, em

princípio, uma redescoberta, mas sim a organização formal e espiritual de uma

tradição contínua, que até então se mostrava desordenada34.

Essa recepção, no entanto, não foi plena, mas seletiva. Em outras

palavras, algumas áreas de abrangência do Corpus Iuris Civilis foram

assimiladas pelos europeus, mas outras não35. Dentre as que não foram

34 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 68-70. 35 Recebido, diz Wieacker, “não foi o direito romano classico (então desconhecido na sua forma original); também não o direito histórico justinianeu como tal, mas o jus commune europeu, que os glosadores e, sobretudo, os conciliadores tinham formado com base no Corpus Iuris justinianeu, mas com a assimilação cientifica dos estatutos, costumes e usos comerciais do seu tempo, sobretudo da Itália do norte”. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 139.

49

incorporadas, por exemplo, pode-se apontar o tratamento dado pelos romanos

ao direito público. Além disso, também ficaram de fora algumas áreas

específicas do direito privado, como foi o caso da parte que se referia aos

escravos, incluídos nos direitos reais, eis que considerados como propriedade

dos senhores.

A preferência dada pelos europeus, para a recepção, foi para o

direito das obrigações, campo no qual o direito romano, sem qualquer sombra

de dúvida, havia atingido notável desenvolvimento teórico, oferecendo

conceitos abstratos e, por isso, em condições de perdurar no tempo

independentemente de sua vinculação a casos concretos específicos.

É importante que se observe, contudo, que o direito romano que

se disseminou na Europa não foi diretamente aquele que constava do Corpus

Iuris Civilis, mas sim aquele que decorreu da análise feita pelos glosadores e

pelos pós-glosadores. Os primeiros se limitaram a explicar, inicialmente cada

texto isoladamente, e, posteriormente, de modo sistemático 36, o que constava

do Corpus Iuris Civilis, e essas explicações serviram de base para a formação

teórica dos juristas que iam surgindo, assumiam elevados cargos na

administração pública, e por isso acabaram por exercer enorme influência

política e social em toda a Europa.

36 Na realidade, o que ocorreu foi que os glosadores consideravam que o texto isolado de um jurista constitui em si mesmo uma verdade, independentemente de sua conexão com o conjunto de todos os textos, ou seja, os glosadores, ao contrário do que ocorre com a Ciência jurídica moderna, que busca a visão do sistema, os glosadores buscavam o sentido textual de cada escrito. No entanto, muito cedo essa técnica se mostrou insuficiente, forçando-os a não se limitarem à exegese corrida de textos isolados: se cada texto encerrava uma verdade absoluta, então um texto não poderia contradizer um outro, que era igualmente verdadeiro. Assim, através da exploração incessante e da comparação do material colhido das fontes romanas, os glosadores acabaram por dominar completamente a problemática global do Corpus Iuris Civile, erguendo um edifício doutrinário cujos princípios eram harmônicos, eis que não poderia haver, como vimos, contradição entre as partes do mesmo, sendo que essa construção, embora não se tenha chegado a constituir um sistema formal ou a destacar quais seriam os seus princípios gerais, ainda hoje se mostra como o antepassado da atual dogmática jurídica do continente europeu. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 50-54.

50

É que as glosas, ou seja, o produto do trabalho dos glosadores,

dominou as faculdades de direito da Europa até muito tempo depois do fim da

Idade Média, e o modelo adotado pelos glosadores tornou-se um método que

até hoje ainda é usado como técnica dos juristas, partindo da harmonização

entre textos esparsoas para a busca da solução de problemas práticos,

podendo-se mesmo dizer que os glosadores são os pais da jurisprudência

européia37. Como as universidades exerciam grande influência na economia,

na cultura e na vida pública da Idade Média, delas também se irradiava uma

enorme influência política e social. Assim, os professores de direito, na Itália e

na França, em pouco tempo formaram um corpo de juristas que começou a

dominar a administração civil das cidades.

Ao lado do ensino religioso (o único até então existente), surge o

ensino jurídico; ao lado dos clérigos, que eram os únicos intelectuais, surgem

os juristas38. E na medida em que mais e mais juristas iam se formando, tendo

o direito romano na base de sua formação, como não poderia deixar de ser,

passaram a ocupar postos chaves nas administrações de cidades, e as soluções

para os casos concretos do dia a dia começam a ser buscadas com base nas

idéia s absorvidas a partir da formação teórica desses novos administradores,

ou seja, a partir das soluções que eram apresentadas pelo direito romano.

Muito mais importante, contudo, foi o papel dos pós-glosadores,

que buscaram fazer a conciliação entre esse direito romano e os problemas que

afligiam a sociedade de então, e que certamente eram bastante diferentes dos

que haviam levado os romanos, doze séculos antes, a adotarem aquelas leis.

Como explica Wieacker, os glosadores já haviam atingido significativa

importância na vida jurídica e na administração pública do seu tempo, mas o

37 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 63-65. 38 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 65-66.

51

objeto do seu trabalho era a interpretação do Corpus Iuris, e esses textos em si

mesmos tinham pouca aplicação na Europa, limitando-se pois ao aprendizado

da metologia do direito romano, e não à obtenção de um direito realmente

aplicável, em seus vários domínios, ou seja, à realidade de então39.

Desse modo, os glosadores não estavam preparados para

influenciar diretamente na aplicação prática do direito, na solução dos

problemas reais do quotidiano. As gerações de juristas que a eles se seguiram,

no entanto, denominados de pós-glosadores (ou comentadores práticos ou

conciliadores), já dominava toda a realidade jurídica e social de sua própria

época, e por isso buscaram transpor os métodos revelados pelos glosadores

aos costumes e estatutos das cidades européias, inicialmente as italianas,

depois as francesas e holandesas, e, por último, as cidades e estados alemães.

Com isso, ao transformarem a vida de sua própria época em objeto de sua

ciência, os pós-glosadores conseguiram converter o direito justinianeu no

direito comum de toda a Europa40.

Os pós-glosadores, em outras palavras, embora também tivessem

tomado por base o Corpus Iuris Civilis, cuidaram de atualizá-lo, ainda que,

para isso, precisassem modificar alguns dos institutos do direito romano ou

mesmo abandonar alguns deles, que já não atendiam mais aos problemas do

seu tempo. Essa adequação do direito romano aos tempos da Idade Média,

permitindo que tivesse utilidade prática na solução dos conflitos, foi que

efetivamente propiciou a recepção do mesmo.

A bona fides, como já tivemos a oportunidade de comentar acima,

havia se espalhado por diversos institutos, no direito romano. No entanto,

como também já vimos, a mesma havia recebido destaque em relação à

39 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 78. 40 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 78-80.

52

questão da posse, pelo adquirente, sem que este soubesse do vício que o

impedia de adquirir, o que se constituía em fator fundamental para que fosse

possível a usucapião. Assim, no trabalho dos glosadores e pós-glosadores,

ganha destaque essa boa-fé com um conteúdo subjetivo, ou seja, como um

elemento psicológico, ligado à convicção, pelo possuidor, de que efetivamente

era o proprietário da coisa possuída.

De qualquer modo, como bem aponta José Carlos Moreira

Alves41, os glosadores e os pós-glosadores se ocuparam da boa-fé quase que

exclusivamente com relação à posse, ou seja, nesse aspecto psicológico acima

mencionado. Relacionaram-na com o erro e se dividiram ao conceituá-la,

havendo alguns que a concebiam positivamente, ou seja, como sendo a crença

de não estar lesando outrem, enquanto outros a conceituavam negativamente,

como sendo a ignorância de causar lesão a direito alheio.

Contudo, o trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, que

tanto contribuiu para a difusão do estudo científico do direito, como já

mencionamos poucas linhas atrás, também funcionou como fator de

engessamento do mesmo, pois uma vez difundidos os comentários dos pós-

glosadores, a simples existência dos mesmos já dificultava que se pensasse em

inovações. Na sombria análise de Carlos Maximiliano 42, “os pareceres dos

doutores substituíam os textos; as glosas tomavam o lugar da lei; assim, de

excesso em excesso se chegou à deplorável decadência jurídica, ao domínio

dos retóricos e pedantes”.

O fenômeno, como veremos adiante, é semelhante ao que ocorreu

após a primeira codificação (Código de Napoleão), que ao reunir as soluções

41 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 187. 42 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 34.

53

para as mais diversas situações da vida privada, acabou por se tornar um

parâmetro praticamente obrigatório para tais situações, impedindo que

pudessem ser feitas abordagens novas, que destoassem da dicção expressa dos

textos legais.

A Ciência do Direito, portanto, havia ficado viciada com aquelas

idéias que, em virtude da intensa repetição, sufocavam o surgimento de novas

abordage ns para os mesmos problemas. Havia sido criado um círculo vicioso

que dificilmente poderia ser quebrado pela simples atuação dos juristas, pois

estes eram partícipes do mesmo. Surge, então, um elemento novo, externo,

capaz de funcionar como catalisador das necessárias mudanças: o humanismo,

fenômeno cultural que, principalmente a partir do século XIV, passou a

vislumbrar um universo no qual o homem fosse o centro de tudo e que deu

especial atenção à Antiguidade.

Não é difícil de perceber o grande impacto com que o humanismo

repercutiu na Ciência do Direito. Ao colocar em destaque o homem, o

humanismo pôs em relevo, no campo do direito, as relações interpessoais. E,

ao buscar o redescobrimento da Antigüidade, o humanismo impulsionou

fortemente o estudo do direito romano, só que agora indo buscar o estudo

direto das fontes romanas, e não mais se limitando tão-somente ao trabalho

dos glosadores e aos comentários dos pós-glosadores. Veja-se que os pós-

glosadores, ao adaptarem os textos do Corpus Iuris Civilis para a Idade Média,

acabaram por retirar esses mesmos textos do seu contexto histórico. Agora,

com a busca direta das fontes, voltava a ser acentuado esse mesmo aspecto

histórico e contextualizado.

Ao examinar as causas e as conseqüências desse impacto do

humanismo sobre a ciência jurídica, aponta Franz Wieacker, em sua História

do Direito Privado Moderno (citado) que

54

“ O idealismo e o racionalismo do humanismo tinham socavado a antiga autoridade dos textos jurídicos justinianeus, apesar de um renovado entusiasmo pelo direito romano da antiguidade” (p. 12).

.........................................

“ Só com o jusracionalismo radical se legitimou, de forma totalmente nova, a autoridade do direito positivo a partir do comando soberano do monarca e da vontade política da nação. A partir daí, o direito terreno não tem mais que obedecer ao texto intemporalmente racional da ratio scripta, mas à própria vontade de prosseguir um objetivo. Por outras palavras: o racionalismo contemplativo e intelectual da Idade Média acabou por gerar o rcionalismo atuante e prático do moderno legislador e foi, ao mesmo tempo, absorvido por ele” (pp. 49-50).

......................................... “ O humanismo pôs em questão estes fundamentos [dos glosadores e pós-glosadores] e extraiu da literatura e da arte da antiguidade uma nova imagem do homem e um novo ideal educativo, [e por isso] o choque com a jurisprudência não podia deixar de se dar” (p. 88).

......................................... “ Já mais profundo foi o ataque dos humanistas às formas de ensino e à compreensão do direito por parte da jurisprudência do seu tempo. O desejo de saber e os métodos dos glosadores promanaram originalmente dos impulsos espirituais mais vivazes da Alta Idade Média. À medida que, com o decurso do tempo, as questões controversas se amontoavam e as figuras lógicas se iam multiplicando, eles foram decaindo numa rotina cada vez mais embotada e mais conservadora. O ensino lento, moroso e inútil da época dos conciliadores, que nos é descrito pelos contemporâneos, ficava muito aquém dos resultados práticos da época”. “ Em contrapartida, a pedagogia humanista, orientada no sentido do realismo idealista de Platão... via no ensino a preparação para um reconhecimento das idéias eternas e realmente existentes, e, portanto, também da idéia de direito. Ensino do direito queria para eles portanto significar: despertar no aluno a idéia inata de direito e as suas implicações mais próximas e orientá-lo, assim, do acidental-especial para o ideal-geral.” (p.91).

Desse modo, é importante que se realce que esse novo enfoque,

dado pelo humanismo ao direito romano, não consistiu em um simples

refazimento do trabalho já anteriormente efetuado pelos glosadores e pelos

pós-glosadores. Deve-se recordar que o humanismo, na verdade, foi uma das

manifestações culturais do renascimento, e este não se limitou ao simples

55

reavivar dos modelos da antigüidade, nos mesmos moldes dos originais.

Antes, o renascimento consistiu na renovação desses modelos, de modo a que

pudessem ser atualizados e transpostos para o momento em que tal

transposição veio a ocorrer.

Assim, no campo do direito civil, o que se teve não foi o simples

restabelecimento do direito romano, em toda a sua pureza de doze séculos

antes, mas sim uma renovação que se relacionou, principalmente, com a

metodologia da abordagem e do ensino desse direito. Em outras palavras, o

reflexo do renascimento em geral (e do humanismo em particular) sobre a

Ciência do Direito não se traduziu no surgimento de novos institutos jurídicos

e muito menos no simples ressuscitar dos antigos, mas sim na busca de novos

métodos de ensino do direito romano, ou seja, em uma nova abordagem

pedagógica.

Nessa nova abordagem, o que se punha em destaque não era

mais, ao contrário do estudo da glosa e dos comentários dos pós-glosadores, a

transmissão de pontos específicos e isolados, que eram memorizados para a

aplicação, cada um deles referindo-se a um caso com características próprias,

o que tornava o ensino da Ciência Jurídica um acentuado exercício de

memorização e de repetição dos conhecimentos absorvidos.

O que o renascimento buscou, ao contrário, foi detectar quais

eram as idéias gerais que podiam ser extraídas do direito romano, separando

aquelas que se apresentavam como essenciais para a ligação entre as diversas

regras e aquelas que apenas tinham interesse acidental. Dito de outra forma, o

que se percebeu foi que as regras do direito romano não poderiam ser

consideradas de modo isolado, cada uma delas fora do conjunto, pois estavam

ligadas entre si por algumas idéias-base, e a busca passou a se concentrar

56

exatamente na descoberta dessas idéias que funcionavam como cimento de

ligação entre as regras.

Como facilmente se percebe, começa a nascer, com isso, uma

visão do direito como sistema, ou seja, como um conjunto de normas que,

ainda que tratem de temas distintos, estão em estreita conexão umas com as

outras, ligadas entre si por idéias mais amplas e genéricas, que são os

princípios que norteiam um sistema jurídico. Havia “uma pretensão de uma

concatenação dos principios jurídicos sistemática quanto ao conteúdo”43.

A Ciência do Direito, portanto, a partir daí começa a perceber que

o estudo do direito não podia se limitar ao exame de múltiplos conhecimentos

isolados entre si, como se fossem independentes. Muito pelo contrário, esse

estudo sempre deveria ter em mente que, embora efetivamente se tratasse de

uma gama variada de conhecimentos, que são referentes a temas diversos,

todos eles mantêm entre si uma unidade de idéias, ou seja, estão ligados entre

si pelos princípios, que são essas idéias gerais que passaram a ser buscadas no

renascimento, e que são externas ao conjunto de conhecimentos. Ora, esse

conceito, como se percebe, nada mais é do que a idéia de sistema, sendo que

as “idéias gerais” são os princípios que o informam.

É bem verdade que, com o humanismo, ainda não se havia

chegado a um desenvolvimento suficiente, de tais idéias gerais, para que já se

pudesse falar em sistema, o que só seria atingido posteriormente. No entanto,

é certo que já se tem aí um começo de sistematização, e isso, por si só, já

permitiu que se rompesse o supramencionado círculo vicioso onde até então

patinava o direito dos glosadores e pós-glosadores.

Essa ruptura veio a se mostrar possível porque, com a captura

dessas idéias gerais, que serviam para dar unidade às regras, passam os juristas 43 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 92.

57

a, em vez de simplesmente “adaptar” o direito romano às novas realidades, a

buscar soluções que mantivessem a coerência com o conjunto de regras, ou

seja, que também estivessem informadas pelas mesmas idéias gerais

apreendidas.

Mas, direcionando as considerações até aqui feitas para o tema

central do presente estudo, convém examinar em que medida essa nova forma

de apreensão do direito romano repercutiu especificamente na questão da boa-

fé, o que passamos a fazer em seguida.

Nessa busca da unidade principiológica, foram colhidos os

diversos temas que se referiam à bona fides (que, como vimos supra, havia se

espalhado para as mais diversas categorias do direito romano), buscando-se a

idéia central que a todos era comum. Dessa pesquisa, resulta a boa-fé com o

seu já conhecido aspecto psicológico, subjetivo, de desconhecimento, mas

agora vinculada a algo mais, que era a idéia de lealdade, da ausência de

intenção de causar danos à outra parte por meio de fraude, coação ou dolo.

Essa a idéia unitária da boa-fé como princípio, colhida sob os influxos do

humanismo.

A pesquisa das idéias que pudessem conferir unidade às diversas

regras continuou. A partir do século XVII, essa pesquisa se une à busca de

soluções racionais para os conflitos, no movimento conhecido como

jusracionalismo, dentro do qual ganha força a aplicação da Filosofia no

Direito, dando origem ao Direito Natural, ou seja, à busca dos princípios que

justificam o direito e que devem informá-lo, para que ele seja considerado

justo, ou seja, a busca de elementos informadores que tivessem a sua validade

não em função de sua origem, mas sim de suas qualidades intrínsecas44.

44 O Direito Natural, como explica Vicente Ráo, seria, em síntese, obtido a partir da razão. Cada povo, explica o mestre, tem as suas normas particulares, o seu direito positivo, a partir das quais se revela a sua

58

Destaque, nesses estudos racionalistas, para o trabalho de Grócio,

que desenvolveu um sistema de direito natural cuja grande característica era a

possibilidade de serem previamente conhecidos os seus princípios, mediante o

uso da razão. Particularmente no que se referia à boa-fé, Grócio identificou

cinco aspectos diferentes, dando prevalência, dentre todos, ao que se referia à

fides entre as partes envolvidas em um contrato45. Essa abordagem de Grócio,

embora não desenvolvendo qualquer conceito, por isso que se limitou a

apontar alguns princípios gerais, foi observada nos estudos posteriores sobre a

boa-fé, que foram por ela influenciados46.

O grande reforço à idéia de se considerar o Direito como um

sistema, contudo, veio de fora dos estudiosos do direito, mais precisamente

com a obra de René Descartes. É que a doutrina cartesiana veio por em relevo

a predominância do pensamento unitário, ou seja, a necessidade de que haja

um critério único a orientar o pensamento científico. Descartes usou, como

simbologia, a construção de uma cidade, que quando é feita aos poucos, por

diversas pessoas, tende a crescer de modo desordenado, enquanto que, se a

concepção peculiar do que é justo ou injusto. Acima dessas concepções particulares, no entanto, existiria uma concepção geral do direito, aplicável a todos os povos, não pela força da coerção material, mas pela força própria dos seus princípios supremos. E é a razão que extrai e declara quais são esses princípios gerais, que resultam da própria natureza humana. Assim, é na natureza humana (e não na razão) que se encontra o fundamento do direito natural, sendo que este não é um superdireito, mas um conjunto de princípios supremos, universais e necessários, que ao serem extraídos da natureza humana pela razão, algumas vezes inspiram o direito positivo, em outras são por ele imediatamente aplicados, quando definem os direitos fundamentais do homem. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 78-79. 45 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 212. 46 Moreira Alves, no entanto, aponta que o jusracionalismo não trouxe qualquer contribuição de importância para a questão da boa-fé nas relações jurídicas reais e obrigacionais, indicando, ainda, que Grócio não tratou expressamente da boa-fé nos contratos, e, com relação à posse, não a conceituou, limitando-se a expor alguns princípios, que deveriam ser observados pelo possuidor de boa-fé. Cf. José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 188. Com todo o respeito que deve ser devotado a tão ilustre jurista e historiador do direito, parece-nos equivocada tal afirmação, pois foi a partir das idéias recebidas do jusracionalismo que se começa a formar a idéia do direito como um sistema, ou seja, em vez de um amontoado heterogêneo de regras autônomas, um conjunto harmônico de normas, coordenadas entre si por idéias gerais que lhes dariam unidade. Assim, embora não tenha havido, de fato, qualquer estudo significativo diretamente feito sobre a boa-fé, a noção de unidade, de sistema, foi fundamental para que o estudo da mesma pudesse se desenvolver.

59

construção vier a ser feita a partir de um planejamento único, com uma só

diretriz, resulta em uma cidade organizada e mais aprazível47.

Em relação ao sistema jurídico, como se mostra evidente, esse

“planejamento único”, essa “diretriz”, seria dada pelos princípios gerais que,

permeando-se por todo o ordenamento jurídico, conferem-lhe a unidade

mencionada. Nesse sentido, disse Descartes que “todas as coisas que podem

cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira, e que,

com a única condição de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que

não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las

umas das outras, não pode haver nenhuma tão afastada que não acbemos por

chegar a ela”48.

A aplicação das idéias cartesianas às ciências humanas,

especialmente à Ciência do Direito, acabou por lançar as bases de uma idéia

mais clara do que seria um sistema jurídico, dessa vez partindo-se de

princípios previamente estabelecidos com vista ao sistema, ou seja, o novo

pensamento sistemático ocorre de forma centralizada, primeiramente

estabelecendo as idéias centrais, básicas, do sistema, e depois passando para o

desenvolvimento metódico deste, como se fosse a suso mencionada

construção empurrada por um planejamento único.

São buscados, então, os princípios mais importantes, a partir dos

quais deveria ser construído todo o ordenamento jurídico, e que seriam

racionais e sempre verdadeiros. O traço unificador desse direito, capaz de

emprestar uniformidade a todo o conjunto de regras, estaria contido nesses

princípios. Também se procura, ao mesmo tempo, separar o direito natural das

convicções religiosas, pois estas não seriam científicas, eis que insuscetíveis

47 René Descartes, Discurso do Método, p. 15. 48 René Descartes, Discurso do Método, p. 23.

60

de demonstração. O sistema jurídico referente ao direito natural, portanto,

deveria ser formado por proposições que se mostrassem lógicas e

demonstráveis, além de harmonizado com o pensamento da época.

Especificamente no que concerne à boa-fé, pode-se observar que

na visão desses jusnaturalistas era em virtude do direito natural que as partes

de um contrato ficavam vinculadas pelo ajuste, ou seja, estava aí presente a

fides, como elemento básico para a ligação entre as partes. Mas, além disso, a

boa-fé também é vista como elemento necessário e indispensável à

configuração da usucapião. No entanto, não se viu entre os jusnaturalistas a

tentativa de agrupar em uma idéia geral todas as hipóteses referentes à boa-fé,

ou seja, faltou buscar o princípio elevado, referente à mesma, para que a partir

daí pudessem ser feitas construções em relação às mais diversas situações em

que a boa-fé estivesse presente.

A boa-fé, portanto, embora tenha sido objeto das preocupações

dos jusnaturalistas que antecederam a primeira codificação civil, o foi apenas

de modo periférico, secundário, centrada em uns poucos institutos, em

especial os contratos, mas sem forças para se irradiar sequer pelo direito

privado, e muito menos pelo ordenamento jurídico em geral.

1.4. A boa-fé após o Código Civil francês.

O acontecimento mais marcante, para o direito privado, sem

dúvida, foi o surgimento do Código Civil francês, mandado elaborar por

Napoleão em 1804 e tendo entrado em vigor em 1806. O referido Código,

como se percebe, veio a lume poucos anos depois da Revolução Francesa

(1789). No entanto, nele não se vislumbra uma ruptura súbita e radical com a

61

cultura jurídica do período pré-revolucionário, mas a natural evolução do

pensamento jurídico anterior.

Como vimos acim a, o direito civil teve sua evolução, na Europa,

a partir do trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, recebendo depois, no

Renascimento, forte influência dos humanistas e, um pouco mais tarde, do

racionalismo. Ocorre que a comissão de juristas encarregados da elaboração

do Código Civil francês, liderada por Portalis, tinha sua formação jurídica

nessa mesma linha evolutiva, não se destacando por qualquer posicionamento

revolucionário, ou seja, não se vislumbrando qualquer diferença significativa

quanto ao conteúdo das normas jurídicas.

A inovação, dessarte, foi quanto à forma pela qual tais normas

passaram a ser apresentadas, ou seja, quanto à codificação em si mesma,

inovando pela reunião das regras jurídicas em um só texto legal, e não quanto

ao seu conteúdo, havendo mesmo quem afirme que “não há, entre a doutrina

jurídica pré-revolucionária e o Código, quaisquer quebras ou, sequer,

evoluções significativas”49.

Na realidade, desde os pós-glosadores que se buscava adaptar o

direito romano para a solução dos conflitos que então surgiam na sociedade,

embora de modo não sistemático. A partir do humanismo, e com maior ênfase

no racionalismo, como visto, inicia-se a busca de uma sistematização,

destacando-se as idéias gerais que serviriam de base para toda a construção

jurídica do direito civil, ao mesmo tempo em que tais idéias gerais passavam a

ser usadas para a solução racional e lógica dos conflitos atuais.

Seguindo essa trilha, uma vez conseguidas a base teórica para

essa sistematização (ou seja, a identificação dos princípios fundamentais do

sistema) e a adequada atualização para os conflitos da sociedade do começo 49 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 226.

62

do século XIX, a conseqüência natural seria – e foi – a reunião ordenada de

todas as regras do direito civil, de modo a ordená-lo e simplificá-lo, tornando-

o acessível aos cidadãos.

Assim, como mencionado supra, a inovação foi a reunião de todas

as regras em um código, e aí foi decisiva a participação de Napoleão, que não

apenas determinou a sua feitura como, ainda, acompanhou pessoalmente os

trabalhos da comissão, não permitindo que sofressem qualquer interrupção ou

atraso. Mas o conteúdo do Código Civil francês, no entanto, foi apenas o

desaguar natural do trabalho dos jusracionalistas, que expressava a cultura

jurídica da época.

Veja-se, à guisa de exemplo dessa continuidade de pensamento, o

conceito de propriedade, trazido pelo Código Civil francês, no artigo 54450,

que estabelece que a propriedade é o direito de gozar e dispor dos bens da

forma mais absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pelas leis

ou pelo regulamento.

Essa declaração de que a propriedade seria absoluta, no entanto,

não correspondia à realidade, e apenas refletia o repúdio à propriedade

dualista da concepção feudalista, como já dissemos alhures51, mas sendo fácil

50 Art. 544. La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue,

pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements. 51 Cf. Aldemiro Rezende Dantas Jr., O Direito de Vizinhança, pp. 20-21, nota nº 29: A Idade Média foi marcada por fortíssima concentração de riquezas, sendo três as principais razões: a) nas guerras de conquista, os vencedores ocupavam as terras dos vencidos, sendo que os guerreiros de maior prestígio escolhiam para si as melhores; b) os sacerdotes convenciam as pessoas de que eram os representantes de Deus e que por isso deveriam receber todas as terras, para poder reparti-las, sendo que acabavam ficando com as melhores para si; c) a tributação sobre as terras era muito pesada, com conseqüências sobre a própria pessoa do devedor, e por isso muitos proprietários preferiam entregar suas terras aos sacerdotes e guerreiros (que eram isentos dos tributos) e se tornar servos destes, sendo muito comuns os contratos pelos quais a pessoa livre se tornava voluntariamente escrava. Por conta dessa excessiva concentração, eram muito freqüentes as invasões de terras, gerando muita instabilidade e receio entre os proprietários. Surgiu então a idéia de transferir a terra aos poderosos, aos quais se jurava submissão e vassalagem, em troca de proteção à fruição do imóvel. Nascia então o regime feudal, no qual os feudatários davam apoio militar ao soberano e, em troca, recebiam o direito de usar os imóveis, pelos quais passavam a zelar. Surgia, assim, a dualidade de sujeitos já mencionada, eis que o soberano tinha o domínio eminente, mas transmitia aos feudatários o domínio útil, enquanto o restante da população trabalhava em troca de alimentos (servidão da gleba). Já no Século XVIII, o Rei da França,

63

de perceber que, se a propriedade estava sujeita aos limites impostos pela lei e

mesmo aos limites impostos pelos regulamentos, então era relativa, e não

absoluta, e tal visão da propriedade não diferia muito do conceito recebido do

direito romano52.

Pode ser apontada como novidade, no entanto, no Código de

Napoleão, a disposição trazida pelo artigo 1.134, no sentido de que as

convenções legalmente formadas valeriam como lei para as partes celebrantes.

Essa disposição teve repercussão, inclusive, no que se refere à boa-fé, no

sentido de lealdade, pois conduziu à libertação do formalismo exagerado e

indispensável do direito romano, uma vez que se as partes contratantes

tivessem declarado livremente sua vontade, o contrato deveria ser respeitado,

ainda que não tivessem ocorrido outras formalidades, tais como a tradição ou

o registro imobiliário.

O Código Civil francês, como se sabe, sofreu grande influência

da obra de Pothier. Este, em sua obra, faz diversas referências à boa-fé. Em

seu Tratado das Obrigações, por exemplo, Pothier53 examina a questão da

percebendo o abalo do domínio eminente, efetuou consulta à Universidade de Sorbonne, para saber sobre a propriedade das terras. Para agradá-lo, respondeu a Academia que o Rei continuava a ter o domínio eminente sobre todas as terras concedidas aos súditos. Houve imediata reação, e os Estados-Gerais da França se reuniram e declararam o princípio segundo o qual a propriedade particular é inviolável. E esse sentimento se tornou tão forte que na Declaração dos Direitos do Homem, da Revolução Francesa, a propriedade foi declarada sagrada e inviolável , o que também foi observado no Código Civil Francês, que assegurou ao proprietário o uso e gozo absoluto, sendo a propriedade individualista (e não dualista) e absoluta. Cf. Darcy Bessone, Direitos Reais, p. 19-22. Também Serpa Lopes aponta que o Código de Napoleão enfocou a propriedade sob um aspecto profundamente individual por temer a possibilidade de ser revivida a concepção feudalista. Cf. Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, v. VI: Direito das Coisas, p. 293. 52 Mesmo no Direito Romano, como ensina Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, volume IV, dizia-se ser lícito a qualquer proprietário proceder quanto à sua propriedade como melhor lhe aprouvesse, mas desde que não viesse a interferir na propriedade alheia , e todas as legislações posteriores enfrentaram a necessidade de harmonizar o exercício dos poderes jurídicos que compõem a propriedade por parte dos proprietários de prédios vizinhos (p. 141). E também o Código Civil Francês, prossegue o mestre mineiro, que de modo expresso estabeleceu que a propriedade era um direito absoluto, como já vimos supra (art. 544), no mesmo dispositivo acrescentou que dela não se poderia fazer um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos. Ora, se a propriedade fosse, de fato, um direito absoluto, não poderia sofrer restrições legais e regulamentares, por isso que o absoluto não comporta superlativo, ou seja, não existe um absoluto que seja menos absoluto do que outro, e na verdade é que de absoluto não se tratava (p. 71). 53 Robert Joseph Pothier, Tratado das Obrigações, p. 53.

64

boa-fé ao tratar “dos diferentes vícios que podem ser encontrados nos

contratos”, dizendo que “no foro interior, deve-se ver contrário a essa boa-fé

tudo aquilo que se separa, por pouco que seja, da mais exata e mais

inescrupulosa sinceridade”, e que, “somente aquilo que fere abertamente a

boa-fé, perante o foro exterior e interior, é considerado um verdadeiro dolo,

suficiente para dar direito à rescisão do contrato”.

Como se vê, na obra de Pothier, a boa-fé, embora mencionada

(até mesmo com uma certa freqüência), não desempenha papel de muita

relevância, em virtude de sua pouca (ou mesmo nenhuma) utilidade. Essa

dificuldade decorre do fato de que não há como trabalhar a boa-fé apenas

ligada a elementos de foro íntimo e psicológico, tais como a sinceridade e a

intenção de dolo, de modo desvinculado de uma situação real, pois é

impossível considerar-se uma idéia geral, que seja central e principiológica de

um sistema, e a partir da mesma desenvolver uma abordagem teórica da boa-

fé.

A boa-fé, portanto, foi conservada nas lições doutrinárias, mas o

foi em virtude da herança jurídica recebida dos romanos, pois desde lá já se

conhecia a bona fides, e por isso não conseguiu grandes progressos com a

sistematização levada a termo pelos racionalistas, pois continuou confinada à

questão da posse ou recebeu inovações que apenas a confundiam com

aspectos morais, sem grande utilidade prática.

Essas mesmas dificuldades também podem ser facilmente

detectadas no próprio texto do Código Civil francês. Este, com efeito, possui

diversas menções à boa-fé, mas quase todas ligadas ao mesmo aspecto

subjetivo da boa-fé possessória da tradição romanística, ou seja, consistindo

no desconhecimento de uma certa circunstância de fato. É por essa razão que,

até hoje, para o jurista francês, a boa-fé é vista, primordialmente, como um

65

estado de espírito, que varia em função dos sujeitos e das circunstâncias do

caso54.

No entanto, não se pode deixar de observar que existe uma

disposição específica, inserida no Código Civil de Napoleão, que parece não

se coadunar com a linha do direito romano, ou seja, que parece escapar a essa

visão ligada ao aspecto subjetivo da boa-fé.

Com efeito, no artigo 1.134, nº 3, o Código Civil francês impôs

aos contratantes o dever de executar as convenções de boa-fé. Como se vê,

essa disposição tem a clara finalidade de reforçar o vínculo contratual através

da exigência de lealdade de cada um dos contratantes para com o outro, o que

veio a surgir com os racionalistas, e não no direito romano. Tem-se, aí, a boa-

fé como uma norma de conduta, e não como o desconhecimento de uma

circunstância. Tem-se, em outras palavras, a boa-fé objetiva.

O grande problema foi que, para que se desse o verdadeiro

sentido à norma legal mencionada, referente à boa-fé objetiva, seria

indispensável que a mesma fosse interpretada com o recurso a conceitos que

se situavam fora do Código Civil, uma vez que este, a toda evidência, apenas

estava a indicar uma regra geral, mas sem traçar os parâmetros de sua

aplicação em cada caso concreto.

Seria necessária, portanto, em outras palavras, a abordagem dos

jusracionalistas, para que a norma em questão fosse vista como uma idéia

geral, um princípio central que serviria de base para a construção de soluções

em casos concretos, e não como uma solução pronta e acabada em si mesma.

E nesse ponto as dificuldades se tornaram intransponíveis.

54 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 80, n° 293.

66

Enquanto não havia sido publicado o Código Civil, o pensamento

racionalista estava no centro dos estudos jurídicos, com a sua noção clara de

um sistema baseado em princípios centrais. Uma vez publicado o Código

Civil, no entanto, a situação se modificou por completo, pois o pensamento

jurídico passa a ser dominado pela escola da exegese, que via no próprio texto

do Código todas as soluções para os conflitos, não sendo admitido o recurso a

soluções não codificadas55. Vejamos como se deu essa mudança.

Em primeiro lugar, a vastidão do Código Civil francês dificultava

a identificação dos princípios centrais, que eram a base do sistema idealizado

pelos racionalistas. Logo, as soluções propostas pela codificação, para os

diversos problemas, ficaram dispersas, desligadas das idéias centrais que

poderiam funcionar como elementos de ligação entre elas.

Além disso, a existência de um texto que trazia, pelo menos em

tese, a compilação de todo o direito civil, começa a seduzir os intérpretes para

a idéia de que ali naquele texto estariam todas as soluções necessárias para

todo e qualquer conflito, e a partir daí o Direito Civil passa a se confundir com

o Código Civil, e a Ciência do Direito se restringe à leitura do Código. Mas

deve ser esclarecido que essa idéia de onipotência do legislador em geral e do

Código Civil em particular não foi dos redatores do Código Civil, e sim dos

seus primeiros intérpretes, como explica Bobbio56.

Com efeito, explica o jusfilósofo italiano, na obra e local citados,

que em livro escrito antes da elaboração do Código de Napoleão, embora

publicado apenas em 1820, Portalis sustentou que “seja lá o que se faça, as

leis positivas não poderão nunca substituir inteiramente o uso da razão

55 Não é por outra razão que Delia Rubio afirma que a doutrina só começou a prestar atenção à boa -fé como norma de conduta a partir do momento em que a escola exegética começou a perder espaço no campo doutrinário. Cf. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 85. 56 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, pp. 73-77.

67

natural nos negócios da vida”, pois enquanto as leis não mudam, a vida social

que é por elas regulada está em contínua mutação. Por essa razão, prossegue

Portalis, “uma grande quantidade de coisas são, portanto, abandonadas ao

império do uso, à discussão dos homens cultos, ao arbítrio dos juizes”.

Caberia ao juiz, portanto, decidir quanto aos detalhes de cada

caso concreto, aplicando os critérios estabelecidos pelas próprias leis, mas

sempre buscando completar as eventuais – e inevitáveis – falhas desta. E

sendo Portalis o grande nome da comissão encarregada da elaboração do

Código Civil, como não poderia deixar de ser, esse entendimento transparecia

de modo claro no projeto apresentado, como se observava nos artigos 4º e 9º

do mesmo. O artigo 4º proibia que o juiz se recusasse a julgar sob o pretexto

de que havia silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei (recusa essa que os

juízes haviam passado a adotar, após a Revolução francesa), e o art. 9º

estabelecia que o juiz, no silêncio da lei, deveria fazer uso da eqüidade e dos

usos.

Como se vê, portanto, fica muito claro o espírito dos integrantes

da comissão que preparou o projeto do Código Civil francês, no sentido de

deixar sempre uma porta aberta para o prudente arbítrio do juiz, mandando-o

juiz decidir mesmo que a lei fosse falha, mas ao mesmo tempo apontando-lhe

os critérios a serem observados, com destaque para a eqüidade. O problema é

que, nas palavras esclarecedoras de Bobbio57,

“Os redatores do Código de Napoleão quiseram eliminar este inconveniente, ditando o art. 4º que impunha ao juiz decidir em cada caso, e o art. 9º, que indicava os critérios com base nos quais decidir no silêncio ou, de qualquer maneira, na incerteza da lei. Eliminado o segundo artigo, o primeiro – considerado isoladamente e prescindindo dos motivos históricos que o haviam sugerido – é compreendido pelos primeiros intérpretes do Código de

57 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 77.

68

modo completamente diverso; isto é, é interpretado, assim, no sentido de que se deveria sempre deduzir da própria lei a norma para resolver quaisquer controvérsias. Tal artigo, de fato, tem sido um dos argumentos mais freqüentemente citados pelos juspositivistas, para demonstrar que, do ponto de vista do legislador, a lei compreende a disciplina de todos os casos (isto é, para demonstrar a assim chamada completitude da lei)”.

E foi com base nessa interpretação do artigo 4º, desvinculada de

seu contexto histórico e isolada do artigo que o complementava, que surgiu a

escola da exegese, ou seja, a escola dos intérpretes do Código Civil, e que

considerava que neste estavam todas as normas para os casos presentes e

futuros, sendo por isso desnecessário o recurso a todo o direito precedente.

Some-se, a tudo isso, o fato de que a ciência e a cultura francesa

sempre foram – até hoje o são – avessas à absorção de ensinamentos

estrangeiros, sempre preferindo restringir-se aos próprios intelectuais e

cientistas franceses. Em relação à Ciência do Direito, o resultado disso foi que

o exame do Código Civil virou um círculo fechado, construído a partir da

análise feita por juristas que tinham idêntica formação, e por isso avesso a

idéias diferentes, que poderiam trazer alguma inovação. Eis, aí, a escola da

exegese, que nada mais era do que um furioso positivismo, fulcrado

exclusivamente no texto do Código Civil francês.

Em relação à boa-fé subjetiva, como já foi dito acima, o Código

Civil francês havia adotado conceito semelhante ao da bona fides, segundo o

qual o possuidor estaria de boa-fé quando ignorasse o vício do título mediante

o qual lhe fora transferida a propriedade. Não houve, portanto, quanto à

mesma, grandes problemas, e o conceito passou a ser apenas repetido pelos

exegetas, que de modo geral identificavam essa noção psicológica da boa-fé

com a ignorância, embora se encontrasse uma ou outra divergência pontual,

como por exemplo em relação a saber se o erro grosseiro do possuidor

69

equivaleria ou não à má-fé. Nada, contudo, que afetasse a idéia básica da

ignorância como elemento central da boa-fé.

Quanto à boa-fé objetiva, no entanto, vale dizer, quanto à norma

legal que mandava que os contratantes, na execução dos contratos, agissem de

boa-fé, os exegetas ficaram desorientados58, pois a identificação do que seria

essa atuação de boa-fé, a toda evidência, não podia ser apreendida do texto do

próprio Código, e por isso demandava a busca de outras fontes, o que se

chocava frontalmente com a convicção, característica da escola da exegese, de

que todas as soluções estavam dentro do próprio Código Civil, e nele

deveriam ser buscadas. Não sabiam os exegetas, portanto, como interpretar o

artigo 1.134, nº 3, pois não sabiam sequer onde deveriam buscar o sentido a

ser dado para o mesmo.

Como aponta Moreira Alves59, essa “parte final do artigo 1334

trouxe grave problema de entendimento de seu alcance desde a entrada em

vigor desse Código, sendo que ainda em tempos mais próximos há

controvérsias”. A verdade, como bem aponta Beatriz Capucho60, é que “a

boa-fé incomodava os adeptos da Escola da Exegese, pois, segundo Clóvis do

Couto e Silva, sua aplicação exigia mais do que podia oferecer o método

subsuntivo, característico dessa Escola”.

Na busca do significado dessa atuação de boa-fé, os exegetas

começam lentamente a caminhar no sentido de que deveriam ser executadas as

convenções de acordo com a intenção das partes, e que o juiz, ao examinar um

caso concreto, não deveria se limitar às palavras usadas para a celebração do

58 É nesse sentido que Béatrice Jaluzot afirma que “Pour le juriste français déclarer que la bonne foi est objective est um peu incongru”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais , p. 80, n° 293. 59 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 189. 60 Beatriz Maki Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho , p. 49.

70

contrato, mas procurar a verdadeira intenção das partes, pois aí é que estaria a

realidade contratual. Para o belga Henri de Page 61, por exemplo, o espírito das

convenções é superior à sua letra, pois a vontade real deve predominar sobre

os rituais, uma vez que o direito não se encontra nas palavras, mas na

realidade, e esta não pode ser deformada por aquelas.

Na realidade, como bem aponta Béatrice Jaluzot62, ainda hoje a

intenção do sujeito é um motivo do comportamento ao qual o direito francês

atribui fundamental importância, sendo que a imensa maioria dos autores

franceses considera a boa-fé como a intenção que anima o sujeito durante seus

atos: se essa intenção é boa, a pessoa está de boa-fé; se é má, então a pessoa

deve ser considerada de má-fé. Desde Rau, esclarece a autora, já se dava esse

sentido ao artigo 1.134, alínea 3, do Código Civil francês: uma convenção

executada de boa-fé é uma execução conforme a vontade das partes.

Tais idéias, como se vê, já se aproximavam mais do racionalismo,

pois a solução buscada era em um nível substancial, ou seja, com o exame da

matéria contratual, e não apenas um exame formal, dependente das palavras

porventura usadas. Obtinha-se, com isso, uma solução mais lógica. O

problema é que, de certa forma, continuava-se a ter um sentido psicológico

para a boa-fé, eis que a noção da mesma, embora não mais ligada ao

61 Henri de Page, Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, t. II, p. 411, n° 468. “L’esprit prime la lettre; la volonté réelle domine le rite; le droit n’est plus dans les mots, mais dans les réalités. Ceux-là ne peuvent, en aucun cas, permettre de déformer celles-ci”. 62 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 94 n° 340. Textualmente, diz a autora que “L’intention est um motif de comportement auquel le droit français dans son ensemble accorde une importance fondamentale. L’immense majorité des auteurs français considère la bonne foi comme l’intention qui anime une partie lors de son acte. Si cette intention est bonne, la personne est de bonne foi, si elle est mauvaise, la personne est de mauvaise foi. RAU déjà donnait ce sens à l’article 1134 alinéa 3: une convention exécutée de bonne foi, c’est une exécution conforme à la volonté des parties”. Essa visão do direito francês, na realidade, foi a fonte do artigo 85, do Código Civil brasileiro de 1916 (atual artigo 112, do Código Civil), segundo o qual, nas declarações de vontade, deve-se atender mais à intenção do que ao sentido literal das palavras.

71

conhecimento ou ignorância, estava agora vinculada à intenção do contratante,

e a intenção também se constitui em um aspecto íntimo.

E a partir daí pouco se evoluiu. Ou, até mesmo, regrediu. Nesse

sentido a opinião de Menezes Cordeiro63, que traça ácida crítica à doutrina

francesa, apontando que

“a literatura francesa actual sobre a boa-fé nas obrigações regrediu: ora mantém as velhas referências à pretensa extinção da diferença entre os bonae fidae e os stricti iuris iudicia, ora ignora o tema, ora, um tanto por influência alemã, lhe concede pequenos desenvolvimentos, sem relevância jurisprudencial... Conclua -se pelo fracasso da boa-fé no espaço juscultural francês... Imagem do bloqueio geral derivado de uma codificação fascinante e produto das limitações advenientes de um positivismo ingênuo e exegético, a boa-fé napoleônica veio a limitar-se à sua tímida aplicação possessória e, para mais, em termos de não levantar ondas dogmáticas. Esse fracasso, patente no panorama dos comentários e obras gerais e claro na falta de resultados obtidos pelas monografias que, em França, se debruçaram sobre a boa-fé, acentua-se pela sua não aplicação jurisprudencial e pelo desaparecimento, no segundo pós-guerra, de estudos a ela votados. Tais afirmações não são prejudicadas por pequenas alterações recentes, ditadas, de modo manifesto por transferências culturais alemãs...”.

Veja-se que em Planiol e Ripert64, por exemplo, já na primeira

metade do século XX, lê-se que essa boa-fé referente à execução dos contratos

diz respeito à obrigação de se comportar como uma pessoa honesta e

conscienciosa, sendo tal comportamento exigido não apenas na fase de

formação dos contratos, mas também na execução dos mesmos, não podendo

se limitar o exame do contrato à literalidade das palavras usadas para a sua

elaboração. Continuava pendente, como se percebe, a noção sobre o que seria

esse comportamento como uma pessoa honesta, pois a explicação para isso,

63 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 260 e 267. 64 Marcel Planiol e Georges Ripert, Traité Pratique de Droit Civil Français, Tome VI: Obligations, première partie, p. 524, n° 379. “Tous les contrats sont chez nous des contrats de bonne foi. La bonne foi c’est l’obligation de se conduire en homme honnête et consciencieux non seulement dans la formation, mais dans l’exécution du contrat, et de ne pas s’en tenir à la lettre de celui-ci”.

72

mais uma vez, estava fora do Código Civil. Apenas se trocou, portanto, a

expressão que ficava sem explicação.

Como se vê, os exegetas não conseguiram encontrar uma fórmula

teórica para a boa-fé. E, ainda mais, apesar das diversas menções feitas pelo

Código Civil de Napoleão à boa-fé, não conseguiram também extrair das

mesmas um princípio comum, que pudesse ser aplicado a todas elas, e a

conseqüência foi que tais menções não passaram disso mesmo, ou seja,

simples menções, isoladas umas das outras, aparentemente sem qualquer

elemento de conexão que as unisse.

Houve tentativas de obtenção de um conceito único para a boa-fé,

mas à custa de ser simplesmente ignorada a menção que o Código Civil fazia à

boa-fé como norma de conduta, e na verdade concentrando-se o conceito,

unicamente, na boa-fé subjetiva, o que a toda evidência era inaceitável e

constituía-se em mutilação expressa da norma legal.

Como explica Delia Rubio, foi só depois que a escola exegética

começou a perder espaço na doutrina que os juristas começaram a prestar mais

atenção à boa-fé que aparecia nos ordenamentos de diversos países como

norma de conduta e cumprindo o papel de um princípio geral. E no entanto,

alerta a autora espanhola, as normas não eram novas, pois sempre haviam

estado nas codificações, apenas não se conseguia dar às mesmas a significação

adequada, pois eram vistas apenas como um reforço à obrigatoriedade dos

contratos. Em outras palavras, a mudança no enfoque da boa-fé não se deu

com a mudança da legislação, mas tão-somente com a mudança de atitude dos

cientistas do Direito65.

65 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 85.

73

Falhando a unificação, começam os juristas franceses a buscar um

estudo bipartido da boa-fé, separando-a em objetiva e subjetiva66. Em relação

à boa-fé subjetiva, como é fácil de se imaginar, a acomodação doutrinária se

deu de modo fácil, mesmo porque no Código já havia, como vimos acima,

conceito que correspondia ao que fora recebido desde os romanos, referente à

bona fides, no sentido de que a boa-fé seria a ignorância, por parte do

possuidor, dos vícios que maculavam seu título aquisitivo, e a partir daí não

houve qualquer obstáculo em assimilar a boa-fé subjetiva ao desconhecimento

das circunstâncias, o que na verdade já era feito há muito tempo.

Em relação à boa-fé objetiva, no entanto, não foi assim tão

simples. Esta corresponderia à lealdade, ao comportamento normal e ético de

uma pessoa honesta, isento de qualquer dolo, fraude ou abuso do direito,

devendo ser observada no campo contratual, tanto na fase de formação do

contrato quanto ao longo de seu cumprimento.

O problema, como desde logo se percebe, é que tal conceito

explana a boa-fé em função de outros institutos, que também carecem de

explicação, e por isso, na verdade, nada esclarece. Além disso, se a boa-fé

nada mais fosse do que uma função do dolo, da fraude, da ética e do abuso do

direito, na realidade estaria sendo feita uma duplicação de conceitos, pois cada

um desses institutos necessitaria de uma dupla explicação, ou seja, quando

isoladamente considerado e quando vinculado à boa-fé.

Na Itália e em Portugal, principalmente em decorrência da

enorme influência que o Código Civil francês teve nas codificações

posteriormente surgidas nesses dois países (1865 e 1867, respectivamente), 66 Houve, também, quem tentasse uma classificação tripartida, que na verdade nada mais era do que uma subdivisão da boa-fé objetiva em dois aspectos, um referente à boa-fé como critério de interpretação e outro que a considerava como sendo a vontade a ser realizada pelas partes e respeitada pelos terceiros, nos negócios jurídicos. Cf. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 89 -90.

74

não foi muito diferente o tratamento dado à boa-fé, que também foi

relacionada, em seu aspecto objetivo, ou seja, enquanto norma de conduta, a

outros institutos que igualmente eram carentes de uma conceituação mais

precisa.

Contudo, o que pode ser desde logo colocado em destaque é que,

enquanto o Código Civil italiano mencionava expressamente a boa-fé como

comportamento a ser observado nos contratos, o antigo Código Civil

português, embora se reportando à boa-fé em dezenas de artigo, apenas o fez

quanto à boa-fé subjetiva, nada estabelecendo em relação à formação e à

execução dos contratos.

Curiosamente, inclusive, o Código Civil português, em seu artigo

702º, havia sido inspirado quase que integralmente no artigo 1.134, do Código

Civil francês, determinando que os contratos legalmente celebrados fossem

cumpridos de modo exato, mas a disposição constante do Código de Seabra

cortou exatamente a referência que o Código de Napoleão fazia à boa-fé.

Possivelmente essa ausência tenha sido proposital, pois nos mais de sessenta

anos já decorridos, desde o Código francês até a elaboração do Código

português, já havia sido possível avaliar com realismo as dificuldades que a

doutrina francesa havia enfrentado, ao lidar com a boa-fé objetiva do Código

de Napoleão.

De qualquer forma, em Portugal, a falta de menção expressa no

Código Civil não impediu que naquele país se começasse a perseguir um

conceito geral, que permitisse a aplicação da boa-fé ao campo das obrigações,

inobstante o silêncio do texto codificado. Houve uma certa evolução

doutrinária, mas com praticamente nenhuma repercussão na jurisprudência

portuguesa. De qualquer forma, esses estudos da doutrina formaram a base

necessária para que o assunto fosse muito mais bem tratado no Código Civil

75

português de 1966, como veremos adiante, que de modo sistemático tratou da

boa-fé.

1.5. A boa-fé no Direito Civil Alemão.

Esclarece Bobbio67 que o direito romano – como, de resto, toda a

cultura – havia se eclipsado na Europa Ocidental, durante a Idade Média,

sendo substituído pelos costumes locais e pelo novo direito inerente às

populações germânicas (bárbaras), mas ressurgiu depois do “século das

trevas”, com o aparecimento da Escola jurídica de Bolonha, e espalhou-se não

apenas pelo antigo território do Império Romano, mas também para territórios

que nunca haviam sido dominados por este.

Na Alemanha, esse renascimento do direito romano se deu pelo

fenômeno da “recepção”, por obra, principalmente, do trabalho dos glosadores

e pós-glosadores, como já vimos anteriormente (veja-se, a respeito, o item 1.3,

retro). Foi graças a esse fenômeno da recepção que o direito romano foi

profundamente assimilado pela sociedade alemã, tanto assim que, até o final

do século XIX, antes da elaboração do Código Civil alemão, os tribunais

germânicos ainda aplicavam largamente o direito do Corpus juris, com as

atualizações feitas pelos pós-glosadores, para adaptação às novas exigências

sociais, e com o nome de “usus modernus Pandecta-rum”.

Assim, ao longo de todo o século XIX, enquanto na França a

Ciência do Direito enveredava pela escola da exegese, num positivismo

radical, na Alemanha se trilhava um caminho completamente diverso. Essa

divisão do direito europeu continental encontra vários motivos, como por

exemplo a diversidade lingüística (eis que o latim, antes língua unificada do 67 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 30.

76

direito, ia perdendo espaço como tal) e a forte rivalidade entre França e

Alemanha. Além disso, os estudos filosóficos de Kant tiveram um forte

impacto no direito alemão68.

Convém observar que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, era

dominante na Europa o pensamento jusnaturalista. E para que o direito natural

pudesse perder terreno, foi necessário o surgimento de uma outra linha de

pensamento, que se mostrou extremamente crítica às idéias jusnaturalistas.

Isso se deu com o surgimento da escola histórica do direito, no final do século

XVIII e no começo do século XIX, que se difundiu principalmente na

Alemanha e acabou levando à dessacralização do direito natural69.

Segundo a concepção da escola histórica do direito, cujo expoente

máximo foi Savigny, o Direito só poderia ser estudado se fossem levadas em

conta, dentre outras, as seguintes características: a) a individualidade e a

variedade do homem, ou seja, o Direito jamais poderia ser entendido como

único, imutável em todos os lugares e em todos os tempos, pois o mesmo seria

sempre desenvolvido na história, como ocorre com todos os fenômenos

sociais, e por isso variaria no tempo e no espaço; b) o valor da tradição, no

sentido de que deveria ser sobrevalorizado o direito consuetudinário, uma vez

que os costumes, formando-se e desenvolvendo-se por lenta evolução na

sociedade, seriam o Direito que nasce diretamente do povo, exprimindo o

sentimento e o “espírito do povo”70.

68 Uma outra diferença é que a França, logo no começo do século XIX, trouxe ao mundo o seu Código Civil; na Alemanha, no entanto, a escola histórica do direito, dirigida por Savigny, triunfou ao longo de praticamente todo esse mesmo século, e como essa escola partia do princípio de que o verdadeiro direito era o formado pelos costumes (veja-se, no texto acima, poucas linhas adiante), a mesma opunha-se à codificação do direito civil. Formaram-se, na Alemanha, duas grandes correntes, uma liderada por Thibault, que pedia a urgente codificação, e a outra liderada por Savigny, que se opunha. Em virtude dessas circunstâncias, o Código Civil alemão só viria a entrar em vigor quase cem anos depois do francês. Cf. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 127-128. 69 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 45. 70 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, pp. 51-52.

77

O Direito, então, na visão da escola histórica, seria um traço

característico de um povo, assim como a língua e os costumes71. Assim, o

Direito nada mais seria do que uma evolução histórica e sistemática, que tinha

o seu ponto de partida nos costumes e crenças populares e depois era

consagrado na lei e na jurisprudência dos tribunais. Ao direito natural,

portanto, a escola histórica contrapunha o direito costumeiro, por entender que

este era o direito genuíno.

Não se trataria, pois, de uma obra do legislador72, pois este apenas

refletiria na lei a evolução supramencionada73. Além disso, como a legislação

exprimia todo um conjunto de manifestações do povo, cada norma legal só

poderia ser entendida dentro do conjunto, só podendo ser entendido cada texto

legal quando levado ao cotejo com todo o sistema, e jamais pela interpretação

de um texto isolado. Referindo-se à Escola Histórica, diz Wieacker74 que “o

seu núcleo é antes constituído por um processo de mutação interna da própria

ciência jurídica que, por volta de 1800, tinha em vista o novo ideal de uma

ciência jurídica ao mesmo tempo positiva – i.e., autônoma – e filosófica – i.e.

– sistemático-metódica”.

Convém lembrar, como acima já mencionamos, que, nessa época,

o direito romano era profundamente arraigado na Alemanha, e portanto foi

71 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 407, ensina que “A Escola Histórica do direito descobriu na historicidade do direito a historicidade do proprio povo. Ela viu o mesmo no direito, primeiro implicitamente depois expressamente, uma manifestação do espírito do povo”. 72 Para a Escola Histórica, diz Wieacker, “o direito já não podia ser compreendido como um sistema de leis naturais gerais e a-históricas da sociedade humana ou apenas como mero produto artidicial de um legislador racional”. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno , p. 406. 73 Curiosamente, no entanto, apesar de preferir o direito costumeiro ao legislado, a escola histórica do direito acabou se revelando como uma das causas do furioso positivismo que viria a tomar conta da França, após a publicação do Código Civil de 1806, com a escola exegética, como já vimos no item 1.4, retro. Curiosamente, dissemos, porque ao pregar a prevalência das normas costumeiras, a escola histórica distancia-se enormemente do positivismo que confundiu o estudo do direito civil com o exame do Código Civil. Ocorre que, ao criticar duramente as concepções jusnaturalistas, a escola histórica acabou por solapar o direito natural, e foi por isso que, indiretamente, acabou abrindo o caminho para o positivismo. Cf. Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito , p. 45. 74 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 419.

78

tomado como ponto central de partida para a escola histórica75. Além disso,

como o Direito era um produto da cultura do povo, buscava-se a colheita de

elementos culturais na sociedade, o que era feito pela observação das

instituições existentes nessa mesma sociedade. Assim, aos princípios centrais

que norteavam o sistema, somavam-se elementos da periferia desse mesmo

sistema, de origem cultural, o que lhe conferia características próprias daquela

sociedade.

É importante observar que foi essa busca da realidade como

parâmetro de referência, que se mostrava como o eixo central da escola

histórica, que permitiu que ganhasse impulso a crítica ao exacerbado

individualismo que se verificava nos Códigos do século XIX, e que em última

análise, como veremos no desenvolvimento do presente item, acabaram por

criar, mais adiante, as condições necessárias para o reconhecimento da boa-

fé76 como fonte normativa autônoma, e não apenas como uma simples figura

de retórica ou um princípio tão-somente aplicável como reforço dos

contratos77 ou como a ciência de uma determinada circunstância ligada à

posse, o que pode ser facilmente explicado pelo fato da boa-fé se ligar ao

pensamento problemático, tópico, ou seja, mediante a imersão nas

75 Na realidade, como explica Vicente Ráo, o que aconteceu foi que o direito romano era tão profundamente enraizado na Alemanha do século XIX, que parecia simplesmente inconcebível um direito alemão que deixasse de fora as concepções romanas, que não conservasse os conceitos romanos. Ora, é evidente que a absorção do direito de outro povo e de outra época chocava-se frontalmente com a idéia básica da escola histórica, no sentido de que o direito era o produto inconsciente e espontâneo do meio social, variando no tempo e no espaço, como vimos acima. No entanto, a escola história não teria a menor chance de ser aceita, caso propusesse a exclusão dos preceitos do direito romano, e por essa razão, não sem dificuldade, esforçou-se em justificar aadmissao do direito romano e dos seus conceitos jurídicos. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, p. 128, nota nº 49. 76 Nesse sentido, poderíamos simplificar dizendo que a boa-fé objetiva representa “uma reação contra o individualismo, cobrando das partes um comportamento que leve em conta o interesse do parceiro contratual: um agir solidário”. Cf. Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 28. 77 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 86.

79

circunstâncias dos problemas concretos que se apresentam ao juiz (veja-se,

supra, o item 1.1).

Interessante notar, portanto, que na visão da escola histórica o

sistema jurídico é construído através da dedução e da indução: partindo-se de

princípios centrais, deduzem-se as regras que formam o sistema, de modo

idêntico ao do racionalismo; ao mesmo tempo, contudo, a partir da observação

dos elementos externos, ou seja, das instituições culturais vigentes na

sociedade, faz-se o processo inverso, induzindo-se os postulados centrais a

partir desse produto dos costumes obtidos diretamente junto ao povo. A

conseqüência mais imediata é que esse sistema está sempre sujeito aos

influxos da vida real, em constante e incessante alteração com esta e, por outro

lado, mostra-se como um sistema adequado para a solução de questões

práticas78.

Essa doutrina alemã do século XIX, tendo adotado a observação

dos fatos culturais como parte de sua metodologia, como não poderia deixar

de ser, precisou enfrentar a questão da boa-fé. Em relação à posse, Savigny

desenvolveu-a com um aspecto psicológico, mas já com alguns traços de

objetivação. Com efeito, Savigny entendia que apenas a vontade do possuidor

(animus) era que permitia transformar a detenção em posse, em claro aspecto

subjetivo, e também que a posse seria de boa-fé quando o possuidor estivesse

convencido de que havia esteio jurídico para sua posse79.

No entanto, apontava Savigny que a posse de boa-fé deveria estar

amparada em um título que a justificasse, ou seja, tem-se aí uma situação

objetiva, na qual a primeira abordagem sobre a existência ou não da boa-fé se

dava em função de um elemento externo, objetivo, que era a existência ou não

78 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 294-295. 79 Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direitos Reais , p. 30.

80

do título jurídico, e não apenas a simples análise do que o possuidor tinha ou

não conhecimento (o que, de resto, no mais das vezes é impossível de aferir

com segurança). A boa-fé possessória, portanto, seria protegida como uma

situação objetiva, e não apenas pelo estado psicológico de conhecimento ou de

ignorância do possuidor.

Em relação à boa fé como norma de conduta80, no entanto, ou

seja, a boa-fé objetiva, muito pequena foi a evolução. No campo das

80 Na realidade, quando se fala em boa-fé como “norma”, está-se passando diretamente à conclusão de uma polêmica que até hoje divide a doutrina: a de saber-se se a boa-fé se constitui em um standard jurídico ou em um princípio geral. Entenda-se, por standard, um parâmetro, uma referência para fins de comparação, ou seja, um modelo de conduta social, em relação ao qual o juiz, em um caso concreto, deverá fazer a comparação de um comportamento, para aferir se o mesmo foi ou não adequado ao padrão utilizado. O problema é que o standard não cria normas e nem é, em si mesmo, uma norma, e por isso não funciona como uma diretriz para o comportamento, mas tão-somente, como dissemos, serve de parâmetro para a comparação do comportamento já adotado. Assim, por exemplo, quando o Código Civil brasileiro se refere à “pessoa de diligência normal” (art. 138) ou ao “homem ativo e probo ” (art. 1.011), não está criando norma alguma ou impondo um comportamento, mas apenas dizendo ao juiz que, em um caso concreto, deverá comparar o comportamento do sujeito com aquele comportamento-padrão escolhido pelo legislador para aquela situação, que é o da pessoa de diligência normal ou da pessoa ativa e proba, sendo evidente que o conteúdo desse comportamento só poderá ser determinado levando-se em conta o desenvolvimento social, econômico, cultural e até mesmo tecnológico, de uma determinada sociedade. Assim, o standard jurídico não impõe uma conduta a ser seguida, mas apenas funciona como elemento de comparação da conduta adotada em um caso concreto. O princípio, ao contrário, não apenas é uma norma em si mesmo (pois impõe um comportamento e dele decorrem obrigações), mas além disso ainda funciona como gerador de outras normas (Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , p. 102). Assim, quando o artigo 138, do nosso Código Civil, menciona a pessoa de diligência normal, não está criando obrigações concretas e nem determinando uma conduta. Ao contrário, quando se fala em comportamento conforme a boa-fé (Código Civil, art. 422), daí decorrem diversas obrigações concretas para o sujeito, sendo-lhes imposta a observância de uma determinada conduta. Logo, quando falamos em “boa-fé como norma de conduta”, isso significa que estamos adotando a idéia de que se trata de um princípio geral, e não apenas um standard comportamental, sendo certo que o princípio é de aplicação muito mais ampla, eis que se insere por todo o ordenamento jurídico, sendo exatamente isso o que ocorre, ao nosso ver, em relação à boa-fé. No mesmo sentido é a conclusão de José Luis De Los Mozos, para quem a boa-fé, em geral, não pode ser confundida com o que a doutrina anglo-americana classifica como standards jurídicos, pois a boa-fé se limita a atuar uma idéia moral, que recebe uma instrumentação diferente conforme os diversos topoi jurídicos encontráveis no ordenamento. Mas aponta o referido autor que, especificamente em relação ao direito obrigacional, ao fazer incidir um critério de reciprocidade entre os sujeitos, a boa-fé se assemelha aos standards jurídicos, uma vez que estabelece uma conduta-tipo (El principio de la buena fe, p. 54). No mesmo sentido, ainda, a conclusão de Béatrice Jaluzot, que após observar que o ponto comum entre as duas concepções (standard jurídico e princípio) é a ausência de uma definição precisa, sendo isso uma vantagem, pois permite ao juiz atribuir ao conteúdo da boa-fé a partir de numerosos elementos objetivos e subjetivos, sendo aí que aparecem as diferenças entre os diversos ordenamentos jurídicos, e conclui apontando que “la conception de la bonne foi en tant que principe juridique tend à faire l’unanimité” (La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 124-125, n°s 445 e 452). Mas a questão não é pacífica, havendo autores que sustentam que a boa-fé é apenas a representação de um standard . Neste sentido, apontam Diez-Picazo e Antonio Gullon que “La buena fe es lo que se ha llamado un standard jurídico, es decir, un modelo de conducta social o, si se prefiere, una conducta socialmente considerada como arquetipo, o también una

81

obrigações, na realidade, a boa-fé foi examinada por Savigny não como um

princípio inerente às obrigações em geral ou aos contratos em particular, mas

sim como um alargamento do poder decisório do juiz, aproximando-se pois

dos bonae fidei judicia dos romanos.

Desse modo, o juiz não estaria adstrito ao que estivesse expresso

no contrato, mas também poderia levar em conta o que era comum nos

contratos daquela espécie, ou seja, a tutela jurídica levaria em conta a

substância do contrato, e não apenas o que nele estivesse expresso. O réu, por

sua vez, poderia invocar esse maior poder do juiz para trazer ao processo um

eventual crédito que tivesse contra o autor, por exemplo, o que acabou dando

origem à exceção material da compensação.

Como se vê, portanto, até aí se manteve firme a bipartição da boa-

fé, aplicada no campo da posse e no campo das obrigações, mas o progresso

não foi significativo, no sentido de estabelecer conceitos claros e precisos, que

pudessem permitir ao operador do direito a segurança no manuseio da boa-fé,

notadamente no campo contratual.

De qualquer modo, merece destaque o aspecto prático trazido por

Savigny, em relação ao título que esteava a posse e que serviria de amparo à

boa-fé, como vimos acima, pois servia como um fator concreto, a ser

considerado pelo juiz, em contraponto a uma nem sempre possível análise do

conducta que la conciencia social exige conforme a un imperativo ético dado”. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona – Negocio Jurídico, p. 519. Também para Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro , p. 77, “a boa -fé também é uma cláusula geral, pois encerra em si condutas padronizadas (standards)...”. Outros, ainda, parecem apontar que não há diferença conceitual entre o standard e o princípio geral, como é o caso de Hernández Gil, para quem “la buena fé, em su significación general, funciona como um principio general o um standard jurídico” (Antônio Hernández Gil, La posesión, p. 173). E o ilustre autor espanhol repete, em outra obra, a mesma idéia, afirmando que “la buena fe, considerada en términos generales, funciona como un principiuo o concepto standard por virtud del cual el ordenamiento, evitando la concreta previsioón de comportamientos, enuncia un modelo de conducta en el que han de hallarse insertos los destinatarios de las normas para aprovecharse de ciertos efectos beneficiosos”. Cf. Antônio Hernández Gil, La función Social de la posesión, p. 130.

82

íntimo do possuidor, para verificar se o mesmo sabia ou não sabia do vício

que lhe maculava a posse.

Além disso, pelo menos a boa-fé se manteve nas discussões

doutrinárias, em seus dois aspectos já abordados desde os romanos, ou seja,

em relação às obrigações e à posse, o que sempre torna possível que novos

estudos venham a se somar aos já existentes, o que de fato viria

posteriormente a ocorrer. As discussões sobre a boa-fé voltariam a se acentuar

em virtude de um curioso caso concreto, na segunda metade do século XIX,

envolvendo a sucessão de um conde alemão, que provocou ruidosa polêmica

entre os juristas81.

Um conde alemão, morto em 1765, havia feito um testamento,

dez anos antes, no qual designava como herdeiro um filho, determinando

contudo um fideicomisso e a destinação dos bens para depois da morte do

filho. Ocorre que esse filho nunca chegou a nascer e, morto o conde, a irmã

deste, herdeira legítima, de imediato se apossa das propriedades, antes mesmo

da abertura do testamento.

Quase cem anos depois, em 1861, os herdeiros testamentários do

conde (os descendentes do fiduciário) ajuízam ação pedindo que lhes fossem

entregues os bens da herança. Na defesa, argüiu-se a ocorrência da usucapião,

contra a qual os autores apontaram a má-fé da irmã do conde, eis que não seria

possível usucapir sem posse de boa-fé.

A partir daí a discussão se concentra em saber se a irmã do conde,

ao apoderar-se dos bens antes da abertura do testamento, estava de boa-fé ou

de má-fé, ou seja, se o fato de não ter esperado a abertura do testamento, o que

teria sido o mais recomendável, serviria como obstáculo à sua crença de que

81 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 308-310.

83

efetivamente seria a herdeira do irmão falecido, por ser indesculpável o seu

erro quanto à propriedade dos bens.

Duas correntes doutrinárias se formaram. Para a primeira,

capitaneada por Carl Wächter, que tomou como referência o largo emprego,

nas fontes romanas, de expressões como putare, ignorare e nescire, a boa-fé

consistiria em um fato puramente intelectivo, ou seja, no simples fato da

crença (errônea) do possuidor de que era o verdadeiro proprietário da coisa.

Por se tratar de um fato, pouco importava se o erro era desculpável ou não,

pois o que interessaria era a crença em si mesma, e não os elementos nos quais

a mesma estaria apoiada. E mesmo a dúvida sobre o direito do antecessor só

excluiria a boa-fé se fosse forte ao ponto de afastar a crença do possuidor em

seu próprio direito82.

Para Wätcher, portanto, a boa-fé era de conteúdo psicológico, e

não se confundia a boa-fé das relações jurídicas reais com a boa-fé das

relações jurídicas obrigacionais.

Para a segunda corrente, no entanto, liderada por Bruns, essa

análise puramente psicológica da boa-fé, ou seja, tão-somente esteada na

convicção íntima do possuidor, era inaceitável em virtude da extrema

insegurança jurídica que dela decorreria, pois teria que ser feita a análise da

pessoa, em cada caso concreto, para saber o seu grau de credulidade, eis que a

pessoa crédula ou de pouca inteligência seria mais facilmente considerada de

boa-fé do que a pessoa de muitas luzes. A boa-fé do possuidor, portanto, para

Bruns, não seria um conceito psicológico, mas sim um conceito ético83.

82 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 190. 83 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 190.

84

Assim, portanto, sustentavam os defensores dessa segunda

opinião que a boa-fé deveria ser colhida a partir de um conteúdo ético, ou seja,

de um comportamento concreto, através do qual se poderia examinar a

honestidade e a correção da conduta, e não pelo exame de elementos

psicológicos e inatingíveis. Para Bruns, o conceito ético da boa-fé seria o

mesmo, tanto em relação à usucapião quanto em relação aos contratos, e em

ambos a boa-fé seria eliminada pelo erro inescusável.

A divisão doutrinária, portanto, pode ser assim resumida: o

conteúdo da boa-fé tem natureza predominantemente psicológica (crença) ou,

ao contrário, apresenta um conteúdo marcantemente ético? Para Wächter,

como vimos, a boa-fé consiste em um aspecto psicológico, que se caracteriza

por uma crença errônea, qualquer que seja a sua natureza (a sua causa). Para

Bruns, ao contrário, a boa-fé tem um conteúdo ético, e este só se materializa

quando essa crença não é culposa, ou seja, não é suficiente a crença em si

mesma.

Alguns outros autores, por sua vez, tentaram uma doutrina

intermediária, como Pernice e Bonfante, apontando, em síntese, que a partir

das fontes romanas poderiam ser apontados dois aspectos para a boa-fé, um

aplicável aos direitos reais e o outro aplicável em relação às obrigações, não

sendo uma delas equiparável à outra. Assim, nos direitos reais a boa-fé seria

marcada por um conteúdo principalmente psicológico (a consciência),

enquanto nas obrigações haveria um forte componente ético (moralidade)84.

Em relação à análise das fontes romanas, vale dizer,

considerando-se o sentido da boa-fé em relação ao direito romano, a razão

estaria com Wächter, pois para os romanos a boa fé possessória apresentava

84 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 27-28.

85

um conteúdo puramente psicológico, não levando em consideração a questão

da desculpabilidade do erro em que se assentava85.

Do ponto de vista da moderna Ciência do Direito, no entanto,

deu-se exatamente o contrário, ou seja, atualmente se entende que a boa-fé

apresenta marcante caráter ético, que prevalece sobre o psicológico, por isso a

crença deve ser justificada, vale dizer, deve ser desculpável, assentada em

fatos que de modo razoável possam justificá-la86. Essa segunda posição, aliás,

foi expressamente adotada pelo Código Civil alemão (§ 932, 2), como

veremos logo adiante, neste mesmo item.

Esse conteúdo ético se revela com mais clareza quando se avalia

a boa-fé subjetiva, ou seja, essa boa-fé ligada à crença, ao conhecimento ou ao

desconhecimento acerca de uma certa circunstância do negócio jurídico. Mas

isso não significa, obviamente, que a boa-fé objetiva, enquanto norma de

conduta, esteja despid a desse mesmo conteúdo ético87.

Neste ponto, deve-se alertar que essa distinção entre conceito

psicológico e conceito ético de boa-fé, nos moldes em que foi colocada nessa

polêmica entre Wätcher e Bruns, encontra-se superada, e não pode ser

confundida com a atual separação entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva,

pois na verdade ambas as correntes, tanto a de Wätcher quanto a de Bruns,

podiam ser qualificadas como subjetivas, uma esteada na crença, e a outra

dependendo da existência ou não de culpa no surgimento da crença.

A boa-fé subjetiva se apresenta como um fato psicológico, no

qual se levam em conta os valores éticos, sendo no campo dos direitos reais a

sua atuação predominante. A boa-fé objetiva, por sua vez, se apresenta como

85 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 312. 86 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 27. 87 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 29.

86

regra de conduta do homem de bem, conforme os padrões de uma sociedade

em um certo momento histórico, sendo, pois, exterior ao sujeito. 88

O que acontece é que esse conteúdo ético da boa-fé se infiltra no

ordenamento jurídico de tal modo e em tal profundidade que, muitas vezes,

transmuda-se de seu aspecto subjetivo para um objetivo, vale dizer, deixam-se

de lado aspectos como a intenção, a culpa, a consciência, etc. (o aspecto

psicológico, enfim), e passa-se a apreciar tão-somente se se trata de um

comportamento socialmente aceitável.

Na lição precisa de Lombardo89, o princípio ético da boa-fé se

funde organicamente com o ordenamento jurídico, e se manifesta de modo

mais ou menos rigoroso, na medida exata das exigências sociais (e não além

delas), chegando a converter-se, em relação a determinadas conseqüências

jurídicas, de princípio subjetivo em objetivo, onde a boa-fé deixa de ser

esteada sobre a intenção do sujeito e passa a ser considerada como um mero

comportamento socialmente apreciável. A noção jurídica de boa-fé, assim, se

apresenta estruturada como um modo de ser do espírito, considerado

exclusivamente na objetividade de sua manifestação. Em matéria contratual,

por exemplo, a boa-fé passa a significar a medida das ações subjetivas e,

portanto, um critério normativo de comportamento.

Trata-se da boa-fé, como se vê, considerada como norma de

comportamento, ou seja, norma de conduta, e, portanto, aquilo que mais tarde

viria a ser denominado de boa-fé objetiva. Pode-se dizer que é nesse mesmo

sentido, descrito por Lombardo, que o artigo 110 do nosso Código Civil

estabelece que a manifestação de vontade subsistirá ainda mesmo que o seu 88 José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999 , p. 192. 89 Luigi Scavo Lombardo, verbete Buona fede – La Tradizione Canonistica, In: Calasso, Francesco (Coord.), Enciclopédia del Diritto, V, p. 666.

87

autor tenha feito a reserva mental de não querer aquilo que manifestou, exceto

se a outra parte tinha conhecimento dessa ressalva mental.

Com efeito, o dispositivo em questão informa que a vontade

manifestada, que pode tê-lo sido por meio de palavras ou mediante um

determinado comportamento, e que ao ser externada pôde ser apreendida pelos

demais sujeitos envolvidos no mesmo negócio jurídico, prevalece sobre a

intenção, ou seja, sobre a vontade interna, formada no íntimo do declarante,

mas que por não ter sido exteriorizada não era do conhecimento dos demais

sujeitos.

Na lição de Esser 90, essa eliminação da consideração da intenção

interna confere à verdade jurídica uma dimensão própria, decorrente das

intervenções que os princípios morais operam no Direito. Diz o ilustre jurista

que

“Los principios morales suministran el conveniente enlace entre la norma y el patrón ético (ethical standard) del sistema jurídico... la eliminación de cuestiones de itención interna, assegura a la verdad jurídica y a los principios del enjuiciamiento en derecho una dimensión propia frente a todo intervencionismo moralizante. Pero el dualismo aparece también en los topoi determinantes, cuya antítesis má conocida es la de la intención frente al acto, o la del motivo frente al fin del negocio”.

Essa mesma idéia, ou seja, de que a boa-fé pode ser aferida como

um critério normativo de comportamento, verificando-se tão-somente se o

mesmo se mostra socialmente aceitável (e, por isso, se pode ser considerado

como sendo juridicamente admissível), foi, mais do que desenvolvida, intuída

pelos tribunais alemães muito antes da entrada em vigor do Código Civil

daquele país e antes mesmo de qualquer suporte teórico-doutrinário, como

passamos a examinar. 90 Josef Esser, Principio y norma em la elaboración jurisprudencial Del derecho privado , p. 79.

88

Em 1900 entrou em vigor o Código Civil alemão, que em relação

à boa-fé trazia algumas referências, mas que eram insuficientes para estear

qualquer construção mais precisa e firme acerca da mesma. Apesar disso, no

entanto, e até mesmo de modo surpreendente, vê-se nos tribunais alemães uma

explosão de aplicações concretas da boa-fé, com diversas variantes e

formando padrões determinados.

Surgem, então, algumas das figuras que se constituem no objeto

principal de estudo do presente trabalho, como o venire contra factum

proprium, a exceptio doli , a suppressio, etc., decorrentes da aplicação da boa-

fé aos casos levados aos juízes.

Na realidade, contudo, deve-se alertar que as decisões dos

tribunais não surgiriam “do nada”, sem qualquer embasamento histórico-

cultural. O Direito, dentre outras coisas, é sempre produto de uma evolução

sócio -cultural contínua, e não dá saltos para a frente a partir de um vazio. O

que ocorreu, na Alemanha, foi que desde o começo do século XIX, face ao

incremento das relações comerciais na Europa, começaram a surgir tribunais

comerciais, cujas decisões eram de cunho eminentemente prático, não se

prendendo à legislação estatal. E nessas decisões era muito comum a menção

à boa-fé, e não apenas a subjetiva, referente a um estado de ignorância, mas

também no sentido objetivo, referente a uma forma de conduta ou ao modo de

interpretar os contratos comerciais.

Assim, por exemplo, os tribunais comerciais alemães entendiam

que quando o destinatário de uma mercadoria, por alguma razão, não queria

aceitá-las, ainda que a rejeição decorresse de algum vício ou defeito que as

mesmas tivessem, deveria comunicá-lo ao vendedor o mais rápido possível,

pois a demora feria o comportamento de boa-fé que se poderia esperar do

comprador.

89

Como se vê, nada mais é do que o instituto que posteriormente

viria a ser denominado de suppressio, ou seja, a demora tamanha para o

exercício de um direito que chega a ferir a boa-fé, levando à perda da

possibilidade de exercer esse mesmo direito de modo tão tardio. Convém

lembrar que ainda não estava em vigor o Código Civil alemão, e por isso não

havia qualquer previsão de prazo para redibir contratos em virtude de defeitos

da coisa.

Essas decisões dos tribunais comerciais, no entanto, não

encontravam qualquer apoio doutrinário, notadamente no que se refere à boa-

fé como uma norma de comportamento (objetiva) que, como vimos, estava

ainda praticamente à margem das considerações teóricas dos juristas do século

XIX. Assim, a boa-fé entendida como uma norma de comportamento começa

a despontar muito mais como a conseqüência de decisões em casos concretos

do que como o resultado de um estudo científico consistente. Aliás, desde logo

se adianta que os contornos jurídicos atuais da boa-fé objetiva se originaram

da construção pretoriana dos alemães91, sendo depois aperfeiçoados pela

doutrina moderna.

Antes do Código Civil, em 1861, foi publicado o Código

Comercial alemão, mas o mesmo não trazia um único artigo referente à boa-

fé, possivelmente em virtude da timidez doutrinária sobre o assunto. A

jurisprudência comercial, no entanto, não se abalou com isso, e continuaram a

proliferar as decisões que traziam a clara rejeição ao exercício de posições

jurídicas que, por ofenderem a boa-fé de terceiros, se mostrassem

inadmissíveis.

91 Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, pp. 61-62.

90

De qualquer forma, os tribunais comerciais foram incorporados

aos tribunais civis em 1879, e por isso essas decisões tomadas pelos primeiros

foram importantes para que os tribunais alemães em geral, depois da vigência

do Código Civil, passassem a também levar em conta a boa-fé para o direito

privado em geral, o que acabou por revigorar as discussões doutrinárias, e

levou aos estudiosos do Direito a necessidade de lidar com conceitos de

conteúdo que em abstrato se mostravam incompletos, e que por isso não

poderiam ser delimitados sem uma situação concreta de aplicação.

De modo mais específico, os juristas passaram a se debruçar

sobre situações onde se falava em “conduta conforme a boa-fé”, mas sendo

que o significado completo de tal conduta não poderia ser fixado

aprioristicamente, mas tão-somente no exame de um problema concreto.

O grande problema, no entanto, continuava a persistir, e consistia

no fato de que a boa-fé, sendo um produto da jurisprudência, surge fortemente

ligada às situações reais, ou seja, com os seus contornos formados a partir de

casos concretos, mas ficando longe do núcleo do sistema jurídico, onde podem

ser encontradas as idéias centrais de todo o sistema.

Ao serem transportados esses elementos jurisprudenciais para o

núcleo do sistema (o que se coaduna com a metodologia da escola histórica,

como vimos acima), os mesmos ficam isolados das peculiaridades dos casos

concretos que os levaram a surgir, e aí se tornam meras referências sem

sentido. Em outras palavras, as decisões tomadas para um caso particular

encontram grande dificuldade para que possam ser transformadas em

conceitos genéricos, em princípios gerais aplicáveis a todo o sistema.

O Código Civil alemão trouxe disposições referentes à boa-fé

subjetiva e à boa-fé objetiva (embora tais denominações ainda não fossem

usadas). Quanto à primeira, conceituou-a de modo negativo, estabelecendo

91

que “o adquirente não está de boa-fé quando lhe seja conhecido ou, em

conseqüência de grande negligência, desconhecido, que a coisa não pertence

ao alienante” (§ 932, 2), além de mencioná-la repetidas vezes, em diversas de

suas disposições.

O BGB, como se vê, valeu-se da noção de ignorância qualificada,

ou seja, levou em conta a desculpabilidade da ignorância, rejeitando a boa-fé

nos casos em que a mesma decorresse de grande negligência do adquirente92.

Em relação à boa-fé objetiva, no entanto, claramente diferenciada

da subjetiva (até mesmo por expressões lingüísticas diferentes, como já

vimoa), não trouxe o Código Civil alemão qualquer conceito, limitando-se a

apresentar regras de conteúdo impreciso, que requeriam preenchimento pelo

juiz. Assim, por exemplo, o BGB estabeleceu que “os contratos interpretam-

se como o exija a boa-fé” (§ 157) ou que “o devedor está adstrito a realizar a

prestação tal como o exija a boa-fé” (§ 242).

A questão é que a cultura jurídica alemã imediatamente anterior

ao Código Civil, como vimos, era no sentido de que a boa-fé (objetiva)

enquanto norma de comportamento só poderia ser entendida a partir de

elementos concretos, situados fora do núcleo do sistema. E é evidente que essa

cultura se refletiu no BGB, e quando a boa-fé foi codificada, ou seja, quando

se tentou levá-la para o centro do sistema, não foi possível se desvencilhar

dessa sistemática, continuando a ser necessárias noções que não podiam ser

contidas na codificação, pois eram obtidas de situações reais.

92 Na verdade, como regra geral, pode-se apontar que apenas a ignorância daquele que se portou de modo diligente é que deve ser entendida como boa-fé, pois se o desconhecimento for decorrente de culpa do próprio sujeito, que se portou de modo negligente, não se poderá mais falar em estado de boa-fé subjetiva. Nesse sentido, aponta Delia Rubio que “sólo el error excusable genera uma situacion de buena fé; es decir que solo tiene buena fé el sujeto que actúa diligentemente”. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , p. 92.

92

Trata-se, na realidade, como ensina Esser93, de uma tradução da

ética para o plano jurídico, sendo que essa impossibilidade de se obter um

conceito puramente jurídico, liberto da noção ética, contradiz a errônea idéia

de autonomia das regras e figuras jurídicas positivas diante dos elementos

“metajurídicos”.

E alerta, ainda, o autor, na mesma obra e local, que não se deve

subestimar a importância desse processo de fusão entre o direito e a moral94 (a

ética), não se adotando nem uma fé cega na lei, nos moldes positivistas, e nem

um desesperado e irreal dualismo entre lei e ética. Se, por um lado, os

princípios morais fornecem o liame entre a norma e o padrão ético de um

sistema jurídico, por outro, não interferem na construção institucional e nem

na estabilidade do direito positivo. Ao mesmo tempo, contudo, o dualismo

também se faz presente nas considerações tópicas, em cada situação concreta a

ser examinada, como por exemplo no confronto entre a intenção (elemento

psicológico) e o ato (elemento externo).

A boa-fé objetiva, referente à conduta dos sujeitos (e não à

ciência sobre algum fato), dessarte, foi incluída no Código Civil alemão

exatamente da mesma forma como era vista pelos tribunais comerciais, ou

seja, como um reforço substancial aos contratos e às obrigações em geral, e

deixou muito clara a incapacidade do sistema de prever todas as soluções para

os casos da vida real.

93 Josef Esser, Principio y norma em la elaboración jurisprudencial Del derecho privado, p. 78. “No debemos subestimar la importancia de este proceso de fusión del ‘derecho’ y la moral en el plano de lo que en apariencia es pura técnica: ni para la superación de una positivista fe ciega en la ley, ni para la superación de un desesperado e irreal dualismo de ley y éteica. Sería nefasto que los conceptos y argumentos jurídicos fueran erigidos en categorías independientes: el método jurídico quedaría estéril sin la incorporación de aquellas verdades morales reducidas a evidencias de fuerza lógica o social”. 94 Sobre essa interpenetração entre a moral e o direito, diz Norberto de Almeida Carride que “a boa-fé é essencialmente uma atitude de cooperação, destinada a atender de modo positivo à expectativa da outra parte. O princípio da boa-fé é o caminho pelo qual a moral penetra no direito”. Cf. Norberto de Almeida Carride, Vícios do Negócio Jurídico , p. 39.

93

Foi por essa razão, mencionada no parágrafo anterior, que o

codificador alemão optou pela adoção de cláusulas gerais, abertas, que estão a

requerer um desenvolvimento em cada caso concreto, de modo a que sirvam

para atender situações diversas, muitas delas nem ao menos imaginadas pelo

legislador, e sempre temperadas pelas circunstâncias concretas do problema

que está sendo analisado95.

Um dos primeiros problemas a ser enfrentado, na aplicação da

boa-fé como uma cláusula geral, foi o que se referia ao seu âmbito de

aplicação, ou seja, se a mesma apenas poderia ser aplicada quando houvesse

lacuna contratual e legal, vale dizer, quando as partes não tivessem regulado a

questão ao elaborar o contrato e não houvesse disposição legal específica e

adequada para o caso, ou se, ao contrário, o campo de abrangência da boa-fé

seria não apenas o de integração das lacunas, mas deveria se estender para

todas as situações onde surgissem, nas obrigações, uma posição jurídica

inaceitável de um dos sujeitos, que agredisse a noção de lealdade, de justiça

ou de equilíbrio. A boa-fé, portanto, não seria apenas um meio de integração,

mas também de controle das obrigações, e foi esta segunda posição que desde

os primórdios do BGB acabou por prevalecer.

A boa-fé objetiva, portanto, como se vê, busca obter um resultado

justo em cada situação, sendo que a noção do que é justo deve ser apreendida

alhures, eis que não contida na própria boa-fé. Não se trata, pois, de uma idéia

autônoma, completa em si mesma, mas sim de uma noção que precisa ser

95 Como ensina Ana Prata, “a intervenção do juiz tende a ser admitida com uma latitude sempre maior e ganha condições de eficácia pelo tratamento teórico das chamadas cláusulas gerais, nos usos das quais aquela se processa. Com maior ou menor resistência, a doutrina foi sendo forçada a admitir que em muitos casos só face às circunstâncias concretas se poderia formar e emitir um juízo de valor da situação, informado obviamente pelos princípios jurídicos que integram as referidas cláusulas gerais”. Cf. Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56.

94

complementada pelo aplicador da regra em cada situação específica, levando-

se em conta as peculiaridades de tal situação.

Têm-se aí, portanto, regras que divergem das demais regras

jurídicas, uma vez que não comportam aplicação direta e imediata, não

comportam a pura e simples subsunção. Ao contrário, as normas referentes à

boa-fé como norma de conduta demandam a sua concretização, pois de nada

vale o legislador dizer, por exemplo, que o devedor deve realizar sua prestação

conforme a boa-fé, a menos que o juiz, no caso concreto, possa completar a

regra com a idéia sobre o que seria, naquele caso específico, esse “prestar

conforme a boa-fé”.

No caso real, em regra não se apresenta muita dificuldade para

que o juiz possa apreender qual é o sentido da boa-fé, ou seja, qual seria a

melhor solução para que fosse mantido o equilíbrio entre os sujeitos

envolvidos. No entanto, essa solução estará invariavelmente impregnada de

elementos materiais, estranhos à estrutura do sistema jurídico, e na hora de

transplantá-la para esse mesmo sistema, de modo a ser sistematizada – o que

se mostra indispensável para que o sistema seja juridicamente seguro –, a

tarefa se torna impossível, a não ser com o uso de expressões metajurídicas,

tais como eqüidade, justiça social, equilíbrio, comportamento de pessoa

honesta, etc.

Uma coisa pode ser tida como certa: na aplicação da boa-fé é

indispensável que se lance mão de elementos que são necessariamente

externos ao direito positivo, pelo simples fato de que este não tem como

contê-los em uma regra legal. A questão que se coloca é sobre quais são esses

elementos, se podem ser buscados fora do direito ou se, ao contrário, os

mesmos também devem ser buscados junto aos elementos jurídicos.

95

No entanto, é importante que se destaque que a idéia não é a de se

determinar previamente os elementos concretos específicos, pois é evidente

que os mesmos só poderão ser determinados de modo tópico, ou seja, na

própria situação problemática concreta. O que se quer, portanto, é a adoção de

parâmetros que indiquem ao operador do direito, no caso concreto, como deve

ser feita a busca, quais são os elementos a serem pesquisados e levados em

conta para a aferição dos elementos específicos do caso real.

Nessa busca de elementos jurídicos que pudessem complementar

a boa-fé, surge a idéia de que o essencial era a valoração dos interesses96 que

estivessem em jogo, e não a simples consideração de conceitos aos quais se

pudesse fazer a subsunção. Assim, nos casos em que o juiz não tivesse como

fazer a subsunção lógica, como ocorria na aplicação das regras sobre a boa-fé,

a lei deveria atribuir ao juiz a avaliação e ponderação dos interesses que

estavam envolvidos no caso concreto, sendo que a valoração de tais interesses

deveria ser feita conforme critérios ou juízos de valor previamente fixados

pelo próprio legislador. O grande problema era que não havia como fixar tais

critérios, e assim o impasse se mantinha.

Além disso, esse sistema tinha a desvantagem de ser fechado em

si mesmo, ou seja, as soluções dependeriam dos critérios internos, fixados na

própria norma legal, e não dos fatores externos, culturais, o que traria as

conseqüentes dificuldades de absorção de situações novas, e na verdade o juiz

continuaria obrigado a proceder à subsunção, sempre submetendo o caso

concreto à previsão legal. Assim, quando o juiz se deparasse com uma

situação que até então não fora imaginada pelo legislador, certamente não

encontraria na lei os critérios adequados para resolvê-la, e não poderia fazer 96 Pontes de Miranda resume a questão dizendo que “a boa-fé é protegida à custa de alguém (e.g., verdadeiro titular); de modo que o direito pesa, aí, respeitáveis interesses”. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, v. 1 , p. 193

96

uso dos vetores sociais para orientá-lo na solução adequada e na valoração dos

interesses envolvidos.

Na realidade, como ensina José Luis de Los Mozos97, a antinomia

metodológica entre a jurisprudência de conceitos e a jurisprudência de

interesses, assim como entre as correntes que deram continuidade a essa

contraposição entre positivismo e formalismo de um lado, e naturalismo e

realismo do outro, está na base da questão da assimilação do princípio da boa-

fé.

A jurisprudência dos conceitos parte da idéia de que uma dada

ordem jurídica constitui um sistema fechado, independente da realidade social

das relações da vida, e por isso sustentava que seria sempre possível obter uma

decisão correta apenas por meio de uma operação lógica, consistente na

subsunção da situação real à valoração de um princípio geral dogmático, ou

seja, os conceitos não teriam apenas valor ordenador do sistema, mas

representariam uma realidade direta, sendo que sua aplicação lógica só

poderia conduzir a uma solução justa98.

É que embora o positivismo científico (ou pandectismo) também

se valesse dos princípios gerais para filtrar a realidade e examiná-la à luz do

mundo fechado do Direito, continua de Los Mozos, foi quando a consciência

jurídica se tornou mais realista, buscando considerar, nas decisões, os

conteúdos econômicos e sociais, e dando origem à jurisprudência de interesses

(denominação usada por Heck) ou jurisprudência integradora (Betti), que se

passou a entender que em toda interpretação de uma norma se produz um

processo valorativo, semelhante ao que se verifica na criação do Direito, e

portanto atribui função criadora ao jurista.

97 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 15-16. 98 Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 494-495.

97

Dessa forma, ainda que a concepção do Direito, que se mostrou

própria do pandectismo ou do formalismo, não tenha servido de impedimento

para a consideração dos princípios gerais, na atividade interpretativa do

jurista, por outro lado é certo que foi renovado o significado desses princípios

nessa mesma interpretação, a partir dessa visão mais realista, surgindo uma

concepção mais substancial (e menos formal) do Direito, cuja ênfase se dá,

muito mais do que em uma consideração axiomática do texto legal, pela

expressão de uma justiça material, funcionalizada de modo específico para os

problemas jurídicos concretos, e por isso capaz de proporcionar uma maior

segurança no seu manejo99.

Neste ponto, convém ressaltar a enorme diferença da abordagem

feita pelos juristas alemães, em relação àquela que é feita pelos franceses100.

Estes, como já vimos, buscam o “estado de espírito” do sujeito, enquanto a

jurisprudência alemã entende que a apreciação segundo a boa-fé só pode ser

feita segundo critérios objetivos, considerados dentro de um caso concreto,

não havendo como deixar de levar em conta os elementos objetivos desse

mesmo caso. Essa diferença se reflete até mesmo na linguagem utilizada: o

juiz francês diz que um sujeito está ou não está de boa-fé, enquanto o juiz

alemão determina se foi violado ou respeitado o princípio da boa-fé101.

99 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 17-18. 100 Tanto o Código Civil francês quanto o alemão, em maior ou menor grau, sofreram influência do direito romano; além disso, o Código Civil francês serviu de fonte para o alemão. Por que, então, tanta diferença? Na verdade, apesar dessas origens comuns, na época da discussão sobre a codificação alemã, o Império alemão encontrava-se sobre influências normativas variadas: em uma parte do território era vigente o Código da Prússia, em outra era o Código Civil francês, e em outra, ainda, era o direito comum alemão, conjugado com os costumes locais. A influência à qual foram mais sensíveis os elaboradores do código alemão foi a dos direitos alemães regionais (vê-se, aí, a influência da escola histórica), sendo as disposições do Código Civil francês adotadas apenas na medida em que se harmonizavam com esses direitos particulares. Cf. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 127-129. 101 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 80-81, n°s 293 e 296. E sobre essa diferença entre os juristas franceses e alemães, prossegue a autora dizendo que “Le juge doit-il prendre em considération uniquement les éléments extérieurs et apparents d’une affaire ou bien peut-il scruter la volonté interne des parties et porter sur elles une sanction? Sur ce

98

Mas retornemos à análise feita por De Los Mozos.

A chamada jurisprudência de interesses, portanto, prossegue o

respeitado jurista espanhol, funcionou como a grande irrupção do pensamento

problemático no pensamento codificador, uma vez que o interesse é pura e

simplesmente um topos, e tornou claro o valor de uma abordagem pragmática,

que desenvolvesse uma lógica problemática, vale dizer, voltada para a

interpretação objetiva dos problemas concretamente considerados. Dito de

modo mais direto, “la buena fe es um principio problematico, um verdadero

topos, llamado a actuar en cada momento de la interpretación”102.

De modo geral, pode-se observar que, na Alemanha, o Código

Civil foi um tanto quanto tímido, em relação à boa-fé objetiva, mas o mesmo

não se pode dizer em relação à jurisprudência do direito privado, que de modo

acelerado desenvolveu-se intensamente em relação ao tema, muitas vezes sem

apoio (ou mesmo com a hostilidade) da doutrina, dando origem a figuras que

hoje se mostram de larga aceitação, como já vimos. Da conjugação do uso de

cláusulas gerais com essa doutrina que propugnava a ponderação e a valoração

dos interesses envolvidos em cada caso concreto, acabou por ser realçada a

inadequação de um juiz que funcionasse apenas como a boca da lei, fazendo

de modo mecânico e automático a subsunção.

Contudo, o fato do desenvolvimento da boa-fé ter se dado quase

que exclusivamente em função da jurisprudência, que não foi acompanhada

pela Ciência do Direito, cobrou o seu preço, pois o seu desenvolvimento se

deu sem que fosse obedecida qualquer metodologia científica, o que dificultou

a captação do verdadeiro sentido da boa-fé e a sua generalização para o

atendimento de situações novas com segurança jurídica. point, les cceptions s’opposent, les juges français accordant une grande faveur à l’itention au sens chrétien du terme, tandis que les juristes allemands ont rejeté ouvertement une telle recherche”. Idem, p. 81, n° 297. 102 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 36-37.

99

A falta de uma noção científica deu origem a uma linguagem

metajurídica, recheada de termos pomposos e empolados, mas que em regra

não conseguem ganhar significado fora dos casos reais 103. Os tribunais,

contudo, têm encontrado aplicações concretas com esteio na boa-fé, apesar de

não terem sido acompanhados pela metodologia científica, problema do qual

ainda hoje se ressente o estudo da matéria.

1.6. A boa-fé objetiva e seu aspecto normativo. Tendência expansionista.

Como vimos, no item anterior, a idéia sobre a boa-fé, que entre os

romanos significava o desconhecimento de uma circunstância de fato ou da

existência de um impedimento à aquisição da propriedade pelo possuidor,

evoluiu nos tribunais da Alemanha em virtude de situações concretas com que

as Cortes se depararam, passando a também conter o significado de uma

norma de conduta a ser observada pelo sujeito de um negócio jurídico. Essa

evolução, no entanto, foi surgindo de modo assistemático e casuístico, sem

que houvesse um eixo central desenvolvido pela doutrina, em torno do qual

pudessem gravitar conceitos genéricos sobre o tema.

Com efeito, entre os tribunais germânicos a boa-fé foi mais

intuída do que propriamente desenvolvida, tendo isso ocorrido antes mesmo

de haver qualquer previsão legislativa sobre a mesma. De qualquer modo,

como também já comentamos, supra, posteriormente, com a entrada em vigor

do Código Civil alemão (BGB), diversos dispositivos passaram a tratar de

modo explícito acerca da boa-fé, inclusive causando alguma perplexidade 103 Na verdade, como bem adverte Delia Rubio, trata-se de uma característica dos autores alemães essa imersão constante nas peculiaridades de cada caso concreto. No caso específico do estudo da boa-fé, os usos em voga no comércio não funcionaram apenas como um elemento integrador ou interpretativo dos contratos, mas como o próprio caminho para a identificação da boa-fé como critério normativo. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , p. 133.

100

inicial em relação a qual seria o dispositivo mais adequado para estear o

entendimento da boa-fé como uma norma comportamental (veja-se, adiante, o

item 2.2).

A partir do BGB (art. 242104), a boa-fé passou a constar

expressamente em vários Códigos Civis, generalizando-se a sua previsão legal

nos diversos ordenamentos, embora geralmente vinculada especificamente ao

campo das relações obrigacionais e, no mais das vezes, sem que se captasse a

verdadeira essência dos dispositivos que encontravam seu apoio nessa figura

da boa-fé. Com efeito, a menção à boa-fé pode ser encontrada, dentre outros,

nos artigos 187105 e 422106, do Código Civil brasileiro, no artigo 1.071107, do

Código Civil argentino, no artigo 1.258, do Código Civil espanhol108, nos

artigos 1.337 109 e 1.375110, do Código Civil italiano, no artigo 227111, do

Código Civil português, etc., e assim por diante, em praticamente todas as

codificações civis da atualidade.

O que facilmente se observa, mesmo a partir da perfunctória

análise dos diversos dispositivos mencionados, é que na mesma linha de

decisões que se firmou nos tribunais germânicos, a boa-fé superou a sua

104 § 242. o devedor está obrigado a executar a prestação como a boa-fé, em atenção aos usos e

costumes, o exige”. Tradução de Souza Diniz, Código Civil alemão. 105 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente

os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 106 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua

execução, os princípios de probidade e boa-fé. 107 Art. 1.071. La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe

los fines que aquélla tuvo em mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos por la buena fe, la moral y las buenas costumbres.

108 Art. 1.258. Los contratos se perfeccionan por el mero consentimiento y desde entonces obligan, no sólo al cumplimiento de lo expressamente pactado, sino también a todas lãs consecuencias que, según su naturaleza, sean conformes a la buena fe, al uso y a la ley.

109 Art. 1.337. As partes, no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem comportar-se segundo a boa-fé.

110 Art. 1.375. O contrato deve ser executado segundo a boa-fé. 111 Art. 227°. Culpa na formação dos contratos. 1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na

formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.

101

vinculação inicial à vontade ou à ciência do sujeito, vale dizer, superou o seu

caráter inicial eminentemente subjetivo, e passou a ser enfocada sob um

ângulo objetivo, como uma norma comportamental, passando a ser tratada

como uma conduta a ser observada por esse mesmo sujeito. Dito em outras

palavras, a boa-fé deixa de ser apenas um elemento interno, íntimo e

psicológico do sujeito do negócio jurídico, passando a ser considerada

também em seu aspecto de elemento externo, vale dizer, como uma norma que

estabelece comportamentos que devem ser observados por tal sujeito.

Como acertadamente observa De Los Mozos112, referindo-se ao

artigo 1.258, do Código Civil espanhol, a boa-fé passa a ser colocada em

plano idêntico ao da lei, o que significa que se pretendeu atribuir à mesma

uma função dispositiva, cuja natureza é objetiva, desvinculando-se da vontade

do sujeito. A arguta observação pode ser com tranqüilidade estendida para

diversos dispositivos legais existentes em outros ordenamentos.

Assim, por exemplo, no Código Civil brasileiro os artigos 187 e

422 claramente indicam a boa-fé como uma norma de comportamento, capaz

de estabelecer limites para a conduta do sujeito que exerce um direito

subjetivo ou que, de modo mais específico, figura como sujeito de um negócio

jurídico. Trata-se, portanto, como mencionado no parágrafo anterior, de um

elemento externo ao sujeito, e por isso desvinculado de sua vontade, vale

dizer, tendo caráter objetivo e despido de subjetividade.

E não se pode deixar de observar que o legislador brasileiro foi

ainda um pouco mais longe, e expressamente referiu-se ao princípio da boa-fé,

no artigo 422, sendo certo que andou muito bem ao fazê-lo. É que a boa-fé, de

fato, mais do que uma norma comportamental de aplicação específica para o

campo dos contratos, se entranha pelo ordenamento jurídico em geral, 112 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 45.

102

balizando os negócios jurídicos nos mais diversos campos do direito, inclusive

espraiando-se para fora do direito privado.

É nesse sentido a lição de Américo Plá Rodriguez113, ao

mencionar que “a boa-fé não é uma norma – nem se reduz a uma ou mais

obrigações – mas é um princípio jurídico fundamental, isto é, algo que

devemos admitir como premissa de todo o ordenamento jurídico. Informa a

sua totalidade e aflora de maneira expressa em múltiplas e diferentes normas,

ainda que nem sempre se mencione de forma explícita... Por tal razão, pode-

se dizer que este princípio está dotado de singular plasticidade”.

Parece-nos já completamente superada, portanto, a doutrina

segundo a qual “a proteção da boa-fé se veio a impor, excepcionalmente, ao

legislador, só se atende a ela onde há regra jurídica que a tutela. Não se deve

ir além das espécies previstas, a título de interpretação das regras jurídicas

113 Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho , pp. 420-421. Mas não se pode deixar, aqui, de cometer a ousadia de fazer pequeno reparo à lição do festejado jurista uruguaio. É que, embora concordemos plenamente com a idéia de generalidade expressa no texto transcrito, ou seja, com o sentido de que a boa-fé se estende por todo o ordenamento jurídico, e não apenas pelo campo mais estreito do direito obrigacional – extensão essa, aliás, defendida expressamente em diversas passagens do presente estudo – parece-nos equivocada e já superada a distinção feita pelo mestre entre norma e princípio. Com efeito, para sustentar que a boa-fé é um princípio, começa Plá Rodriguez por afirmar que “a boa-fé não é uma norma ”. Ocorre que os princípios nada mais são do que um tipo de norma, ou seja, “ los principios generales no son sino normas fundamentales o generalísimas del sistema, las normas más generales... son normas como todas las otras”. Cf. Norberto Bobbio, Teoría General del Derecho, p. 239. No mesmo sentido o entendimento de Naria Helena Diniz, que ao se referir às discussões doutrinárias sobre se os princípios gerais do direito podem ou não ser considerados como norma, afirma de modo enfático que é “veementemente, contra a opinião que não os considera como normas”. Cf. Maria Helena Diniz, As lacunas no Direito , p. 231. Para Ricardo Lorenzetti, a doutrina moderna é unânime em afirmar que os princípios são normas, embora reconheça que não é simples determinar a que tipo de normas pertencem. Prossegue e conclui o ilustre Professor da Universidade de Buenos Aires dizendo que se trata de normas fundamentais, uma vez que os princípios apresentam todas as funções que podem ser atribuídas às normas fundamentais, dentre as quais destaca: a) função integradora (preenchimento de lacunas); b) função interpretativa (orientação ao intérprete); c) função delimitadora (imposição de limites às atuações legislativa, jurídica e negocial); d) função fundante (um valor que informa o ordenamento e permite criações pretorianas). Cf. Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado , pp. 317 -319. Em sentido contrário, contudo, afirma Oliveira Ascensão, de modo categórico, que “os princípios não são regras”, esclarecendo, em nota de rodapé, que usou o termo regras no mesmo sentido de normas. Cf. José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral , p. 418.

103

especiais”114. Muito pelo contrário, há uma claríssima tendência de contínua

expansão da seara na qual a proteção à boa-fé se mostra aplicável, abarcando

vorazmente cada nova situação que venha a surgir, de modo a dominar todo o

espectro da ciência jurídica.

Com efeito, como veremos nos dois itens seguintes (vejam-se,

adiante, os itens 1.7 e 1.8), a boa-fé também serve como fonte normativa em

relação ao direito público (por exemplo, nas relações da Administração

Pública com os administrados) e nos demais ramos do direito privado, como o

Direito do Trabalho, o Direito de Família, o Direito das Sucessões, etc.

E em todos esses campos do ordenamento jurídico, na verdade, a

boa-fé desenvolve múltiplas funções (sobre essa multifuncionalidade da boa-

fé veja-se, adiante, o item 1.8), atuando não apenas como uma norma em si

mesma, mas também como ponto de referência para o legislador, que para

diversas situações costuma elaborar normas legais que lhes são

especificamente destinadas (é o caso, por exemplo, dos artigos 170115 e 473,

parágrafo único116, ambos do Código Civil brasileiro).

Pode-se, igualmente, encontrar a boa-fé como parâmetro a ser

observado pelo juiz, que no caso concreto, ao extrair a vontade das partes a

partir do conteúdo do negócio jurídico, deverá examinar-lhe as cláusulas e o

comportamento à luz do princípio da boa-fé, ou, ainda, pelo intérprete da

norma legal ou contratual, que haverá de completar-lhe as lacunas a partir da

114 Nesse sentido, em lição que, no passado, já foi admitida como correta, mas que hoje, ao nosso sentir, se encontra irremediável e inegavelmente superada, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 1, p. 193. 115 Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o

fim, a que visavam as partes, permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade. 116 Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera

mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos

consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

104

consideração sobre o que seria o comportamento de boa-fé para aquela

situação, etc.

Assim, por exemplo, sabendo-se que os sujeitos, em um

determinado negócio jurídico, jamais conseguirão prever todas as

circunstâncias fáticas que podem surgir na vida real, é precisamente a partir da

consideração e da aplicação do princípio da boa-fé que o juiz poderá sopesar

quais são as normas mais adequadas para reger essa situação inesperada,

concretizada a partir de circunstâncias que não haviam sido previstas pelos

sujeitos. Um exemplo típico, que bem espelha essa possibilidade, é o da

conversão do negócio jurídico117 nulo, que no nosso ordenamento jurídico

encontra previsão expressa no artigo 170, do Código Civil, e que vale tanto

para a conversão própria ou substancial quanto para a imprópria ou formal118.

No sentido mencionado no parágrafo anterior, considere-se, à

guisa de ilustração, a hipótese de um contrato de compra e venda de um

imóvel cujo valor supera trinta vezes o salário mínimo, sendo que o contrato

foi celebrado pelas partes mediante instrumento particular. A toda evidência o

contrato será nulo, uma vez que foi descumprida a formalidade expressamente

exigida pela norma legal, como se vê da combinação entre os artigos 108 e

166, IV, ambos do Código Civil brasileiro.

117 Nesse sentido, José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe , p. 47. 118 Explica Orlando Gomes que a conversão própria se dá nesse caso do exemplo apresentado no texto acima, ou seja, quando as partes celebram um negócio que vem a se revelar nulo, em virtude de defeito de forma, mas que apresenta as características de um outro negócio, que também atende ao que as partes pretendiam e cujas exigências formais foram atendidas; a conversão imprópria, por sua vez, ocorre quando um negócio pode ser celebrado por diversas formas, e as partes resolvem adotar a mais rigorosa de todas, mas o fazem de modo defeituoso, podendo, contudo, ser considerado o negócio como tendo sido celebrado pela forma menos rigorosa. Seria o caso, por exemplo, da compra e venda de um imóvel cujo valor não supera 30 vezes o salário mínimo, e que por isso poderia ter sido celebrada mediante instrumento particular (art. 108, do Código Civil), mas os contratantes resolveram fazê-lo por escritura pública. Esta, no entanto, vem a se revelar nula (por ter sido afastado o tabelião, por exemplo), mas mesmo assim o contrato será válido como se tivesse sido celebrado mediante instrumento particular. Note-se que não há uma conversão, propriamente dita (e por isso é que se denomina de imprópria), pois os efeitos que serão gerados serão os do próprio contrato que as partes queriam celebrar, apenas com a consideração de outra forma. Cf. Orlando Gomes, Contratos, p. 217.

105

No entanto, é bastante razoável que se entenda que efeito

semelhante ao que as partes pretendiam obter, com o contrato de compra e

venda que se mostra nulo, poderia ser obtido pela celebração do contrato de

promessa de compra e venda, sendo que este último pode ser validamente

celebrado mediante instrumento particular.

Logo, nessas condições, se do instrumento particular utilizado

para a celebração do contrato nulo constarem todos os elementos necessários,

a compra e venda, embora nula, deverá ser convertida em contrato de

promessa de compra e venda, pois se deverá entender que assim teriam

procedido as partes, caso tivessem desde logo previsto a ocorrência da

nulidade contratual.

Em outras palavras, na situação acima descrita entender-se-á que

as partes celebraram, validamente, uma promessa de contratar, futuramente, a

compra e venda do imóvel, o que ocorrerá quando for lavrada a escritura

pública referente ao negócio e efetuado o necessário registro junto ao Cartório

do Registro Imobiliário.

Da mesma forma, ainda no que se refere à mencionada conversão

do negócio jurídico, vejamos situação onde a mesma poderia ocorrer fora do

campo das obrigações, confirmando, portanto, o que acima dissemos, no

sentido de que a regência do princípio da boa-fé se espraia por todo o direito,

não se limitando apenas ao campo das relações obrigacionais.

Suponha-se que uma determinada pessoa, ao elaborar seu

testamento, decide fazê-lo com uma única disposição testamentária, através da

qual decide legar a um amigo uma jóia de pequeno valor, que é de seu uso

pessoal e que sempre foi muito admirada pelo amigo que agora está sendo

indicado como beneficiário.

106

O testamento, no entanto, foi celebrado pela forma particular, sem

que estivesse presente qualquer testemunha. Ou, então, se testemunhas havia,

suponha-se que a disposição de última vontade tenha sido escrita em língua

estrangeira, sendo que esta não é compreendida pelas testemunhas que

presenciaram o ato. Em qualquer desses casos, a toda evidência o testamento

será nulo, por ter sido descumprida solenidade essencial, conforme prevêem

os artigos 1.876, § 1°, e 1.880119, ambos do Código Civil brasileiro.

Apesar da nulidade, vale dizer, embora nula seja essa disposição

de última vontade enquanto testamento, a mesma poderá ser aproveitada como

codicilo, por atender plenamente à vontade do testador e conter os requisitos

essenciais do mesmo, como se verifica no artigo 1.881 120, do mesmo Código

Civil.

Como se vê, portanto, nas duas situações acima exemplificadas, o

que se tem é a utilização do princípio da boa-fé como uma forma de regular

situações que os sujeitos não haviam previsto inicialmente, por ocasião da

celebração do negócio jurídico, e com isso se consegue quebrar o rigor da lei

pensada em abstrato, interpretando-a de modo mais maleável para que, sem

causar qualquer prejuízo a quem quer que seja e sem violação de norma de

ordem pública, sejam aproveitadas as vontades desses mesmos sujeitos.

Nessa função de integração da vontade das partes, ou seja, nesse

papel de criar as normas que as partes, ao ajustarem sua vontade negocial,

119 Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante proces so

mecânico. § 1°. Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por

quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as

testemunhas a compreendam. 120 Art. 1.881. Toda pessoa capaz de testar poderá mediante escrito particular seu, datado e assinado,

fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal.

107

deixaram de criar, a boa-fé desempenha relevante papel em relação aos

contratos inominados. Convém recordar que o nosso Código Civil, em seu

artigo 425, diz ser lícito às partes celebrar contratos atípicos, desde que

respeitadas as normas gerais fixadas na lei. Ora, em se tratando de contrato

que não recebeu tratamento legislativo específico, torna-se mais provável que

as partes contratantes deixem de regular alguns dos desdobramentos do

mesmo, e por essa razão será necessário que se faça o complemento das

normas contratuais, ou seja, a sua integração, o que será feito com esteio no

princípio da boa-fé.

Por outro lado, em relação à interpretação dos contratos (e dos

negócios jurídicos em geral, por isso que a regra, acertadamente, foi inserida

na parte geral do Código Civil), a boa-fé representa importantíssimo critério a

ser observado pelo intérprete. Aliás, não se pode deixar de observar que o

Código Civil, de modo expresso, determinou que a interpretação dos negócios

jurídicos (em geral, repete-se, e não apenas os contratos) seja feita conforme a

boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113). E, esclarecendo em

parte o significado de tal disposição, diz o artigo seguinte, 114, que os

negócios jurídicos benéficos devem ser interpretados restritivamente121.

121 Não se pode deixar de observar o quanto o nosso Código Civil foi econômico, em relação às regras de interpretação do negócio jurídico. No entanto, parece-nos que também não se pode deixar de observar o exagero que se verifica em alguns Códigos, que traçam de modo minucioso as regras de interpretação, de certo modo engessando a atividade do juiz. É o caso, por exemplo, do Código Civil colombiano, que chega ao ponto de apresentar o conceito de várias palavras, em detalhes mínimos. Assim, os artigos 28 e 29, do referido Código, estabelecem que: Articulo 28. Las palabras de la ley se entenderán em su sentido natural y obvio, según el uso general

de las mismas palabras; pero cuando el legislador las haya definido expressamente para ciertas materias, se les dará en éstas su significado legal.

Articulo 29. Las palabras técnicas de toda ciencia o arte se tomarán en el sentido que les den los que profesan la misma ciencia o arte; a menos que aparezca claramente que se han formado en sentido diverso.

Por sua vez, o artigo 33, em um verdadeiro e claro exemplo de disposições legais supérfluas, estabelece que: Articulo 33. Las palabras hombre, persona, niño, adulto, y otras semejantes que en su sentido general

se aplican a indiviuos de la especie humana, sin distinción de sexo, se entenderán que comprenden ambos

108

Ocorre que a boa-fé, enquanto norma de conduta, impõe aos

sujeitos de um negócio jurídico um comportamento leal, honesto, solidário,

cooperativo, etc. (veja-se, logo adiante, neste mesmo item, a abordagem mais

detalhada dessas características), e que se mostre coerente com o que poderia

ser esperado para aquela mesma situação.

Ora, em se tratando de um negócio gratuito, não seria razoável

esperar-se que o sujeito que concordou em sofrer um sacrifício patrimonial,

sem nada receber como contraprestação, ainda tivesse que suportar a extensão

do seu sacrifício por força de interpretação ampliativa de sua vontade, pois

não se pode entender que o comportamento desse sujeito, esperado para tal

situação, seja no sentido de aumentar ainda mais o seu próprio sacrifício,

estendendo-o para o que não foi expressamente mencionado. É que não se

tem, no caso, “a comutatividade, o equilíbrio, razão pela qual a interpretação

há que ser diversa da geral”122.

Assim, por exemplo, suponha-se que em um contrato de locação,

o fiador do locatário assumiu a obrigação de pagar os aluguéis, caso o

afiançado não o faça. Ao interpretar tal ajuste, o intérprete deverá concluir que

o fiador se obrigou ao pagamento dos aluguéis e dos respectivos acessórios

(uma vez que estes, como se sabe, salvo disposição legal em contrário, devem

seguir a mesma sorte do principal), tais como os juros, a cláusula penal, etc.

No entanto, não se poderá estender a obrigação do fiador, por exemplo, para o

pagamento da taxa condominial ou da conta do serviço de energia elétrica.

Cabe observar que, em relação especificamente à fiança, o artigo

819, do Código Civil, determina que à mesma não se dê interpretação

sexos en las disposiciones de las leys, a menos que por la naturaleza de la disposición o el contexto se limiten manifiestamente a uno solo.

Por el contrario, las palabras mujer, niña, viuda, y otras semejantes que designan el sexo femenino, no se aplicarán a otro sexo, a menos que expressamente la extienda la ley a él.

122 Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 318.

109

extensiva. Mas veja-se que a fiança, em regra, apresenta-se como negócio

jurídico gratuito, e por esta razão se pode afirmar que o artigo 819 nada mais é

do que uma aplicação concreta e específica do supramencionado artigo 114, e

por isso não se poderia interpretar o negócio jurídico da fiança de modo a

ampliar a responsabilidade do fiador, que deverá ser restringida àquilo que o

mesmo expressamente se comprometeu.

Acima dissemos que o artigo 114 esclarece apenas em parte o

significado do artigo 113, ambos do Código Civil pátrio. É que o referido

artigo apenas se refere ao significado da interpretação conforme a boa-fé em

relação aos negócios gratuitos, mas nada diz em relação aos negócios jurídicos

onerosos. Quanto a estes, portanto, vejamos o que seria essa interpretação

conforme a boa-fé.

Em relação aos negócios benéficos, como vimos, determina a

norma legal que o intérprete não amplie ainda mais o sacrifício patrimonial,

uma vez que nada é oferecido em troca a quem o sofre. Nos negócios jurídicos

onerosos, contudo, outra é a situação, pois todos os envolvidos nos negócios

estarão sofrendo uma redução patrimonial, mas, ao mesmo tempo, cada um

deles também estará recebendo, em troca, uma vantagem oferecida pelo outro

envolvido. Nessas condições, portanto, o que se mostra razoável esperar do

comportamento de cada um deles – e que, a toda evidência, se mostra mais

consentâneo com a solidariedade social – é que esteja sendo buscado o

equilíbrio entre as prestações recíprocas.

Assim, surgindo em um negócio jurídico oneroso uma situação de

conflito, sendo que a partir das cláusulas negociais são possíveis duas ou mais

interpretações distintas, deverá o intérprete, sempre, optar por aquela que

preserve de modo mais adequado o equilíbrio entre as prestações, ou seja,

deverá prevalecer a interpretação que melhor assegure a reciprocidade dos

110

interesses envolvidos, aproximando os valores das prestações recíprocas, pois

é desse modo que estará sendo atendida a determinação legal de interpretar o

negócio conforme os ditames da boa-fé.

Em defesa do sentido suso mencionado, em relação aos contratos

onerosos – e, portanto, complementando o parcial tratamento legal dado ao

tema – pode-se apontar o respeitado e respeitável magistério de Caio Mário da

Silva Pereira123. Aponta o eminente jurista das Minas Gerais que “os contratos

a título gratuito devem interpretar-se da maneira menos onerosa ao obrigado

(favor debitoris), enquanto que os onerosos se entenderão em termos que

realizem equânime temperamento dos interesses em jogo”.

Também se colhe idêntica regra da lição de Orlando Gomes124.

Examinando a interpretação dos contratos, dizia o saudoso mestre baiano que

são três os princípios que dominam a interpretação do contrato: o da boa-fé, o

da conservação do contrato e o da extrema ratio. Em relação a este último,

esclarecia o ilustre jurista que a extrema ratio é uma regra que se inspira na

necessidade de atribuir ao contrato, por mais obscuro que seja, algum

significado. Assim, “quando a sua obscuridade permanece a despeito da

aplicação de todos os princípios e regras de interpretação, recorre o

intérprete ao critério extremo que o orienta no sentido de entendê-lo menos

gravoso para o devedor, se gratuito, e de que realize eqüitativo equilíbrio

entre os interesses das partes, se a título oneroso”.

No mesmo sentido, ainda, pode-se indicar a lição de Maria

Helena Diniz125, para quem “nos contratos gratuitos, a interpretação deve

proceder-se no sentido de fazê-lo o menos pesado possível para o devedor, e,

123 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. III, p. 38. 124 Orlando Gomes, Contratos, p. 228. 125 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 3 , p. 75.

111

nos onerosos, no de alcançar um equilíbrio eqüitativo entre os interesses das

partes”.

Pensamos, contudo, que pequeno reparo pode ser feito nas lições

dos mestres acima mencionados, uma vez que se limitaram a apontar as regras

interpretativas em relação aos contratos, quando na verdade essas mesmas

regras, como já vimos supra, são aplicáveis a todos os negócios jurídicos em

geral, e tanto assim que constam na parte geral do nosso Código Civil, e não

na parte referente aos contratos.

Assim, pode-se com tranqüilidade apontar que essas mesmas

regras também seriam aplicáveis, por exemplo, às declarações unilaterais de

vontade, escapando, pois, aos limites mais estreitos da seara exclusivamente

contratual. Contudo, o que na prática se verifica é que, quase sempre, sua

aplicação está ligada à matéria contratual, sendo por isso plenamente

compreensível o motivo do restritivo conceito apresentado pelos ilustres

juristas citados.

Antes de prosseguirmos, pensamos que se mostra adequado, neste

ponto, chamar a atenção para um aspecto que será visto em maiores minúcias

mais à frente (especificamente no item 1.8). É que realçamos, acima, os papéis

de integração e de interpretação, desempenhados pela boa-fé, ou seja, a

aplicação do princípio para complementar as normas que as partes deixaram

de criar ou, então, para aferir qual é o sentido que se deve dar às declarações

de vontade. No entanto, deve-se ressaltar que o princípio da boa-fé (na

realidade, os princípios em geral) também funciona como norma inclusive em

relação a temas sobre o qual as partes contratantes expressamente trataram.

Assim, como veremos no supramencionado item 1.8, a boa-fé

também funciona como elemento de controle do conteúdo convencional, ou

seja, as manifestações explícitas das vontades dos sujeitos dos negócios (e não

112

apenas as lacunas, portanto) também se sujeitam à aplicação do princípio da

boa-fé.

Outro aspecto importantíssimo, no que diz respeito ao conteúdo

normativo da boa-fé, e que também se encontra indicado no artigo 113, do

Código Civil, é o que se refere aos “usos do lugar” onde foi celebrado o

negócio jurídico. Com efeito, determina o referido artigo do Diploma Civil

que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos

do lugar de sua celebração. Qual o significado dessa determinação? O que

pretende a norma legal, ao determinar que a interpretação se dê conforme os

usos? Temos, aí, dois elementos distintos, a “boa-fé” e os “usos”, a serem

isoladamente considerados pelo intérprete? Vejamos.

Na realidade, há uma ligação indissolúvel entre a boa-fé e os

usos, sendo estes um modo de concretização daquela, uma vez que esses usos

do lugar se apresentam como elemento fundamental para o surgimento da

confiança (cuja tutela, em última análise, se constitui em objeto da boa-fé,

como veremos adiante), ou seja, é bastante razoável que cada uma das partes

envolvidas no negócio jurídico crie a justa expectativa de que a outra irá se

comportar de acordo com o que se mostra usual no lugar, para os negócios

daquela mesma espécie, sendo certo que “a expectativa... tem relevância

jurídica”126.

Assim, ao examinar um determinado negócio jurídico, o

intérprete deverá considerar que o sentido da cláusula negocial, caso esta não

esteja clara, é o que melhor se adequa aos usos e costumes do lugar, e que

estará de boa-fé o sujeito que se comportou conforme os mesmos, pois essa

atuação corresponde plenamente às expectativas da outra parte. Ao contrário,

126 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria Cristina De Cicco), p. 127.

113

estará ferindo a boa-fé o sujeito que, por agir em desacordo com o que se

mostra usual para aquele tipo de negócio, surpreende negativamente a outra

parte e vem a frustrar-lhe as expectativas.

É nesse sentido, aliás, a lição de Savigny127, que ao tratar da boa-

fé em relação aos contratos (Treu und Glauben, do direito alemão), aponta que

a interpretação da mesma não é uma questão de sentimentos nobres, de

generosidade ou de auto-sacrifício, sendo que o que se deve fazer, prossegue o

ilustre jurista alemão, para que a mesma se torne compreensível, é a

observação dos usos, pois é sobre estes que repousa a confiança indispensável

dos outros.

No mesmo sentido, aponta Oliveira Ascensão128, referindo-se

especificamente ao artigo 113 do Código Civil brasileiro, que “para saber o

que a parte quis dizer, é necessário enquadrar a declaração pelos usos:

porque um destinatário médio também se determinará por estes no

entendimento do que lhe é dirigido... para se construir mentalmente o que

seria a impressão do destinatário, é preciso entrar em conta com os usos.

Sempre que não houver na posição do declaratário real nada que introduza

em sentido contrário, um destinatário médio determinar-se-á justamente pelos

usos no entendimento da declaração”.

Aliás, não é demais observar que o artigo 113, do nosso Código

Civil, inspirou-se no artigo 157, do Código Civil alemão, sendo que este foi

muito mais preciso do que o nosso, ao fazer essa relação entre a boa-fé e os

usos129. Com efeito, menciona o § 157, do BGB, que “Os contratos devem ser

interpretados como exige a boa-fé, atendendo-se aos usos e costumes”. Como 127 Friedrich Carl von Savigny, Sistema do direito romano atual (trad. Ciro Mioranza), p. 108. 128 José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, p. 282. 129 Embora, por outro lado, tenha sido menos preciso ao se referir ao campo de atuação dessa interpretação conforme a boa-fé, que foi restrito apenas aos contratos, o que facilmente se explica, como já vimos, pela origem contratual dos estudos da boa-fé como norma de conduta.

114

se vê, o dispositivo do código tedesco deixa claro que as exigências da boa-fé

são aquelas que atendem aos usos e costumes.

E o artigo 242, do mesmo Código Civil alemão, é ainda mais

claro e explícito (embora formalmente restrito ao direito obrigacional) acerca

dessa relação de continente e conteúdo que existe entre a boa-fé a os usos, ao

estabelecer que “o devedor está obrigado a executar a prestação como a boa-

fé, em atenção aos usos e costumes, o exige”.

E não se pode deixar de observar que essa vinculação explícita,

entre a boa-fé e os costumes, mostra-se de fundamental importância para

possibilitar a atualização do direito, que pode assim, mais facilmente, adaptar-

se às novas necessidades da sociedade, ou seja, através dessa cláusula geral o

sistema jurídico permanece aberto para que possa continuar a atender as

exigências crescentes do comércio jurídico130. Não é demais apontar que “a

boa-fé, dentro da dogmática jurídica, vem estabelecida através de cláusulas

gerais”131.

Aliás, as cláusulas gerais132, como já decidiu o Tribunal

Constitucional da Alemanha, funcionam como meio de introdução dos direitos

e valores fundamentais, trazidos pela Constituição Federal, nos diversos

130 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 105-106, n° 375. 131 Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 76. 132 A técnica legislativa das cláusulas gerais, embora já aparecesse, em relação à boa-fé, no § 242, do BGB, desde o final do século XIX, ganhou especial relevo e passou a ser largamente empregada a partir da segunda metade do século XX, possibilitando à jurisprudência o desenvolvimento da regulamentação legal e a sua adaptação às diversificadas circunstâncias da vida. Além disso, essas cláusulas gerais permitem que se dê uma certa abertura aos sistemas legislativos fechados, deixando ao juiz, no exame do caso concreto, a possibilidade de extrair, a partir do negócio jurídico, conseqüências que não estavam previstas nas normas legais e nem nas convencionais, integrando, restringindo, ampliando ou mesmo modificando o conteúdo do negócio, independentemente das vontades dos sujeitos envolvidos. Cf. José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999, p. 193. No dizer de Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro , p. 80, “são estas cláusulas [gerais] que dão mobilidade ao sistema jurídico, alçando o juiz a uma posição extraordinária, para preencher lacunas com os valores que se encontram de forma abstrata nas coisas”.

115

domínios do direito133. Ou seja, o texto constitucional consagra a sua tábua de

valores e as escolhas fundamentais feitas pelo constituinte, e esses valores

serão obrigatoriamente observados na interpretação e na aplicação das

cláusulas gerais que se encontram espalhadas pela lei ordinária, em todos os

ramos do direito, e desse modo funcionam como uma linha diretriz a ser

seguida pelo intérprete e aplicador.

Veja-se que não se trata de negar a existência dos ramos setoriais

do direito, mas sim de lhes conferir unidade sistemática. Em outras palavras, e

dirigindo a afirmação para o Direito Civil, é evidente que este continua a

existir, mas a mudança – bastante significativa, ressalte-se – é que os seus

pontos de referência, antes localizados no Código Civil, foram deslocados

para a Constituição Federal134, cuja tábua axiológica, ao ser obrigatoriamente

observada na elaboração, na interpretação e na aplicação de todos os “ramos

setoriais” do direito, reúne-os e lhes confere a consistência sistemática135-136.

133 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 122, n° 439. 134 No dizer de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais , p. 70, os direitos fundamentais têm sua origem ligada à defesa do indivíduo contra a ingerência excessiva do Estado, mas passaram a desempenhar relevante papel em relação à convivência social entre os particulares, pois é no Direito Constitucional que se encontra o conjunto de valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto de convivência coletiva, função que um dia já foi desempenhada pelo Código Civil. 135 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 13. E, ainda mais, os princípios fundamentais e os valores erigidos pela Constituição Federal deverão se revezar no topo da escala hierárquica, só podendo ser decidido em cada caso concreto qual deles é que ocupa essa posição de supremacia, vale dizer, a hierarquização só poderá ser feita de modo tópico, conforme as peculiaridades do problema que estiver sendo analisado. Nesse sentido, parece-nos bastante adequado o conceito de “sistema jurídico como uma rede axioló gica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição”. Cf. Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito , p. 54. E esclarece o professor gaúcho que usou propositadamente a palavra “rede”, para sugerir conexões neuroniais, de modo a indicar que o sistema jurídico “funciona” por inteiro, ainda quando se concentrem atividades nesta ou naquela parte. 136 Em se tratando de um sistema, contudo, convém assinalar que não existem atividades isoladas, localizadas unicamente em setores estanques, por isso que todas as frações do sistema guardam conexão entre si. Resulta daí que qualquer atividade interpretativa resulta, direta ou indiretamente, na aplicação de princípios, regras e valores, componentes da totalidade do sistema juríd ico. Assim, tem-se que cada um dos preceitos deve ser sempre visto como uma parte viva do todo, pois apenas diante do exame do conjunto de

116

Tal mudança implicou na introdução, em todos os campos do

direito, mas no Direito Civil em particular, dentro do que nos interessa, de

valores fundamentais, tais como a dignidade humana, a solidariedade social,

etc., o que se mostrou de fundamental importância para a expansão da boa-fé,

como abordaremos logo adiante, no próximo subitem.

Nos temas acima tratados, referimo-nos à boa-fé como modo de

interpretação e de integração da vontade negocial, declarada pelas partes em

um negócio (ou que ficou obscura nesse mesmo negócio). Antes, contudo,

havíamos abordado essa mesma boa-fé como atenuante de formalismos legais.

A boa-fé, dessarte, tanto pode ser invocada para tornar menos rígida alguma

exigência legal referente às formalidades dos negócios jurídicos, quanto para

integrar a norma legal que se mostra lacunosa, ou ainda para dar suporte aos

atos da vontade.

Dirigindo tais conceitos especificamente em relação ao venire

contra factum proprium, desde logo se adianta que é o cotejo com um

primeiro comportamento, considerado à luz da boa-fé, que permitirá aferir se

o segundo comportamento teve o efeito de frustrar a confiança que havia sido

gerada no outro sujeito a partir do primeiro, vale dizer, se o venire (o segundo

comportamento) de fato contrariou, injustificadamente, a expectativa criada a

partir do factum proprium (o primeiro comportamento). Em relação à

abordagem mais completa e minuciosa sobre o venire contra factum

proprium, veja-se, adiante, o exame feito no item 2.3.

Embora a boa-fé, como acabamos de mencionar, seja princípio

que encontra aplicação em relação a todos os campos do direito, é certo que,

na prática, sua mais freqüente seara de aplicação, a toda evidência, se dá no

todo o ordenamento é que se pode melhor equacionar qualquer caso a ser resolvido. Cf. Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito , p. 70.

117

campo das relações obrigacionais, principalmente quanto aos contratos, onde,

aliás, como vimos acima, teve origem a consideração da boa-fé como uma

norma de conduta a ser observada pelos contratantes.

E no que se refere a essa aplicação da boa-fé quanto aos

comportamentos dos sujeitos dos contratos em geral, cumpre ainda observar

que, em se tratando de princípio que se mostra aplicável a todo o direito, não

há, nos contratos, um momento específico ao qual esteja ligada a boa-fé como

norma comportamental.

Com efeito, parece bastante claro que, se toda a seara jurídica está

permeada pelo princípio da boa-fé, pode-se apontar como decorrência

imediata dessa impregnação o fato de que todas as etapas contratuais, e

mesmo aquelas que antecedem o aperfeiçoamento ou sucedem a extinção de

cada contrato, sendo momentos que também são regidos pela normatização

jurídica, estarão sob a regência desse mesmo princípio, vale dizer, dessa

mesma norma que se apresenta como originária da boa-fé.

Dito de modo mais claro, o que se pode afirmar é que o princípio

da boa-fé deverá ser obrigatoriamente observado, em relação à conduta dos

contratantes, não apenas no momento em que o contrato vem a ser celebrado,

mas ao longo de toda a sua execução, caso esta se dê de modo diferido no

tempo.

E, ainda mais do que isso, o princípio da boa-fé deverá ser

também observado ainda mesmo quando o contrato nem ao menos foi

celebrado, mas os sujeitos já se aproximaram um do outro em virtude da

possibilidade de celebração da avença. Ainda não são contratantes, pois

contrato ainda não existe, mas já terão os respectivos comportamentos regidos

pela conduta ditada pela boa-fé.

118

Da mesma forma, embora o contrato já tenha sido integralmente

cumprido, e, portanto, já esteja extinto, é possível que, mesmo depois dessa

extinção, ainda ocorram situações cujas origens podem ser encontradas nesse

mesmo contrato, e por isso continuarão os comportamentos dos sujeitos a ser

regidos pelo princípio da boa-fé, embora não sejam mais contratantes, eis que

não existe mais contrato.

Nesse mesmo sentido a lição de Emilio Betti137, para quem existe

um triplo campo de observação e aplicação do princípio da boa-fé, em relação

aos contratos: a) anterior à conclusão do contrato ou à entrada em vigor do

preceito contratual, e que se trata principalmente do dever de lealdade,

impondo deveres negativos; b) obrigações concomitantes ao desenvolvimento

da relação contratual, numa extensão que não estava indicada no contrato; c)

obrigações subseqüentes ao cumprimento das prestações.

Esses comportamentos da parte, acima mencionados, nos

momentos que antecedem ao aperfeiçoamento do contrato, e também nos

momentos posteriores à extinção da avença, são as chamadas obrigações pré-

contratuais e pós-contratuais, que serão minuciosamente examinadas adiante,

especificamente no item 1.8.

Essa diversidade de momentos nos quais a boa-fé se mostra

aplicável, e mesmo a diversidade de situações que são regidas pela mesma

(em muito ultrapassando o campo das relações obrigacionais), atualmente

encontra sua razão de ser no fato de que o princípio da boa-fé, pelo menos no

nosso ordenamento jurídico, tem assento constitucional, daí sua aplicação

diversificada a todos os relacionamentos interpessoais e mesmo nas relações

137 Emilio Betti, Teoria generale delle obbligazoni, v. I, pp. 95-96. Mas esclarece o autor, na mesma obra e local, que essa classificação é apenas extrínseca, e por isso tem a falha de não distinguir entre o adimplemento da expectativa do credor e o simples dever de respeito que nasce em virtude do contato social entre duas esferas de interesses contíguos.

119

da Administração Pública com os administrados, como já comentamos

brevemente e veremos em maiores detalhes mais à frente (item 1.7).

Na realidade, o que se percebe com clareza é que a boa-fé

normativa, ao longo dos anos, tem apresentado forte caráter expansionista, ou

seja, saindo do campo dos contratos, seu habitat inicial, para ocupar todos os

ramos do direito privado e, inclusive, espraiando-se pelo direito processual e

pelo direito público. Essa expansão, ao que nos parece, se apresenta como

reflexo direto da visível constitucionalização pela qual tem passado o direito

civil138, levando alguns princípios que antes eram apenas deste a figurar no

texto constitucional, e daí a se estender a outros ramos do direito139.

Examinaremos de modo mais detalhado esse assento

constitucional da boa-fé logo adiante, no próximo e específico subitem.

Antes, contudo, convém que sejam feitas algumas considerações

sobre o conteúdo normativo da boa-fé. Acima dissemos que a boa-fé encontra

a sua aplicação, ditando as condutas a serem observadas, nos momentos que

antecedem à formação do contrato, ao longo de toda a sua execução, e mesmo

depois de sua extinção em virtude do seu cumprimento. E, ainda mais do que

138 Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp. 8-9. Mas deve-se tomar cuidado para não confundir o Direito Civil Constitucional com o simples conjunto de dispositivos sobre institutos tradicionais do direito civil (propriedade, família, casamento, etc.) que foram inseridos na Constituição Federal, pois Direito Civil Constitucional é o direito civil como um todo, no sentido de que todo ele está jungido à incidência dos valores e princípios eleitos pela Constituição Federal. Nesse sentido a advertência de Leonardo Mattietto, O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional , p. 170. Idêntica advertência é feita de modo ainda mais incisivo por Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, p. 68. Esclarece a ilustre Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que é “insuficiente constatar a mera transposição dos princípios básicos do texto do Código Civil para o texto da Lei Maior. É preciso avaliar sistematicamente a mudança, ressaltando que, se a normativa constitucional se encontra no ápice do ordenamento jurídico, os princípios nela presentes se tornaram, em conseqüência, as normas diretivas, ou normas-princípios, para a reconstrução do sistema de Direito Privado. É preciso, portanto, buscar perceber e valorar o significado profundo, marcadamente axiológico, dessa ‘constitucionalização’ do direito civil”. 139 Não assiste razão, portanto, a Beatriz Capucho, quando afirma, referindo-se ao “princípio da boa-fé lealdade”, que “questiona-se sua aplicação a outros ramos do direito”, já sendo pacífica, nos tempos atuais, a aceitação dessa extensão da boa-fé aos demais ramos do direito, inclusive o processual e o publico. Cf. Beatriz Maki Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho , p. 42.

120

isso, também comentamos que a boa-fé impõe os comportamentos a serem

seguidos não apenas no campo dos contratos, mas em todos os negócios

jurídicos em geral, inclusive espraiando-se pela seara do direito público.

Diante de tamanha amplitude, pode perguntar-se o leitor qual

seria o conteúdo dessa norma decorrente da boa-fé, capaz de atender a tal

diversidade de situações. Na realidade, convém esclarecer, não existe uma

norma única, decorrente da boa-fé, que se apresente como um padrão ou um

standard140 comportamental, mas sim uma diversidade de normas, que se

adequam e se adaptam a cada situação concreta.

Dito de outra forma, a boa-fé, na realidade, não se apresenta

como uma norma comportamental, mas sim como uma fonte de normas, cujos

conteúdos não são e nem podem ser previamente determinados, uma vez que

serão revelados apenas quando forem conhecidos os contornos da situação

concreta onde tais normas sejam chamadas a atuar.

Como já mencionamos acima (e tornaremos a examinar no

subitem seguinte), a boa-fé impõe ao sujeito a adoção de um comportamento

que respeite a esfera dos interesses jurídicos alheios e que se mostre leal e

honesto, e é certo que o significado dessa afirmação não pode ser definido em

abstrato, uma vez que apenas na situação concreta é que se poderá aferir com

precisão qual é o comportamento que se mostra adequado a essa mesma

situação.

140 Veja -se, retro, no item 1.5, em nota de rodapé, algumas observações acerca da discussão doutrinária existente sobre a natureza normativa da boa-fé ou sobre ser a mesma um standard jurídico. Nesse mesmo local indicado nos posicionamos de modo claro no sentido de que a boa-fé tem conteúdo normativo, não se apresentando como um simples standard.

121

É nesse mesmo sentido a lição de Alfonso de Cossío y Corral141,

segundo a qual, no direito moderno, a boa-fé assumiu o papel de uma fonte de

normas objetivas, cuja atuação concreta se dá mediante a aplicação de

princípios gerais, esclarecendo em seguida que isso significa que a boa-fé

pode ser entendida como uma norma geral, que se diversifica e especializa

para cada situação concreta, ou seja, cujo conteúdo será formado e

determinado em função das circunstâncias da hipótese concreta.

E é também nesse mesmo sentido que afirma De Los Mozos142,

como já vimos (veja-se, retro, o item1.5), que “la buena fe es um principio

problematico, um verdadero topos, llamado a actuar en cada momento de la

interpretación”. E, ainda com esse mesmo significado, afirmando tratar-se de

um topos subversivo do direito obrigacional, ensina Judith Martins-Costa que

“constitui a boa-fé objetiva uma norma proteifórmica, que convive com um

sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua própria

permanente construção e controle”143.

1.6.1. O fundamento constitucional da boa-fé como norma de conduta: o

princípio da solidariedade.

Acima dissemos – ainda que apenas em breves e superficiais

comentários –, repetidas vezes, que em relação aos contratos a conduta ditada

141 Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil , pp. 244-245. “...la buena fe, según hemos visto, más que un estado de ánimo subjetivo, ha llegado en nuestro derecho a significar una fuente de normas objetivas, o, si se prefiere, un complejo de normas jurídicas, que carecen de formulación positiva concreta, son reunidas bajo esta designación impropia y ocasionada a equívocos. Lo que se aspira a conseguir es que el desenvolvimiento de las relaciones jurídicas, el ejercicio de los derechos y el cumplimiento de las obligaciones, se produzca conforme a una serie de principios que la conciencia jurídica considera como necesarios, aunque no hayan sido formulados por el legislador ni establecidos por la costumbre o por el contrato; principios que están implícitos o deben estarlo en el ordenamiento positivo, que tienen carácter general, pero que exigen una solución distinta en cada caso concreto”. 142 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 36-37. 143 Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, p. 413.

122

pela boa-fé se impõe não apenas ao longo da execução do mesmo, mas antes

mesmo de ter se aperfeiçoado o ajuste e ainda depois que o mesmo já foi

integralmente cumprido, nas fases pré e pós-contratuais. E, ainda mais, tal

comportamento não se impõe apenas em relação aos negócios jurídicos que se

situam dentro do campo das obrigações, mas em relação a todos os negócios

jurídicos em geral.

Trata-se, portanto, de um princípio fundamental que se espalha e

se estende por todos os ramos do ordenamento jurídico. Nas precisas palavras

de Guillermo Figueroa144, Professor Emérito da Universidade de Cartagena

(Colômbia), “la buena fe es un principio funddamental que se debe admitir

como supuesto de todo ordenamiento jurídico; informa la totalidad de él y

aflora de modo expreso en múltiples y diferentes normas aun que no se le

mencione en forma expresa”.

Essa onipresença da boa-fé decorre de seu assento constitucional,

como passaremos a demonstrar em seguida, desde logo alertando que, tendo

em vista buscarmos o apoio do texto constitucional positivado, faremos

referência específica à Constituição Federal entre nós vigente, especialmente

quanto ao que dispõe os artigos 1°, III, e 3°, I, da nossa Lex Mater.

Com efeito, em nosso ordenamento jurídico a necessidade de

observância de um comportamento conforme os ditames da boa-fé pode ser

com tranqüilidade extraída a partir dos dispositivos indicados, que se referem

à dignidade da pessoa humana e à solidariedade social, respectivamente,

ambas explicitamente listadas dentre os objetivos fundamentais da nossa

República Federativa.

A questão encontra seu apoio no fato de que a boa-fé, enquanto

norma de conduta, engloba um comportar-se de modo honesto, com lealdade, 144 Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo , p. 44.

123

do modo como legitimamente poderia ser esperado, pelas outras pessoas, que

fosse o comportamento do sujeito naquelas circunstâncias. Facilmente se

percebe, portanto, que o comportamento de boa-fé leva em consideração,

dentre outros fatores, a sua repercussão na esfera jurídica alheia, ou seja, são

levados em conta os interesses de terceiros, integrantes do mesmo grupamento

social.

Em outras palavras, a atuação de boa-fé implica em uma atuação

solidária, com o escopo de promoção da dignidade e do desenvolvimento da

personalidade humanas, refletindo uma preocupação real com a construção de

uma ordem jurídica que se mostre mais sensível aos problemas e desafios que

permeiam a sociedade contemporânea, dentre os quais se inclui a busca de um

direito contratual parametrizado de tal forma que possa apresentar como seus

paradigmas, a um só tempo, o atendimento às necessidades econômicas (como

sempre foi o campo das obrigações contratuais), e o atendimento à

determinação de solidariedade social, de modo a que também se volte para a

busca da promoção da dignidade da pessoa humana145.

Mudaram, portanto, como facilmente se percebe, os paradigmas

do direito privado146, notadamente em relação ao direito contratual. Como

muito bem detectou Ricardo Lorenzetti147, quando se vive em uma sociedade

de massa, a atuação do indivíduo não é e nem pode ser indiferente quanto aos

145 Leonardo Mattietto, O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 164. 146 No dizer de Alinne Novais, “o contrato que tem o modelo liberal como seu paradigma, cujo princípio máximo é a autonomia da vontade, reflete, na verdade, um momento histórico que não corresponde mais à realidade atual. Essa concepção tradicional do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora de direitos e obrigações, formando lei entre as partes, sobrepondo-se à própria lei, bem como a visão do Estado ausente, apenas garantidor das regras do jogo, estipuladas pela vontade dos contratantes, já há muito vêm tendo seus pilares contestados e secundados pela nova realidade social que se impõe”. Cf. Alinne Arquette Leite Novais, Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 17. 147 Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 82-83.

124

demais indivíduos e aos bens públicos, e a mudança dos paradigmas decorre

precisamente da consciência dessa inter-relação. Surge a necessidade de se

considerar o “sujeito situado”, em vez do “sujeito isolado”, ou seja, de se

estabelecerem regras institucionais que possam estabelecer os parâmetros

mínimos para a organização dessa relação de um indivíduo com os demais e

com os bens públicos.

O Direito Privado não podia ficar indiferente à organização da

sociedade, e por isso começou a observar o sujeito sob essa perspectiva da

vida comunitária, e isso significou, em relação aos contratos, a ampliação da

sua função social148, eis que o contrato deixa de ser visto como ato exclusivo

das partes e passam a ser considerados os seus efeitos sobre terceiros, e por

isso o Estado intervém no conteúdo contratual. Contudo, essa intervenção

estatal, na realidade, mais do que uma restrição, implica na preservação da

liberdade individual, eis que busca a assegurar aos contratantes uma igualdade

substancial, no lugar daquela simplesmente formal149.

Essa nova realidade, imposta pela reorganização do quadro social,

já havia sido detectada há muito tempo por Emilio Betti150, que há quase meio

século já se referia às “exigências de coexistência”, das quais decorreria a 148 Segundo entendemos, a grande mudança do direito clássico para o direito moderno, em relação aos contratos, foi precisamente em relação a essa abordagem dos contratos sob a perspectiva da função social que eles têm a cumprir. Deixou-se para trás, portanto, o exame estrutural dos contratos (na verdade, dos negócios jurídicos em geral) e passou-se para uma abordagem sob o prisma da função social, ou seja, a análise dos contratos funcionalizada aos valore s fundamentais eleitos pela Constituição Federal. A mudança, portanto, não é meramente estrutural, mas antes de tudo funcional. Nesse sentido, parece-nos completamente equivocada a análise feita por Flávio Tartuce, ao afirmar que “não se pode mais aceitar o contrato com sua estrutura clássica...[pois o que estamos vivenciando é] uma modificação nas suas estruturas principais. Flávio Tartuce, A revisão do contrato pelo novo Código Civil. Crítica e proposta de alteração do art. 317 da Lei 10.406/02. In: Delgado, Mário Luiz e Alves, Jones Figueirêdo, Novo Código Civil – Questões Controvertidas, p. 130. 149 Heloisa Carpena Vieira de Mello, A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional , p. 312. 150 Emilio Betti, Cours de Droit Civil comparé des obligations, 1957-1958, p. 80. “Ces exigences de coexistence peuvent être envisagées sous un double point de vue, négatif e positif... Au point de vue positif on exige des divers membres de la communion sociale, en tant qu’associés dans le cadre d’un corps social, une solidarité qui comporte sous certaines conditions une ligne de conduite positive et maints devoirs de coopération envers les autres associés: cooperation propre à favoriser leurs intérêts”.

125

imposição, aos membros da sociedade, de um duplo comportamento, negativo

e positivo. O negativo consistiria na já tradicional abstenção de causar dano a

outrem. O positivo, no entanto, seria a exigência, em relação a cada um dos

integrantes dessa comunhão social, de uma solidariedade, decorrente do

simples fato de se integrar o quadro desse corpo social, e, sob certas

condições, um dever de cooperação em favor dos demais associados, de modo

a favorecer os interesses destes.

Pois bem, essa atenção para com os interesses das outras pessoas,

com as quais o sujeito mantém um relacionamento social, e que poderão ser

afetados em virtude de seu comportamento, nada mais é do que a preocupação

com a construção de uma sociedade solidária, mencionada expressamente no

artigo 3°, I, da nossa Constituição Federal de 1988, e tem por função a

promoção da dignidade da pessoa humana, aqui em relação ao âmbito

obrigacional151.

Nesse sentido, pode-se apontar que a presença da cláusula geral

da tutela da dignidade humana consistiu em fator decisivo para que o

legislador infra-constitucional (em todos os ramos do direito, e não apenas no

direito civil) passasse a adotar uma nova postura metodológica. Pode-se

mesmo dizer que foi atendendo às diretrizes ditadas pelo Texto Maior de 1988

que o legislador ordinário (primeiro, no Código de Defesa do Consumidor;

depois, no Código Civil), observando os princípios constitucionais

151 Sobre o tema, diz Rogério Ferraz Donnini, Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 117, que “decorrem do princípio da dignidade da pessoa humans os principios da solidariedade e da igualdade, pois são, na realidade, verdadeiros instrumentos da efetiva proteção da dignidade humana. A solidariedade, por sua vez, prevista na Constituição Federal no art. 3º, I (art. 2º da Constituição da República italiana), um dos objetivos fundamentais estampados no texto constitucional, está vinculada às cláusulas gerais, uma vez que estas buscam o comportamento solidário entre as partes, isto é, uma atitude compatível com a concepção social, seja no contrato (art. 421 do novo CC) ou mesmo na propriedade (art. 1.118, § 1º, do novo CC)”. Nota: acreditamos que o autor pretendeu se referir ao artigo 1.228, § 1º, do atual Código Civil.

126

fundamentais da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade

substancial, optou por prestigiar expressamente o princípio da boa-fé152.

No dizer de Teresa Negreiros 153, “o princípio da boa-fé, como

resultante necessária de uma ordenação solidária das relações

intersubjetivas, patrimoniais ou não, projetada pela Constituição, configura-

se muito mais do que como fator de compressão da autonomia privada, como

um parâmetro para a sua funcionalização à dignidade da pessoa humana, em

todas as suas dimensões”. Para Pietro Perlingieri154, por sua vez, “os

princípios da solidariedade e da igualdade são instrumentos e resultados da

atuação da dignidade social do cidadão”.

E não é demais recordar que a Constituição Federal não está

apenas sugerindo aos integrantes da comunhão social um comportamento que

se coadune com a busca de uma sociedade justa e solidária, mas está impondo

esse mesmo comportamento, eis que não se pode olvidar que a Constituição

Federal não é apenas um estatuto programático, não se limita apenas a definir

regras para a futura organização política, econômica, social, etc. Antes disso, a

Constituição se apresenta como um projeto de transformação da sociedade, e

para isso impõe-lhe os comportamentos que considera mais adequados às suas

próprias finalidades inovadoras155.

Por essa razão, cada um dos indivíduos que integram um mesmo

aglomerado social, independentemente do tamanho do mesmo, deverá sempre

buscar comportar-se de um modo que se mostre leal e honesto, em relação a

152 Célia Barbosa Abreu Slawinski, Breves reflexões sobre a eficácia atual da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 85. 153 Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp. 222-223. 154 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria Cristina De Cicco), p. 37. 155 Cf. Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada , p. 59.

127

cada um dos demais integrantes do mesmo grupo, vale dizer, de modo tal que

em conseqüência do seu comportamento não venham a ser

desnecessariamente prejudicados os interesses alheios, e notadamente de um

modo tal que não venham os demais integrantes desse mesmo grupo a ser

atingidos em sua dignidade humana.

Dito de modo mais claro, o que se percebe é que, cada um dos

indivíduos de um grupo social, ao adotar, em uma situação, um determinado

comportamento, dentre os vários que seriam possíveis, deverá observar de

modo cuidadoso qual será a repercussão dessa sua conduta na esfera dos

interesses alheios, para que possa ser atendida a determinação constitucional

no sentido de que seja buscada uma sociedade justa e solidária, e tal cuidado

nada mais é do que a adoção de um comportamento segundo a boa-fé.

E deve ser destacado, por ser assunto que se mostra de extrema

importância, que não se trata apenas de uma norma de conteúdo negativo, ou

seja, no sentido de serem proibidas as condutas que se mostrem desleais ou

desonestas, mas sim de uma norma que se forma, especificamente para aquela

situação, e cujo conteúdo também é positivo, vale dizer, também impõe ao

sujeito um comportamento positivo, que se mostre solidário e cooperativo, em

relação aos demais integrantes do grupo social. Nesse sentido a lição de Díez-

Picazo156, para quem:

“Si la buena fe, considerada objetivamente, em si misma, es un modelo o un

arquetipo de conducta social, hay una norma jurídica que impone a la

persona el deber de comportarse de buena fe en el tráfico jurídico. Cada

persona debe ajustar su própria conducta al arquetipo de la conducta social

reclamada por la idea imperante. El ordenamiento jurídico exige este

156 DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 139, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 37.

128

comportamiento de buena fe, no solo en lo que tiene de limitación o de veto

a una conducta deshonesta (v. gr. no engañar, no defraudar, etc.), sino

también en lo que tiene de exigencia positiva prestando al prójimo todo

aquello que exige una fraterna convivencia (v. gr., deberes de diligencia, de

esmero, de cooperación, etc.)”.

Embora de modo apenas superficial, não se mostra despiciendo

comentar que esse conteúdo positivo da boa-fé enquanto norma de conduta

acaba por também se refletir na chamada boa-fé subjetiva, que passa a

abranger não apenas a crença do sujeito de não realizar uma injustiça com seu

comportamento, mas também a crença de estar agindo de modo a promover a

justiça157.

Facilmente se conclui, portanto, como já havíamos destacado

supra, que a boa-fé como norma de conduta, vale dizer, como imposição de

balizamentos para os comportamentos do indivíduo, pode ser descrita como

sendo a concretização do princípio constitucional da solidariedade social.

Dissemos, poucas linhas acima, que esse aspecto normativo da

boa-fé, vale dizer, essa atenção solidária para com a repercussão que um

comportamento adotado por um indivíduo terá sobre os demais integrantes do

mesmo grupo social independe do tamanho deste. A questão é interessante, e

sobre ela passamos em seguida a nos debruçar.

Se, por um lado, qualquer que seja o tamanho do grupo social

será sempre possível detectar essa preocupação solidária que se relaciona com

a boa-fé, por outro, parece-nos evidente que a intensidade dessas normas de

conduta originárias da boa-fé será inversamente proporcional ao tamanho

157 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 63.

129

desse mesmo grupo, e diretamente proporcional à intensidade das relações

entre os seus membros.

Com efeito, quando se considera um grupo de maior porte, como

por exemplo a sociedade como um todo, as relações sociais entre seus

diversos indivíduos integrantes como que se diluem, esgarçando-se, uma vez

que o comportamento de cada um deles repercute de modo mínimo nas esferas

jurídicas dos demais, e por essa razão será menos intensa e menos perceptível

a imposição de normas comportamentais ditadas pela boa-fé, embora seja

inegável a sua presença.

Quando se considera um grupo menor, como por exemplo uma

associação ou uma sociedade empresarial, ou mesmo os moradores de um

condomínio residencial, as relações sociais entre os seus integrantes se

mostram muito mais intensas, uma vez que a menor dimensão do grupo leva à

maior proximidade entre seus integrantes, e por essa razão se mostra muito

mais forte e clara a repercussão do comportamento de cada um deles sobre os

interesses dos demais, sendo por isso mais intensa a determinação de condutas

como conseqüência da boa-fé comportamental.

E podemos avançar ainda mais nessa redução do âmbito

considerado, reduzindo as relações sociais aos integrantes de um contrato de

compra e venda, por exemplo. Aqui, são tão reduzidas as dimensões desse

“grupo” no qual se desenrolam as relações sociais, que muito mais forte se

mostra a imposição das condutas em decorrência da boa-fé, e é exatamente em

virtude dessa maior intensidade que a boa-fé como norma de conduta costuma

ser identificada com o campo das obrigações, especialmente em relação aos

contratos, sendo aí, inclusive, que se deu o desenvolvimento do seu estudo e

onde o tema encontra maior aplicação prática (veja-se, adiante, o item 1.8).

130

E quando se considera esse “grupo social” como sendo formado

pelos sujeitos contratantes, como é o caso do comprador e do vendedor, o que

se pode observar é que a boa-fé impõe a ambos um dever de colaboração

recíproca, ou seja, cada um deles deve cooperar com o outro, para que possa

cumprir a sua prestação contratual, não podendo o vendedor, por exemplo,

colocar obstáculos que dificultem ao comprador a efetivação do pagamento do

preço (seria o caso, por exemplo, do vendedor que não desse informações

precisas sobre o local do pagamento). Nesse sentido, aliás, é que se diz que a

boa-fé objetiva realça a idéia de cooperação, que se acha na essência da

relação obrigacional158.

Ora, desenvolvendo-se as relações sociais em grupo tão pequeno,

a solidariedade (aqui vista como cooperação) é dirigida diretamente de um

para o outro, de modo recíproco, daí a sua maior intensidade e a sua mais fácil

visibilidade, podendo-se ainda apontar que essa cooperação se verifica na

totalidade dos comportamentos dos contratantes, inclusive nos momentos que

antecedem à formação do contrato e mesmo depois que o mesmo já se

extinguiu. Esse tema, que já havia sido brevemente mencionado, supra, será

profundamente desenvolvido adiante, no item 1.8.

É nesse sentido acima mencionado que, em relação aos contratos,

afirma De Los Mozos159 que a boa-fé é um critério de reciprocidade, que deve

ser observado nas relações jurídicas que se desenvolvem entre sujeitos que

têm uma mesma dignidade moral, sendo que é nessa reciprocidade que se

explica a solidariedade que liga cada um dos participantes de uma comunidade

158 Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 29. 159 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe , p. 47. No mesmo sentido a afirmação de Betti, para quem “il criterio della buona fede è essenzialmente un criterio de reciprocità”. Cf. Emilio Betti, Teoria generale delle obbligazoni, v. I, p. 94.

131

aos demais, e tanto mais os liga quanto mais intensas sejam as relações dentro

dessa comunidade, como sói acontecer nas relações associativas.

Da mesma forma, em outras relações de direito privado, situadas

fora do direito obrigacional e nas quais os casos concretos se desenrolam entre

umas poucas pessoas de cada vez, também vamos encontrar de modo muito

nítido essa reciprocidade, inclusive podendo ser apontadas diversas hipóteses

que receberam um tratamento específico do direito positivo. O direito das

coisas, por exemplo, tem se mostrado campo fértil para essa abordagem

específica da boa-fé, feita pelo direito positivo para algumas situações

pontuais. Vejamos alguns exemplos160.

Em relação às servidões, por exemplo, os artigos 1.383 e 1.384, 1ª

parte, ambos do Código Civil, por um lado, permitem ao dono do prédio

serviente que, à sua custa, possa remover a servidão para outro local, se isso

não reduzir as vantagens do prédio dominante. Por outro lado, no entanto, ao

mesmo tempo determinam que o dono do prédio serviente não poderá de

modo algum causar embaraços ao legítimo exercício da servidão pelo dono do

prédio dominante.

Concomitantemente, e ainda em relação às servidões, o que se vê

nos artigos 1.384, 2ª parte, e 1.385, é que também ao dono do prédio

dominante a lei permite que o mesmo, à sua custa, remova a servidão para

outro local, se dessa remoção lhe resultar considerável aumento de utilidade e

não prejudicar o prédio serviente. Ao mesmo tempo, no entanto, impõem ao

dono do prédio dominante que, ao exercer a servidão, faça-o apenas até o

limite das necessidades do seu prédio, de modo tal que não agrave o encargo

imposto ao prédio serviente.

160 Os exemplos foram adaptados, na realidade, a partir da obra de José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 145-147.

132

Se o prédio dominante, levando-se em conta o tipo de atividade

agro-econômica ou industrial que nele é desenvolvida, necessitar que a

servidão seja ampliada (por exemplo, estava prevista a passagem de veículos

de pequeno porte, mas se mostra necessária a passagem de caminhões

pesados), o dono do prédio serviente será obrigado a aceitar essa ampliação,

mas por outro lado terá direito de ser indenizado em virtude da mesma, de

modo complementar, ou seja, independentemente da indenização que tenha

inicialmente recebido.

Como facilmente se pode perceber, em todas essas situações

acima referidas, e que foram tratadas de modo específico e preciso pela Lei

Civil, o que a norma legal faz nada mais é do que impor a solidariedade e a

cooperação de cada um dos sujeitos em favor do outro, ora mandando que

tolere a adoção de determinada providência, capaz de trazer ao outro uma

vantagem considerável, ora mandando que lhe seja paga uma indenização, em

virtude dos transtornos que terá que suportar.

E essa cooperação recíproca, pontual e especificamente imposta

pela norma legal, como já vimos acima, nada mais é do que a própria

aplicação do princípio da boa-fé, como conseqüência do princípio da

solidariedade social. Convém esclarecer que a cooperação é recíproca, embora

o Código Civil, em cada caso, possa determiná-la apenas em favor do dono do

prédio serviente ou do dominante. É que não interessa quem seja a pessoa do

dono ou qual seja o prédio dominante ou serviente, pois a cooperação se dará

em favor de qualquer prédio que se enquadre na situação descrita na lei.

Assim, por exemplo, nada impede que entre dois prédios vizinhos

existam, simultaneamente, duas servidões, com as posições invertidas em cada

uma delas, ou seja, um dos prédios é o dominante em uma das servidões (de

vista, por exemplo), mas é o serviente na outra (de passagem, v.g.). E em cada

133

uma delas haverá a imposição, em favor do prédio que ocupar a posição

indicada na lei, dessa cooperação acima mencionada, ou seja, a cooperação

seria imposta a cada um deles em favor do outro, em evidente situação de

reciprocidade.

Ainda no campo do direito das coisas, vê-se no artigo 1.285, do

Código Civil, que se refere à passagem forçada, que o dono do prédio que

estiver encravado, sem acesso à via pública, nascente ou porto, poderá exigir

de seu vizinho, mediante o pagamento de indenização cabal, que lhe dê

passagem, sendo o rumo desta fixado mediante acordo entre ambos ou, se

necessário, judicialmente.

Nesse dispositivo indicado no parágrafo anterior, até de modo

mais evidente do que nos outros exemplos até aqui apresentados, percebe-se

de modo muito claro a imposição do dever de cooperação e de solidariedade,

entre os proprietários dos prédios encravado e serviente. Com efeito, o que se

verifica é que o prédio encravado, não fosse o direito à exigência da passagem

forçada, sem possibilidade de acesso à via pública, seria completamente inútil,

não sendo possível sua exploração econômica ou qualquer destinação social.

A determinação para que o vizinho tolere a passagem, portanto,

nada mais é do que a imposição da cooperação, da solidariedade social, para

que também o prédio encravado possa receber adequada destinação social e

econômica, e para isso se torna necessária a cooperação do dono do prédio

serviente. Nesse sentido, aliás, é expresso o magistério de Maria Helena

Diniz161, para quem o “direito à passagem forçada funda-se no princípio de

161 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 4, p. 235. Concordamos com tão ilustre autora, apenas ressalvando que, ao nosso sentir, o princípio da solidariedade social não preside apenas as relações de vizinhança, mas sim todas as relações sociais, dentre as quais as jurídicas, como, aliás, se encontra expressamente determinado no artigo 3°, I, da Constituição Federal. No mesmo sentido, também apontando que o fundamento do direito à passagem forçada se encontra na solidariedade que preside as relações de vizinhança, o magistério sempre respeitado de Washington de Barros Monteiro, acrescentando o mestre,

134

solidariedade social que preside as relações de vizinhança”. Como se vê, o

direito à passagem forçada, em última análise, também se apresenta como

aplicação concreta do princípio 162 da boa-fé, no seu aspecto de solidariedade

social.

E não é demais observar que, no caso, o princípio geral e

fundamental da solidariedade prevalece sobre a legalidade estrita, pois aquele,

por óbvio, é que condiciona a interpretação da norma legal. À guisa de

exemplo, suponha-se que o prédio dominante, de pequena área, possui uma

saída para a via pública, mas que tal saída é excessivamente dispendiosa ou

exige trabalhos desmesurados, e isso, na prática, inviabiliza a exploração do

referido imóvel. Se nos ativermos apenas ao que se encontra expresso no texto

legal, este se refere ao prédio “que não tiver acesso a via pública”, e por isso o

prédio do nosso exemplo não dará ao seu proprietário o direito de exigir a

passagem forçada.

No entanto, o princípio da solidariedade social impõe aos

vizinhos que colaborem, na medida do possível, para que o proprietário do

prédio “semi-encravado” possa obter de seu imóvel a máxima utilidade

possível, ou seja, possa fazer com que seja viável a exploração de seu imóvel,

e por isso, apesar de, no caso, ser possível o acesso à via pública, a

interpretação do texto do Código Civil à luz do princípio da solidariedade

contudo, que é o interesse social (o que nos parece dar esteio à afirmação que fizemos, no sentido de que a solidariedade se impõe em todas as relações sociais, e não apenas nas de vizinhança) que exige o estabelecimento do direito de passagem. Cf. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, v. 3, p. 143. 162 Na realidade, em se tratando de matéria positivada explicitamente pelo Código Civil, não se poderia falar em princípio, eis que se trata da própria norma legal. Contudo, não se pode deixar de observar que essa positivação nada mais é do que a recepção do princípio pela lei. Nesse mesmo sentido José Luis de Los Mozos, El principio de la buena fe, p. 146.

135

social levará a que se conclua que, mesmo assim, haverá o direito à passagem

forçada163.

Novamente buscando outro ramo do direito, vamos encontrar na

parte geral do Código Civil, especificamente em relação às modalidades do

negócio jurídico, outra claríssima aplicação concreta do princípio da boa-fé.

Trata-se do disposto no artigo 129, segundo o qual a condição deve ser

considerada: a) implementada, quando seu implemento foi maliciosamente

obstaculizado pela parte a quem desfavorecia; b) não verificada, quando seu

implemento foi maliciosamente provocado por aquele a quem a mesma

aproveitaria.

Na verdade, o que se tem aí, nas duas hipóteses enfocadas no

referido dispositivo legal, é uma sanção punitiva para o sujeito que, envolvido

em um negócio jurídico, deixou de agir conforme as regras de conduta que, no

caso concreto, se mostrariam consentâneas com a cooperação e solidariedade,

em relação ao(s) outro(s) sujeito(s) envolvido(s), ou seja, deixou de agir

conforme as regras da boa-fé. Com efeito, veja-se que o sujeito agiu de modo

desleal, não cooperando com o outro, uma vez que lhe criou embaraços, quer

pelo implemento forçado da condição, quer pelo impedimento malicioso a que

esta viesse a ser implementada.

E não é demais observar que o nosso Código Civil, ao contrário

do que faz o Código Civil espanhol (art. 1.119164), refere-se a qualquer pessoa

que, podendo ser atingida favorável ou desfavoravelmente pelo implemento da

condição, de modo malicioso venha a forçar ou impedir tal implemento, e não

apenas ao devedor. Seria o caso, por exemplo, de uma doação feita com a

cláusula de reversão, ou seja, com a estipulação de que o bem doado voltaria 163 À mesma conclusão chegou Lenine Nequete, Da passagem forçada, p. 22. 164 Artículo 1.119. Se tendrá por cumplida la condición cuando el obligado impidiese voluntariamente

su cumplimiento. (grifamos).

136

ao patrimônio do doador, caso este sobrevivesse ao donatário (CC, art. 547).

Imagine-se que, estando em precárias condições de saúde o donatário, prestes

a morrer, o filho deste, estando na iminência de ver o bem retornar ao

patrimônio do autor da liberalidade, manda assassinar o doador, e com isso

impede que a condição resolutiva (o doador sobreviver ao donatário) venha a

ser implementada.

Em relação ao filho e herdeiro do donatário (que não foi parte no

negócio), portanto, que seria desfavorecido pelo implemento da condição,

como sanção punitiva ao seu comportamento desleal, que se choca de modo

frontal com a conduta solidária (independentemente das óbvias considerações

sobre os aspectos criminais do caso) imposta pela boa-fé, determina o Código

Civil que essa mesma condição seja reputada como tendo sido implementada,

vale dizer, os efeitos jurídicos que serão produzidos serão os equivalentes aos

da morte do donatário antecedendo à do doador, e portanto o bem doado

retornará ao patrimônio deixado pelo doador, após a morte do donatário, não

devendo ser transmitido ao herdeiro que forçou o implemento da condição.

1.7. A boa-fé objetiva no Direito Público e no campo processual.

A boa-fé objetiva sempre foi mais estreitamente ligada ao Direito

Civil, mas, sendo neste relacionada com as obrigações, fácil é de se imaginar

que a mesma, sem qualquer obstáculo, também se espalhou pelos demais

ramos do direito privado, cuja base também se encontra nas relações

obrigacionais, apresentando, pois, um caráter marcadamente expansionista,

espraiando-se sem muita cerimônia para outros ramos do direito.

Essa expansão pôde ser vista, em primeiro lugar, em relação ao

Direito Comercial, que foi onde, aliás, os tribunais comerciais primeiro lhe

137

deram aplicabilidade, antes mesmo que isso ocorresse no Direito Civil, como

vimos anteriormente. Depois, em um segundo momento, no Direito do

Trabalho, cuja relação básica, de natureza contratual (o contrato de trabalho),

nada mais foi do que um aperfeiçoamento do contrato de prestação de

serviços, originário do Direito Civil. Nenhuma surpresa, portanto, nessa

extensão da boa-fé a todo o domínio do direito privado.

Além disso, ainda na seara do direito privado, também podemos

encontrar, com facilidade, aplicações da boa-fé no campo do direito das

coisas, no direito de família, no direito das sucessões, etc.

Contudo, não ficou nisso, pois também no campo do direito

processual se viu a escalada da aceitação da boa-fé objetiva, o que é também

fácil de se compreender, uma vez que o processo não tem um fim em si

mesmo, apenas servindo como instrumento para o direito material, e por essa

razão tende a refletir, ainda que o faça de modo esmaecido, algumas

características deste. Logo, no processo civil, como não poderia deixar de ser,

repercutiram as influências da boa-fé sobre o direito privado.

À guisa de simples exemplo pode-se apontar o disposto no

Código de Processo Civil brasileiro, que de modo expresso determina às

partes litigantes o dever de se comportar com lealdade e boa-fé (art. 14, II),

condenando ao pagamento de perdas e danos aquele que litigar pleiteando de

má-fé (art. 16). E veja-se que o diploma processual pátrio, ao esclarecer o que

se deve considerar como litigante de má-fé, tanto se vale de aspectos

subjetivos (por exemplo, ao dizer que litigante de má-fé é quem interpõe

recurso com intuito manifestamente protelatório – art. 16, VI) quanto de

considerações objetivas, referentes ao comportamento da parte (por exemplo,

no caso de quem deduz pretensão contra texto expresso de lei – art. 16, I).

138

Normas semelhantes, referentes ao dever de se comportar no

processo segundo as regras da boa-fé, podem ser também encontradas no

direito processual civil português, cujo Código de Processo Civil, em seu

artigo 456, impõe sanções para o comportamento processual que esteja

viciado pela má-fé. Na realidade, a repressão ao uso abusivo das vias

processuais é tão antiga quanto generalizada, sendo encontrada desde a Roma

antiga e em praticamente todos os sistemas processuais. Com efeito, logo após

indagar sobre se poderia ser responsabilizado aquele que fizesse uso abusivo

da via judicial, esclarece Josserand165 que

Essa questão chamou a atenção de quase todos os legisladores, que invariavelmente lhe deram resposta afirmativa, pelo menos para os casos de abusos mais típicos e mais graves, ou seja, para aqueles de má-fé: em todas as épocas e em todos os países, o espírito de chicana, a vontade de prejudicar a outrem e o uso abusivo das vias legais foram considerados como um verdadeiro delito, penal ou civil, comportando, como sanção mínima, uma reparação de ordem pecuniária... Já em Roma, medidas enérgicas foram tomadas a fim de prevenir ou de reprimir o espírito de chicana. Era o jusjurandum calumnice; eram as diversas penalidades que eram aplicadas à infitiatio e à plus petitio, tipos de delitos específicos que se enquadram sem nenhuma dúvida no abuso das vias de direito... Na França, como na Bélgica, na Itália, na Suíça ou na Alemanha, o princípio jamais foi colocado em dúvida: nos tribunais sempre foi admitida a possibilidade de abuso das vias legais; reconhecem que o direito de pleitear ou aquele de recorrer às vias

165 Louis Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits , pp. 66-68, nrs. 46 e 47. Diz o mestre que “Cette question a retenu l’attention de presque tous les legislatéurs qui lui ont invariablement donné une solution affirmative, du moins pour le cas d’abus le plus typique et le plus grave, c’est-à-dire pour celui de la mauvaise foi: à toute époque et en tout pays, l’esprit de chicane, la volonté de nuire à autrui en mésusant des voies légales, ont été considerérés comme constitutifs d’un véritable délit, pénal ou civil, comportant, comme minimun de sanction, une réparation d’ordre pécuniaire. A Rome déjà, des mesures énergiques avaient été prises afin de prévenir ou de réprimer l’esprit de chicane: c’était le jusjurandum calumnice; c’était les diverses pénalités qui venaient frapper l’infitiatio et la plus petitio, sortes de délits spécialisés ressortissant sans aucum doute à l’abus des voies de droit...En France, comme en Belgique, en Italie, en Suisse ou en Allemagne, le principe n’a jamais été mis en doute: nos tribunaux ont toujours admis la posibilité d’abus des voies légales; ils ont reconnu que le droit de plaider ou celui de recourir aux voies d’exécution, comportaient, à côté des limitations impersonelles et ob jectives constituées par les règles de procédure, des restrictions d’ordre personnel et subjcetif tirées de la mentalité du plaider ou du poursuivant qui ne peuvent pas aller à l’encontre des fins de l’institution, et qui, notamment, ne sauraient impunément mettre les voies de droit au service d’une volonté à base de malice, de méchanceté, de rancune ou de persécution, commettant ainsi une sorte de profanation juridique qu’aucun législateur, qu’aucun juge ne peuvent tolérer”.

139

executivas, comportam, ao lado das limitações impessoais e objetivas trazidas pelas regras de procedimento, restrições de ordem pessoal e subjetiva, extraídas da idéia de que pleitear ou litigar não podem ir contra os fins da instituição, e que, notadamente, as vias judiciais não podem ser impunemente colocadas ao serviço de uma vontade esteada na malícia, na maldade, no rancor ou na perseguição, cometendo pois um tipo de profanação jurídica que nenhum legislador e nenhum juiz podem tolerar.

Na jurisprudência pátria também se encontram exemplos de

aplicações concretas do princípio da boa-fé, inclusive, de modo mais

específico, da caracterização (e repressão) do venire contra factum proprium

em matéria processual. Assim, por exemplo, já decidiu o Tribunal Superior do

Trabalho que

RECURSO DE REVISTA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DA OITIVA DE TESTEMUNHAS. DEPOIMENTO ANTERIOR PELO RECLAMANTE. PROVA DA JORNADA. A pretensão do reclamante em produzir prova testemunhal contrariamente ao que ele próprio já afirmara em processo anterior, quando serviu de testemunha em outra reclamação retrata o repudiado venire contra factum proprium. Se o reclamante depôs em outro processo como testemunha, suas declarações foram feitas sob juramento, e a expectativa de boa-fé e verdade sob a qual foi prestado aquele depoimento, repita-se, sob compromisso, não pode agora ser negado para pretender provar outra realidade. Não se pode ter por cerceamento de defesa a decisão do juízo de origem que, diante de tal hipótese, indefere a oitiva de testemunha apresentada pelo reclamante relativa a fato já provado em outro processo. Recurso de Revista de que não se conhece 166.

166 Ac. RR -783.685/2001.5, 5ª Turma, Ac. unânime. Relator Min. João Batista Brito Pereira. J. 15.12.2004, P. DJ. 18/02/2005. No caso concreto, no entanto, temos fortes dúvidas sobre a adequação da decisão tomada pela Colenda Corte, uma vez que o Acórdão revela que o reclamante, em processo anterior, fora testemunha da empresa reclamada quando ainda era empregado da mesma, e na ocasião declinou jornada de trabalho diferente daquela que indicou na petição inicial da reclamação em que ele mesmo figurava como reclamante. Ora, em se tratando de empregado, havia o estado de subordinação, e a realidade da Justiça do Trabalho mostra que os empregados, em tal situação (quando são testemunhas do empregador), no mais das vezes limitam-se a informar aquilo que lhes foi determinado pela empresa empregadora, ainda que estejam sob o compromisso de dizer a verdade. Entre o medo de ser dispensado e ficar desempregado, em tempos de poucos empregos, e o de ser enquadrado em uma remotíssima hipótese de falso testemunho, o primeiro dos medos fala muito mais alto, e o empregado, subordinado que é, não hesita em cumprir a ordem de falsear a verdade. E parece evidente que se pode apontar que, sendo o primeiro dos comportamentos adotado em virtude de coação (grave ameaça, ainda que implícita, de perda do emprego), não pode servir de parâmetro para, em cotejo com o segundo, caracterizar o venire contra factum proprium. De qualquer modo, pensamos

140

Também na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça são

encontráveis decisões referentes ao venire, especificamente em matéria

processual. Decidiu aquela Corte Superior que

PROCESSUAL CIVIL. DOCUMENTO. JUNTADA. LEI GERAL DAS TELECOMUNICAÇÕES. SIGILO TELEFÔNICO. REGISTRO DE LIGAÇÕES TELEFÔNICAS. USO AUTORIZADO COMO PROVA. POSSIBILIDADE. AUTORIZAÇÃO PARA JUNTADA DE DOCUMENTO PESSOAL. ATOS POSTERIORES. "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM". SEGREDO DE JUSTIÇA. ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. HIPÓTESES. ROL EXEMPLIFICATIVO. DEFESA DA INTIMIDADE. POSSIBILIDADE. - A juntada de documento contendo o registro de ligações telefônicas de uma das partes, autorizada por essa e com a finalidade de fazer prova de fato contrário alegado por essa, não enseja quebra de sigilo telefônico nem violação do direito à privacidade, sendo ato lícito nos termos do art. 72, § 1.°, da Lei n.º 9.472/97 (Lei Geral das Telecomunicações). - Parte que autoriza a juntada, pela parte contrária, de documento contendo informações pessoais suas, não pode depois ingressar com ação pedindo indenização, alegando violação do direito à privacidade pelo fato da juntada do documento. Doutrina dos atos próprios. - O rol das hipóteses de segredo de justiça não é taxativo, sendo autorizado o segredo quando houver a necessidade de defesa da intimidade. Recurso especial conhecido e provido.167

Interessante aplicação da boa-fé objetiva no processo foi a que

surgiu nos tribunais portugueses, na década de 70. Com efeito, nas ações que

dissessem respeito ao estado da pessoa, face à relevância dos direitos

personalíssimos que estão em jogo, acentuou-se ainda mais o dever de expor

os fatos conforme a verdade. Assim, em uma ação de investigação de

paternidade, o investigado negou que tivesse mantido relações sexuais com a

mãe da autora, sendo que tais relações vieram a ser posteriormente provadas.

que a decisão mencionada serve para demonstrar que nossos tribunais não vêem maiores problemas no acolhimento do venire em relação ao processo. 167 REsp 605687/AM; Recurso Especial 2003/0202450-6, 3ª T. Ac. unânime. Relatora Min. Nancy Andrighi, j. 02/06/2005, p. DJ 20.06.2005, p. 273.

141

Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que tal comportamento configurava o

procedimento processual como litigância de má-fé168.

Mas deve-se tomar cuidado com os exageros, pois é evidente que

a boa-fé processual, no que se refere ao dever de expor os fatos conforme a

verdade, encontra certos limites que são, ao nosso ver, intransponíveis. Assim,

por exemplo, suponha-se que em uma ação de anulação do casamento fundada

em erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, a esposa impute ao marido a

autoria de um grave crime, anterior ao casamento, ou a opção homossexual.

Parece evidente que não se poderá exigir que o marido, em tal caso, venha a

confessar fato de seu passado (ou mesmo de seu presente) que lhe traz grande

vergonha e constrangimento ou que poderá expô-lo a inevitáveis preconceitos

e discriminações.

O mesmo se poderia apontar em relação à ação de separação

litigiosa, fundada no adultério do cônjuge, e que foi por este negado, mas que

veio depois a ser provado sem que remanesça qualquer dúvida. Ou ainda

quando a ação tenha por suporte o fato de que o cônjuge trabalhava, antes do

casamento, como garoto ou garota de programa. Parece evidente que não se

poderá pretender punir por má-fé o cônjuge que optou por tentar esconder o

seu próprio comportamento socialmente reprovável.

Neste ponto, como uma última observação acerca da aplicação do

princípio da boa-fé na seara processual, não se pode deixar de observar a

existência de uma clara diferença, no que se refere à aplicação da boa-fé

quanto às relações de direito material. É que nestas, como veremos adiante

(veja-se o item 2.3.1), em geral predomina a idéia de proteção à boa-fé de um

dos sujeitos, e não de punição à má-fé do outro. No campo processual, ao

168 Supremo Tribunal de Justiça, 01.02.1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 234 (1974), pp. 246-249.

142

contrário, como vimos acima, a idéia principal é a de punição à parte que atua

no processo de modo malicioso, ou seja, o enfoque se dá na repressão à má-fé,

e não na proteção à boa-fé.

Em continuação, veremos agora que a boa-fé também pode ser

estendida, além do campo processual, para as relações mantidas pela

Administração Pública com os particulares, apesar do que possa parecer ao

primeiro exame, que aponta para a aparente restrição da boa-fé, enquanto

norma de conduta, à seara do direito privado.

Com efeito, como já mencionamos reiteradas vezes, o princípio

da boa-fé encontrou seu campo de desenvolvimento e de aplicação no direito

privado, principalmente no direito obrigacional, com larga aplicação em

relação aos contratos, como veremos logo adiante, em mais detalhes (veja-se,

adiante, o item 1.8). Além disso, pode-se ainda apontar que o princípio da

boa-fé atua de modo supletivo, ou seja, nos casos onde a lei é lacunosa, mas

não cabe sua invocação como parâmetro de conduta nas situações nas quais a

própria lei já indica expressamente tal parâmetro (mas desde que essa norma

legal não entre em choque com o princípio, pois se tal choque se der a lei

deverá ser afastada, prevalecendo o princípio – veja-se, adiante, o item

2.3.2.1.c, onde essa questão é examinada em detalhes).

Desse modo, levando-se em conta que a origem do princípio está

ligada exclusivamente ao direito privado, e que no campo do direito público,

em tese, não há espaço para lacunas, uma vez que ao administrador público só

é permitido fazer aquilo que a lei expressamente admite, poderia parecer, em

um primeiro e perfunctório exame, que o princípio da boa-fé não encontra

aplicação na seara do direito público.

No entanto, ao contrário de tal conclusão, hoje é pacífica a

aceitação da idéia de que se aplica o princípio da boa-fé, também, nas relações

143

de direito público169, estando o princípio da boa-fé contido no princípio da

moralidade administrativa.

E as razões dessa extensão podem ser percebidas sem grandes

dificuldades. É que, se ao particular se exige um comportamento conforme os

ditames da boa-fé, de modo que os sujeitos partícipes de uma relação jurídica

não possam, cada um, quebrar a confiança que fez surgir no espírito do outro,

com muito mais razão não se poderá admitir que a Administração Pública, nas

suas relações com os cidadãos administrados, possa criar situações em cuja

seriedade esses mesmos cidadãos confiaram, para posteriormente agir de

modo contraditório, voltando atrás e desfazendo o que antes fizera, quebrando

a confiança gerada nos súditos. Admitir essa possibilidade, a toda evidência,

violaria o princípio da moralidade administrativa, que se encontra insculpido

expressamente no artigo 37, da Constituição Federal.

Deve a Administração Pública, portanto, atender aos ditames de

uma conduta conforme os parâmetros estabelecidos pela boa-fé, com o

cabimento da aplicação dos diversos institutos que da boa-fé decorrem,

interessando-nos em particular o venire contra factum proprium, que não

permite à Administração Pública voltar sobre seus próprios passos, atuando de

modo contraditório, em relação à sua atuação anterior, e desfazendo o que

antes fizera, gerando incertezas capazes de tumultuar a vida social.

Nesse mesmo sentido acima mencionado é a posição de Karl

Larenz170, destacando o respeitado jurista alemão a importância de que seja

169 Nesse sentido, aponta Delia Rubio que “El principio general de la buena fé opera – com las adaptaciones del caso – em todas las ramas del ordenamiento. No se trata de um principio exclusivo del Derecho Civil, em sentido estrito;... la aplicabilidad del principio de buena fe em las relaciones de la Administración com los administrados”. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , p. 140. 170 Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, p. 144. Literalmente, diz o mestre alemão que: “La salvaguardia de la buena fe y el mantenimiento de la confianza forman la base del tráfico jurídico y en particular de toda la vinculación jurídica individual. Por esto, el principio no puede limitarse a las

144

mantida a boa-fé e preservada a confiança, elementos que se apresentam como

basilares em toda relação jurídica individual, e que por tal razão não podem

ser confinadas unicamente às relações obrigacionais, também alcançando o

direito processual e o direito público.

Na doutrina pátria, ao discorrer sobre o princípio da moralidade,

ensina Sylvia di Pietro171 que “não é preciso penetrar na intenção do agente,

porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o

conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade,

retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao

trabalho, à ética das instituições”.

Como se vê, sustenta a respeitada autora que haverá imoralidade

administrativa sempre que for ultrapassado, dentre outros limites, aquele que é

imposto pela boa-fé, sendo que tais limites devem ser aferidos de modo

objetivo, ou seja, sem que sejam necessárias investigações acerca da intenção

do agente. Boa-fé como regra de conduta, objetiva, portanto. No mesmo

sentido a sempre respeitada lição de Celso Antônio Bandeira de Mello172, que

ao tratar do mesmo princípio esclarece que “compreendem-se em seu âmbito,

como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé”.

Tratando especificamente da proibição do venire contra factum

proprium em relação à atuação da Administração Pública, aponta Egon

Bockmann Moreira173 que “do princípio da boa-fé objetiva deriva, quando

menos, o seguinte: a)...; b) proibição do venire contra factum proprium

(conduta contraditória, dissonante do anteriormente assumido, ao qual se

havia adaptado a outra parte e que tinha gerado legítimas expectativas”. relaciones obligatorias, sino que es aplicable siempre que exista una especial vinculación jurídica, y en este sentido puede concurrir, por tanto, en el Derecho de cosas, en el Derecho procesal y en el Derecho público”. 171 Maria Sylvia Zanella di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988 , p. 111. 172 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 89. 173 Egon Bockmann Moreira, Processo Administrativo , p. 91.

145

Juarez Freitas174 examina a questão sob a ótica do conflito entre

princípios superiores, mais especificamente entre o princípio da legalidade

estrita e o da confiança, figurando situação na qual a aplicação da legalidade

estrita estaria a indicar a anulação do ato administrativo, mas a tal solução se

contrapõe a confiança de um administrado de boa-fé. E esclarece o ilustre

Professor do Rio Grande do Sul que, não raro, o princípio da legalidade estrita

deve ceder, colocando-se limites à anulação dos atos administrativos, em

virtude da preponderância tópica (ou seja, examinada sob a visão problemática

do caso concreto) do princípio da confiança, que está a recomendar a

estabilidade do ato administrativo.

Nos tribunais estrangeiros é pacífica a aceitação da idéia de que

também a Administração Pública, em sua atuação, deve pautar sua conduta

segundo os ditames do princípio da boa-fé. Em decisão de 1991, conforme

noticia Béatrice Jaluzot175, a 3ª Câmara Civil da Corte de Cassação, na França,

expressamente reconheceu essa aplicação do princípio aos atos da

Administração Pública. No caso em questão, uma empresa de distribuição

adquiriu um terreno, com o objetivo de nele instalar um supermercado. Treze

anos depois, contudo, em virtude das restrições administrativas que proibiam a

construção no imóvel em questão, a construção ainda não havia sido erguida, e

a empresa resolveu vender o terreno para o próprio município.

Quatro meses depois de adquirir o terreno, no entanto, a

Administração Municipal reforma as normas administrativas e passa a ser

permitida a construção no mesmo. O terreno, então, é revendido a uma outra

empresa de distribuição, por preço quatro vezes superior ao que havia sido

pago pelo Município. 174 Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito , p. 246. 175 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 341, n° 1211.

146

Reformando a decisão tomada pela instância anterior, entendeu a

Corte de Cassação que o Município, ao negociar a aquisição do imóvel ao

mesmo tempo em que já estava em negociações com um eventual comprador

para o mesmo, e por outro lado omitindo do alienante que já estava em

andamento um projeto para a reforma das normas administrativas, que

permitiriam que a construção viesse a ser erguida no terreno, o que, por óbvio,

iria valorizá-lo de modo acentuado, não se comportou com a boa-fé que seria

exigível, devendo pois responder por isso.

Também a jurisprudência pátria reconhece, com tranqüilidade, a

aplicabilidade do princípio da boa-fé à atuação da Administração Pública,

inclusive com expressa menção à proibição do venire contra factum proprium,

como se vê, por exemplo, no Recurso Especial n° 47.015/SP, que tratava de

hipótese de desapropriação indireta, na qual a fazenda pública havia apontado

a irregularidade – e conseqüente nulidade – no título de propriedade exibido

pelo autor da ação, título esse que havia sido emitido por ela mesma, de modo

irregular, o que havia sido rejeitado pela instância inferior, o Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo. Da ementa, na parte que interessa ao presente

trabalho, assim consta:

Administrativo e processual civil. Titulo de propriedade outorgado pelo poder público, através de funcionário de alto escalão. Alegação de nulidade pela própria administração, objetivando prejudicar o adquirente: inadmissibilidade... I- se o suposto equivoco no titulo de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não ha que se alegar o vicio com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios de que "nemo potest venire contra factum proprium" e de que "nemo creditur turpitudinem suam allegans".176

176 STJ, 2ª Turma, REsp 47.015/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, Ac. maioria, j. 16.10.1997, p. DJ 09.12.1997, p. 64655.

147

No voto do Ministro Adhemar Maciel, relator, lê-se que

“o TJSP aplicou – a meu ver, acertadamente – o princípio de que nemo potest venire contra factum proprium (“ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa”)... Realmente, não pode a FAZENDA PÚBLICA, décadas após a venda do imóvel realizada por funcionário de alto escalão em nome da Administração, vir a juízo pleitear a nulidade dos títulos. Ora, se há mácula no título, essa foi causada pelo próprio poder público, o qual não pode invocar o suposto equívoco do seu secretário de Estado, para prejudicar aquele que legitimamente adquiriu a propriedade, pagando para tanto. Em suma, Senhor Presidente, se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria Administração, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição.”

Ainda na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, também

no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 1995/0044476-3 a Corte

Superior afirmou expressamente que não se pode permitir à Administração

Pública que, depois de criar justa expectativa nos cidadãos, mediante a

assunção de compromisso público, possa simplesmente voltar atrás, frustrando

as justas expectativas criadas.

Tratava-se de hipótese na qual o Governo Federal, por meio do

Ministro da Fazenda, comprometeu-se publicamente a suspender, por noventa

dias, as execuções de créditos do Banco do Brasil, desde que o devedor se

dispusesse a um acerto de contas com o banco credor. Posteriormente, no

entanto, o Banco do Brasil e o Governo Federal pretenderam alegar que o

compromisso não era apto a gerar vinculação, sendo tão-somente uma

manifestação de intenção das autoridades públicas, de caráter genérico e

normativo.

No Superior Tribunal de Justiça, embora tenha sido ao final

denegada a segurança (mas apenas porque já havia transcorrido prazo superior

aos noventa dias da prometida suspensão), foi expressamente adotada a tese de

148

que também à Administração Pública se proíbe o venire contra factum

proprium, ou seja, os comportamentos contraditórios, de modo tal que o

segundo comportamento frustra a justa expectativa que havia sido gerada em

virtude do primeiro, violando a conduta imposta pela boa-fé (objetiva). A

decisão recebeu a seguinte ementa:

Memorando de entendimento. Boa- fé. Suspensão do processo. O compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, através de ‘memorando de entendimento’, para suspensão da execução judicial de dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão ocorrera, preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no principio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito a lealdade. Deferimento da liminar, que garantiu a suspensão pleiteada. Recurso improvido.177

No voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator, lê-se que:

“ O compromisso público assumido pelo Governo, através do seu Ministro da Fazenda, o condutor da política financeira do país, e com a assistência dos estabelecimentos de crédito diretamente envolvidos, presume-se tenha sido celebrado para ser cumprido. Se ali ficou estipulado que as execuções de créditos do Banco do Brasil seriam suspensas por noventa dias, desde que o devedor se dispusesse a um acerto de contas, é razoável pensar que esse seria o comportamento futuro do credor, pelo simples respeito à palavra empenhada em documento público, levado ao conhecimento da Nação.” “ No direito civil, desde os estudos de Ihering, admite-se que do comportamento adotado pela parte, antes de celebrado o contrato, pode decorrer efeito obrigacional, gerando a responsabilidade pré-contratual. O princípio geral da boa- fé veio realçar e deu suporte jurídico a esse entendimento, pois as relações humanas devem pautar-se pelo respeito à lealdade.” “ O que vale para a autonomia privada vale ainda mais para a administração pública e para a direção das empresas cujo capital é predominante público, nas suas relações com os cidadãos. É inconcebível que um Estado democrático, que aspire a realizar a justiça, esteja fundado no princípio de que o compromisso público assumido pelos seus governantes

177 STJ, 4ª Turma, RMS 6.183/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Ac. unânime, j. 14.11.1995, p. DJ 18.12.1995, p. 44573.

149

não tem valor, não tem significado, não tem eficácia. Especialmente quando a Constituição da República consagra o princípio da moralidade administrativa.” “ Tenho que o ‘Memorando de Entendimento’, embora não seja uma lei, nem mesmo possa ser definido como contrato celebrado diretamente entre as partes interessadas, criou no devedor a justa expectativa de que, comparecendo ao estabelecimento oficial de crédito a fim de fazer o acerto de contas, teria o prazo de suspensão de 90 dias, para o encontro de uma solução extrajudicial. Havia, portanto, o direito do executado de obter a suspensão do processo de execução, demonstrando ter se apresentado para o acerto de contas. Não se trata de hipótese legal de suspensão, mas de obrigação publicamente assumida pela parte de que teria aquela conduta, cumprindo ao juiz lhe dar eficácia.”

Desde logo se observa, em relação à decisão supratranscrita, que

ainda não havia um contrato aperfeiçoado entre as partes, mas tão-somente um

comportamento adotado pelo credor e que, embora não atendesse aos

requisitos para que pudesse ser considerado um contrato, já foi suficiente para

gerar na outra parte (o devedor) a justa expectativa de que o segundo

comportamento seria o de suspender a execução, o que não foi feito,

frustrando a expectativa e desatendendo ao dever de lealdade, derivado da

boa-fé.

Aliás, parece-nos que cabe pequeno reparo ao teor do Acórdão,

pois do mesmo consta que havia a “obrigação” de suspender a execução. Ora,

se de obrigação se tratasse não haveria a necessidade de se recorrer ao

instituto da boa-fé, sendo suficiente que se valesse o julgador das normas

referentes ao cumprimento das obrigações. A questão será examinada em

detalhes, mais à frente, no item 2.3.2.1, c.

Ainda dentre as decisões do Superior Tribunal de Justiça que

expressamente determinam a observância, pela Administração Pública, do

princípio da boa-fé enquanto norma de conduta, vale destacar o que consta do

Recurso Especial 141879/SP. Tratou-se de situação na qual um Município

150

celebrou contratos de promessa de compra e venda, referentes a lotes

integrantes de uma gleba de sua propriedade. Posteriormente, no entanto, o

próprio Município decidiu promover a anulação judicial dos contratos de

promessa, ao argumento de que o parcelamento não estava regularizado, por

faltar-lhe o devido registro. A ementa foi publicada nos seguintes termos:

Loteamento. Município. Pretensão de anulação do contrato. Boa- fé. Atos próprios. - Tendo o Município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 da lei 6.766/79. - A teoria dos atos próprios impede que a administração publica retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento. Recurso não conhecido.178

E no voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar lê-se expressamente

que “o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração

pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações

com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não

lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações em

cuja seriedade os cidadãos confiaram”.

Situação que, no Brasil, vem se repetindo com enorme

freqüência, é a da contratação de trabalhadores, pela Administração Pública,

sem o necessário concurso público, em burla à vedação que se encontra

expressa no artigo 37, II, da Constituição Federal de 1988. Posteriormente,

após a dispensa do trabalhador sem que este nada tenha recebido, e

confrontada com o pedido judicial de verbas trabalhistas, a Administração

Pública alega que as mesmas não são devidas, pois a contratação sem

concurso é nula e por isso não pode gerar efeitos jurídicos. 178 STJ, 4ª Turma, REsp 141.879/SP, Rel. Ruy Rosado de Aguiar, Ac. unânime, j. 17.03.1998, p. DJ 22.06.1998, p. 90.

151

Como se vê, em tais casos, a Administração Pública procede ao

arrepio da lei, contratando sem concurso, e mais tarde pretende alegar que a

contratação sem tal requisito não pode servir como fonte de produção de

efeitos jurídicos, em virtude da nulidade absoluta do contrato. Os tribunais

superiores pátrios, tanto o Tribunal Superior do Trabalho quanto o Superior

Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, têm repelido com firmeza,

ainda que com uma certa timidez, essa linha de argumentação, que no fundo

acaba por se configurar em venire contra factum proprium179.

Com efeito, como se vê na Súmula 363, do Tribunal Superior do

Trabalho, a contratação de trabalhadores sem concurso público, por parte da

administração publica, vai sempre gerar efeitos jurídicos, consistentes no

pagamento dos salários dos dias efetivamente trabalhados e no recolhimento

do FGTS sobre tais salários.

Tais efeitos reconhecidos, ao que nos parece, ainda são muito

poucos, e outros mais poderiam sê-lo, como por exemplo a anotação da

Carteira de Trabalho e o pagamento de parcelas como as férias e o 13º salário,

e por essa razão foi que dissemos, no parágrafo anterior, que há uma certa

timidez no posicionamento dos tribunais superiores pátrios. Contudo, não se

pode deixar de observar que já se tem aí uma obrigação de comportamento

coerente, imposta à Administração Pública, da qual não se admite que atue de

modo ilegal para, ao depois, alegar a própria ilegalidade como causa de

afastamento de todos os efeitos do ato.

E há, por último, um aspecto importantíssimo, no que se refere à

necessidade da Administração Pública se comportar de boa-fé, não atuando de

modo contraditório, ou seja, não “voltando sobre seus próprios passos”. É que

179 Na realidade, essa mesma situação também poderá ser caracterizada como tu quoque , como melhor abordaremos mais à frente, no item 2.3.2.1.c.1.

152

o comportamento abusivamente contraditório da Administração Pública, ao

contrário do que ocorre em relação ao comportamento do particular, pode se

dar sem que isso necessariamente ocorra dentro de uma mesma relação

jurídica. Expliquemos melhor.

Quando se analisa o comportamento de um particular, para que se

possa avaliar se esse comportamento ofende a boa-fé, por se mostrar

contraditório com uma conduta anterior, essa análise é feita dentro de um

mesmo negócio jurídico (ou, pelo menos, dentro de um conjunto de negócios

que se desenvolveram entre as mesmas pessoas), dentro do qual um primeiro

comportamento de um dos sujeitos gerou no outro a expectativa legítima

acerca de como poderia ser um segundo. Assim, por exemplo, examinam-se os

comportamentos anterior e posterior de um prestador de serviços, no mesmo

contrato de prestação de serviços, para que se possa aferir a eventual

existência de contradição.

Em relação à Administração Pública, no entanto, outra é a

situação. É que a Administração, por evidente, adota políticas impessoais, que

direcionam as vidas dos seus súditos, ainda que com estes não seja mantida

qualquer negociação direta. Ou seja, a Administração Pública adota certas

linhas de conduta, ou determinados pontos de vista jurídicos, e a partir desses

atos, os administrados programam os seus próprios negócios, suas próprias

atuações. Logo, a mudança súbita da linha diretriz seguida por essa mesma

Administração, poderá surpreender negativamente o súdito, causando-lhe

prejuízos de grande monta.

153

Nesse mesmo sentido a lição de Béatrice Jaluzot180, para quem,

dentro de certas condições, um comportamento desleal pode decorrer da

adoção de um ponto de vista jurídico que se mostra em contradição insolúvel

com um comportamento anterior do sujeito. Isso não implica necessariamente,

prossegue a autora, que os comportamentos anterior e atual, que se mostram

contraditórios, tenham sido adotados em uma mesma relação obrigacional, ou

que a confiança de um dos contratantes, que se mostre digna de ser protegida,

seja constituída pelo comportamento precedente. Em outras – e, pensamos,

mais claras – palavras, a confiança pode ser gerada a partir da simples adoção

de uma posição política ou jurídica, e não necessariamente a partir da prática

de um determinado ato.

Entre nós, além de inúmeras situações concretas que poderiam

servir como exemplo, pode-se apontar a hipótese da adoção, com ampla

divulgação na mídia, pelo Goferno Federal, da política de incentivo à

produção de um determinado tipo de produto agrícola. Os produtores rurais,

induzidos por tal política governamental, investem maciçamente na referida

produção. Em seguida, no entanto, o Governo Federal entende que não é mais

conveniente aquele tipo de produto, pois houve uma supersafra, e

simplesmente abandona os produtores à própria sorte, não cuidando sequer de

providenciar os meios necessários ao escoamento da produção, como por

180 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 90, n° 329. E a ilustre autora francesa exemplifica narrando situação enfrentada pelo poder judiciário alemão, após a reunificação da Alemanha. Na Alemanha Oriental havia uma empresa estatal que, obrigatoriamente, tinha que funcionar como intermediária em todos os contratos celebrados entre empresa da Alemanha Oriental com empresa da Alemanha Ocidental, mediante o pagamento de uma taxa. Após a reunificação, essa empresa estatal, intermediária obrigatória, foi dissolvida, e foi sucedida pelo Estado Federal quanto aos créditos referentes às taxas pelas intermediações que já haviam sido feitas, e o Estado sucessor pretendeu cobrar judicialmente a dívida de uma empresa. A Corte Federal Alemã, no entanto, entendeu que havia, ali, um comportamento contraditório por parte do Estado Federal, uma vez que este pretendia se valer de um contrato forçado, originário de uma economia comunista, quando ele mesmo era um Estado que se apoiava em um sistema de economia de mercado, e no qual a liberdade contratual se apresentava como uma das garantias fundamentais. A contradição estaria no fato de que um Estado com economia de mercado pretendesse se beneficiar das regras de uma economia comunista.

154

exemplo a existência de um meio de transporte adequado ou um porto

marítimo. Trata-se, a toda evidência, de hipótese clara de caracterização do

venire.

1.8. A responsabilidade pré e pós-contratual e a complexidade das obrigações.

Tema que encontra forte ligação com a boa-fé objetiva, é o que se

refere ao exame das obrigações como um processo, ou seja, como uma relação

complexa, formada por deveres acessórios, que acompanham as prestações

principais das partes e que destas são independentes, mas que sempre

caminham com a finalidade de buscar o adimplemento da obrigação181, por

isso que já se disse que o cumprimento da obrigação é a regra, e o

inadimplemento se constitui na “parte patológica do direito obrigacional”182.

É que o desenvolvimento desse processo é que requer a cooperação e a

lealdade recíproca entre as partes, para que ambos caminhem em direção à

finalidade comum do negócio, e por isso requer que ambos se comportem

segundo a boa-fé.

Esse tema, como veremos em seguida, começou a ser estudado

como decorrência dos estudos sobre a chamada responsabilidade pré-

contratual.

A questão da responsabilidade pré-contratual veio a ser

examinada, pela primeira vez, na Alemanha, por Rudolf Von Jhering183, com a

181 Entre nós, o primeiro a fazer tal afirmação foi Clóvis do Couto e Silva, A obrigação como um processo , pp. 5-6. Ensina o mestre, logo na introdução de sua obra, que é “o adimplemento [da prestação] atrai e polariza a obrigação. É o seu fim. O tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade... Como totalidade, a relação obrigacional é um sistema de processos”. 182 Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, p. 3. 183 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 528. No mesmo sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações , p. 272. E este último esclarece, na mesma obra e local citados, que os estudos de Jhering tinham por objeto a consideração da boa-fé dos contraentes a

155

denominação de culpa in contrahendo. Jhering baseou seu exame em um

contrato de compra e venda à luz do direito romano, detendo-se especialmente

na situação em que o contrato apresentasse um vício que o tornasse nulo,

sendo tal vício desconhecido do comprador. Este, em tal caso, poderia ajuizar

ação para exigir a conclusão de um contrato válido ou, ao contrário, poderia

apenas buscar o ressarcimento dos danos referentes aos gastos que teve com a

preparação do contrato e com a sua não conclusão184.

Em tal situação, o vendedor responderia pelos danos não em

virtude do contrato ser nulo, uma vez que a nulidade decorre diretamente da

aplicação da norma legal, mas sim do fato de que deveria ter conhecimento do

respeito da celebração de um negócio nulo ou anulável, mas que os horizontes da responsabilidade pré-negocial se expandiram cada vez mais, até englobarem em seu conceito também as hipóteses de negócio válido e eficaz, mas que no processo de formação haviam surgido danos a serem reparados, e ainda as situações nas quais não se tinha celebrado negócio algum, em virtude de ruptura da fase negociatória ou decisória. 184 Indaga Josserand, analisando a questão referente ao direito de não contratar, ou seja, o direito de se recusar a dar ao negócio a conclusão que a outra parte deseja, se tal direito é suscetível de abuso. Em princípio, prossegue, a resposta é negativa, pois o contrato é definido como o livre acordo entre duas vontades, e a idéia de contrato obrigatório seria um monstro jurídico, uma contradictio in adjeto. No entanto, informa Josserand que há casos em que essa recusa pode se mostrar abusiva ou, até mais do que isso, pode mesmo se mostrar ilegal, intrinsecamente ilícita. Isso poderia acontecer, por exemplo, em relação àqueles que exercem suas atividades por autorização ou delegação do poder público e sob o controle deste. Tais pessoas não podem pretender escolher seus clientes ou negar seus serviços a quem os solicitar, de modo arbitrário. Seria o caso dos notários, operadores de câmbio, instituições financeiras, etc. Da mesma forma, as empresas que exercem um monopólio de direito ou de fato não têm a faculdade de escolher seus clientes, como ocorre com as estradas de ferro, com as empresas de ônibus ou de transporte aéreo. Refere-se o mestre, ainda, ao caso de teatros e cassinos (em geral, casas de diversão abertas ao público), que não têm o direito absoluto de recusar a entrada, em seu estabelecimento, de quem bem entenderem. Essa hipótese de vedação arbitrária do ingresso está se tornando cada vez mais comuns em danceterias (ou estabelecimentos semelhantes) das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a entrada de clientes pode ser permitida ou negada de modo absolutamente arbitrário, conforme a boa ou má-vontade de um todo-poderoso porteiro do estabelecimento. Josserand cita antiga decisão da Corte de Cassação (nota 3, p. 128), de fevereiro de 1896, em hipótese na qual o Cassino de Nice pretendia se valer do “direito absoluto e sem controle” de recusar a entrada de quem bem entendesse. A Corte entendeu que tal pretensão era infundada, não podendo ser invocadas as regras sobre a liberdade de comércio ou da indústria para barrar o acesso ao cassino sem qualquer razão plausível, apenas por capricho ou rancor. Não é demais lembrar que no nosso Código Civil, especificamente no artigo 429, foi disciplinada a questão da oferta ao público, que equivale à proposta de contratar. Logo, se uma casa de diversão divulga seus eventos para o público em geral, tem-se aí uma situação equivalente a uma proposta de contrato, e esse estabelecimento estará obrigada a mantê-la para quem quer que concorde com os termos em que foi feita. Ademais, não custa lembrar que a discriminação pura e simples entre os “candidatos a freqüentadores” viola, mais do que o princípio da isonomia, o princípio basilar da dignidade humana, sendo por isso, ao nosso ver, inaceitável. Cf. Louis Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, pp. 126-129.

156

vício capaz de gerar a nulidade e tomar as providências capazes de evitá-la. O

problema que se constitui no principal foco da investigação de Jhering, no

entanto, surge no momento em que se procura determinar a natureza jurídica

dessa responsabilidade do vendedor, ou seja, seria contratual ou aquiliana?

Em uma primeira análise, como não houve qualquer contrato

válido entre as partes, parece que essa responsabilidade do vendedor só

poderia ser aquiliana, ou seja, extracontratual. Jhering, no entanto, sustentou

que os danos do comprador só se concretizaram em virtude de uma declaração

de vontade que tinha o escopo específico de fazer surgir um contrato, e por

isso a responsabilidade do vendedor, no direito romano, deveria ser

considerada como contratual185.

185 Doutrinadores mais modernos, contudo, apontam que a proximidade, o contato entre os sujeitos, já é capaz de gerar a relação contratual de fato, da qual decorre um liame obrigacional entre os sujeitos, capaz de gerar os mesmos efeitos jurídicos do contrato. Mário Júlio de Almeida Costa, por exemplo, assinala que, em certos casos, ligados aos bens e serviços massificados, o comportamento de uma pessoa, pelo seu significado social típico, ainda que não apresente os requisitos jurídicos para a configuração de um contrato (por não restar atendida a forma ou por não ter havido uma declaração de vontade, por exemplo), pode ser caracterizado como uma relação contratual de fato (ou, como preferem alguns, um comportamento social típico, denominação que tem a vantagem de deixar claro que não depende de uma declaração da vontade, como ocorre com os contratos) capaz de gerar as mesmas conseqüências jurídicas de um contrato, mas que com este não se confunde. Assim, prossegue o autor português, “decorre da doutrina exposta que a autonomia privada se realiza através de duas formas típicas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente o contrato – no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas podem ceder diante da falta de consciência de declaração ou incapacidade do declarante; a outra reporta-se às relações contratuais fáticas – onde a irrelevância do erro na declaração e das incapacidades se justifica por exigências de segurança, de celeridade e demais condicionalismos do tráfico jurídico”. Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações , p. 203. Essa doutrina dos “comportamentos sociais típicos” foi invocada pelo Superior Tribunal de Justiça, em situação na qual se discutia a responsabilidade de um estabelecimento bancário, em virtude do furto do veículo de um cliente, em área disponibilizada para o atendimento à clientela. O STJ esclareceu, no Acórdão, que não se tratava de contrato de depósito, havido entre o cliente e o banco, mas que ainda assim uma vinculação obrigacional entre ambos, decorrente da simples existência da “conduta socialmente típica”, e que em virtude desta incumbiria ao “estabelecimento fornecedor do serviço e do local de estacionamento o dever, derivado da boa -fé, de proteger a pessoa e os bens do usuário”. Esclareceu, ainda, aquela Corte Superior, que “não há cuidar de contrato de depósito, simplesmente porque não existe contrato de depósito. Há apenas o descumprimento do dever de proteção, que deriva da boa-fé, dever secundário independente. No âmbito da responsabilidade civil, seria dispensável estabelecer a distinção entre a responsabilidade contratual ou extracontratual, pois ambas encontram sua fonte no ‘contato social’” . STJ, 4ª Turma, AgRg no Ag 47.901/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12.09.1994, DJ 31.10.1994, p. 29505. Veja -se que, como bem elucidou o referido Acórdão, para efeitos práticos mostra-se irrelevante perquirir se houve ou não o contrato, vale dizer, se a responsabilidade é contratual ou aquiliana, pois de qualquer modo é certo que haverá o dever de reparar os danos sofridos.

157

A partir de tal análise, Jhering conclui que ainda que um contrato

seja nulo, dele poderão decorrer conseqüências jurídicas, e que tal acontece

porque em um contrato, se por um lado é certo que o objetivo principal é no

sentido de que sejam cumpridas as prestações principais (no caso da compra e

venda, a entrega da coisa, pelo vendedor, e o pagamento do preço, pelo

comprador), por outro lado também existem alguns objetivos acessórios,

como, por exemplo, a devolução das arras que já foram entregues, e mesmo no

caso em que não devam ser cumpridas as prestações principais, em virtude da

nulidade do contrato, ainda assim sobrevive a necessidade de cumprimento

dos elementos acessórios.

Tomando essa constatação como ponto de partida, pode-se

observar que em uma relação obrigacional existem as prestações principais, a

serem cumpridas pelos sujeitos envolvidos, e que sem sombra de dúvida se

constituem no principal elemento da obrigação. No entanto, ao lado dessas

prestações principais, existem vários outros deveres laterais, ou acessórios, e

que também devem ser observados e cumpridos pelos sujeitos da relação

obrigacional186, que deverão observar determinadas condutas. Em outras

186 As obrigações acessórias são uma criação jurisprudencial comum aos sistemas jurídicos francês e alemão, e são fundamentais para o estudo das obrigações com suporte no princípio da boa-fé, tendo influenciado consideravelmente o direito dos contratos contemporâneo. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 511, n° 1750. E esclarece a autora, ainda, na mesma obra (p. 510, n° 1752), que a denominação usada é diversificada, falando-se em “obrigações acessórias”, “obrigações secundárias”, “obrigações de comportamento”, “obrigações fundadas na boa-fé”, etc. Na realidade, encontra-se na doutrina quem sustente a diferenciação em virtude da adjetivação dos diversos deveres: os deveres secundários seriam aqueles que complementam a prestação principal, como por exemplo o dever do vendedor de entregar a coisa em perfeito estado de funcionamento; os deveres acessórios, por sua vez, seriam aqueles ligados à conduta do sujeito, e não à prestação, tais como o dever de informação, o de proteção, etc. Nesse sentido, por exemplo, a lição de Rogério Ferraz Donnini, Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 40. Outra divisão, ainda, pode ser encontrada em Laerte Sampaio, que os separa em deveres principais e secundários, sendo estes últimos subdivididos, ainda, em secundários acessórios da prestação principal e secundários com prestação autônoma, e acrescenta, ainda, os deveres laterais, sendo nestes últimos que se enquadrariam os decorrentes da boa-fé. Cf. Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, pp. 54-55. Neste trabalho, no entanto, usamos as expressões “deveres laterais”, “deveres acessórios”, deveres secundários”, etc., como se fossem sinônimas, sem maiores preocupações com a distinções entre elas, mesmo porque pensamos que tal distinção é artificial e cerebrina, sem maiores interesses práticos. Com efeito, se

158

palavras, o que se observa é que “o contrato não envolve só a obrigação de

prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta”187.

É que a obrigação não pode, a toda evidência, ser resumida

exclusivamente ao cumprimento das prestações centrais, eis que tal

cumprimento requer uma série de medidas complementares, que servirão para

possibilitá-lo. Assim, esses deveres laterais não estão diretamente ligados ao

cumprimento das prestações principais (pelo menos os que nos interessam no

presente estudo), vale dizer, não se confundem com estas, mas funcionam

como elemento de apoio para que as partes envolvidas na obrigação possam se

desincumbir a contento de suas respectivas obrigações principais.

De modo mais claro, pode-se dizer que os deveres acessórios

servem, dentre outras coisas, para possibilitar que um contrato venha a ser

celebrado, por exemplo, pois neles está englobado o dever de esclarecimento

sobre todas as circunstâncias relevantes, que digam respeito a tal contrato. Ou

seja, antes de celebrar o contrato, e mesmo para decidir se irá ou não celebrá-

lo, cada um dos possíveis contratantes deverá receber do outro todas as

informações e esclarecimentos que se façam necessários, pois só de posse de

tais dados é que poderá manifestar sua vontade de modo a que esteja isenta de

qualquer vício, pois sempre lhe caberá a opção de não contratar, caso não

concorde com as circunstâncias que já lhe foram previamente esclarecidas.

Se optar por contratar, uma vez celebrada a avença, os deveres

acessórios funcionarão como balizamento para o comportamento dos

contratantes, pois tal comportamento deverá ser orientado, em todos os

entre as partes há o dever de cooperação recíproca, como decorrência da boa-fé, então parece-nos que pouco importa, para fins práticos (em relação ao estudo da boa-fé, bem entendido), se essa cooperação se dirige a permitir o próprio cumprimento da prestação principal ou se é para permitir que a outra parte possa colher o máximo proveito dessa prestação. 187 Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, P. 108.

159

momentos, para que se possa chegar ao ponto culminante do contrato, que é o

cumprimento das prestações principais, e nesse sentido os deveres laterais

servem como preparação para o cumprimento da prestação central.

Os contratantes, portanto, desde quando começam a entabular as

conversações sobre a celebração do contrato e ao longo de toda a execução

deste, deverão se comportar com lealdade, um em relação ao outro, não

adotando qualquer medida que impeça a outra parte de cumprir sua própria

prestação ou de obter o máximo proveito da prestação que receber. É nesse

sentido que ensina Orlando Gomes188 que a boa-fé deve traduzir o interesse

social de segurança das relações jurídicas, e por isso “as partes devem agir

com lealdade e confiança recíprocas... entre o credor e o devedor é

necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato”.

Mas é evidente que não se trata, tão-somente, do surgimento de

obrigações negativas, ou seja, não basta que cada uma das partes se abstenha

de praticar qualquer ato que impeça a outra de obter o máximo proveito da

prestação recebida. Pelo contrário, a boa-fé impõe a obrigação de fazer

(positiva, portanto) tudo quanto seja necessário para assegurar à contraparte o

resultado útil da prestação, ou seja, cada contratante não estará limitado

apenas àquilo que expressamente assumiu no contrato, mas a tudo o que se

mostrar necessário para assegurar ao outro o resultado útil da prestação

devida189.

Veja-se que o exame dos contratos à luz do princípio da boa-fé

conduziu a uma importantíssima modificação, eis que o contrato deixou de ser

188 Orlando Gomes, Contratos, p. 43. 189 Emilio Betti, Teoria generale delle obbligazoni, v. I, p. 94. “...il criterio della buona fede porta ad imporre, a chi deve la prestazione, di fare tutto quanto è necessario – sia stato o non sia stato detto – per assicurare alla controparte il risultato utile della prestazione stessa... Pertanto possiamo dire che la buona fede, in quanto integrativa dell’obbligo testualmente assunto col contratto, impone al debitore di fare non soltanto quel che egli ha promesso, ma tutto quello che è necessario per far pervenire alla controparte il pieno risultato utile della prestazione dovuta”.

160

visto como a representação de direitos antagônicos, levando os contraentes a

serem considerados como parceiros, e não mais como opositores um do outro,

como informa Laerte Marrone de Castro Sampaio 190. E essa necessidade de

que os contratantes colaborem um com o outro afeta toda a sociedade, eis que

todo contrato cumpre uma função social, e por isso interessa à sociedade que

os contratantes atuem de modo correto, criando um novo espírito contratual,

que pode ser chamado de princípio da sociabilidade191.

Na medida em que as relações sociais e econômicas vão se

tornando mais e mais complexas, também as relações obrigacionais seguem a

mesma tendência, pois estas estão em função direta daquelas, e a

conseqüência é a hipertrofia do conteúdo dessas relações obrigacionais, que

cresce de modo contínuo e paralelo ao aumento de complexidade das relações

sociais. O problema foi magistralmente descrito por Josserand192, para quem

“...é o mundo das obrigações que se multiplica em todos os seus compartimentos, e cria, com as suas transformações incessantes e rápidas, uma sociedade cada vez mais complexa e mais ativa; as relações obrigacionais estão em função das relações econômicas e sociais, de modo que a intensificação destas determina fatalmente o desenvolvimento daquelas; a multiplicação das relações entre os seres humanos determina necessariamente um entrelaçamento dos liames jurídicos, e a hipertrofia do conteudo obrigacional dos contratos nao é senão uma das manifestações mais características desse fenômeno”.

E mesmo depois de concluído o cumprimento das prestações

principais, muitas vezes ainda se mostrará necessário que um deles preste

assistência ao outro, esclarecendo sobre o correto uso de um equipamento, por

exemplo, ou então garantindo a obtenção de peças que se mostrem

190 Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 30. 191 Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, p. 551. 192 Louis Josserand, O Desenvolvimento Moderno do Conceito Contratual. In: Revista Forense, n° 72, Dezembro de 1937 , p. 533.

161

indispensáveis à manutenção, ou ainda evitando uma concorrência que possa

se mostrar desleal, por captar a clientela que antes comparecia ao negócio que

foi para o outro alienado.

Como se vê, apenas a partir desse breve exemplo acima indicado,

os deveres acessórios se desdobram em diversos matizes, podendo surgir antes

mesmo de vir a se concretizar a obrigação (ou mesmo em hipóteses nas quais

a obrigação nem virá a se concretizar), manifestando-se ao longo de toda a

vigência da mesma, impelindo os sujeitos envolvidos a se comportarem de

modo tal que cada um deles não apenas cumpra a sua prestação, mas também

obtenha a prestação que lhe é devida e dela possa obter o máximo proveito, e

em alguns de seus aspectos ainda perdurando mesmo depois que as prestações

principais já foram corretamente cumpridas por cada um deles.

Esses múltiplos deveres acessórios, portanto, permeiam as

relações sociais em geral, e não apenas os contratos, sendo exatamente por

essa razão que podem surgir independentemente de ainda não ter surgido o

contrato e ainda mesmo que este nem ao menos venha a se aperfeiçoar ou,

ainda, como veremos adiante, mesmo depois do mesmo já ter sido extinto.

É nesse sentido, indicado no parágrafo anterior, que Emilio

Betti193 afirma que a lei exige de ambos os contratantes o mútuo respeito à

boa-fé, tanto no momento em que se vai formar o vínculo obrigatório quanto

durante o desenvolvimento da relação contratual e por ocasião da execução da

obrigação, sendo que, por essa razão, prossegue o ilustre autor italiano, para se

compreender o verdadeiro sentido da boa-fé é preciso observar todas as

193 Emilio Betti, Cours de Droit Civil comparé des obligations, 1957-1958, p. 79. “En obéissant aux exigences morales de la conscience sociale, la loi exige de tous les deux contractants un respect mutuel de la bonne foi, soit au moment de la formation du lien obligatoire, soit pendant le dévellopement du rapport e dans l’exécution de l’obligation... Or pour bien comprendre le sens de ce standard ou critérium-guide qualifié, comme ‘bonne foi’, il faut embrasser d’un coup d’oeil les multiples exigences d’une communion sociale et les devoirs qu’elles comportent pour les particuliers qui y coexistent”.

162

múltiplas exigências impostas pela vida em comunidade e os deveres que daí

decorrem para os particulares que dela fazem parte.

Nessa ótica, os deveres laterais podem ser desmembrados em

deveres de proteção, de informação, de lealdade, de assistência, etc. Na

realidade, embora alguns autores apresentem suas próprias classificações, o

fato é que não é possível uma sistematização uniforme, ou seja, não é possível

estabelecer uma lista taxativa, contendo todos os deveres acessórios que

podem surgir nos casos concretos, tamanha é a sua diversidade.

Essa variabilidade dos deveres acessórios pode ser facilmente

explicada se observarmos que o próprio conteúdo normativo da boa-fé só pode

ser delineado em cada caso concreto, em função das peculiaridades desse

mesmo caso (veja-se, retro, o item 1.6). Em outras palavras, o conteúdo da

boa-fé, enquanto norma de conduta, como já vimos, varia conforme as

circunstâncias de cada caso concreto onde se busca esteio no princípio da boa-

fé, e tal conteúdo se mostrará diferente cada vez que forem diferentes as

realidades fáticas dos casos examinados.

Dessa forma, se os deveres secundários se apresentam como

manifestações concretas da boa-fé, vale dizer, se tais deveres se revelam, em

cada situação real, como sendo a conduta a ser adotada pelo sujeito, para que

seu comportamento obedeça aos ditames da boa-fé, é evidente que, se o

conteúdo da boa-fé se mostra variável, então os deveres acessórios, que são

uma das suas manifestações concretas, também se mostrarão diversificados,

variando em cada hipótese concreta, em função das características dessa

mesma hipótese, da mesma forma que ocorre com a boa-fé em si mesma, que

é a fonte de onde se irradiam os deveres laterais. Em resumo, se a fonte (a

boa-fé) varia, o que dela se origina (os deveres laterais) também varia.

163

Béatrice Jaluzot194 aponta como sendo de Wilhelm Weber a mais

clara das classificações dos deveres acessórios, contendo seis categorias

principais:

a) obrigação de diligência em sentido estrito, que impõe um

comportamento de modo a assegurar uma execução diligente do contrato,

compreendendo, entre outras, a obrigação de vigilância, a de enviar a coisa e

as obrigações de tomá-la sob sua proteção;

b) obrigação de proteção em sentido estrito, prevenindo os danos

não apenas em relação ao objeto da prestação, mas também quanto aos objetos

necessários à prestação e às partes da relação obrigacional;

c) obrigações de informação , que se manifesta sempre que

houver necessidade de responder a uma questão implícita ou explícita, em

virtude da boa-fé;

194 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 511-512, n°s 1756 a 1762. Mas a autora acrescenta, ainda, um sétimo dever, por ela denominado de obrigação de mitigação, e que consistiria na obrigação positiva de evitar o acréscimo dos danos nos casos onde a inexecução dos contratos faz nascer uma responsabilidade contratual, e exemplifica com uma situação concreta, na qual o locador esperou onze anos, antes de cobrar os aluguéis em atraso e pleitear a resolução do contrato, tendo entendido o tribunal, em tal caso, que uma espera tão longa provocou o aumento inaceitável da dívida, e que por isso estava caracterizada a atuação contrária à boa-fé, por parte do locador (obra citada, p. 521, n° 1795). Em um caso do quotidiano, por nós presenciado, uma locadora de vídeos alugou um DVD para um cliente, que não o devolveu no prazo assinalado. A locadora, por sua vez, aguardou quase quatro anos para cobrar a devolução e os aluguéis em atraso, que já superavam os cinco mil reais, ou seja, já equivaliam a cerca de cem vezes o valor do próprio DVD. Veja-se que o nosso Código Civil, ao disciplinar o contrato de seguro, trata especificamente de situação onde se pode vislumbrar essa obrigação a qual Béatrice Jaluzot denominou de mitigação. Trata-se do artigo 771, do nosso Código Civil, onde se lê que o segurado, ocorrido o sinistro, deverá adotar as medidas imediatas, que se fizerem necessárias (e que estejam ao seu alcance, é evidente) para minorar-lhe as conseqüências, sob pena de perda do direito à indenização. A situação descrita pela ilustre autora, não restam dúvidas, se revela de grande importância prática, eis que sua ocorrência, na prática, é bastante comum. No entanto, pensamos que a denominação própria e a tentativa de enquadramento como uma categoria à parte se mostram completamente equivocadas, uma vez que essa suposta obrigação de mitigação , na realidade, nada mais é do que o dever de cooperação . Com efeito, como veremos poucas linhas à frente, neste mesmo item, o dever de cooperação se caracteriza pela imposição, a cada um dos sujeitos, da adoção de uma conduta que proteja os interesses do outro, todas as vezes em que for possível fazê -lo sem prejuízo dos seus próprios interesses e sem que daí lhe decorram grandes sacrifícios. Logo, o que nos parece é que esse dever de mitigação, como descrito, se enquadra nesse conceito mais amplo de dever de cooperação, por isso que, ao evitar o acréscimo da dívida alheia, o sujeito nada mais estará fazendo do que proteger os interesses do outro, sem prejuízo dos seus próprios.

164

d) obrigação de instrução, compreendendo a obrigação de alertar,

de transmitir uma obrigação e de explicação, surgindo todas as vezes em que

houver um dado desconhecido pela outra parte e que deva ser conhecido para

que o contrato possa ser cumprido ou para que essa outra parte possa desfrutar

integralmente da prestação que obteve;

e) obrigação de cooperação, que impõe a necessidade de ajudar a

outra parte na conclusão e na execução de um contrato, e em particular, de

ajudar o outro sujeito do negócio contra os obstáculos surgidos durante a

execução;

f) obrigação de preocupação com o outro sujeito, nascendo das

relações humanas entre as partes e dos interesses comuns, como é o caso, por

exemplo, da fidelidade e da lealdade entre as partes contratantes.

Outra classificação bastante conhecida é a do ilustre civilista

português, Mário Júlio de Almeida Costa195, que primeiramente a apresenta de

modo macro, e em seguida apresentando as hipóteses dos deveres que

denomina de “laterais”, e que são os que se constituem no foco no nosso

estudo, no presente momento. Assim, diz o jurista luso que existem, em

primeiro lugar, os deveres principais (ou primários) de prestação, que se

constituem na “alma” da relação obrigacional, e que definem o tipo do

contrato.

Ao lado deles existem, ainda, os deveres secundários (ou

acidentais) de prestação, e que se subdividem em duas modalidades: a) os

deveres secundários meramente acessórios da prestação principal, que se

destinam a preparar o cumprimento ou assegurar sua perfeita realização; b) os

deveres secundários com prestação autônoma, que ainda podem se apresentar

como sucedâneos do dever principal (por exemplo, a indenização resultante da 195 Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, pp. 65-67.

165

impossibilidade culposa, que substitui o dever principal) ou coexistentes com

o dever principal (no caso da mora ou cumprimento defeituoso, por exemplo).

Além dos deveres de prestação, no entanto, prossegue o jurista

português, na mesma obra e lugar citados, existem ainda os deveres laterais,

que podem derivar de uma cláusula contratual, de um dispositivo de lei ou do

princípio da boa-fé. Os deveres laterais não interessam diretamente ao

cumprimento da prestação principal, e sim ao exato processamento da relação

obrigacional. Esses deveres laterais, prossegue o autor, podem ser

apresentados em vários tipos, como os deveres de cuidado, previdência e

segurança, deveres de aviso e informação, deveres de notificação, deveres de

cooperação, e os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao

patrimônio da contraparte.

De qualquer sorte, convém observar que essas divisões, acima

apresentadas, dos deveres secundários, além de incompletas, ainda apresentam

o pecado da imprecisão, sendo que apenas para fins didáticos é que tais

deveres podem ser apresentados como se houvesse uma clara distinção entre

eles, eis que, na realidade, a linha que separa uns dos outros, muitas vezes,

tem posição incerta e imprecisa, e um mesmo dever pode ser apresentado

como sendo de informação e de proteção, por exemplo, pois apresenta as

características de ambos. Veremos, adiante, alguns exemplos dessa pouca

clareza, que por vezes ocorre na distinção entre os diversos deveres

acessórios.

Esses deveres, como dissemos linhas acima, são independentes da

prestação principal a ser cumprida por cada um dos sujeitos, e essa é a razão

dos mesmos se manifestarem antes de um contrato ser celebrado ou mesmo

que nunca venha a sê-lo, e de se prolongarem mesmo depois que o contrato já

se extinguiu, em virtude do cumprimento das prestações recíprocas. Alguns

166

exemplos ajudarão a melhor esclarecer essas afirmações, desde logo

esclarecendo que os exemplos apresentados não têm a pretensão de esgotar o

rol de deveres acessórios que podem surgir em um caso concreto, mesmo

porque, como já vimos acima, poucas linhas atrás, não existe esse rol taxativo.

Comecemos pelo dever de cooperação, que sem sombra de

dúvida se apresenta como um dos principais – se não o principal – modo de

concretização do conteúdo normativo do princípio da boa-fé, e tanto assim

que, em alguns casos, a cooperação chega mesmo a se confundir com a

solidariedade social, imposta pelo texto constitucional como um dos objetivos

fundamentais da República brasileira (veja-se, sobre esse assunto, o item 1.6,

retro). Essa importância tão destacada do princípio da cooperação pode ser

explicada pelo fato de que, embora se tratando de obrigação acessória, seu

objetivo direto e específico, em muitos casos, é possibilitar o cumprimento das

obrigações principais, preservando o bom andamento do contrato e a

eliminação dos entraves à sua execução.

Suponha-se que em uma relação obrigacional, como garantia da

dívida, o devedor entrega ao credor as ações de uma determinada empresa.

Estando ainda pendente a obrigação, e encontrando-se as ações com o credor,

o devedor pede que ele as venda, em virtude da possibilidade de

desvalorização, e em seguida adquira as ações de uma outra companhia

específica. O credor, no entanto, recusa-se a atender a solicitação. Logo em

seguida, as ações que estavam em seu poder se desvalorizam em 35%,

enquanto as ações que o devedor pretendia adquirir valorizaram-se em 40%.

Na situação acima relatada, entendeu o Tribunal do Império, na

Alemanha, que o credor havia violado o seu dever acessório de cooperação,

imposto em decorrência do princípio da boa-fé, conforme relata Béatrice

167

Jaluzot196, sendo que, se um dos sujeitos da obrigação (no caso, o credor) pode

sem problemas atender aos interesses do outro (o devedor), sem que daí lhe

decorra qualquer prejuízo ou sacrifício excessivo, e mesmo assim não o faz,

então esse sujeito descumpriu o seu dever de cooperação, agindo de modo

contrário à boa-fé.

Observe-se que a situação mencionada traz interessante solução

para a aferição, nos casos concretos, sobre se houve ou não a infração ao dever

de cooperação. É que, no mais das vezes, para atender esse dever, o sujeito

deverá adotar um comportamento ativo, deverá tomar alguma providência, e

por isso cabe perguntar até onde precisará se esforçar, para cumprir a referida

providência, de modo a não infringir o dever de cooperação. Em outras

palavras, quais sacrifícios podem ser exigidos do sujeito da relação

obrigacional, para que não reste infringido o dever lateral de cooperação?

O critério acima apresentado, para a resposta da pergunta, se

apresenta de modo objetivo: não se poderá exigir do sujeito, a pretexto de

atendimento ao dever de cooperação, o sacrifício desmesurado, a afetação

significativa dos seus próprios interesses, para que possam ser atendidos os do

outro sujeito. No entanto, se for possível a um dos sujeitos atuar de modo a

preservar os interesses do outro, sem que isso implique em sacrificar os seus

próprios interesses e sem que isso lhe demande um grande esforço, então ele

deverá adotar as medidas que se fizerem necessárias, sob pena de restar

violado o dever de cooperação.

Mas não se pode deixar de observar que essa obrigação de

cooperação, dentro de um contrato, não apresenta um conteúdo próprio e

genérico, e por essa razão jamais poderá ser determinada de modo antecipado,

196 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 514, n° 1770.

168

só podendo o juiz, no caso concreto e posteriormente, aferir se houve ou não a

sua violação197.

Vejamos um outro exemplo, agora ligado ao dever acessório de

proteção, que se manifesta tanto em relação à pessoa quanto ao patrimônio do

outro sujeito envolvido. Suponha-se que A pretende comprar um veículo

pertencente a B e, com tal finalidade, o possível comprador vai até a casa do

vendedor, para examinar as condições do veículo e discutir os termos do

negócio. O contrato, no entanto, não chega a ser celebrado, uma vez que A

não se agradou do carro. Enquanto estava na casa de B, contudo, A vem a cair

em um buraco, cuja tampa estava mal colocada e acabou por ceder.

Nessas condições acima descritas, pode-se apontar que, ainda que

não tenha ocorrido a celebração do contrato, já se impunha aos sujeitos

envolvidos o dever de proteção recíproca, e tal dever foi violado por B, que

negligenciou os cuidados que deveria ter tomado, de modo a garantir que A

não seria vítima de qualquer dano. Esse dever acessório de proteção, como

facilmente se percebe, independe de surgirem ou não as prestações principais

(que no caso não surgiram), pois se apresenta como inerente a uma etapa ainda

preparatória para um contrato que é apenas possível. No entanto, tal dever só

se manifestou em virtude de estarem os sujeitos buscando a celebração de um

contrato, e por isso já lhes era imposta a conduta adequada à busca da

proteção recíproca.

Como se vê, portanto, o dever acessório de proteção pode ser

apontado como sendo uma imposição aos sujeitos no sentido de que, ainda

que apenas se esteja na fase das negociações prévias, cada um dele s deve se

abster de causar danos ao outro e, ainda mais, adotar todas as medidas

197 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 516, n° 1777.

169

necessárias para evitar que tais danos ocorram (obrigações negativas e

positivas, como se vê). Devem ser evitados não apenas os danos diretos,

causados à pessoa e ao patrimônio do outro sujeito, mas também os danos

indiretos, ou seja, consistente nas eventuais despesas que foram realizadas por

se mostrarem indispensáveis à contratação.

Na mesma situação da venda do veículo, acima indicada, figure-

se que o comprador, A, tendo gostado do veículo, foi dirigir o mesmo nos

arredores, para poder decidir se efetivamente iria comprá-lo. Ocorre que o

carro apresentava um problema nos freios, que com alguma freqüência

falhavam, e A veio a sofrer violento acidente, ferindo-se gravemente. Nesse

caso, embora o contrato, mais uma vez, não tenha chegado a ser celebrado,

percebe-se com facilidade que o vendedor, B, deixou de cumprir o dever

acessório de informação, pois deveria ter esclarecido ao comprador A todas as

circunstâncias relevantes que fossem referentes ao negócio, dentre as quais,

obviamente, a questão do freio.

O dever lateral de informação, portanto, impõe a cada um dos

envolvidos nas negociações que preste ao outro todos os esclarecimentos que

se fizerem necessários à correta avaliação do negócio, sendo certo que tais

esclarecimentos funcionarão como elemento fundamental para que ambos os

sujeitos possam avaliar se lhes interessa ou não a conclusão do mesmo.

O dever de informação, como pode ser facilmente imaginado,

comporta uma grande diversidade de conteúdos, uma vez que o seu

atendimento pode ter as mais diversas finalidades, dentro de uma relação

obrigacional. Assim, por exemplo, na fase das negociações pré-contratuais, a

informação deve ser prestada para que o outro sujeito possa avaliar

corretamente se lhe será ou não conveniente a celebração do contrato.

170

Ao longo do contrato, por sua vez, as informações adequadas

podem ter a função de proteger o outro sujeito contra danos decorrentes do

mau uso, ou de permitir que um certo bem, que lhe foi transferido, possa ser

usado, ou de possibilitar que a prestação seja adequadamente cumprida, etc.

E mesmo na fase pós-contratual, muitas vezes poderão ser

necessárias informações, sobre a operação correta de um determinado bem ou

sobre a assistência técnica.

Uma situação específica, na qual a violação do dever de

informação é reprimida pelo nosso Código Civil, é a que se refere à omissão

dolosa, na fase pré-contratual de um contrato bilateral. Com efeito, ao tratar

sobre os defeitos do negócio jurídico, especificamente sobre o dolo, estabelece

o Código, no artigo 147, que nos negócios jurídicos bilaterais, se uma das

partes omite a informação acerca de fato ou qualidade que a outra desconhece,

estará caracterizada a omissão dolosa, se provado que o negócio não se teria

realizado, caso a informação tivesse sido prestada. Em tal hipótese, a presença

do dolo torna o negócio jurídico anulável, nos termos do artigo 145, do

mesmo Diploma Civil.

Seria o caso, por exemplo, do Município que, na França,

negociou com um proprietário a compra de um terreno, omitindo-lhe contudo

que as normas administrativas referentes ao direito de construir, que impediam

a construção nesse mesmo terreno, estavam sendo revisadas, e tanto assim

que, poucos meses depois da compra, já sendo possível a construção, o

Município revendeu o imóvel por valor quatro vezes superior ao que havia

pago (veja-se, para maiores detalhes, o item 1.7, retro, onde a situação é

descrita em suas minúcias). No caso, o imóvel só foi vendido ao Município

porque este, dolosamente, ocultou do vendedor que em breve seria possível

erguer a construção até então proibida.

171

Mas neste ponto é importante observar que viola o dever de

informação não apenas aquele que omite algum esclarecimento, mas também

aquele que presta informações incorretas, e com isso impede que o outro

sujeito possa fazer a correta avaliação de todas as circunstâncias, e em última

análise impede que possa haver a real manifestação livre de vontade, que

haveria se fosse honesta a conduta do que se conduziu de modo a violar tal

dever.

E também é interessante comentar que os deveres secundários,

como já havíamos mencionado linhas atrás (neste mesmo item), muitas vezes

se confundem uns com os outros, nem sempre sendo possível traçar uma

divisão clara entre eles. Assim, por exemplo, muitas vezes o dever de

informação se confunde com o dever de proteção, como no exemplo

apresentado, no qual o vendedor de um automóvel deixou de informar a um

possível comprador, que saiu com o carro para testá-lo, sobre um problema

nos freios. Veja-se que houve clara infração ao dever de informação, mas ao

mesmo tempo também se caracterizou a quebra do dever de proteção, eis que

expôs a perigo a integridade física da outra pessoa.

Da mesma forma, na venda de um produto extremamente tóxico,

deve ser informada ao adquirente essa característica, além de também

deverem ser informadas as precauções que devem ser tomadas para o

manuseio seguro e adequado do produto, o que deve ser feito em caso de

contato ou ingestão acidental com o mesmo, etc. Mas facilmente se percebe

que esse dever, que pode ser caracterizado como sendo de informação,

também pode ser descrito como se tratando de dever de proteção.

A mesma confusão entre os dois deveres colaterais mencionados

também pode ser vista em situação que se mostra extremamente corriqueira, e

que muitas vezes ocorre antes mesmo de ter sido celebrado qualquer contrato

172

ou mesmo depois que tal contrato já foi extinto pelo integral cumprimento. É a

situação de uma loja, por exemplo, cujo piso está sendo lavado. A colocação

de um aviso, indicando que o piso está molhado, e, por isso, escorregadio,

atende não apenas ao dever de informação, mas também ao dever de proteção

aos clientes, ainda que estes ainda não tenham comprado qualquer produto ou

que, já tendo pago o preço e recebido a mercadoria, seus contratos já tenham

sido extintos.

Podemos buscar outro exemplo, agora ligado ao dever de

lealdade, em um caso concreto, do qual tivemos conhecimento, e no qual o

proprietário de um terreno, pessoa medianamente esclarecida, ofereceu-o à

venda, em anúncio público. Um possível comprador, com formação jurídica,

interessou-se pelo imóvel, e fez uma oferta de pagamento parcelado, que foi

aceita pelo vendedor, mediante o esclarecimento (prestado pelo comprador) no

sentido de que, em vez da compra e venda, o negócio celebrado seria o de

promessa de compra e venda, o que conferiria segurança ao alienante.

O possível comprador, então, ofereceu-se para redigir o contrato,

nos exatos termos ajustados por ambos, e o proprietário entregou-lhe toda a

documentação necessária para a elaboração do instrumento contratual.

Passados alguns dias, no entanto, o promitente comprador entrou em contato

com o proprietário e, sem qualquer outra explicação, disse que não tinha mais

interesse no negócio e devolveu-lhe os documentos que havia recebido.

O contrato não chegou a ser celebrado, como se vê, eis que a

promessa de compra e venda só se aperfeiçoa com a obediência à forma

escrita. No entanto, esse abandono injustificado da fase pré-contratual, depois

de ter gerado no outro sujeito a justa expectativa de que o contrato seria

celebrado, de modo muito claro viola o dever acessório de lealdade, que deve

conduzir o comportamento recíproco das partes.

173

É evidente que o simples fato de uma pessoa ter ingressado nas

negociações referentes a um contrato não obriga a que o mesmo venha a ser

efetivamente celebrado, pois tais negociações é que irão, ao final, permitir que

os sujeitos possam decidir pela celebração ou não da avença.

No entanto, parece evidente que, se um dos sujeitos agiu de tal

modo que despertou no outro a justificada confiança na conclusão, a quebra

injustificada de tal confiança (e não o fato de não vir a ser celebrado o

contrato) viola o dever de lealdade, pois o promitente comprador não se

comportou como o proprietário poderia legitimamente esperar que o fizesse,

em virtude de suas atitudes anteriores.

Sobre o tema, vale a pena conhecer a opinião sempre respeitada e

sempre segura de Louis Josserand198, em cujo texto se lê que

“...o direito de contratar não é suscetível de abuso, mas o direito de não concluir um contrato pode, ao contrário, ser contaminado pelo abuso; o mesmo direito que na sua forma positiva é absoluto, torna-se relativo, torna-se motivado (causé), quando considerado no seu aspecto negativo: a recusa de contratar pode apresentar um caráter abusivo, não certamente quando se trata de uma situação completamente negativa, isto é, quando não existe oferta alguma, pois, nesse caso, não sendo possível forçar-nos a contratar, poderemos usar integralmente do direito de inércia. Mas é diferente a situação, desde o momento em que houve uma oferta, a qual constitui, de certo modo, o embrião de um contrato. Não há dúvida de que, em princípio, nos é lícito retirar a oferta que tivermos feito: a simples oferta não nos prende, não tem valor obrigatório. Mas esse direito de retratação não é absoluto; deve ser motivado; é preciso que ele se apóie em causa legítima; inspirada em motivos ilegítimos, a revogação da oferta torna-se geradora de responsabilidade, por ser abusiva; o conceito do abuso encontra aí uma oportunidade para se manifestar.”

198 Louis Josserand, O Contrato de Trabalho e o Abuso dos Direitos. In: Revista Forense, n° 75, Setembro de 1938 , p. 507. E Josserand exemplifica, na mesma obra e local citados, com os casos ocorridos em França, nos quais as empresas se recusavam a admitir nos seus serviços qualquer trabalhador que fosse filiado ao sindicato. Os tribunais resolveram a questão à luz do abuso do direito, condenando o empregador recusante a pagar indenização.

174

O dever acessório de lealdade, como se observa, pode ser descrito

como a imposição que se faz às partes para que não se desviem de uma

conduta honesta, para que cada uma delas não surpreenda o outro negociante

com comportamentos inesperados e que destoam completamente dos que

haviam sido anteriormente adotados. A partir dos comportamentos

anteriormente observados, surgiu uma relação de confiança entre elas, que

passaram a ter razões fáticas para acreditar em um determinado e específico

desdobramento da questão, sendo em seguida violada, sem qualquer

justificativa, essa mesma crença.

Mas veja-se que esse mesmo dever de lealdade, referindo-se à

conduta honesta de cada um dos contratantes, pode ainda ser desdobrado em

inúmeras facetas, conforme as peculiaridades de cada situação concreta.

Assim, suponha-se que durante o encetamento das negociações uma das partes

precisou expor à outra um segredo industrial, para que fosse possível a

obtenção de um financiamento, por exemplo. É evidente que, em tal caso,

além da vedação do abandono abrupto e injustificado das negociações, como

foi visto no parágrafo anterior, também será imposto aos sujeitos o dever de

sigilo, consistente na vedação de divulgar segredos que tenham sido

apreendidos em decorrência das negociações pré-contratuais.

Ainda em relação ao dever de lealdade, pode-se apontar para o

mesmo, também, a proibição da concorrência desleal, nos casos em que o

contrato já havia sido celebrado e está sendo cumprido. Sobre o tema,

inclusive, encontramos algumas situações claramente positivadas em nosso

direito. Assim, por exemplo, em relação ao contrato de trabalho199, a

199 Em relação aos sujeitos do contrato de trabalho, mais especificamente em relação ao empregado, o dever de lealdade ganha uma roupagem própria e especial, apresentando-se como um dever de fidelidade do trabalhador, quanto ao empregador. Esse sentido particular de boa-fé-lealdade impõe ao empregado que se

175

Consolidação das Leis do Trabalho proíbe ao empregado que negocie de

modo habitual, por contra própria ou alheia, quando tais negócios impliquem

em concorrência desleal com o empregador (art. 482, c).

Da mesma forma, a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245, de

18.10.1991), ao permitir que o locador não residencial se oponha à renovação

compulsória com esteio na retomada do imóvel para instalação de fundo de

comercio próprio, já existente há mais de um ano, esclarece que não poderá

ser usado o imóvel retomado para atividade empresarial do mesmo ramo que

era explorado pelo locatário (art. 52, II e § 1º). A idéia, como se vê, está ligada

diretamente à proibição da concorrência desleal, pois o legislador teve a clara

intenção de evitar que o locador, retomando o imóvel, venha a se aproveitar

dos esforços que o locatário havia feito para captar a sua clientela.

Em um último exemplo, suponha-se que uma gráfica tenha

importado uma moderníssima impressora, sendo a única empresa do ramo, na

cidade, a dispor desse tipo de equipamento, e inclusive tendo enviado um de

seus funcionários para participar de um treinamento na fábrica, para poder

operá-lo. Algum tempo depois, por qualquer razão, essa impressora vem a ser

vendida para uma outra empresa, sendo que o pagamento já foi efetuado à

vista e a máquina já foi entregue. O contrato, portanto, foi celebrado e já foi

cumprido, eis que cumpridas foram suas prestações centrais.

No entanto, mesmo após essa execução contratual, e ainda que

nada tenha sido explicitamente ajustado, é evidente que o vendedor precisará

prestar assistência ao comprador, em relação ao manuseio, auxiliando-o nas

eventuais dificuldades que venham a surgir na operação de tão moderno

equipamento. Ou seja, embora já tenha sido executado o contrato, ainda estará

abstenha de todo ato que possa prejudicar o empregador e que cumpra aqueles que protejam os interesses deste. Cf. Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo , p. 45

176

presente, entre as partes, o dever lateral de assistência, por um dos

contratantes ao outro, e a quebra desse dever (a negativa da assistência) se

configuraria em inaceitável conduta do alienante.

O dever de assistência, dessarte, pode ser apresentado como o

dever que cada uma das partes tem, não apenas ao longo da execução do

contrato, mas também depois do seu cumprimento, de auxiliar a outra no que

se fizer necessário, para que possa ser obtido, da prestação fornecida, o

rendimento máximo possível, ou pelo menos para que tal prestação possa

continuar a ser útil para quem a recebeu. É esse mesmo dever de assistência

que impõe ao fabricante de um determinado produto que, mesmo que resolva

parar de fabricá-lo, continue a garantir as peças de reposição por um tempo

razoável, que somente poderá ser aferido no caso concreto, conforme a

duração estimada do produto em questão.

Nesse último exemplo figurado, referente à venda da moderna

máquina impressora, abre-se um novo campo de investigação, que é o da

responsabilidade pós-contratual (culpa post pactum finitum). Trata-se, como

se vê, do fenômeno inverso ao da responsabilidade pré-contratual: nesta, os

deveres acessórios se manifestam antes mesmo do pacto vir a ser celebrado,

enquanto que na responsabilidade pós-contratual, ao contrário, trata-se de

deveres acessórios que sobrevivem à extinção do contrato, impondo-se aos ex-

contratantes mesmo depois que o pacto já foi extinto.

E nessa mesma linha de raciocínio, ou seja, em relação aos

deveres que se manifestam após a extinção do contrato, e cuja violação dá

origem à responsabilidade pós-contratual, diversos são os deveres acessórios

que podem ser apontados. Assim, por exemplo, suponha-se que em virtude de

um contrato, um dos contratantes tomou conhecimento de determinadas

informações cuja divulgação poderia causar sérios prejuízos ao outro. Nesse

177

caso, parece evidente que se impõe, mesmo depois do término do pacto, o

dever lateral de não revelar tais informações, que foram obtidas ao longo e em

virtude do contrato.

E também poderiam ser apontados, como deveres acessórios que

se manteriam mesmo após a extinção do pacto, o dever de prestar assistência

técnica, o dever de fornecer peças de reposição por um período que se mostre

razoável para o caso concreto, o dever de prestar todos os esclarecimentos

necessários sobre o funcionamento da coisa alienada, para que o adquirente

possa obter da mesma o máximo rendimento, o dever de proteção, no sentido

de evitar que o outro sujeito venha a sofrer danos em sua pessoa ou em seu

patrimônio, o dever de tolerância, etc.

Muito comum, na prática, tem sido uma situação que se liga

exatamente ao dever acessório de proteção. É no caso do chamado recall, que

com freqüência é feito pelas fábricas de veículos automotores. Muitas vezes, a

partir de pesquisas em laboratório ou de ocorrências concretas, a fábrica

detecta um problema, em relação ao veículo, que pode causar danos aos seus

usuários. Para evitar que tais danos ocorram (dever de proteção), faz ampla

divulgação de um chamado para que os proprietários do veículo em questao

compareçam a uma oficina autorizada, para que o problema possa ser

preventivamente chamado.

Veja-se que, em grande parte dos casos, os proprietários dos

veículos já pagaram integralmente o preço, estando cumprido e extinto o

contrato, mas ainda assim se manifesta o dever acessório de proteção.

Outra situação, cuja ocorrência prática também se revela bastante

comum, é aquela onde havia um contrato de locação de imóvel, na qual o

locatário havia instalado, no prédio alugado, uma loja ou, em se tratando de

um profissional liberal, o local onde recebia e atendia sua clientela. Findo o

178

contrato de locação e mudando-se o locatário para um novo endereço, o

locador deverá aceitar que, durante algum tempo, permaneça afixada, junto ao

imóvel, placa indicativa do novo endereço profissional do locatário, de modo

a lhe permitir o adequado direcionamento de sua clientela.

Também se mostra freqüente a situação na qual um determinado

fabricante, mesmo depois de ter deixado de fabricar um certo produto durável,

deverá ainda continuar, por um período que se mostre razoável, a fabricar e

fornecer as peças de reposição, para o correto e adequado atendimento técnico

aos seus clientes que adquiriram o produto enquanto o mesmo ainda era

regularmente fabricado, e que têm a legítima expectativa 200 de poder continuar

a usar esse mesmo bem durante algum tempo, eis que se trata de produto

durável, como mencionado.

Facilmente se percebe que essas situações de deveres acessórios,

que se manifestam mesmo depois do contrato ter sido extinto, de modo

idêntico ao que ocorre com os deveres pré-negociais, são todas esteadas na

boa-fé, que impõe aos sujeitos envolvidos o dever de, em geral, não frustrar a

confiança que, a partir das negociações que tinham em vista a efetiva

celebração do negócio, veio a surgir entre as partes. Se não fosse assim, veja-

se que o contrato se resumiria a uma simples troca formal de prestações,

despido de qualquer conteúdo relacional entre as partes, esvaziando-se por

completo tão logo estivessem trocadas as prestações recíprocas.

Faz-se aqui um breve parêntese para uma necessária observação.

É que o leitor mais atento certamente percebeu que, em geral, nos referimos

aos deveres pré-contratuais ou pós-contratuais. Em outras ocasiões, contudo,

200 Não é demais recordar, aqui, a lição de Orlando Gomes, segundo a qual a boa-fé, aplicada em relação à interpretação dos contratos, dirige-se à aferição da vontade real dos contratantes e é explicada pela necessidade de proteger a legítima expectativa de cada um dos contraentes e de não perturbar a segurança do tráfico. Cf. Orlando Gomes, Contratos, pp. 227-228.

179

fizemos referencia aos deveres pré ou pós-negociais. É que, se por um lado

tais deveres têm campo fértil na seara contratual, onde ocorrem com maior

freqüência, por outro, também ocorrem regularmente em outros negócios

jurídicos, além dos contratos.

Imagine-se, por exemplo, um casamento – fora da área contratual,

portanto – que durou longos anos. Após o divórcio, rompido o vínculo

matrimonial, é evidente que cada um dos cônjuges deverá respeitar os

segredos do outro, dos quais teve conhecimento ao longo da convivência na

sociedade conjugal, manifestando-se tais deveres tanto em relação aos

assuntos pessoais quanto em relação, por exemplo, aos assuntos profissionais

do cônjuge. A violação do dever de sigilo, em tal caso, poderá gerar a

responsabilidade civil do cônjuge que o violou, mesmo já estando divorciado

o casal.

Mário Júlio de Almeida Costa201 aponta que “a expressão mais

rigorosa será a de responsabilidade pré-negocial, dado que o problema

transcende o puro domínio dos contratos”, podendo acontecer, também, em

relação aos negócios jurídicos unilaterais. No entanto, prossegue o autor

português, é a denominação “responsabilidade pré-contratual” que atrai a

preferência dos autores em geral, o que pode ser facilmente explicado pelo

fato de que é nos contratos que se encontra o campo principal de atuação dessa

figura.

Veja-se que em todas essas hipóteses acima o dever acessório se

manifestou em situação na qual não havia a prestação central a ser cumprida,

ou por não ter ainda sido celebrado o contrato, e nem chegou a surgir a

prestação principal, ou por já ter sido o mesmo executado, com o

201 Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 270 (nota de rodapé n° 1).

180

cumprimento, pelos contratantes, das prestações centrais que a cada um deles

incumbia.

O que ocorre é que, em alguns casos, ainda que não existam

vínculos contratuais (ou, pelo menos, não existam mais tais vínculos) entre os

sujeitos, há uma proximidade tão grande entre eles que surge,

espontaneamente, um sentimento de confiança recíproca, que não pode ser

impunemente frustrado, e é dessa situação de confiança que derivam os

deveres laterais tantas vezes citados. Aliás, sobre a confiança já se disse que a

mesma atua como verdadeiro cimento da convivência coletiva202.

Façamos, por enquanto, breve parêntese, para que possamos falar

especificamente sobre a confiança entre os sujeitos, antes de retomarmos o fio

da meada. A confiança entre as partes se apresenta como um elemento

essencial entre os interesses das mesmas203, sendo por excelência o elemento

protegido pelo princípio de “Treu und Glauben”, do direito alemão. Aliás,

pode-se observar que a expressão, literalmente traduzida, significa “fidelidade

e confiança”, e segundo a doutrina alemã, o princípio é a expressão da

fidelidade à palavra dada e a obrigação de inspirar confiança, de ser

confiável204.

E não é despiciendo observar que a proteção da confiança não

atende apenas aos interesses privados dos sujeitos do negócio jurídico,

ultrapassando essa esfera tão limitada. Na realidade, o que também se busca é

202 Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 349. 203 Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 28, nota 84. 204 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 86, n° 315.

181

a preservação de um interesse público, consistente na defesa dos valores

sociais da segurança do comércio jurídico205.

Nas palavras de Mário Júlio de Almeida Costa206,

“Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se directamente a confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa-fé; e, por conseguinte, as expectativas legítimas que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração. Convirá salientar, todavia, que o alicerce teleológico desta disciplina ultrapassa a mera consideração dos interesses dos particulares em causa. Avulta, com especial evidência, a preocupação de defesa dos valores sociais da segurança e da facilidade do comércio jurídico”.

Ora, basta lembrarmos que todo contrato, por exemplo, cumpre

uma função social (como, aliás, se encontra expresso no art. 422, do Código

Civil), ou seja, atende a interesses sociais, e por essa razão existe interesse

público em que tal contrato seja celebrado e cumprido em condições

juridicamente seguras para os contratantes.

Por outro lado, continua Béatrice Jaluzot207, não é toda e qualquer

confiança que merecerá receber a proteção, mas tão-somente aquela que se

mostre digna de ser protegida, o que ocorre, precisamente, quando a atitude de

uma das partes faz nascer na outra a confiança de que a primeira não praticará

um determinado ato. De modo contrário, a confiança de uma parte não será

digna de proteção quando a mesma já foi previamente advertida sobre o que

ocorreria nesse negócio jurídico em que se encontra envolvida208.

205 Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp. 70-71. 206 Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 271. 207 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 86, n° 316. 208 No entanto, não se pode deixar de observar que “não há relação necessária entre duração das tratativas e caracterização da confiança na conclusão do contrato, embora não se possa deixar de ponderar que o estado avançado das tratativas é um excelente indicador da existência da confiança na celebração do

182

Além disso, a confiança a ser protegida não é aquela que se

traduz em objetos meramente ideais, abstratos, absolutos e imutáveis no

tempo. Muito pelo contrário, a confiança é um bem cultural, e por essa razão

deve se caracterizar pela existência necessária à ordem jurídico-social que está

vigente naquele momento em que é avaliada, devendo ainda ser dotada do

caráter de realizabilidade. Em outras palavras, em cada lugar e espaço a

confiança será protegida quando tiver concreta eficácia jurídica, servindo

como fundamento de um conjunto de princípios e regras que permitem,

simultaneamente, o cumprimento do que foi pactuado e a repressão à

deslealdade209.

Retomemos, em seguida, a linha de pensamento que foi

brevemente interrompida, uns poucos parágrafos atrás.

Ora, sendo certo que a situação de confiança decorre diretamente

das tratativas para a celebração de um contrato (ou mesmo da execução de tal

contrato), então os deveres acessórios, que têm sua gênese ligada a esse

mesmo dever de confiança, decorrem, ainda que indiretamente, da busca que

as partes desenvolveram para a celebração da avença ou da execução da

mesma. Em última análise, portanto, pode-se com tranqüilidade apontar que

os deveres acessórios, surgidos embora em um momento pré ou pós-

contratual, ainda assim têm natureza contratual, pouco importando se o

contrato nem chegou a ser formado ou se, ao contrário, já se extinguiu.

Neste ponto, convém insistirmos na questão da independência dos

deveres acessórios, frente às prestações principais e, mais do que isso, frente

às relações obrigacionais nas quais se inserem. Tal conclusão pode ser negócio”. Cf. Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das negociações no direito civil brasileiro , p. 119. 209 Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 349.

183

facilmente obtida quando se observa que os deveres acessórios se manifestam

ainda quando a relação obrigacional não chegou a ser formada, como vimos

nos diversos exemplos acima, tanto em relação ao dever de proteção, quanto

ao de lealdade e ao de informação. Da mesma forma, se a relação obrigacional

viesse a ser constituída mas depois anulada em virtude de um vício, ainda

assim haveria os deveres laterais.

Assim, por exemplo, suponha-se que pessoa absolutamente

incapaz viesse a comprar uns móveis em uma loja. O contrato de compra e

venda, no caso, é nulo de pleno direito. Não obstante, se os funcionários da

loja, não tendo ainda sido detectada a nulidade, vão efetuar a entrega na

residência do comprador, e lá quebram um vidro ou provocam algum outro

prejuízo, é evidente que o vendedor deverá ressarci-lo, por ter violado o dever

lateral de proteção (neste caso, em relação ao patrimônio do outro sujeito).

Veja-se, pois, que para a ocorrência do dever lateral mostra-se irrelevante a

eventual nulidade do negócio obrigacional, o que confirma a independência

mencionada, entre os deveres acessórios e a obrigação.

Dessarte, antes da conclusão do contrato têm-se os deveres que se

relacionam à culpa in contrahendo, cuja violação dá origem à

responsabilidade pré-contratual. Após o cumprimento do contrato, por sua

vez, a violação dos deveres acessórios dá origem à responsabilidade pós-

contratual. Mas é claro que, além desses deveres acessórios acima

exemplificados, e que se manifestam antes do contrato se formar ou mesmo

depois de sua extinção, é evidente que outros existem e que se concretizam ao

longo da vigência do contrato, quando, após a sua celebração, o mesmo ainda

está sendo cumprido ou nem ao menos começou a sê-lo.

À guisa de mais um exemplo, suponha-se que uma fábrica de

automóveis e uma loja celebraram um contrato para que a segunda passasse a

184

vender, na cidade onde está estabelecida, os veículos fabricados pela primeira,

sendo que no contrato não foi estabelecido o prazo de vigência. Para que o

contrato pudesse ser adequadamente cumprido, o lojista precisou efetuar

algumas despesas que são inerentes ao ramo de venda de veículos, tais como a

construção de um amplo pátio de exposição dos automóveis, expositores

elevados e giratórios, treinamento de pessoal, propaganda, etc.

No entanto, sabe-se que, em regra, os contratos de prazo

indeterminado podem ser rescindidos a qualquer momento pelas partes

contratantes, mediante aviso prévio concedido à outra210, uma vez que

ninguém pode ser obrigado a contratar ou a se manter vinculado a um

contrato. Nessas condições, poucos meses após a inauguração da loja de venda

de veículos, o fabricante dos automóveis resolve denunciar o contrato, dando

aviso prévio de que em sessenta dias o mesmo será rescindido e não mais

permitirá que o comerciante continue a vender seus veículos.

Ora, é certo que o lojista, dono da revendedora, ao efetuar as

significativas despesas que se fizeram necessárias, para que pudesse dar início

ao negócio, fê-lo por acreditar que o mesmo teria duração suficiente para que

seus elevados investimentos pudessem ser recuperados, pois com certeza não

os faria se soubesse da breve ruptura do contrato. Assim, o procedimento

adotado pelo fabricante, rompendo muito cedo e de modo injustificado o

contrato, quebra a confiança do revendedor, e por isso viola um dever

acessório ligado à conduta dos contratantes no cumprimento do contrato.

210 Nesse sentido, alerta Humberto Theodoro Júnior, O contrato e seus princípios, p. 143, que “nos mecanismos legais de certos contratos onde se inclui, tradicionalmente, a faculdade da resilição unilateral, figuram sempre ressalvas em defesa do outro contratante, para que o exercício do direito potestativo de romper prematuramente o vínculo contratual não se faça de maneira ruinosa ou excessivamente lesiva para ele. A necessidade de um aviso ou notificação seguida de um certo prazo são medidas que invariavelmente se impõem ao denunciante do contrato”.

185

Essa situação, em particular, foi positivada pelo artigo 473,

parágrafo único, do atual Código Civil brasileiro, que expressamente se refere

aos contratos onde é admitida a resilição unilateral, esclarecendo que nos

casos onde uma das partes precisou efetuar investimentos vultosos, a denúncia

do contrato pela outra só irá produzir efeitos jurídicos depois de ter

transcorrido um tempo que se mostre compatível com o vulto dos

investimentos realizados.

Na realidade, em face do que foi dito acima, neste ponto convém

que se faça um breve reparo, de modo a que possamos melhor vislumbrar os

limites impostos pela boa-fé à conduta do sujeito. É que, poucas linhas atrás,

mencionamos que, em regra, os contratos de prazo indeterminado podem ser

rescindidos a qualquer tempo pelas partes contratantes, mediante a concessão

de aviso prévio à outra. Mais adequado, portanto, é que se faça a ressalva no

sentido de que os contratos de prazo indeterminado, salvo abuso no exercício

de tal direito211, podem ser rescindidos a qualquer tempo. E essa situação

retratada pelo artigo 473, do nosso Código Civil, busca reprimir precisamente

essas situações de abuso.

No entanto, de um modo geral, ao contrário do que ocorreu em

outros Códigos, o nosso Diploma Civil foi muito tímido ao regular a

necessidade de que os contratantes observem uma conduta de boa-fé, e que em

última análise significa na observância estrita dos deveres acessórios.

Com efeito, o Código Civil pátrio, em seu artigo 422, estabelece

que os contratantes são obrigados a guardar, na conclusão e na execução do

contrato, o princípio da boa-fé. Não se referiu o nosso Código, como se vê,

aos momentos que antecedem a conclusão da avença, ou seja, a fase pré-

211 Nesse mesmo sentido a lição de Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 351, n° 1239.

186

contratual, e nem à fase posterior à execução contratual, vale dizer, ao

momento pós-contratual212.

Ao contrário do nosso, que é silente a respeito, o Código Civil

italiano, em seu artigo 1.337, aponta expressamente que as partes devem se

comportar de acordo com a boa-fé desde o desenvolvimento das negociações,

estabelecendo de modo claro, portanto, a questão dos deveres acessórios pré-

contratuais. De igual forma, o Código Civil português, em seu artigo 227,

estabelece que a boa-fé deve ser observada pelos negociantes tanto nas

negociações preliminares quanto na formação do contrato.

De qualquer modo, parece evidente que o fato de ter sido sucinto

o nosso Código Civil não tem o condão de afastar os deveres acessórios que se

verificam nos momentos pré e pós-contratual213. É que tais deveres, como já

mencionamos brevemente, supra, decorrem da imposição de uma conduta de

boa-fé aos contratantes (ou aos que se aproximam com a mera possibilidade

de se tornarem contratantes), e tal conduta, ainda que não esteja indicada de

modo explícito, sempre o estará de modo implícito214.

212 Nesse ponto, portanto, é plenamente justificada a crítica de Antônio Junqueira de Azevedo, que na análise do então Projeto de Código Civil já apontava, dentre as insuficiências no tratamento dado à questão da boa-fé objetiva, a falta de previsão quanto à necessidade de sua observação nas fases pré e pós-contratual. Cf. Antônio Junqueira de Azevedo. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista trimestral de direito civil – v. 1, pp. 5. Contudo, como esclareceremos logo adiante, no texto acima, essas deficiências podem ser – e são – facilmente supridas pelo intérprete, para tanto bastando que se proceda à interpretação sistemática. Além do mais, como o princípio da boa-fé tem assento constitucional (veja-se, a respeito, o item 1.6.1, retro), o mesmo se estende por todas as fases do contrato, inclusive os momentos pré e pós-contratuais. 213 E também nos parece evidente que não se pode dizer que “o intérprete do direito brasileiro está forçado a percorrer um caminho mais longo do que os juristas italianos e portugueses para cuidar do período das negociações”, como, ao nosso ver de modo equivocado, assinala Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das negociações no direito civil brasileiro , p. 109. 214 Não nos parece que mereça acolhida, nesse particular, a crítica de Antônio Junqueira Azevedo, para quem não é possível saber, a partir da análise do artigo 422, sequer se o mesmo representa uma norma cogente ou dispositiva, uma vez que o nosso Código Civil não teria adotado a clareza do Código Comercial Uniforme Americano, por exemplo, que de modo expresso assinala que a obrigação de boa-fé não pode ser afastada por contrato, vale dizer, é cogente. Cf. Antônio Junqueira de Azevedo. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista trimestral de direito civil – v. 1 , pp. 4. Não nos parece sequer que possa haver qualquer dúvida séria sobre o fato de que a norma em questão é imperativa, cogente, estando fora do alcance das vontades das partes. Nesse sentido, “a

187

Na realidade, mesmo muito antes da entrada em vigor do atual

Código Civil, ou seja, na vigência do Código de 1916, que nem ao menos se

referia à boa-fé contratual, nossos autores já admitiam de modo tranqüilo a

responsabilidade pré-contratual, por exemplo. Orlando Gomes215, por todos,

há muito já apontava que, embora as negociações preliminares não vinculem e

nem obriguem a contratar, é possível que, em circunstâncias especiais, sua

ruptura brusca, depois de ter sido gerada na outra parte a expectativa de que o

contrato seria celebrado, venha a resultar no dever de indenizar.

Não havendo dúvidas sobre a possibilidade de ser cabível a

indenização, prossegue Orlando Gomes, na mesma obra e local, esclarecendo

que a única dúvida que remanesce é quanto ao fundamento dessa obrigação de

reparar os danos, havendo três opiniões doutrinárias distintas: a) para uns, o

fundamento se encontra na teoria da culpa in contrahendo, ou seja, aquele que

vê frustrada sua fundada esperança de contratar, tem direito à reparação dos

prejuízos sofridos; b) para outros, o fundamento é a teoria do abuso do direito,

pois romper caprichosamente as negociações preliminares seria um

comportamento abusivo, sujeitando o agente ao dever de reparar o dano; c)

para outros, finalmente, o fundamento dessa responsabilidade se encontra no

princípio segundo o qual os interessados na celebração de um contrato devem

comportar-se de boa-fé, procedendo com lealdade recíproca216.

boa-fé opera ex lege. Nem ao agente é dado excluí-la, nem evitá-la. Produz-se ela no mundo fático”. Cf. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 1, p. 197. No mesmo sentido, Rogério Ferraz Donnini, Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 112, afirma que “embora o artigo [422] em análise tenha uma redação pouco precisa, indiscutivelmente em todas as fases (pré-contratual, contratual e pós-contratual) está ínsito o dever de boa-fé e probidade, mesmo porque se trata de cláusula geral, que impõe essa atitude de probidade e correção não somente nas relações contratuais, mas também em qualquer outra relação jurídica, comando esse de ordem pública, consoante estabelecido no parágrafo único do art. 2.035 do novo Código Civil”. 215 Orlando Gomes, Contratos, p. 64. 216 Antônio Chaves, no entanto, cataloga seis teorias diferentes, todas buscando explicar qual seria o fundamento dessa responsabilidade contratual: a) teorias de base contratual pura; b) de base contratual especial ou quase contratual e do enriquecimento indevido; c) baseadas no conceito de convenção ou de garantia tácita; d) na noção de declaração unilateral de vontade; e) na responsabilidade decorrente de dolo ou

188

Na realidade, o que nos parece é que a responsabilidade in

contrahendo, sem sombra de dúvida, encontra seu suporte no princípio da

boa-fé, por isso que as três correntes mencionadas pelo mestre Orlando

Gomes, na verdade, nada mais são do que facetas da boa-fé, ou seja, todas têm

por pano de fundo a boa-fé normativa.

Para que se chegue à conclusão mencionada no parágrafo

anterior, sobre a aplicabilidade ampla da norma de conduta decorrente da boa-

fé, basta que se observe, a respeito, que mesmo na vigência do nosso anterior

Código Civil, que não se referia expressamente ao princípio da boa-fé, a

doutrina217 já apontava com tranqüilidade que o mesmo era um dos princípios

gerais a serem observados em relação aos contratos. Logo, em se tratando de

princípio, será aplicável em todos os momentos jurídicos, e não apenas

durante a execução do contrato, mas também nos momentos pré e pós-

contratuais.

Na realidade, aqui se reforça tema que já foi previamente

examinado, na ocasião sendo tratado com maiores riquezas de detalhes (veja-

se, retro, sobre a classificação jurídica da boa-fé, nota de rodapé inserida no

item 1.5). É que a boa-fé, recorde-se, na verdade, se apresenta como um

princípio geral, e não apenas em um princípio setorial, aplicável ao campo do

direito contratual. Logo, além de encontrar aplicação nos momentos anteriores

de culpa devidamente verificados; f) na noção de abuso do direito; g) nas noções de boa-fé, de eqüidade e dos usos do comércio; h) de responsabilidade pré-contratual sui generis. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade Pré Contratual, p. 107. Deixamos de aprofundar o exame do tema, por se encontrar à margem do objetivo do presente trabalho. 217 Dentre outros, Antunes Varela, Direito das Obrigações, v. I, n° 57, p. 63. Dizia o ilustre jurista que “o princípio da boa-fé, em matéria de obrigaçoes, não se encontra explicitamente formulado no Código Civil brasileiro... Pode-se, todavia, sustentar que a regra da boa-fé constitui um dos princípios gerais de direito abrangidos na remissão genérica do art. 4° da Lei de Introdução, em face das suas aflorações especiais noutras zonas do Direito vigente”. No mesmo sentido a lição de Maria Helena Diniz, que ainda na vigência do Código Civil anterior já incluía a boa-fé como um dos princípios fundamentais do direito contratual, sendo que, segundo tal princípio, “as partes deverão agir com lealdade e confiança recíprocas”. Cf. Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 3 (1995), pp. 31-32.

189

à celebração do contrato e posteriores à sua extinção, a boa-fé também pode

ser invocada para a regência de outros negócios jurídicos não inseridos dentre

os contratos. Veja-se, para maiores detalhes sobre o caráter expansionista da

boa-fé, abarcando inclusive o direito processual e o direito público, os itens

1.6 e 1.7, supra.

É que os Códigos Civis, de um modo geral, se valeram de dois

modos distintos, para determinar a observância da conduta conforme os

ditames da boa-fé: em alguns, como ocorre no Código Civil espanhol e no

Código Civil suíço, há uma regra contida na parte geral, que determina a

adoção de conduta conforme a boa-fé em todos os negócios jurídicos; em

outros, contudo, como é o caso do Código Civil brasileiro, do italiano e do

argentino, a imposição da boa-fé como norma de conduta vem mencionada em

uma espécie particular de relação jurídica, normalmente as obrigações ou os

contratos.

Na primeira hipótese, vale dizer, quando se trata de uma norma

geral, não há maior dificuldade em se constatar a sua aplicabilidade ampla, em

todos os negócios jurídicos. Mas mesmo na segunda hipótese, ou seja, quando

a norma impositiva de conduta conforme os ditames da boa-fé vem ligada a

um tipo específico de relação jurídica (como no caso do art. 422, do nosso

Código Civil, voltado especificamente para as relações contratuais), ainda

assim deve ser feita a sua transposição para as relações jurídicas em geral, seja

por meio de aplicação da analogia ou, de modo mais direto, pela pura e

simples aplicação do princípio geral, que se permeia por todo o tecido do

ordenamento jurídico218.

Retornando ao campo específico dos contratos, que no momento

é o que mais diretamente nos interessa, é importante ressaltar que a aferição da 218 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 229.

190

responsabilidade pré-contratual não decorre do atendimento de qualquer

formalismo do contrato em si mesmo. Com efeito, se por um lado é certo que,

nos casos em que o contrato se apresenta como um negócio jurídico formal,

enquanto não for atendida a forma indicada pela lei o mesmo não estará

aperfeiçoado, por outro lado não se pode esquecer que as conversações que

antecedem a conclusão do contrato jamais dependem de qualquer solenidade,

e por isso a forma do negócio que se está sendo discutido se mostra

absolutamente irrelevante para que possam surgir os deveres acessórios

anteriores ao contrato.

Na realidade, basta que se recorde o que já dissemos linhas atrás,

no sentido de que os deveres acessórios são independentes das prestações

centrais do negócio jurídico, e por essa razão o desatendimento do formalismo

imposto pela lei no caso concreto, ainda que funcione como obstáculo

intransponível quanto ao surgimento das prestações principais, em nada

afetará o surgimento dos deveres acessórios. Aliás, como também já

mencionamos, se é certo que mesmo na obrigação nula podem surgir deveres

laterais válidos, pode-se com facilidade concluir que o não atendimento à

forma legal gera a nulidade do negócio, mas não impede o surgimento de

outros efeitos jurídicos acessórios.

Assim, por exemplo, suponha-se que A e B entabulem

conversações sobre uma doação, sendo que o primeiro, verbal e

expressamente, diz que irá doar ao segundo uma determinada lancha. B, o

donatário, não tendo onde guardar o bem que irá receber, celebra contrato de

locação de vaga em uma marina, além de comprar um reboque para poder

transportar a lancha com o seu próprio carro.

Após esses gastos efetuados por B, no entanto, A recusa-se a

assinar o contrato escrito de doação. Ora, sendo a doação um contrato formal,

191

eis que deve ser celebrado por escritura pública ou instrumento particular (art.

541, do Código Civil brasileiro), é evidente que não houve contrato válido,

pois do ajuste verbal não surge negócio jurídico válido, nos casos em que a lei

exige forma (artigos 104, III e 107, ambos do Código Civil). No entanto,

houve negociações pré-contratuais, e para estas a lei não impõe – e nem

poderia impor – qualquer formalismo, e por isso já se têm elementos

suficientes para que se concretize a culpa in contrahendo (responsabilidade

pré-contratual) de A.

De tudo quanto se disse sobre os deveres acessórios, ressalta a

idéia de que uma relação obrigacional, longe de ser uma simples oposição

entre a pretensão do credor de receber (e exigir) uma determinada prestação e

a posição contrária do devedor, que se vê compelido a prestá-la, é formada por

um complexo de múltiplos efeitos jurídicos, múltiplas pretensões (e os deveres

contrapostos) que são autônomas entre si, mas que pouco importam quando

isoladamente consideradas, pois é do seu conjunto que surge a relação

obrigacional em si mesma.

Importante realçar, nessa linha de idéias, que uma relação

obrigacional não é a simples soma dos deveres acessórios e das prestações

centrais que a compõem. É que, na realidade, todo esse conjunto de efeitos

jurídicos está orientado para uma mesma finalidade, direcionado para a

conclusão e a execução satisfatórias da obrigação para todos os sujeitos

envolvidos. Em outras palavras, a relação obrigacional é formada por

elementos que são autônomos mas que compõem um organismo único, que é

impulsionado sempre para a obtenção, por cada um dos envolvidos, da

prestação central que lhe é devida.

É nesse sentido que se fala em uma relação obrigacional como

um todo, como um processo, ou seja, como uma série de atos (o atendimento

192

aos deveres diversos) que têm, todos, a mesma finalidade, que têm sempre o

mesmo objetivo de realização integral das prestações devidas. Nas palavras de

Mário Júlio de Almeida Costa219, “todos os referidos elementos [os deveres

principais, os secundários e os laterais] se coligam em atenção a uma

identidade de fim”.

Assim, como todos os deveres acessórios estão sempre voltados

para o atingimento do resultado final da obrigação, é possível que, ao longo do

desenrolar desse processo, em virtude das circunstâncias do caso concreto, tais

deveres sofram alterações ou adaptações, pois o comportamento que em uma

certa situação se mostrava como sendo o mais adequado, de repente pode

passar a ser caracterizado como uma conduta inadequada.

No entanto, é certo que essas alterações pontuais dos deveres

laterais, como sempre manterão a mesma orientação, no sentido de ser

buscada a conclusão satisfatória das prestações, em absolutamente nada

afetarão a relação obrigacional considerada no seu conjunto, ou seja, não terão

o efeito de descaracterizar a obrigação em si mesma, que continuará a ser um

conjunto de deveres, principais e acessórios, unidos pela mesma finalidade,

ainda que um ou outro desses deveres possa ter sido eventual e pontualmente

alterado.

Começamos o presente item realçando que a boa-fé objetiva

mantém estreita ligação com o tema das obrigações como um processo. Esse

aspecto, na realidade, se apresenta como sendo de fundamental importância

para a melhor análise do objeto principal do presente trabalho, que consiste

precisamente no exame e no cotejo de comportamentos específicos, que

implicam em violações da conduta que se poderia esperar a partir da boa-fé,

219 Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 63.

193

como veremos no capítulo seguinte. Como se configura, portanto, tal ligação?

Vejamos.

Vimos, nos parágrafos anteriores, que a relação obrigacional é

formada por um complexo de prestações, dentre as quais algumas são centrais,

ou seja, são o foco principal da relação, e outras são acessórias, mas que é a

reunião de todas elas, principais e acessórias, que caracteriza a obrigação, pois

as prestações secundárias (os deveres acessórios) são todas orientadas para

uma mesma finalidade comum, que é a de que sejam adequadamente

cumpridas ou aproveitadas as prestações principais.

E também examinamos que, para que tal finalidade seja sempre

atendida, por vezes será necessário que os deveres acessórios sofram

adaptações ou modificações, para que continuem atuando no sentido de

cumprimento das prestações primárias. E é exatamente aí que surge a

necessidade de se recorrer à boa-fé, pois é esta que servirá como vetor de

orientação para os deveres acessórios, indicando em cada momento qual deve

ser o comportamento que melhor se coaduna com o cumprimento satisfatório

e adequado da prestação principal.

Ora, se é possível dizer que esse comportamento deve ser pautado

pela ética, ou seja, que o sujeito deve se comportar de modo ético, e que o

significado de tal afirmação só pode ser aferido com precisão no caso

concreto, ou seja, de modo problemático, então podemos afirmar, na boa

companhia de De Los Mozos220, que: a) a boa-fé serve como veículo de

recepção, para que seja possível a integração do ordenamento jurídico

conforme uma regra ético-material; b) a boa-fé é um princípio problemático,

um verdadeiro topos, que precisa ser chamado para atuar a cada momento em

que se vai interpretar se um comportamento foi ou não adequado. 220 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 34 e 36.

194

Faça-se, aqui, mais um breve parêntese para explicar, com esteio

na lição de Delia Rubio221, que a boa-fé, na realidade, é multifuncional, ou

seja, cumpre diversas funções essenciais em todo o sistema jurídico, podendo-

se destacar: a) funciona como critério informador do ordenamento jurídico, ou

seja, é na boa-fé que têm origem várias normas concretas, voltadas

especificamente para algumas situações peculiares; b) é um critério limitador

da conduta que pode ser tida como juridicamente admissível; c) funciona,

ainda, como critério interpretativo, devendo ser interpretada a norma jurídica

de acordo com aquilo que, sob os ditames da boa-fé, se deveria entender; d)

critério integrador, com força normativa para ser aplicada aos casos

particulares, em relação aos quais não exista norma específica222.

Nessas duas últimas funções mencionadas, o que facilmente se

percebe é que “el principio de la buena fe sirve para suplir, integrar y

corregir el contenido del negocio [jurídico]”223.

Para nós, no presente estudo, interessa principalmente o segundo

dos critérios acima indicados, ou seja, a função da boa-fé como critério

221 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 162-164. 222 Mas convém destacar que, como acontece com os institutos jurídicos em geral, há variações entre os diversos autores que cuidam de apresentar a classificação das funções da boa-fé. Assim, por exemplo, para Judith Martins-Costa a boa-fé objetiva cumpre três funções distintas: a) cânone hermenêutico-integrativo do contrato; b) norma de criação de deveres jurídicos; c) norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos. Cf. Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, p. 428. Guilherme Martins, por sua vez, refere-se às funções interpretativa, de integração e de controle. Cf. Guilherme Magalhães Martins, Boa-fé e contratos eletrônicos via Internet. In : Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional , p. 139. Já para Maurício Jorge Mota, as multifunções da boa-fé podem ser desmembradas em: a) interpretativa; b) integrativa; c) de controle; e d) de resolução dos contratos. Cf. Maurício Jorge Mota, A pós-eficácia das obrigações. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 196. E várias outras classificações podem ser encontradas, se pesquisarmos vários outros autores, mas no essencial, inobstante as variações quanto às denominações usadas, não se verifica substancial diferenças, nas classificações diversas, entre as funções cumpridas pela boa-fé. 223 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 46. E esclarece o respeitado autor espanhol, mais à frente (p. 180), que na integração, a boa-fé atua para completar o quadro dos efeitos do negócio jurídico, enquanto a interpretação apenas se refere ao conteúdo da declaração de vontade. Ocorre que o papel essencial da boa-fé objetiva é que, normalmente, se apresenta como normativa, ou seja, se apresenta como fonte de onde se originam normas de conduta, o que corresponde à função de integração da vontade negocial. Por essa razão, o ilustre jurista espanhol denomina a boa-fé objetiva de imprópria, quando a mesma atua em matéria de interpretação.

195

limitador, capaz de marcar a divisão entre os comportamentos que podem e os

que não podem ser admitidos como juridicamente válidos. Nesse sentido, a

boa-fé tanto funciona em relação ao exercício dos direitos, sendo limite que,

uma vez ultrapassado, dá origem ao abuso do direito – e tanto assim que o

nosso Código Civil foi expresso (art. 187) ao apontar que se constitui em

exercício abusivo do direito aquele que excede manifestamente, dentre outros

limites, o que é traçado pela boa-fé – quanto em relação ao cumprimento dos

deveres e, de modo mais geral, a todas as condutas que devem ser observadas

pelos sujeitos em uma relação jurídica.

Mas é importante recordar que, quando falamos em limitação da

conduta do sujeito, não estamos nos referindo apenas à proibição de adoção de

determinados comportamentos, ou seja, apenas a limites negativos.

Na verdade, essa limitação, para que a conduta possa ser

localizada dentro dos parâmetros criados pela boa-fé, também se apresenta de

modo positivo, ou seja, como a imposição de que o sujeito adote certos

comportamentos, como por exemplo no dever de prestar assistência, que se

impõe às partes contratantes mesmo depois que o contrato já se extinguiu pelo

cumprimento das prestações principais, como já examinamos, retro.

Ou, ainda, no dever de cooperação, que se impõe a cada um dos

contratantes, para possibilitar que o outro possa cumprir sua prestação. Veja-

se, retro, para maiores detalhes, o item 1.6 do presente estudo.

E mais, é ainda dentro dessa função de limitadora da vontade que

vamos encontrar importantíssimo aspecto do princípio da boa-fé, que é o de

permitir o controle do conteúdo dos contratos ou, de modo mais genérico, o

controle da autonomia da vontade (configurando, portanto, a autonomia

196

privada)224. Em outras palavras, é sabido que a autonomia da vontade encontra

diversos limites, e dentre estes podem ser enquadrados os que são impostos

pela boa-fé e para os quais devem ser observadas as repercussões sobre as

outras pessoas que vivem na mesma sociedade.

A teoria do contrato, por isso mesmo, não pode mais partir da

idéia de que é na vontade, como fonte única, que estão esteadas as relações

jurídicas, e por essa razão a referida teoria se encontra recheada de normas de

ordem pública, que se destinam à proteção de grupos de contratantes, das

disposições imperativas que se impõem nas relações de consumo e nos

contratos de adesão, das normas que estabelecem uma diretriz para a

economia como um todo, etc. E esse conjunto de normas tem mudado

substancialmente o enfoque jurídico das declarações da vontade, pois o

Direito Privado começa a se interessar não apenas pelas conseqüências

públicas das ações privadas, mas também pelo seu impacto sobre os demais

224 Como esclarece Judith Martins-Costa, o direito obrigacional moderno se desenvolveu com apoio no conceito de autonomia da vontade, assim entendida a liberdade humana para a criação de vínculos jurídicos. Ocorre que essa expressão realça a vontade humana como causa maior (e quase exclusiva) do nascimento das relações jurídicas, e aí reside a sua falha. Ora, hoje é pacífica a idéia de que a autonomia deve ser exercida em estreita ligação com o respeito à dignidade humana e com a promoção do desenvolvimento da personalidade, que devem servir de parâmetro para a vida em comunidade. Dessa forma, a expressão inicial evoluiu para a “autonomia privada”, que poderia ser descrita como a autonomia da vontade temperada pelos vetores acima mencionados, de mo do tal que na base dos negócios jurídicos não se encontra apenas a vontade dos particulares envolvidos, mas também os limites e as condutas negativas ou positivas que são impostas pelos referidos vetores. Dito de outra forma, a vontade dos particulares, ao ser manifestada, está condicionada e limitada pelo ordenamento jurídico que a reconheceu aos declarantes, e por isso o negócio jurídico passa a ser formado não apenas pela vontade dos sujeitos, mas também por um setor que escapa a essa vontade, e que por ela não pode ser atingido, nem afastado e nem ao menos modificado. E a autora prossegue, sugerindo que, hoje, a denominação mais adequada seria a de autonomia solidária , tendo em vista a necessária correlação que deve haver entre a autonomia privada e a função social, como se encontra expresso no artigo 421, do Código Civil brasileiro, sendo certo que essa função social, que se constitui em elemento constitutivo da própria autonomia (e não apenas um agente externo limitador), impõe uma atuação solidária, que permita a permanente busca do atingimento de uma solidariedade justa e solidária, o que se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República. Cf. Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 345-347.

197

indivíduos da mesma comunidade, levando a que se atribua status jurídico a

bens que antes eram irrelevantes225.

No entanto, embora se mostre óbvio, convém que se ressalte que

não foi suprimido – e nem poderia sê-lo – integralmente o princípio da

autonomia da vontade, pois o que ocorreu foi a redução (substancial, é

verdade) de sua importância, pois tal princípio, que antes era visto como um

dogma inafastável e basilar pela teoria contratual clássica, deixou de sê-lo,

passando a dividir espaço com uma série de normas que se encontram fora do

campo volitivo e que o limitam e condicionam, eis que a visão clássica hoje se

revela completamente anacrônica, não mais se coadunando com o momento

atual226.

Assim, suponha-se que em um contrato as partes contratantes

adotaram cláusula explícita, acerca de um dos aspectos do negócio. Tal

cláusula poderá ser afastada pelo juiz, caso este entenda que a mesma não

obedece aos comandos do princípio da boa-fé. Esse aspecto específico, de

controle do conteúdo convencional, será visto logo adiante, neste mesmo item,

mas desde logo podemos observar que, na realidade, do princípio geral da

boa-fé decorrem direitos para os sujeitos de um negócio jurídico, e tais

direitos não podem ser afastados pelas cláusulas convencionais estipuladas por

esses mesmos sujeitos227.

225 Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 83-84. 226 Alinne Arquette Leite Novais, Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 21. 227 Veja -se, aliás, que esse papel criador de direitos foi reconhecido de modo explícito pelo artigo 7°, do Código de Defesa do Consumidor, que se refere aos direitos que “derivem dos princípios gerais de direito”, e em relação, especificamente, ao princípio da boa-fé, nada mais é do que uma conseqüência lógica e simétrica do papel limitador por ele exercido. Com efeito, quando em virtude da aplicação da boa-fé um dos sujeitos tem os seus direitos sendo limitados, isso significa que, automática e simetricamente, para o outro ocorreu o surgimento de algum direito. Assim, por exemplo, quando em virtude da boa-fé um dos sujeitos sofre restrição quanto ao seu direito de resilir o contrato, isso significa que, para o outro, surgiu o direito de exigir que esse mesmo contrato seja mantido vigente.

198

Retomemos o exame dos deveres acessórios. Imagine-se, por

exemplo, que ao credor é possível a adoção de dois comportamentos, sendo

que ambos conduzirão à satisfação da prestação principal que lhe é devida,

mas sendo que um deles imporá um enorme sacrifício patrimonial ao devedor,

dúvidas não há em se afirmar que o credor, que deverá ter sempre seu

comportamento orientado no sentido coincidente com aquele que é indicado

pelo vetor boa-fé, terá que adotar, necessariamente, a atitude que se mostrar

menos prejudicial para o outro sujeito.

Tal regra, aliás, foi positivada em nosso direito especificamente

em relação ao processo de execução (Código de Processo Civil, art. 620), mas

por força da atuação balizada pelo princípio da boa-fé pode ser estendida para

toda e qualquer relação substancial, transcendendo os procedimentos

processuais.

Como observa Judith Martins-Costa228, a respeito desse mesmo

tema, a questão é que, se por um lado, toda a relação obrigacional encontra-se

direcionada para o seu adimplemento, uma vez que é em tal momento que se

realiza o interesse principal do credor, por outro lado, no processo

obrigacional há todo um conjunto de interesses envolvidos, e nesse conjunto

se incluem não apenas outros interesses do próprio credor, que não se

vinculam direta ou indiretamente à prestação principal, mas também os

interesses que derivam dos deveres de conduta e que se vinculam à

manutenção do estado patrimonial e pessoal dos sujeitos envolvidos, inclusive

os interesses do devedor, ligados à confiança que se encontra presente em toda

relação intersubjetiva legítima.

228 Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 347-348.

199

Como se observa, portanto, mesmo em relações obrigacionais

onde apenas um dos sujeitos envolvidos tenha prestação principal a ser

cumprida, ainda assim a posição do credor não pode ser definida como

estando isenta de qualquer prestação, pois sempre haverá a presença dessas

prestações secundárias, que são os deveres laterais, que deverão ser por ele

observados, de modo que receba a prestação que lhe é devida, mas que ao

fazê-lo não imponha ônus desmesurado e inaceitável à outra parte.

Trata-se, no caso, do dever de colaboração, que é imposto ao

credor, e que em nosso direito pode ser obtido, para os negócios jurídicos em

geral, a partir do artigo 187, do Código Civil, que manda que os direitos sejam

exercidos, dentre outros limites, dentro daqueles que são impostos pela boa-fé.

E em relação aos contratos, em particular, esse mesmo dever de colaboração

pode ser facilmente extraído a partir do artigo 422, do mesmo Código Civil,

que determina aos contratantes que suas atuações sejam sempre pautadas pelo

princípio da boa-fé.

De outra parte, é evidente que também ao devedor serão impostos

deveres acessórios, e que também serão orientados, em cada momento, pela

conduta pautada na boa-fé. Assim, por exemplo, se o devedor dispuser de

vários modos para o cumprimento de sua prestação principal, sendo-lhe

indiferente a adoção de um ou de outro, deverá sempre adotar aquele que, no

caso concreto, permita ao credor o melhor aproveitamento de tal prestação.

Em um caso concreto, por exemplo, suponha-se que o locatário,

findo o contrato de locação do imóvel, deva entregá-lo pintado ao locador,

sendo que no instrumento contratual, no entanto, não se fixou qual deve ser a

cor da tinta a ser utilizada na pintura. Em tal caso, o locatário poderá, em um

sentido literal emprestado à cláusula contratual, desincumbir-se da prestação

pintando o imóvel com tinta de qualquer cor, inclusive preta ou roxa. No

200

entanto, parece evidente que se o fizer não estará se comportando conforme a

boa-fé, pois claramente estará impondo danos desnecessários ao locador, cujo

imóvel será desvalorizado, exigindo uma nova pintura para que tal não ocorra.

O comportamento adequado, portanto, interpretando-se a

disposição contratual com base no princípio da boa-fé, parece indicar que a

pintura deverá ser feita usando-se a mesma cor que havia quando o imóvel foi

entregue pelo locador ao locatário, sob pena de infração severa dos deveres

ditados pela boa-fé. Como se vê, a boa-fé serve não apenas para pautar, a cada

momento, a conduta dos sujeitos envolvidos na relação obrigacional, mas

também como orientação na interpretação de cláusulas contratuais.

Colocamos em maior destaque, supra, a questão dos deveres

acessórios no momento pré-contratual, uma vez que foi em relação a tal

momento que se desenvolveu o estudo da culpa in contrahendo. No entanto,

também ao longo da execução do contrato, são variadas as formas pelas quais

tais deveres podem se manifestar.

Assim, por exemplo, suponha-se que um empregado, enquanto

prestava seus serviços ao empregador, estava trabalhando a uma altura de

cinco metros, em relação ao solo, sem que lhe tivesse sido fornecido qualquer

equipamento de segurança, quando veio a cair, ferindo-se gravemente ou

mesmo vindo a morrer. Nesse caso, pode-se com tranqüilidade apontar que o

empregador violo u o dever lateral de proteção, pois deveria ter adotado todas

as medidas para que o trabalho fosse prestado de modo seguro pelo

empregado, afastando ou pelo menos minimizando os riscos, e por tal razão

deverá responder pelos danos causados ao trabalhador. Essa responsabilidade

do empregador, não é demais lembrar, foi explicitamente indicada no artigo

7º, XXVIII, da Constituição Federal.

201

Também o dever secundário de esclarecimento (informar) se

manifesta com enorme freqüência, ao longo da execução dos contratos,

ganhando destaque em alguns contratos específicos, como o de prestação de

serviços por advogado. É que o profissional da área jurídica, detentor dos

conhecimentos técnicos, deve sempre esclarecer ao cliente que o procura, e

que apenas conhece os fatos, mas não o direito aplicável, quais são os riscos

referentes à sua pretensão, assim como as possíveis conseqüências do

ajuizamento da ação. Aliás, o Código de Ética e Disciplina da OAB, dispõe

expressamente em seu artigo 8º que o advogado deve informar o cliente, de

forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos de sua pretensão, e das

conseqüências que poderão advir da demanda.

Assim, por exemplo, suponha-se que, em uma investigação de

paternidade, o investigado, estando certo de que não é o pai do investigante,

sente-se indignado com a determinação para que se submeta ao exame de

DNA, e recusa-se a fazê-lo. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça já

sumulou o entendimento no sentido de que a recusa do suposto pai a

submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade

(Súmula 301). Assim, deverá o advogado informá-lo sobre as possíveis

conseqüências de sua recusa, para que o investigado decida, sabendo o que

poderá vir a ocorrer, se lhe é conveniente insistir em tal comportamento.

Em outro exemplo, imagine-se que uma empregada, tendo sido

dispensada sem justa causa, pleiteia judicialmente a reintegração ao emprego

esteada no argumento de que estava grávida ao ser dispensada. O empregador,

reconhecendo embora que a gravidez existia, recusa-se a admitir a volta da

empregada, informando ao seu advogado que não tinha conhecimento do

estado gravídico da trabalhadora, e por isso pedindo-lhe que conteste o pedido

e, se necessário, recorra de eventual sentença adversa.

202

O advogado do réu, em tal situação, deverá esclarecer-lhe no

sentido de que os tribunais superiores, tanto o Supremo Tribunal Federal

quanto o Tribunal Superior do Trabalho, há muito já pacificaram o

entendimento de que a regra constitucional que protege a empregada gestante

contra a dispensa imotivada (Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, art. 10, II, b), é de natureza objetiva, e não subjetiva, ou seja, a

gravidez é protegida em si mesma, pouco importando se era conhecida ou não.

Logo, deverá o advogado informar ao cliente que, muito provavelmente, será

vencido ao final, e apenas conseguirá procrastinar o resultado e aumentar seus

gastos com o processo.

Interessante notar que, nesse caso particular do advogado, o dever

acessório de informar se desdobra em um dever de se manter informado e

atualizado sobre os temas de sua profissão, pois é certo que o advogado não

poderá informar adequadamente o cliente se ele mesmo estiver desatualizado

em relação às inovações legislativas ou às posições dos tribunais. Veja-se,

portanto, que nesse caso o dever de agir conforme a boa-fé acaba por se

confundir com o dever de continuar estudando e se aperfeiçoando, de modo a

se manter atento às novidades em sua área profissional.

Também nos contratos de prestação de serviços médicos o dever

acessório de informação ganha bastante destaque, face à importância do que

está em jogo, ou seja, a saúde do paciente. Assim, antes de dar início a um

tratamento médico ou a uma intervenção cirúrgica que podem ter graves

conseqüências, o médico tem o dever de esclarecer o paciente sobre o seu real

estado de saúde e sobre as possíveis conseqüências que advirão do tratamento.

É que, algumas vezes, essas conseqüências são tão gravosas, ou submetem o

paciente a um risco tão grande, que ele poderá optar por não se sujeitar ao

203

tratamento. Para que possa tomar tal decisão, contudo, é evidente que

precisará ser informado pelo médico.

A respeito desse tema, não é demais observar que o nosso Código

Civil brasileiro, em seu artigo 15, esclareceu que ninguém pode ser

constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou

intervenção cirúrgica. Facilmente se percebe que, em tal disposição, está

embutido implicitamente o dever do médico de prestar ao paciente todas as

informações que se fizerem necessárias para a avaliação do risco, para que

possa decidir se valerá a pena (ou não) sujeitar-se ao tratamento que poderá

causar-lhe a morte ou deixar graves seqüelas.

Suponha-se a hipótese, por exemplo, de uma pessoa que tenha

sido atingida por um tiro, estando há vários anos com a bala alojada na base

do crânio, nas proximidades do coração, ou em qualquer outra área delicada

do organismo humano. Se essa pessoa vem a procurar um cirurgião, para a

retirada da bala, o médico deverá informá-la se existem e quais são os riscos

de tal intervenção cirúrgica. É possível, por exemplo, que como conseqüência

da cirurgia o paciente venha a morrer ou a se tornar tetraplégico, e nesse caso

talvez prefira continuar convivendo com a bala em seu organismo, como faz

há vários anos, embora consciente que isso também poderá trazer-lhe graves

problemas no futuro.

Mas é evidente que esse dever de informação, embora avulte

nesses dois tipos de contratos indicados, também se verifica nos mais variados

tipos de negócios. Assim, por exemplo, em uma situação real que

presenciamos, em relação ao contrato de prestação de serviços de telefonia

celular móvel, uma determinada operadora de telefonia divulgava, em sua

publicidade, que sua área de cobertura atingia todo o interior do Estado. Além

204

disso, divulgava também as inovações tecnológicas e as vantagens da

tecnologia CDMA.

Um cliente, diante de tais informações, trocou seu antigo aparelho

de telefonia celular, que usava tecnologia TDMA, por um dos novos modelos,

aproveitando promoção que oferecia descontos e parcelamentos. Ocorre que

esse cliente trabalhava no interior do Estado, para onde viajava com grande

freqüência. Na primeira viagem, para sua surpresa, descobriu o cliente que no

interior do Estado só funcionavam os aparelhos que usavam a tecnologia

antiga, TDMA, pois a operadora ainda não havia disponibilizado o uso da

tecnologia CDMA.

Como se vê, na hipótese acima, claramente a prestadora de

serviços telefônicos não se desincumbiu do dever de informar, pois em

nenhum momento, quer em seus anúncios de publicidade, quer no contato

direto com o cliente, informou-o sobre essa restrição de uso. Aliás, é até

desnecessário apontar que o dever de informar, também nos contratos de

consumo em geral, se revela de extrema importância, inclusive havendo quem

sustente que uma das causas de desequilíbrio das relações entre consumidores

e fornecedores é precisamente a desigualdade de informações entre as partes,

ou seja, os fornecedores conhecem bem os seus produtos e serviços oferecidos

no mercado, enquanto a maioria dos consumidores é incapaz de avaliar e

comparar com os similiares esses produtos e serviços. Por essa razão, vale

dizer, para buscar o equilíbrio das relações contratuais entre consumidores e

fornecedores, foi que se desenvolveu a idéia de se reconhecer, em favor do

consumidor, um direito à informação229.

Em relação ao dever acessório de lealdade, a ser observado

quanto aos contratos que se encontram em vigor, aplicação prática de grande 229 Sílvio Luís Ferreira da Rocha, A Oferta no Código de Defesa do Consumidor, pp. 86-87.

205

utilidade é a que se relaciona à questão das prestações centrais que foram

cumpridas, mas que o foram de modo imperfeito. É de se observar,

inicialmente, que ao tratar da exceção do contrato não cumprido, nosso

Código Civil, no artigo 476, estipula que nenhum dos contratantes, nos

contratos bilaterais, poderá exigir o cumprimento da prestação, pelo outro,

antes de ter cumprido a sua própria. Ocorre que, algumas vezes, um dos

contratantes cumpriu a sua prestação, mas o fez de modo defeituoso, ou seja,

não atendeu integralmente aos ditames contratuais, e apesar disso se põe a

exigir o cumprimento da prestação do outro.

Veja-se que tal hipótese não se enquadra integralmente na que se

encontra prevista no suso mencionado artigo 476, do Código Civil, pois o

referido dispositivo legal se refere ao não cumprimento da prestação, enquanto

na hipótese figurada tem-se o cumprimento defeituoso. O demandado, ao ser

exigido, certamente argüirá a exceptio, o que é perfeitamente válido, pois de

fato não recebeu exatamente a prestação que lhe era devida.

No entanto, não se pode perder de vista que, se essa prestação,

ainda que defeituosamente cumprida, apresentou resultado útil para o

demandado, este, por obediência ao dever de lealdade, deverá dispor-se a

contraprestar a parcela da prestação que recebeu e da qual obteve proveito.

Hipótese de aplicação concreta dessa situação descrita em tese no

parágrafo anterior é a prevista no artigo 606, do Código Civil, referente ao

contrato de prestação de serviços. Com efeito, dispõe a referida norma legal

que, quando o prestador dos serviços não estava habilitado para prestá-los, não

poderá requerer a remuneração normalmente paga para os serviços daquela

espécie.

No entanto, o mesmo dispositivo do Diploma Civil ressalva que,

se desse serviço, ainda que prestado por pessoa não habilitada, houve

206

resultado útil para o outro contratante, deverá este pagar uma retribuição

razoável, conforme o proveito que tenha obtido, ou seja, deverá contraprestar

a parcela que recebeu e que lhe foi útil, ainda que não corresponda exatamente

à prestação que lhe era devida.

No exemplo acima, o dever de lealdade foi mencionado em

relação ao demandado, que para atendê-lo deverá contraprestar a parcela da

prestação que recebeu com proveito. No entanto, esse mesmo dever, mutatis

mutandis, pode ser apontado em relação ao autor da ação. Com efeito, se o

credor já recebeu uma parte do pagamento, a toda evidência deverá, ao efetuar

a cobrança, fazer a ressalva da parte que já recebeu, sob pena de infringir o

dever de comportar-se com lealdade.

Nesse sentido é que o artigo 940, do Código Civil brasileiro,

impõe ao credor o dever de, ao demandar dívida que já foi parcialmente paga,

fazer a ressalva da parcela recebida, sob pena de ter que indenizar o devedor.

Imposição específica, como se vê, do dever acessório de lealdade, que de todo

modo já decorreria da observância da boa-fé.

Vimos, até aqui, que os agentes de um negócio jurídico têm seu

comportamento balizado, em cada momento, por uma série de deveres

laterais, ou seja, ocorre a imposição de uma série de comportamentos que

devem ser observados, em cada momento, pelos sujeitos envolvidos. Esses

comportamentos se impõem desde a fase pré-negocial até depois da extinção

do negócio, passando ainda, obviamente, pelo período em que o negócio

estava sendo cumprido pelas partes.

Observamos, também, que o mesmo dever acessório, conforme o

momento e as circunstâncias que o acompanham, em cada caso concreto,

poderá apresentar-se com algumas modificações, ou seja, a observância de um

dever lateral não significa que o sujeito deverá sempre manter o mesmo

207

comportamento, em todos os momentos. Muito pelo contrário, essa conduta a

ser observada será sempre transformada pelos fatores externos de cada

momento do negócio.

Assim, o dever de proteção, por exemplo, na fase pré-contratual

poderá significar a diligência para evitar que o outro sujeito caia em um

buraco, mas ao longo da execução do contrato esse mesmo dever já poderá ser

sinônimo do fornecimento de um equipamento de proteção.

No entanto, cada um desses deveres é unitário, apesar das

eventuais adaptações ou transformações que venha a sofrer. Assim, por

exemplo, há um único dever de proteção, que se manifesta desde as

negociações iniciais e perdura até o momento posterior à extinção do contrato,

ainda que com exteriorizações distintas em cada momento. E o mesmo pode

ser dito em relação a cada um dos deveres contratuais. E o que confere a

unidade mencionada a cada um desses deveres é a boa-fé, que permite a cada

um dos sujeitos envolvidos esperar que os demais não se comportem de modo

a quebrar as expectativas comportamentais legitimamente criadas, para que

não frustrem a confiança recíproca que do negócio decorreu.

E é importante ressaltar que essa boa-fé – e, em última análise, os

deveres acessórios – se impõe como parâmetro comportamental por força do

ordenamento jurídico, diretamente originada na lei, e não em decorrência da

vontade das partes envolvidas. Logo, fácil é de se concluir que é irrelevante

perquirir quais são as partes envolvidas e qual é o negócio de que se trata, no

caso concreto, para que se possa aferir a presença de uma pauta de conduta

ditada pela boa-fé, eis que esta sempre estará presente e sempre deverá ser

observada.

Por outro lado, parece evidente que, para a adaptação de cada

dever lateral às circunstâncias do caso concreto, será imperioso que se observe

208

quem são os sujeitos envolvidos e qual é o negócio entre eles surgido (ou, pelo

menos, negociado), pois tais elementos são integrantes dessas circunstâncias, e

portanto fundamentais para a conformação concreta dos deveres laterais em

cada hipótese. Em outras palavras, não interessa quem é o sujeito envolvido

para que surja um comportamento ditado pela boa-fé, mas tal sujeito deverá

ser considerado para a determinação precisa e específica do conteúdo da boa-

fé no caso concreto.

Na realidade, pode-se mesmo apontar que os deveres laterais não

nascem da boa-fé, mas apenas são por ela direcionados. Além disso, tais

deveres também não nascem do negócio jurídico em si mesmo, e essa seria a

razão pela qual os deveres acessórios se manifestam mesmo quando o negócio

jurídico não se concretizou ou mesmo depois que o mesmo já foi extinto.

A verdadeira gênese dos deveres acessórios, portanto, pode ser

encontrada no fato mesmo do relacionamento entre os sujeitos envolvidos,

fato esse que pode ou não vir a se transformar em um negócio jurídico. Assim,

a aproximação entre os sujeitos, de modo que possam entabular as

negociações iniciais, por si só é um fato que dá origem aos deveres

secundários, ainda que de tais negociações não surja o negócio jurídico que as

partes tinham em mente.

Impende buscar, neste ponto, qual seria o conteúdo da boa-fé, de

modo a que se possa identificar qual é o direcionamento a ser dado, em cada

caso concreto, aos deveres acessórios. Comecemos recordando que os deveres

laterais devem ser adaptados e transformados conforme os fatos e

circunstâncias que se verifiquem em cada momento, o que obviamente

conduzirá à conclusão de que também a boa-fé tem um conteúdo que varia em

cada momento, conforme as circunstâncias de cada ocasião.

209

Desse modo, pode-se facilmente constatar que, se os deveres

acessórios são (ou podem ser) redirecionados a todo instante, e se o que os

direciona é a boa-fé, então isso significa que também a boa-fé está sendo

adaptada a cada instante, pois seu conteúdo é largo e abrangente, carecendo de

ajustes específicos para cada caso.

As observações acima são para destacar um aspecto importante,

referente à busca da determinação do conteúdo da boa-fé para a identificação

concreta dos deveres laterais. É que, face à largueza de tal conteúdo, o que

pode torná-lo vago e impreciso, não se deve buscar o amparo na boa-fé

quando houver disposição normativa expressa, de origem legal ou contratual,

impondo os deveres acessórios. Em outras palavras, deve-se considerar que a

boa-fé, como parâmetro de conduta a ser seguida, atua de modo supletivo,

apenas nos casos onde não houver norma expressa, legal ou convencional, que

possa funcionar como tal parâmetro230.

Tome-se como exemplo o caso do advogado, acima mencionado,

no qual verificamos que o mesmo, na prestação dos seus serviços, tem o dever

de informar ao cliente sobre os riscos de sua pretensão e sobre as possíveis

conseqüências da demanda. Vimos que tal dever se enquadra no dever lateral

de informação, por ser, no caso concreto, a conduta orientada pela boa-fé. No

entanto, como já existe norma expressa estipulando que o advogado preste tais

esclarecimentos ao cliente (art. 8º, do Código de Ética da OAB), não haveria

230 Mas desde que essa norma atenda, ela mesma, como é evidente, aos ditames da boa-fé (de modo mais amplo, que atenda aos valores constitucionais de dignidade, solidariedade social, etc.), pois caso contrário tal norma, seja ela legal ou convencional, deverá ser afastada pela incidência do princípio da boa-fé. Nesse sentido, esclarece com precisão Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, pp. 67-68, que os valores que integram a tábua axiológica eleita pela Constituição Federal tomam o lugar das normas jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou injustas, modificando-as para que reflitam o valor da dignidade humana, sobre o qual se funda, atualmente, a quase totalidade dos ordenamentos jurídicos.

210

qualquer sentido em recorrer-se à boa-fé para a identificação desse mesmo

dever de informar.

Dito de outro modo, se a norma existente já indica de modo claro

qual deve ser o comportamento de um dos sujeitos envolvidos no negócio, não

há necessidade – e nem sentido lógico – de se recorrer à boa-fé para a

identificação desse mesmo comportamento, pois tal recurso demandaria ainda

a investigação das circunstâncias concretas para que se pudesse determinar o

conteúdo da boa-fé e, como conseqüência de tal conteúdo, o direcionamento e

os limites do dever de informar.

O resultado de tal investigação é que serviria para que se

avaliasse exatamente o quê deveria ser informado pelo advogado ao cliente.

Como se vê, todo esse esforço, além de poder conduzir a um resultado de

contornos imprecisos, é perfeitamente dispensável, uma vez que a norma já

deixa muito claros os contornos do dever de informar nessa situação

específica, o que vem a confirmar o mencionado caráter complementar da

boa-fé.

Por outro lado, no entanto, não se pode deixar de apontar que,

apesar do caráter complementar, é muito amplo o campo que se abre para a

aplicação da boa-fé como parâmetro único a direcionar a conduta dos sujeitos

de um negócio jurídico. É que o legislador, a toda evidência, jamais poderá

cobrir todo o espectro negocial, sempre havendo enorme quantidade de áreas e

situações que demandarão o recurso à boa-fé.

Além disso, mesmo nas situações onde o legislador

especificamente cuidou de regulamentar em detalhes os comportamentos a

serem adotados pelos sujeitos, sempre poderá ocorrer uma variação das

circunstâncias do caso concreto, de modo a tornar inadequada a simples

211

aplicação da norma, por isso que se mostrará indispensável o recurso à boa-fé

como diretriz da conduta.

Excluída, pois, a utilização da boa-fé quando houver norma

comportamental explícita, de qualquer modo ainda resta um vastíssimo campo

no qual o conteúdo da boa-fé requer determinação, para aplicações concretas.

Esse conteúdo deve ser sempre aferido levando-se em conta as características

e a finalidade dos negócios jurídicos, ou seja, o que seria razoável de se

imaginar que as partes pretendiam obter, mediante a celebração daquele

negócio específico.

O que o intérprete jamais poderá perder de vista, a toda evidência,

é que os negócios jurídicos estão situados no campo das declarações da

vontade, com o intuito de serem obtidos determinados efeitos jurídicos, e por

isso o comportamento das partes, vale dizer, os deveres acessórios a serem

observados pelas mesmas, deverá ser sempre voltado para o atingimento

desses objetivos inerentes ao negócio, jamais sendo admitido um

comportamento que tenha por escopo causar prejuízos aos demais sujeitos.

Desse modo, a atuação dos sujeitos se desenvolve no campo da

autonomia privada, sendo certo que nesta se permite toda atuação válida, isto

é, voltada para a obtenção dos negócios e seus efeitos conforme as vontades

dos sujeitos envolvidos, mas não podem ser toleradas atuações que mostrem

finalidades estranhas à obtenção desses mesmos efeitos.

Assim, por exemplo, em um contrato, serão tolerados – e mesmo

impostos – todos os comportamentos dos contratantes que se liguem direta ou

indiretamente ao cumprimento das prestações centrais, ou seja, tanto o

cumprimento das mesmas, propriamente dito, quanto as condutas que sirvam

de suporte para tal cumprimento. Mas não serão toleradas as condutas que se

mostrem estranhas a tal finalidade, como por exemplo a que impeça um dos

212

contratantes de obter o máximo proveito da prestação que lhe foi entregue ou

a que imponha ao outro um ônus desmesurado e desnecessário.

Nessas circunstâncias, ou seja, não havendo uma norma expressa

e mesmo assim sendo necessário que se imponham limites aos

comportamentos dos sujeitos envolvidos, parece bastante claro que caberá ao

juiz (ao operador do direito), em cada caso concreto, definir quais são tais

limites.

Pode-se dizer, portanto, que a boa-fé, ao pautar a conduta a ser

adotada pelos sujeitos envolvidos no negócio jurídico, impõe-lhes um dever

que apenas pode ser conceituado de modo genérico, e que consiste em se

comportarem com a finalidade de cumprimento e aproveitamento adequados

das prestações centrais e de propiciar os meios para que tal cumprimento

ocorra, abstendo-se, simultaneamente, de praticar atos que se mostrem

estranhos ou mesmo contrários a tais finalidades.

Mas é o operador do direito que, a partir desse dever genérico,

que é comum a todos os negócios jurídicos, deverá observar, em cada situação

que lhe for apresentada, se já existe norma que esclareça no que devem

consistir tais comportamentos e, caso a resposta seja negativa, deverá aferir

quais são esses comportamentos a serem adotados pelos sujeitos no caso

concreto. A orientação fornecida pela boa-fé, portanto, apenas funciona de

modo genérico, mas não afasta a necessidade de intervenção específica para a

sua conformação ao caso concreto. Muito pelo contrário, como já havíamos

visto, requer tal intervenção.

Nessa atuação, no entanto, um outro problema poderá vir a surgir.

É que, em alguns casos, não existirá qualquer norma no direito positivo e, ao

mesmo tempo, também não a existirá nas cláusulas negociais ajustadas entre

os sujeitos. Diante desse silêncio absoluto, é fácil de perceber que o operador

213

do direito terá um amplo campo de liberdade para a averiguação dos limites

específicos da hipótese examinada, limites esses que se mostrem capazes de

manter os comportamentos das partes dentro dos trilhos da conduta que se

mostre consentânea com a finalidade do negócio.

No entanto, casos haverá em que, apesar da lacuna verificada nas

normas do direito positivo, as cláusulas negociais estabelecidas pelas partes

tratam especificamente do problema, estipulando quais os comportamentos

que são esperados para aquele caso concreto. O problema, então, se apresenta

com outra roupagem, que é o de se perquirir se, também nessa hipótese, o juiz

continuará a ter amplo campo de liberdade para a investigação, ou seja, para

aferir quais são os comportamentos dos sujeitos que se mostrem consentâneos

com a boa-fé, e sobre o que fazer quando tais comportamentos divergirem

daqueles previstos pelas partes para o negócio jurídico.

Poderá o juiz, nesse caso, controlar o conteúdo convencional do

negócio, dando prevalência aos comportamentos ditados pela boa-fé? A

resposta só pode ser positiva, como veremos em seguida, pois é certo que a

integração não se encontra dependente da existência de lacunas231. Antes,

contudo, faremos breve análise de opinião que aparenta ser diferente, ou seja,

que parece responder negativamente à pergunta que acabamos de fazer, no

sentido de que o juiz não poderia controlar o conteúdo convencional dos

negócios jurídicos.

Ao examinar o tema, Béatrice Jaluzot232 apresenta uma distinção

entre a “fé do contrato” e a “fé das partes contratantes”. A primeira seria o

“espírito do contrato”, ou seja, aquilo que o anima, e em geral é estabelecida a

partir dos acordos que os sujeitos contratantes firmaram entre si. A segunda, 231 Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56. 232 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 98, n°s 49 e ss.

214

ou seja, a fé das partes, por sua vez, se relaciona com aquilo que os

contratantes pretendem obter a partir do negócio jurídico. E em uma certa

medida, prossegue a autora, ambas podem se apresentar em oposição, uma em

relação à outra.

Com efeito, esclarece a autora francesa, na obra e local citados no

parágrafo anterior, a partir do momento em que a fé do contrato se firma, ela

se torna intangível, e a fé das partes não pode mais influenciá-la. Em outras

palavras, se a vontade das partes já se encontra claramente formada acerca de

um determinado ponto, este não mais poderá ser alterado em virtude da boa-fé

das partes contratantes, pois deve haver estrito respeito à vontade das partes

nos moldes em que foi formada, pois o juiz não pode se valer da cobertura da

boa-fé para simplesmente modificar o contrato.

A conclusão da autora, como se vê, no sentido de que o juiz não

pode se valer da menção à boa-fé para simplesmente modificar o contrato,

parece indicar em sentido oposto ao que acima mencionamos, ou seja, parece

indicar que o juiz não poderia modificar o conteúdo convencional do negócio

jurídico, ao contrário do que afirmamos e que logo em seguida passaremos a

demonstrar. No entanto, na realidade não há contradição alguma, sendo

perfeitamente harmonizáveis, conforme nos parece, a nossa opinião e a da

citada autora francesa.

Na realidade, parece-nos evidente que a referida autora se refere à

inalterabilidade das cláusulas contratuais, mas desde que sejam atendidos dois

requisitos básicos: a) tais cláusulas tenham sido ajustadas de modo válido, o

que engloba o respeito à conduta de boa-fé, impondo a cooperação e a

solidariedade mútua entre os contratantes; b) que não tenha havido alteração

significativa das circunstâncias fáticas externas ao contrato, capaz de alterar o

equilíbrio que havia entre as partes.

215

Logo, se por um lado, de fato, o ajuste contratual firmado de

modo claro e inequívoco entre as partes contratantes não poderá, em princípio,

ser alterado pelo juiz, pois a autonomia da vontade deve ser respeitada, e

portanto o contrato deverá ser cumprido conforme o que foi pactuado entre

elas, por outro, se nesse ajuste uma das cláusulas se mostra contrária à boa-fé,

configurando-se em claro e nítido abuso do direito, parece-nos muito claro

que, em tal hipótese, o juiz não apenas poderá, mas mesmo deverá intervir

para afastar o ato ilícito (abusivo). Na verdade, portanto, pode-se mesmo dizer

que é a “autonomia privada” que deverá ser respeitada, e não a “autonomia da

vontade”.

E tanto é assim que, mais à frente, na mesma obra, a ilustre autora

francesa faz referência a decisão do Tribunal Constitucional alemão para

apontar que “a ciência jurídica é, em conclusão, unânime sobre o fato de que

o princípio da boa-fé designa um limite imanente ao direito de contratar e

autoriza um controle judicial do conteúdo do contrato”. Esclarece a autora

que o Tribunal Constitucional tedesco reconhece que a autonomia privada é

um valor constitucional (o que também ocorre entre nós), mas ao mesmo

tempo indica que esse valor deve ser protegido pela boa-fé, servindo esta para

a imposição de limites que impliquem no verdadeiro respeito à autonomia233.

E o mesmo pode ser dito em relação ao contrato no qual, embora

não se vislumbre abuso em suas cláusulas, pois no momento em que foi

celebrado, apresentava um equilíbrio entre os contratantes, ocorreu que fatos

externos (supervenientes e imprevistos, por exemplo), estranhos às vontades

dos contratantes, vieram a provocar grave desequilíbrio, tornando as cláusulas

233 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 123-124, n° 442. “La science juridique est, en fin de compte, unanime sur le fait que le principe de bonne foi designe une limite immanente au droit de formation du contrat et fonde l’autorisation d’un contrôle juridictionnel du contenu du contrat” (tradução livre).

216

contratuais, nos moldes em que foram avençadas, claramente injustas, quando

também será cabível a intervenção do juiz para o restabelecimento do

equilíbrio entre os contratantes.

Parece-nos conclusiva e irrespondível, sobre o tema, a observação

de Ana Prata234, que tem o condão de, em curto texto, fazer um resumo de

todas as possibilidades de intervenção judicial no conteúdo do contrato, além

de fazer a vinculação dessa intervenção com o princípio da boa-fé. Diz a

ilustre jurista lusitana que

“ A utilização dos instrumentos correctivos dos efeitos pretendidos pelos particulares por parte do juiz pode ir desde uma particular capacidade de intervenção na interpretação e integração do regulamento contratual, à qualificação de uma situação não expressamente prevista pela lei como ilícita, com o consequente declarar da sua invalidade e/ou da existência de um direito a indemnização, ou ainda à possibilidade de alterar o contrato ou, pura e simplesmente, resolvê-lo, verificadas dadas circunstâncias.” “ Das três formas que a intervenção judicial pode assumir, a segunda enunciada reconduz-se ao estudo da identificação teórica dos deveres impostos pela ordem pública, bons costumes e boa fé e das consequências jurídicas da ofensa destes; a terceira forma centra-se no estudo da modificação ou resolução dos contratos por alteração das circunstâncias.”

Como se vê, ultrapassa-se a simples aferição subjetiva, ou seja, o

campo das intenções dos sujeitos envolvidos no negócio jurídico, passando-se

ao exame dos resultados concretos desse mesmo negócio, e em função desses

resultados é possível que o conteúdo contratual, oriundo da vontade, venha a

ser alterado. É que “os novos fatos sociais dão ensejo a soluções objetivistas e

não mais subjetivistas, a exigirem do legislador, do intérprete e da doutrina

uma preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades

desenvolvidas pelo sujeito de direito”235.

234 Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56. 235 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 6.

217

Essas observações conduzem a uma importante conclusão, no

sentido de que a boa-fé, quando aplicada aos negócios jurídicos, possui um

conteúdo que não depende da vontade dos sujeitos desse mesmo negócio. Ora,

se a boa-fé permite que seja modificado o próprio conteúdo convencional do

negócio jurídico, como acabamos de ver, e se essa mesma boa-fé não depende

da vontade dos sujeitos, então podemos concluir que, na verdade, em uma

certa medida (que coincide com o campo de incidência da boa-fé), o conteúdo

de uma relação obrigacional é formado por normas que podem independer da

vontade das partes envolvidas, ou seja, tal relação apresenta uma dinâmica e

uma extensão que podem estar situadas fora do controle dos sujeitos que a

integram.

É nesse sentido, mencionado no parágrafo anterior, que De los

Mozos236 afirma que “el contrato depende, tanto en el nacimiento de sus

efectos como en su cessación, de dos elementos: la voluntad de las partes y la

buena fe, por eso, añade que averiguar el juego de ambas es misión del juez”.

E na junção desses dois elementos, vontade e boa-fé, o que se observa é que

“o princípio da boa-fé, sem desprezar a vontade contratual, procura ir além

dela e tomar em consideração sua exteriorização e as repercussões dessa

exteriorização – perante a outra parte contratante e até mesmo perante

terceiros e o meio social”237.

Já havíamos visto, retro, neste mesmo item, em nota de rodapé,

que em relação aos serviços e bens massificados, a possibilidade de ocorrência

dos comportamentos sociais típicos, ou seja, situações nas quais, embora não

236 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 166. 237 Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 279.

218

haja contrato, haverá entre as partes envolvidas uma relação obrigacional,

cujos efeitos jurídicos serão idênticos aos de um contrato, independentemente

de não ter havido declaração de vontade. No parágrafo anterior, contudo,

vimos que esses efeitos jurídicos que independem da vontade também podem

ocorrer fora dos contatos sociais massificados, nas relações intersubjetivas

individuais 238.

Passaremos a examinar, em seguida, essas duas hipóteses,

capazes de justificar a intervenção do juiz no conteúdo do contrato, de modo

mesmo a possibilitar a alteração das cláusulas que foram convencionadas

pelas partes contratantes.

Em primeiro lugar, pode-se observar que a determinação de que

seja observado o princípio da boa-fé se apresenta como norma de ordem

pública, que não está ao alcance de ser afastada pela vontade dos sujeitos

envolvidos no negócio, ou seja, “El principio del § 242 [do Código Civil

alemão] es irrenunciable, ya que representa el precepto fundamental de la

juridicidad”239. Assim, só em virtude dessa primeira observação já se poderia

confirmar a resposta positiva, acima indicada: se as cláusulas negociais

pactuadas entre as partes impõem comportamentos que se mostram contrários

àqueles que são ditados pela boa-fé, é esta última que deverá prevalecer.

Mas pode-se ainda observar, em importante reforço à conclusão

acima, que quando o ordenamento prestigia as convenções firmadas pelos

sujeitos, no exercício de suas autonomias privadas, o faz por entender que as

vontades que estão sendo manifestadas são verdadeiramente livres, por terem

238 Na realidade, também nas relações jurídicas coletivas, como ocorre, por exemplo, em relação às relações coletivas de trabalho, nas quais também deve haver entre as partes envolvidas a confiança e a lealdade recíprocas, da mesma forma que ocorre nas relações individuais de trabalho. Cf. Beatriz Maki Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho, p. 44. 239 Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, p. 145.

219

sido manifestadas dentro de uma igualdade substancial entre os sujeitos, e não

em uma igualdade que se mostre tão-somente formal.

Aliás, exatamente o fato de não levar em conta tal aspecto, ou

seja, a igualdade que conduz à verdadeira liberdade é a substancial, e não a

formal, foi que sucumbiu o modelo liberal-individualista da Codificação de

Napoleão, que partia da idéia de que bastava deixar os sujeitos de um negócio,

fossem eles quem fossem, livres de qualquer interferência do Estado, que a

partir daí o que viesse a ser entre eles ajustado seria sempre e

irremediavelmente a manifestação das vontades livres.

Na realidade, cedo se percebeu que a “liberdade” de negociação

entre sujeitos desiguais, na realidade, era fonte de opressão, pois o que se

mostrasse economicamente mais forte, inevitavelmente, tenderia a impor a sua

vontade e a oprimir o economicamente mais fraco. Por esta razão, cedo

também se percebeu que, quando houvesse essa desigualdade econômica entre

os sujeitos do negócio jurídico, seria necessária a intervenção do Estado,

editando normas que se impusessem obrigatoriamente aos sujeitos,

beneficiando o mais fraco, de modo a compensar-lhe a fraqueza econômica e

não podendo ser afastadas pelas cláusulas negociais.

Em termos históricos, como se sabe, o fenômeno foi percebido de

modo claro, pela primeira vez, em relação ao Direito do Trabalho240, em

virtude de razões que logo a seguir voltaremos a mencionar.

Desse modo, a ausência de normas oriundas do Estado não

permitiria que as vontades fossem de fato livres, todas as vezes em que não

240 Sobre o tema, informa Bruno Lewicki que “a pretensa isenção total que o Estado deveria guardar em relação à vida econômica vai cedendo espaço, lentamente, para um intervencionismo... O primeiro terreno que demandou a intervenção estatal foi justamente o das relações de trabalho. No rastro de uma série de tratados internacionais que traçavam diretrizes sobre a matéria, e com o já citado processo de industrialização ganhando fôlego, não houve como prolongar a era de plena liberdade contratual nesta área”. Cf. Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 65.

220

houvesse igualdade entre os sujeitos que estivessem emitindo suas vontades.

Nessas condições, a liberdade funcionaria muito mais como um fator de

opressão, e não pode o ordenamento prestigiar esse estado de coisas. Daí,

como dissemos acima, a necessidade de intervenção do Estado nas relações

intersubjetivas.

Essa intervenção pode ocorrer com a fixação de regras que

estabeleçam comportamentos específicos, que imponham deveres claros e

facilmente identificáveis, como vimos no caso do dever de esclarecimento,

imposto ao advogado e ao médico, nas respectivas prestações de serviços. No

entanto, é evidente que nem sempre o Estado poderá, ao editar suas normas,

prever em minúcias todos os comportamentos que devem ser adotados pelas

partes, e por isso podem ser utilizadas condutas genéricas, que imponham

comportamentos cuja finalidade está identificada, mas cuja delimitação

precisa só pode ser buscada quando confrontada com as particularidades da

situação real. É o que acontece com a imposição de observância da boa-fé.

A parametrização dos comportamentos pela boa-fé, portanto,

nada mais é do que uma dessas intervenções do Estado, que têm a finalidade

de compensar a desigualdade substancial entre os sujeitos e evitar que um

deles possa ser explorado e oprimido pelo outro, apenas tendo a

particularidade de se mostrar como uma intervenção que se apresenta com

características genericamente estabelecidas, ao contrário de outras nas quais os

contornos do que pretende o Estado se mostram claramente delineados.

Ocorre que, como mencionamos acima, uma das principais

características dessa intervenção do Estado é precisamente o fato de que são

criadas regras que, sob pena de inocuidade, estão fora do alcance da vontade

dos sujeitos envolvidos, vale dizer, não podem ser afastadas pelas vontades,

sendo de observância obrigatória.

221

Nessa ótica, sendo a boa-fé uma dessas modalidades de

intervenção, mostra-se irrelevante o fato de que se apresenta com uma

roupagem genérica, que ainda está a requerer a delimitação precisa de seus

contornos, pois é certo que, uma vez sendo feita essa delimitação e

identificados esses contornos para o caso concreto, da mesma forma surgirão

regras que não podem ser afastadas pela vontade das partes envolvidas, sob

pena de se tornarem inócuas.

Logo, se as partes já criaram essas regras negociais, se mais

adiante for identificado que tais regras vêm a se chocar com aquelas que

foram apreendidas a partir da imposição da observância da boa-fé, estas

últimas é que deverão prevalecer, como dissemos acima, caso contrário estaria

sendo admitido que a autonomia da vontade fosse exercida de modo a afastar

a intervenção estatal que busca impedir a opressão de um dos sujeitos pelo

outro, ou seja, em última análise, admitir-se-ia que a autonomia da vontade

fosse exercida como meio de opressão, o que viria a implicar em inaceitável

retrocesso aos tempos da primeira codificação civil.

Impõe-se, portanto, como já havia sido adiantado, a conclusão no

sentido de que o juiz poderá, em cada caso concreto que lhe for apresentado,

controlar o conteúdo negocial escolhido pelos sujeitos envolvidos, cotejando-o

com o conteúdo que resulta da conduta imposta pela boa-fé e, em caso de

conflito inconciliável entre ambos, fazendo prevalecer este último.

Aliás, em nosso ordenamento jurídico, essa prevalência do

comportamento obediente à boa-fé sobre o comportamento estipulado pela

vontade das partes, que só pode ser feita se ao juiz se reconhecer o poder de

controlar o conteúdo negocial, pode ser encontrada em várias disposições

legais, como por exemplo os artigos 9º e 468, ambos da Consolidação das Leis

222

do Trabalho, e os artigos 39 e 51, ambos do Código de Defesa do

Consumidor.

Mencionamos, acima, que a necessidade de intervenção do

Estado, com a imposição de regras de observância obrigatória, foi observada

com clareza, pela primeira vez, no Direito do Trabalho. E no parágrafo

anterior, ao apontarmos alguns dispositivos legais que exemplificam essa

intervenção esteada na boa-fé, mencionamos a norma legal que é básica para a

regência dos contratos de trabalho, ao lado da que o é para as relações de

consumo, sendo certo que tal direcionamento não se deu por mera

coincidência. Vejamos o porquê dessa ocorrência localizada, pois a

identificação de tal motivo nos conduzirá a algumas importantes conclusões.

Ensina-nos a história que, nos primórdios da Revolução

Industrial, as grandes cidades européias atraíram milhares de pessoas, que

abandonaram o campo para se candidatar às supostas possibilidades de

empregos que surgiriam nas novas fábricas, implantadas a partir do uso em

larga escala da mecanização e da máquina a vapor.

O problema foi que a máquina a vapor permitiu que o trabalho de

muitos passasse a ser feito por uma única pessoa, que poderia mesmo ser uma

mulher ou uma criança, eis que o comando da máquina não exigia grande

força física. Com isso, para cada vaga de trabalho havia centenas de

candidatos, sendo que às mulheres e às crianças era pago um salário muito

menor do que aos homens adultos.

A partir desses dados torna-se fácil concluir que os donos das

fábricas, ao contratar seus trabalhadores, podiam livremente estipular, em cada

contrato individual, todas as cláusulas que bem entendessem, pois a disputa

por uma vaga era tão grande que sempre haveria algum trabalhador disposto a

223

ser contratado naquelas condições, por mais degradantes e abusivas que se

mostrassem.

Convém recordar que, nessa época, ou seja, no primeiro quartel

do século XIX, o Código Civil francês, como já mencionamos linhas atrás, no

auge do liberalismo individualista, entendia que era justo tudo o que fosse

livremente contratado pelos sujeitos envolvidos. Logo, pouco importava quão

degradantes fossem as condições contratualmente impostas em cada caso, pois

se a outra parte as havia aceitado, era porque entendia que as mesmas eram

justas e adequadas.

Assim, foi inevitável que em cada contrato individual houvesse a

estipulação de cláusulas completamente absurdas e abusivas, que eram

impostas pelo dono da fábrica e “livremente” aceitas pelo trabalhador, uma

vez que a igualdade entre as partes contratantes era tão-somente no sentido

formal, e não substancial, eis que uma delas era muito mais forte e a outra

muito mais fraca, economicamente, e portanto não havia liberdade ao

contratar, mas sim opressão, pois era o dono dos meios da produção quem

impunha a sua vontade, restando ao outro contratante, tão-somente, aceitá-la

ou ficar sem trabalho.

Esse abuso perpetrado pelos donos das fábricas, como se disse,

ocorria em cada um dos contratos individualmente celebrados. No entanto, em

virtude do grande volume de contratos que passaram a ser celebrados, face à

proliferação das mais diversas indústrias, esse abuso, que levava milhares e

milhares de trabalhadores a uma situação degradante, acabou chamando a

atenção de intelectuais, como Marx e Engels, que passaram a solicitar que o

Estado interviesse nessas relações, impondo limites à vontade dos

contratantes, limites esses que deveriam ser inalcançáveis pela vontade dos

contratantes.

224

Além disso, o grande número de trabalhadores que enfrentavam

as mesmas agruras, e que estavam todos sufocados pela mesma e absoluta

miséria, acabou favorecendo o surgimento de agitações sociais, com as lutas

de classes que sacudiram fortemente a Europa, principalmente na segunda

metade do século XIX, e diante de todo esse quadro a intervenção do Estado

foi conseguida à força, e acabou tendo que ser feita, impondo-se

paulatinamente aos contratantes algumas regras mínimas de comportamento,

que teriam que ser obrigatoriamente observadas na celebração e na execução

dos contratos celebrados entre os trabalhadores e os donos das fábricas. Essas

restrições que passaram a ser impostas, como se sabe, acabaram por dar

origem a um novo ramo do Direito, o Direito do Trabalho.

Nesse ponto, convém realçar que a questão da necessidade de

intervenção do Estado, de modo a impor regras comportamentais que se

sobrepõem às vontades das partes, foi detectada, inicialmente, nas relações de

trabalho, em virtude do grande volume que surgiu em relação a uma mesma

situação, além dos terremotos sociais já mencionados. No entanto, o problema

surgia em cada um dos contratos, e não apenas no conjunto de contratos.

Em outras palavras, a necessidade de serem impostas regras

comportamentais – que, como vimos, quando não são impostas explicitamente

pela lei, o são pela boa-fé – foi verificada em relação a cada contrato

individualmente considerado, e o conjunto de contratos, em grande volume,

apenas serviu para despertar a atenção do direito para o problema. Essa

observação já nos permite adiantar que as regras comportamentais impostas

pela boa-fé, com a possibilidade de controle do juiz sobre o conteúdo do

contrato, surgem em todos os negócios jurídicos, e não apenas naqueles que se

notabilizam pela repetição em larga escala.

225

Essa mesma situação pôde ser observada, mais recentemente, nas

relações de consumo, nas quais o problema também chamou a atenção em

virtude do grande volume em que tais relações ocorrem. Com efeito, há muito

tempo que se sabe que o fornecedor de produtos ou serviços, em regra, é quem

impõe as regras dos contratos, o que muitas vezes tem o efeito de conduzir a

abusos.

Mas foi a partir do fenômeno da globalização, quando as grandes

companhias multinacionais se espalharam por todo o mundo, que o grande

volume de negócios onde um dos contratantes fixava as cláusulas contratuais e

oferecia o contrato a milhões de pessoas, às quais só cabia aceitá-las ou não

contratar, que esses negócios começaram a chamar a atenção para os

inaceitáveis abusos que vinham sendo cometidos. Surge, mais uma vez, a

necessidade de forte intervenção do Estado nas relações de consumo, o que

acabou por dar origem a um outro ramo do direito, agora o Direito do

Consumidor, que por suas origens semelhantes é tão intervencionista e

protetor quanto o Direito do Trabalho.

No entanto, mais uma vez se destaca que, se por um lado o

problema despertou a atenção em virtude da acentuada multiplicação dos

contratos abrangentes de relações de consumo, por outro, esse mesmo

problema vinha surgindo nas relações individuais, não dependendo, portanto,

para que fosse necessária a intervenção do Estado, de ser situação que se

repetia em milhões de contratos.

O que se pode concluir, portanto, é que a necessidade de controle

do conteúdo dos contratos, para ver se os mesmos estão adequados não apenas

às normas legais explícitas e específicas, mas também às normas que

decorrem da concretização, em cada caso, do dever genérico de boa-fé, opera

226

em todos os contratos, e não apenas naqueles que se destacam pela repetição

de milhares ou mesmo milhões de situações idênticas.

Essa constatação se tornou muito clara com a edição do nosso

recente Código Civil, que em várias passagens trouxe a previsão explícita de

que devem ser impostos aos sujeitos de um negócio jurídico comportamentos

que se liguem aos deveres de lealdade, de proteção, de informação, etc., ou

seja, que se liguem, em síntese apertada, aos deveres laterais que são dirigidos

a partir da necessidade de uma conduta de boa-fé.

Com efeito, veja-se que o Código Civil, por exemplo, referindo-

se aos contratos em geral, de modo explícito impôs a adoção de alguns

comportamentos que são de observância obrigatória, não podendo ser

afastados pelas vontades dos sujeitos, como no caso dos artigos 423 e 424. O

primeiro determina que, nos contratos de adesão, onde a parte que estipula as

condições contratuais é a que tem o poder de impô-las à outra, as cláusulas

ambíguas ou contraditórias sejam interpretadas em favor do aderente. E o

segundo determina que, nesses mesmos contratos, serão nulas as cláusulas que

estabeleçam a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza

do negócio.

Trata-se de determinações explícitas, portanto, de condutas que,

acaso não estivessem expressas, poderiam ser enquadradas nos deveres

laterais de informação (ou seja, o que redigiu o contrato tem o dever de tornar

claras para o aderente as cláusulas que o integram) e no de proteção (o

contratante responsável pela redação das cláusulas contratuais não pode fazê-

lo de modo a causar prejuízos ao outro, através da renúncia prévia a direitos

que, normalmente, devem acompanhar o contrato que está sendo celebrado).

E outros exemplos específicos ainda poderiam ser apontados,

como no caso do artigo 413, do mesmo Código Civil, que impõe às obrigações

227

em geral, independentemente do que tenham convencionado os sujeitos das

mesmas, o dever de redução eqüitativa da cláusula penal, na hipótese da

prestação ter sido parcialmente cumprida com utilidade para o credor, não

podendo essa determinação ser afastada por força da convenção. Tem-se aqui,

como se percebe, aplicação específica do dever de lealdade, que impede que

uma das partes possa obter vantagem exagerada, a partir de um desequilíbrio

entre as prestações.

E, ainda, de um modo genérico, diante da evidente

impossibilidade de serem previstas de modo específico todas as situações

comportamentais adequadas ao comportamento de boa-fé, trouxe o Código

Civil, no artigo 422, a previsão de que os contratantes, tanto na conclusão

quanto na execução de um contrato, deverão sempre ter suas condutas

pautadas pelo respeito ao princípio da boa-fé, como já havíamos comentado

anteriormente, sendo certo que tal comportamento de boa-fé, nos casos onde

houver lacuna legal, será concretizado pelo operador do direito, que fará a

adaptação em função das circunstâncias da hipótese concreta.

Assim, por exemplo, como aplicação desse dever genérico de

comportamento consoante as regras decorrentes da boa-fé, pode-se apontar

que não é dado a um dos contratantes aproveitar-se de uma circunstância

fática, ligada ao contrato, para auferir lucros exagerados e desproporcionais,

ao mesmo tempo em que impõe à outra parte prejuízos exorbitantes, em clara

e nítida desproporção entre as prestações.

Não foi por outra razão, aliás, que o Código Civil, em relação às

obrigações em geral, previu expressamente a possibilidade de intervenção

judicial para reequilibrar as prestações, quando fatos supervenientes e

imprevisíveis tiverem causado manifesta desproporção entre elas (art. 317),

sendo tal previsão legal também tornada explícita em relação aos contratos,

228

por isso que o artigo 478 expressamente prevê a possibilidade de resolução

contratual quando uma das prestações, por acontecimentos extraordinários e

imprevisíveis, tiver se tornado excessivamente onerosa, com extrema

vantagem para a outra, podendo contudo ser evitada a resolução se o outro

contratante se oferecer para reequilibrar as prestações.

Vimos, até este ponto, que ocorre um desdobramento das

obrigações em uma operação complexa, vale dizer, em um negócio jurídico

que não é formado apenas pelas prestações centrais (principais), mas por

inúmeros deveres secundários (ou acessórios) que se concatenam e caminham

sempre no sentido de se atingir, no final, o cumprimento adequado das

prestações principais. Vimos, ainda, que esses deveres acessórios estão

intimamente ligados à boa-fé, não pelo fato desta ser a fonte daqueles, mas em

virtude da boa-fé funcionar como diretriz para a identificação, em cada caso

concreto e em cada momento, de quais são esses deveres e qual o seu

conteúdo.

Assim, a boa-fé, para fins de concretização do conteúdo dos

deveres acessórios, pode ser descrita como a orientação que considera

adequados, em cada caso, os comportamentos ligados direta ou indiretamente

à persecução das prestações principais da obrigação, ou seja, estão conforme a

boa-fé – e devem ser por isso adotados pelos sujeitos – todos os

comportamentos cuja finalidade imediata seja o cumprimento das prestações

centrais ou que, pelo menos, tenham tal objetivo de modo mediato, vale dizer,

sejam necessários para possibilitar o cumprimento de tais prestações da forma

mais adequada, ou seja, do modo menos gravoso para o devedor e com o

maior aproveitamento possível para o credor.

De tudo quanto se viu, pode-se concluir que a violação dos

deveres laterais, na realidade, implica em violação dos comportamentos que

229

são indicados, no caso concreto, a partir da boa-fé, ou seja, essa violação dos

deveres acessórios ocorre quando o sujeito de um negócio jurídico adota

conduta que se mostra em descompasso com aquela que era indicada pela boa-

fé por ser a mais consentânea com a consecução da finalidade do negócio

jurídico. Logo, em última análise, o descumprimento de deveres laterais

implica em descumprimento da conduta de boa-fé, uma vez que é a partir

desta que se identifica e se reconhece o conteúdo de cada um daqueles.

Algumas dessas situações de violação da boa-fé, contudo, por se

mostrarem mais freqüentes e de maior repercussão concreta nos negócios

jurídicos, passaram a ser estudadas de modo específico, por sempre ocorrerem

com um padrão definido, identificado a partir de um comportamento típico e

específico do sujeito, e que vem a entrar em choque com o comportamento

que havia sido previsto a partir da concretização do dever genérico de boa-fé.

No próximo capítulo, portanto, passaremos ao exame de cada um desses

comportamentos típicos, que violam o dever de comportamento conforme os

parâmetros traçados a partir da boa-fé.

1.9. As conseqüências jurídicas da proteção conforme o princípio da boa-fé.

De início, convém esclarecer que fazer incidir o princípio da boa-

fé não significa a mesma coisa que reprimir o desatendimento a esse mesmo

princípio, desde logo adiantando que essa diferença se mostrará essencial para

o adequado cotejo entre o venire contra factum proprium e o tu quoque, como

veremos adiante.

Assim, caminhando em busca dessa diferença enunciada no

parágrafo anterior, observe-se que em muitos casos poderá ocorrer de um dos

sujeitos comportar-se em desacordo com a esperada cooperação, criando

230

obstáculos injustificados, por exemplo, a que o outro possa obter a satisfação

dos seus interesses que buscava atender a partir do negócio jurídico, e nesse

caso a atuação do juiz deverá ser no sentido de reprimir essa conduta

inadequada, que desatende à solidariedade social, sendo que essa repressão

poderá se concretizar por vários modos, como veremos logo adiante, neste

mesmo item.

No entanto, em muitos casos também poderá ocorrer que uma

pessoa tenha se comportado de boa-fé, conduzindo-se conforme as justas e

legítimas expectativas criadas a partir das circunstâncias peculiares ao

negócio, sendo que, posteriormente, essas expectativas foram frustradas por

motivos estranhos à outra parte, uma vez que esta, em nenhum momento,

adotou comportamento que pudesse ser apontado como contrário à boa-fé. Em

outras palavras, um dos sujeitos agiu de boa-fé, e essa boa-fé poderá ser digna

de proteção, independentemente do fato de não ter havido má-fé por parte do

outro sujeito.

Essa seria a hipótese, por exemplo, da conversão do negócio

jurídico nulo em um outro negócio, cujos requisitos de validade estão

atendidos, e que também se mostra adequado para o atendimento aos objetivos

do negócio jurídico inicialmente entabulado entre as partes (veja-se, retro, o

item 1.6).

Seria o caso, ainda, da pessoa que, sem saber da existência da

incapacidade, celebrou negócio com sujeito que, por deficiência mental, não

tem discernimento para praticar os atos da vida civil (incapaz absoluto), mas

que não estava interditada, sendo que tal negócio foi celebrado em condições

consideradas normais, dentro dos valores normalmente praticados no mercado

para os negócios daquela espécie.

231

Nessa situação, descrita no parágrafo anterior, a boa-fé do sujeito,

que agiu sem ter conhecimento e sem ter meios de descobrir a incapacidade do

outro, poderá ser protegida, reconhecendo-se efeitos ao contrato, e, no entanto,

é evidente que não se pode falar em má-fé do absolutamente incapaz, ou seja,

protege-se a boa-fé de um, mas sem que isso implique, necessariamente, em

reprimir a má-fé do outro co-partícipe. Essa questão voltará a ser abordada,

em mais detalhes, mais à frente.

A hipótese, contudo, que nos parece mais clara, no sentido de

proteção à boa-fé de um sujeito independentemente de não ter havido má-fé

por parte do outro, é a que se relaciona ao erro (defeito do negócio jurídico),

para cuja configuração o atual Código Civil, ao contrário do que fazia o

anterior, passou a exigir o requisito da recognoscibilidade. Com efeito, veja-se

que o artigo 138, do Código Civil brasileiro, expressamente indica que o

negócio jurídico será anulável em virtude do “erro substancial que poderia

ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do

negócio”.

A primeira observação a ser feita, sobre o referido artigo, para

que possamos prosseguir na sua análise em relação à boa-fé, diz respeito a

quem seria essa “pessoa de diligência normal”, se aquele que declarou sua

vontade em virtude do erro, ou se o outro sujeito, com quem negociou o que

incidiu em erro.

Assim, por exemplo, suponha-se que A e B celebraram contrato

de compra e venda, tendo A adquirido de B um objeto dourado, que acreditava

ser de ouro. A, portanto, participou do negócio em virtude de erro substancial,

referente a qualidade essencial da coisa adquirida. A questão inicial que se nos

apresenta, pois, refere-se a saber se a “pessoa de diligência normal”, a que se

232

refere o artigo 138, seria A, que emitiu a vontade defeituosa, ou B, pessoa com

quem A negociou e para quem foi dirigida a vontade deste.

Parece-nos muito claro que tal pessoa só pode ser B, a quem a

vontade de A foi dirigida. Ora, se a norma legal estivesse querendo se referir

ao sujeito A, estaria dizendo que haveria o erro substancial, e por isso o

negócio seria anulável, ainda quando o mesmo decorresse da negligência do

declarante, ou seja, uma pessoa normal teria percebido que a coisa não era de

ouro, e sim dourada. A, no entanto, não foi diligente e por isso não percebeu o

que deveria ser óbvio para qualquer pessoa normal, e mesmo assim teria a sua

negligência aquinhoada com a possibilidade de desfazimento do negócio.

É evidente que tal interpretação, mencionada ad argumentandum

no parágrafo anterior, conduz a conclusão absurda, resultando em séria

ameaça à segurança dos negócios jurídicos, e por isso deve ser de logo

descartada. Logo, o único sentido que se mostra possível para a norma é o de

se entender que a lei pretendeu se referir a B, ou seja, à pessoa para quem A

dirigiu a sua declaração de vontade. Assim, se o erro de A foi tal que B, com

um mínimo de atenção e diligência, poderia ter percebido que a declaração de

vontade era defeituosa (esteada no erro), ou seja, se B poderia ter reconhecido

o erro (requisito da recognoscibilidade), neste caso, e somente neste caso, é

que o negócio jurídico será anulável.

Pode-se verificar, portanto, contrario sensu, que apesar de A ter

incidido em erro, ao declarar sua vontade, se B não tinha condições de

perceber esse mesmo erro, o negócio será por isso mantido, para a proteção da

boa-fé de B, que tem a justa expectativa dessa manutenção, pois apesar de sua

diligência normal nada percebeu que pudesse macular esse mesmo negócio.

Nesse sentido, “vê-se bem que o legislador de 2002 optou pela proteção do

contratante que negocia com o que errou. Prestigiou a doutrina da

233

confiança”241 (no exemplo acima, a confiança de B em que o negócio jurídico

foi validamente celebrado e que por isso será cumprido)

Vejamos um exemplo mais detalhado, de ocorrência prática um

tanto quanto improvável, mas que nos parece eficaz para ajudar na melhor

compreensão do tema.

Suponha-se que B é um vendedor de bijuterias em uma feira livre,

que funciona apenas aos domingos, em uma praça da cidade, e expôs à venda

uma pulseira dourada, no valor de R$ 80,00, sendo que uma pulseira idêntica,

se feita de ouro, custaria em torno de R$ 2.000,00. A, visitando a feira, resolve

comprar essa pulseira exposta, acreditando que a mesma é de ouro, e, não

tendo dinheiro consigo no momento, pede que B a reserve, informando que

retornará em algumas horas e que pretende pagar por ela R$ 90,00, para

compensar a reserva feita, e efetivamente retorna e a venda é realizada.

Ora, pelo preço oferecido, que se mostra bastante próximo àquele

que estava sendo inicialmente pedido por B, este não tem como saber que A

acredita que a pulseira seja feita de ouro, pois se o fosse o preço seria muito

superior, em patamar completamente distinto. Nesse caso, apesar do erro de

A, o negócio será mantido, em proteção à boa-fé do vendedor, em cujo

procedimento está implícita a confiança em sua manutenção, pois é

claramente legítima a expectativa de B nessa mesma manutenção. Faltaria, aí,

portanto, o requisito da recognoscibilidade, para que o negócio pudesse ser

anulado em virtude do erro de A.

241 Paulo Gustavo Gonet Branco, Em torno dos vícios do negócio jurídico – A propósito do erro de fato e do erro de direito. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 140. E esclarece o autor, na mesma obra e local, que o relatório da Comissão Revisora do projeto que deu origem ao Código Civil confirma expressamente o propósito do legislador de proteger a boa-fé daquele que não tinha como suspeitar do erro do outro com quem contratou, o que se verifica na justificativa da recusa à Emenda nº 176.

234

No mesmo exemplo, contudo, suponha-se que A, ao pedir que

reservasse a pulseira, informasse que pretendia retornar e pagar pela mesma a

quantia de R$ 1.800,00. Em tal hipótese, como resulta evidente, B teria todas

as condições de perceber com facilidade que A estava manifestando sua

vontade com esteio em erro, pois o disparate entre o valor da pulseira e o

preço oferecido seria tão grande que jamais poderia passar despercebido a

qualquer pessoa de diligência normal. Nesse caso, portanto, o negócio seria

anulável em virtude do erro substancial de A, eis que se verificou o requisito

da recognoscibilidade (por B), e portanto não se poderia falar em proteção à

boa-fé deste, uma vez que tal boa-fé não pode ser detectada a partir da conduta

do vendedor.

Analisamos, até aqui, além do conceito e do fundamento

constitucional do princípio da boa-fé em si mesmo, diversas situações

genéricas de desobediência ao mesmo, inclusive quando tal princípio se

manifesta, nas relações obrigacionais, sob a forma de variados deveres

acessórios. E vimos, em tais situações, as conseqüências possíveis desse

mesmo desatendimento.

Neste ponto da nossa pesquisa, tornamos a fazer essa mesma

análise, acerca das conseqüências do desatendimento ao princípio da boa-fé

(ou da simples aplicação do princípio, em proteção ao sujeito de boa-fé), só

que agora buscando uma sistematização do assunto.

Começamos pela observação no sentido de que a infração ao

princípio da boa-fé não resulta, em geral, na nulidade do negócio jurídico onde

isso se deu, pois proteger a boa-fé de um dos sujeitos significa fazer com que

sejam satisfeitas as expectativas geradas a partir do negócio jurídico, e não a

sua frustração de uma vez por todas, o que ocorreria com a nulidade do

negócio.

235

Aliás, muito pelo contrário, como veremos de modo minucioso,

mais à frente, a proteção à boa-fé de um dos sujeitos pode mesmo resultar – e

muitas vezes resulta – na superação de uma nulidade do negócio jurídico, de

modo a que venham a ser produzidos os efeitos normais, como se esse negócio

fosse válido, de modo tal que sejam atendidas as expectativas do sujeito.

Com efeito, em virtude da desobediência ao princípio da boa-fé,

como já vimos anteriormente, as conseqüências podem ser de diversas ordens,

tais como a anulação de uma cláusula contratual que se mostre abusiva, a

modificação de uma cláusula que esteja provocando grave desequilíbrio entre

as partes, a imposição do dever de reparar os danos causados em virtude da

falta de cooperação, a imposição do dever de prestar as informações

necessárias, etc.

Antes de prosseguirmos, contudo, convém alertar que, na

realidade, o máximo que se pode fazer, além de realçar que a atuação do

princípio da boa-fé não se constitui em causa de nulidade dos negócios

jurídicos, é a indicação e a análise das conseqüências mais comuns do

descumprimento do princípio da boa-fé, assim como qual seria o melhor modo

de intervenção com o escopo de proteção a essa mesma boa-fé, sendo, no

entanto, impossível uma sistematização capaz de traçar as linhas mestras para

todas as hipóteses possíveis de ocorrência em situações concretas.

Essa impossibilidade, como nos parece evidente, resulta do fato

de que o princípio da boa-fé, como já examinamos anteriormente (veja-se,

retro, o item 1.1), funciona como o instrumento de uma justiça caso a caso, ou

seja, cuja concretização do conteúdo só pode ser feita na análise das

circunstâncias do caso concreto, em função das quais o juiz deverá aferir qual

o conteúdo do princípio para aquela hipótese em particular.

236

Ora, se o conteúdo exato do princípio da boa-fé, para fins de sua

aplicação concreta, só poderá ser determinado depois de serem examinadas e

sopesadas as peculiaridades de cada situação, e se com essa atuação ao caso

concreto o que se busca é, precisamente, corrigir os desvios decorrentes do

desatendimento ao princípio, é evidente que o modo de fazer atuar o princípio

da boa-fé (e, portanto, as conseqüências jurídicas dessa atuação) só poderá ser

aferido também no caso concreto que se encontra sob exame.

Além disso, é certo que, em determinadas situações, o

desatendimento ao princípio da boa-fé poderá trazer conseqüências em outras

áreas do direito, como por exemplo na esfera penal. Assim, por exemplo,

suponha-se que uma pessoa que vive em união estável adquiriu, a título

oneroso, na constância da mesma, um imóvel, que foi registrado

exclusivamente em seu nome. Se esse companheiro aliena o imóvel para

terceiro, deverá informar ao adquirente sobre o seu estado civil, para evitar o

prejuízo à companheira e mesmo uma possível argüição, por parte desta, da

anulabilidade do negócio. Tem-se aí, portanto, o dever acessório de

informação.

No entanto, essa falta de informação, no caso hipotético

apresentado, poderá, em tese, ser considerado como estando incluso no crime

tipificado no artigo 299, do Código Penal brasileiro, que se refere, dentre

outros tipos, à omissão, em documento público ou particular, de declaração

que dele deveria constar242.

Por razões óbvias, contudo, decorrentes do objetivo do presente

trabalho, limitar-nos-emos ao exame das conseqüências jurídicas situadas na

esfera civil, deixando as conseqüências penais para os estudiosos do assunto.

242 O exemplo é de Nicolau Eládio Bassalo Crispino, A união estável e a situação jurídica dos negócios entre companheiros e terceiros, pp. 252-253.

237

Vejamos, então, em seguida, as hipóteses mais freqüentes de

conseqüências jurídicas possíveis, face ao descumprimento do multicitado

princípio da boa-fé, buscando apresentar exemplos de cada uma delas.

a) declaração de invalidade de uma cláusula contratual específica.

Em algumas situações concretas, o que se verifica é que uma das

cláusulas negociais confere a uma das partes um poder tão grande, em relação

ao negócio jurídico, que esse sujeito adquire a possibilidade de impor

livremente a sua vontade ao outro, o que pode transformar em abusiva a

mencionada cláusula. O negócio, uma vez desconsiderado esse item abusivo, é

perfeitamente válido. Nessas condições, nada justificaria que se considerasse

inválido todo o ato volitivo, por isso que se mostra suficiente que apenas a

cláusula em questão seja retirada do mesmo.

Suponha-se que em um contrato de abertura de crédito, celebrado

entre um comerciante e um banco, este, depois de ter liberado algumas

parcelas, de modo súbito e injustificado, resolve não liberar mais um único

centavo e, além disso, exigir o imediato pagamento de todos os valores já

liberados, uma vez que existia cláusula contratual que lhe permitia agir dessa

forma243.

Ora, parece evidente que, apesar da existência da referida

cláusula, esse comportamento de um dos sujeitos do negócio (o banco, no

caso), surpreendendo o outro e podendo causar-lhe graves prejuízos, viola o

dever de se conduzir conforme a boa-fé, por ter sido brusca e sem aviso prévio

a ruptura do crédito e a exigência do pagamento, e por essa razão a cláusula

243 O exemplo é mencionado por Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais , p. 338, n° 1201.

238

poderá ser declarada judicialmente inválida, fixando o juiz um prazo para que

o banco possa fazer tais exigências.

Cabe recordar que o Código de Defesa do Consumidor, de modo

expresso, fulminou com a nulidade as cláusulas que se mostrem abusivas, em

desfavor do consumidor, como se pode observar na regra que se encontra

insculpida nos artigos 51 e seguintes do referido Código, dentre elas inserindo

explicitamente aquelas que se mostrem incompatíveis com a boa-fé (art. 51,

IV). Além disso, observe-se, ainda, que poderia surgir, também, no exemplo

acima, a obrigação de reparar os danos porventura sofridos pelo comerciante,

em decorrência do brusco e não avisado rompimento.

Vejamos um outro exemplo, este ligado do Direito do Trabalho, e

no qual também poderia ser declarada a invalidade de uma cláusula contratual

específica.

Suponha-se que, ao ser contratado um empregado, por

empregador que mantém estabelecimentos em várias cidades do Brasil, do

contrato constou, expressamente, que o mesmo poderia ser transferido pelo

empregador, unilateralmente, a qualquer momento, para qualquer desses

estabelecimentos, desde que houvesse necessidade do serviço, a justificar essa

transferência. Essa possibilidade de transferência unilateral, é importante que

se ressalte, quando prevista implícita ou expressamente no contrato e no caso

de haver necessidade do serviço, é expressamente admitida pelo artigo 469, §

2°, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No entanto, durante vários e longos anos, o empregado

permaneceu trabalhando e residindo sempre naquela mesma cidade na qual foi

admitido, sendo que na mesma já adquiriu imóvel, casou-se, matriculou os

filhos na escola, associou-se a alguns clubes locais, etc. Enfim, depois de

vários anos, o empregado já construiu toda a sua vida social nessa cidade onde

239

foi contratado e onde sempre trabalhou. Decorridos quinze ou vinte anos, vem

o empregador a pretender exercer a cláusula que permite a transferência,

determinando ao empregado que se apresente, dali a alguns dias, em uma

outra cidade, em um outro Estado da Federação.

Será válida essa determinação de transferência, feita pelo

empregador ao empregado? Apesar da existência da cláusula contratual

expressa, parece-nos que claramente a resposta negativa se impõe, uma vez

que tal determinação viola o princípio da boa-fé, eis que o longo tempo

decorrido, desde a contratação, já havia feito surgir no empregado a legítima

expectativa de que não precisaria ser transferido para outra localidade, e a

determinação, por isso, quebra a confiança que justificadamente havia surgido

no trabalhador. Trata-se, na hipótese, de um caso particular de venire contra

factum proprium, que por suas características se enquadra dentro da assim

denominada suppressio (veja-se, adiante, o item 2.5).

Não é demais observar que, ao apreciar as circunstâncias

específicas do caso concreto, para aferir se um determinado comportamento

viola ou não o princípio da boa-fé, um elemento que se apresenta como de

fundamental importância é precisamente o tempo já decorrido, ou seja, quanto

maior for o tempo durante o qual a parte se comportou de uma determinada

maneira (no caso, não exercendo o direito de transferir o empregado), mais

facilmente poderá ser considerado como abusiva (por violar a boa-fé) a

mudança de comportamento (o exercício desse mesmo direito). Veja-se, mais

adiante, no item 2.3.1, explicação mais minuciosa sobre essa questão do

tempo decorrido.

No caso concreto, portanto, parece-nos que ao juiz, ao ser

provocado pelo empregado, não restará outra opção, a não ser declarar a

240

invalidade da cláusula constante do contrato laboral e determinando que o

empregador se abstenha de insistir na transferência do seu empregado.

a.1) modificação eqüitativa de uma cláusula contratual.

Vimos, acima, a hipótese na qual o juiz poderia, simplesmente,

invalidar uma cláusula contratual, e, portanto, desconsiderá-la, ao buscar a

solução para o caso concreto. Poderia ocorrer, no entanto, de se tratar de

cláusula necessária, e que por essa razão não pode ser simplesmente eliminada

do negócio, mas cujo quantitativo se apresenta visivelmente abusivo. Em tal

situação, parece evidente que o juiz não poderá desconsiderar a mencionada

cláusula, mas poderá reduzir esse quantitativo, de modo a torná-lo mais

adequado às circunstâncias do caso concreto. Vejamos um exemplo.

Suponha-se que em uma pequena cidade, na qual existem apenas

três médicos-cirurgiões, uma pessoa sente-se mal e necessita de uma urgente

intervenção cirúrgica. Nessa ocasião, dois dos cirurgiões estão ausentes da

cidade, e o deslocamento do paciente para alguma outra cidade vizinha não se

mostra seguro, em virtude do precioso tempo que seria perdido e também em

virtude do desconforto físico da viagem.

Não tendo outra opção, o doente procura o único cirurgião que se

encontra presente na cidade, sendo que este, para realizar a cirurgia, cobra

honorários exorbitantes, em valor várias vezes superior ao que normalmente

seria cobrado para aquele tipo específico de intervenção cirúrgica. Novamente

por não ter opção, diante da urgência de sua situação, o doente concorda com

o valor cobrado, sendo firmado contrato nesse sentido, e desde logo adiantado

o pagamento no todo ou em parte.

241

Posteriormente, contudo, depois de realizada a cirurgia, o

paciente decide questionar judicialmente (como autor ou ao contestar ação de

cobrança movida pelo médico, tanto faz) a cláusula referente ao valor dos

honorários médicos, alegando que a mesma foi extorsiva, tendo o profissional

se valido da urgência da situação para pleitear honorários em valor exorbitante

e irreal.

O juiz, examinando as circunstâncias do caso concreto, conclui

que, de fato, o valor cobrado foi exorbitante, não podendo ser aplicada aquela

cláusula contratual para forçar o paciente a pagar a abusiva quantia. Ora, é

evidente que, em tal caso, não poderá o juiz simplesmente invalidar e

desconsiderar a cláusula contratual, pois é certo que o médico-cirurgião, tendo

prestado o serviço ao qual se comprometeu, deverá ser por ele remunerado,

com o pagamento dos honorários devidos.

Nesse caso, portanto, a intervenção judicial não consistirá na pura

e simples eliminação da cláusula contratada, mas na sua adequação à realidade

fática do caso concreto, vale dizer, com a sua redução proporcional e

eqüitativa, para um valor que possa ser considerado como normal e adequado

para aquela espécie de cirurgia. Ou seja, mantém-se a cláusula contratual, mas

adapta-se o quantitativo inadequado, para que melhor se harmonize com a

situação do caso concreto.

Não é demais observar que o caso acima narrado nada mais é do

que a hipótese de estado de perigo, prevista no artigo 156, do Código Civil

brasileiro, sendo que, no caso, não é possível anular o negócio em virtude do

vício apresentado, uma vez que o médico já havia cumprido a sua prestação,

cuja devolução se mostra impossível. Logo, deverá o juiz se valer do artigo

182, do mesmo Código, para estipular qual seria a adequada retribuição a ser

paga ao médico prestador do serviço.

242

b) determinação para que o sujeito adote um certo comportamento: imposição

de obrigação de fazer.

A boa-fé, como já vimos (veja-se, retro, o item 1.6.1), tem

assento constitucional, fundando-se no princípio da solidariedade social, que

se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República

(Constituição Federal, art. 3°, I), e essa solidariedade impõe, dentre outros

comportamentos, o dever de cooperação entre os sujeitos de um negócio

jurídico, significando, por exemplo, que cada um deles deve não apenas

abster-se de colocar obstáculos para que o outro possa cumprir suas

prestações, mas, ainda mais do que isso, deverá cada um deles agir de modo a

possibilitar esse mesmo cumprimento.

Logo, em muitos casos a atuação da boa-fé poderá implicar

exatamente na determinação para que o sujeito adote esse comportamento

específico, que no caso concreto possa se mostrar capaz de facilitar ou

possibilitar à outra parte o cumprimento de suas prestações.

Suponha-se, por exemplo, que em um contrato de compra e

venda, no qual o comprador é um comerciante e o vendedor é o fabricante de

um determinado produto alimentício, houve a descrição detalhada sobre as

condições nas quais esse produto deveria ser entregue, sendo descrito, por

exemplo, que cada embalagem individual deveria conter quinhentos gramas

do mesmo, e que em cada caixa deveria haver vinte dessas embalagens.

O fabricante, no entanto, remete ao comprador o produto em

caixas que contêm, cada uma, doze embalagens de quinhentos gramas. O

comprador, imediatamente, devolve a mercadoria e requer a resolução do

contrato. O vendedor, contudo, oferece ao comprador uma nova e imediata

243

remessa, desta vez com o pleno atendimento das condições pactuadas, ou seja,

em caixas de vinte embalagens, mas o comprador persiste no seu propósito de

desfazer o contrato.

Em tal situação, salvo a ocorrência de circunstâncias especiais,

que poderiam justificar a recusa por parte do comprador, parece-nos que este

estará descumprindo o seu dever de cooperação, ao recusar o recebimento do

produto que esteja dentro das condições especificadas.

Assim, por exemplo, é possível que ao comprador só interessasse

o fornecimento da mercadoria até uma certa data, para que pudesse atender a

sua clientela, e por isso estaria justificada a recusa de uma nova remessa. Não

havendo, contudo, qualquer justificativa para tal recusa, parece-nos que a

mesma se afigura como abusiva, e por essa razão poderá ser judicialmente

imposta a aceitação, por parte do adquirente, rejeitando-se o pedido de

resolução contratual.

E essa obrigação de fazer, muitas vezes, aparece sob a forma de

prestação de alguma informação, podendo ser, por exemplo, a confecção e

entrega244 de um documento do qual o outro sujeito necessita.

Suponha-se, por exemplo, que um determinado empresário

pretende montar um “cyber café”, estabelecimento no qual existem dezenas de

computadores, todos ligados à rede mundial de computadores (internet) e

interligados entre si, de modo a permitir que os clientes possam tanto ter

acesso à internet quanto participar de jogos, uns com os outros, com jogadores

individuais ou participantes de equipes.

244 Não é demais recordar a lição do mestre Washington de Barros, no sentido de que, quando a obrigação consiste na entrega de alguma coisa, mas para que possa entregá-la, primeiro precisará confeccioná-la, então a obrigação, tecnicamente, é de fazer, e não de dar. Cf. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, v. 4 , p. 87.

244

Como o negócio requer um alto investimento, face à grande soma

necessária para a reforma e adaptação do imóvel, aquisição dos computadores

e outros equipamentos, conexão com a rede mundial, etc, o empresário

pleiteia, junto a um banco, a obtenção de um empréstimo. O banco, contudo,

dentre a documentação exigida, pede que o empresário apresente o projeto de

reforma do prédio, bem como um relatório da fase em que essa mesma

reforma se encontra; pede, ainda, o projeto referente à instalação dos

computadores.

O empresário, para poder atender às exigências do banco, solicita

tais documentos aos responsáveis por ambos os projetos, de engenharia e de

instalações técnicas dos equipamentos de informática, que injustificadamente

não os fornecem, levando o banco a negar a concessão do empréstimo.

Poderia esse empresário, pela via judicial, dentre outras medidas possíveis

(por exemplo, a reparação dos danos sofridos), buscar obter ordem para que os

documentos necessários, solicitados pelo banco, sejam imediatamente

fornecidos.

b.1) rescisão contratual justificada.

No item acima, observamos que uma das medidas possíveis, na

proteção à boa-fé do sujeito, é a imposição de uma obrigação de fazer, ou seja,

a imposição de que seja adotado um comportamento específico, pelo outro

envolvido no negócio jurídico. Ocorre que, em algumas situações, essa

obrigação de fazer se apresenta como personalíssima, só podendo ser

cumprida, pois, pelo devedor, e sua imposição não pode ser admitida em

virtude de outros princípios e direitos fundamentais, também merecedores de

245

proteção, como seria o caso da prestação de fazer que se liga aos próprios

direitos da personalidade do devedor.

Em tal situação, a única solução possível será permitir que o outro

sujeito, aquele cuja boa-fé está sendo protegida, possa considerar rescindido,

por justa causa, o negócio entre ambos firmado, sendo essa rescisão

acompanhada ou não do dever de reparação dos danos.

Esse seria o caso, por exemplo, no qual a obrigação de fazer a ser

imposta, como medida de proteção à boa-fé, fosse uma prestação pessoal de

serviços, como é o caso da prestação principal do empregado, em um contrato

de trabalho. Em tal caso, como essa prestação se liga ao próprio corpo, à força

física do empregado, e só por ele poderia ser cumprida, é evidente que não

será possível a sua imposição forçada, não restando outro meio que não seja a

permissão ao empregador para que considere o contrato rompido por justa

causa imputável ao empregado.

Considere-se uma situação na qual o empregado, trabalhando há

longos anos para a mesma empresa, foi sendo paulatinamente qualificado para

que pudesse ocupar cargos mais elevados, de maior remuneração e também de

maior responsabilidade, dentro do organograma da empresa. Assim, ao longo

dos anos, o empregado participou de vários cursos, recebeu orientações e

ensinamentos práticos no próprio local de trabalho, exerceu substituições

eventuais, nas ausências dos titulares desses cargos mencionados, etc.

Um certo dia, contudo, surgindo uma vaga em um determinado

cargo, para o qual o empregado já se encontra plenamente habilitado, o

empregador pretende nomeá-lo, para que passe a ocupar tal cargo de modo

definitivo. O empregado, no entanto, sem apresentar qualquer justificativa,

simplesmente recusa a promoção, frustrando a legítima expectativa do

empregador, que ao longo de vários anos investiu na formação e no

246

treinamento desse empregado com o intuito de vê-lo ocupar, na empresa,

cargos de maior responsabilidade.

Essa frustração da expectativa, levada a termo pelo empregado,

segundo nos parece, viola o princípio da boa-fé, infringindo os deveres de

solidariedade e de cooperação que devem dirigir as relações entre as partes

contratantes e quebrando a confiança que se havia formado no empregador245.

No entanto, é evidente que a repressão à má-fé do empregado (e a proteção à

boa-fé do empregador), em tal caso, não poderá ser dada pela imposição, ao

empregado, da aceitação do novo cargo, pois tal medida equivaleria a impor-

lhe um trabalho físico forçado, medida cuja imposição manu militari não pode

ser aceita.

A única solução viável, ao que nos parece, seria permitir ao

empregador o rompimento do contrato de modo justificado, face ao

comportamento reprovável do empregado246. E acrescente-se que, face aos

princípios peculiares do Direito do Trabalho, dentre os quais o da proteção e o

da atribuição dos riscos da atividade ao empregador, não seria possível

condenar-se o empregado ao pagamento de qualquer indenização ao

245 Nesse sentido a lição de Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, que ao tratar do tema (recusa à promoção, pelo empregado), ensinam que “a recusa somente se justificará por motivos ponderosos. O empregado participa de uma organização econômica e, ao fazer o contrato do qual decorre essa participação, tomando conhecimento da possibilidade de acesso, com isto, tacitamente, concorda. Interessa, também, ao empregador a promoção do empregado, por lhe interessar, logicamente, a melhoria qualitativa do seu quadro de pessoal. O empregado que foge À responsabilidade de cargo de maior importância, sendo, está claro, normal o acesso em relação à função exercida, frustra a justa expectativa do empregador, que o levou a contratá-lo”. Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, Direito do Trabalho , p. 227. 246 Embora não mencionando expressamente a possibilidade de ruptura justificada do contrato, pelo empregador, também Orlando Gomes aponta que não poderia o empregado, injustificadamente, recusar-se a aceitar a promoção que não lhe ofereça qualquer risco ou desvantagem. Cf. Orlando Gomes e Élson Gottschalk, Curso de Direito do Trabalho , p. 375. no mesmo sentido a lição de Maurício Godinho Delgado, para quem “constitui obrigação de o empregado aceitar a promoção, quando configuradas as situações prefixadas no regulamento empresarial. É bem verdade que se pode admitir a validade da recusa obreira, desde que com justificativa contratual efetivamente ponderável”. Cf. Maurício Godinho Delgado, Curso de Direito do Trabalho , p. 1.019.

247

empregador, limitando-se a solução, tão-somente, à ruptura justificada do

contrato, como já foi mencionado.

b.2) determinação de manutenção do contrato.

Vimos, no subitem anterior, hipótese na qual a solução mais

adequada se mostrava como sendo a possibilidade de rompimento justificado

do contrato. Em outras situações, no entanto, nas quais não esbarra o juiz no

mesmo problema acima mencionado, ou seja, nas quais não se verifica a

impossibilidade de imposição de uma determinada prestação ao sujeito, é

possível que a solução a ser alvitrada seja exatamente a inversa, ou seja, no

sentido de determinar aos sujeitos que o contrato seja mantido, impedindo que

um dos contratantes possa exercer seu direito de rompê-lo sem causa

justificada.

Não é demais recordar que os contratos podem ser extintos,

dentre outros modos, pela resilição, ou seja, em virtude da vontade de um ou

de ambos os contratantes. Nos contratos que não sejam de trato sucessivo,

assim como naqueles que o são, mas que têm prazo determinado, em regra a

resilição só poderá ocorrer de modo bilateral, caracterizando a figura do

distrato.

Nos contratos de execução continuada, contudo, cujo prazo de

duração seja indeterminado, é tranqüila a aceitação da possibilidade de

resilição unilateral247, desde que mediante concessão de aviso prévio

(denúncia) à outra parte, sendo este o sentido do que se encontra disposto no

247 No mesmo sentido a opinião de Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 350, n° 1238.

248

artigo 473, do Código Civil, quando se refere aos casos nos quais a lei

implicitamente admite a resilição unilateral.

No entanto, esse direito que tem o contratante de proceder à

denúncia unilateral e injustificada do contrato, a toda evidência, não é e nem

pode ser considerado como absoluto, o que aliás fica muito claro pelo simples

fato de que a norma legal acima mencionada exige que seja concedido um

aviso prévio, acerca da ruptura do contrato.

Em outras palavras, ainda que se reconheça o direito de resilição

unilateral, nessa hipótese onde não foi previsto qualquer termo para o

contrato, é certo que a ruptura contratual não pode ser feita de modo brusco e

abrupto, sob pena de se tolerar o abuso do direito e de se permitir que a parte

contratualmente mais fraca fique à inteira mercê da mais forte.

Dessas afirmações já se pode constatar que o direito de resilição

unilateral do contrato, nos casos em que é admitido, pode ser – e é – limitado

em virtude do princípio da boa-fé, por isso que se exige a concessão do aviso

prévio. No entanto, se em algumas situações a concessão do aviso prévio já se

mostra suficiente para a proteção à boa-fé do contratante, por outro lado, é

certo que, em algumas hipóteses, isso não se mostrará o bastante, sendo

necessário, para que tal proteção se mostre efetiva, que o contrato venha a ser

mantido por mais algum tempo, simplesmente “suspendendo-se”, de modo

temporário, o direito de resilição do mesmo pelo contratante.

Essa situação ocorreria, por exemplo, na hipótese referida no

parágrafo único, do artigo 473, do Código Civil, vale dizer, na situação onde

um dos contratantes, para que fosse possível cumprir o contrato, precisou

realizar investimentos consideráveis. Nesse caso, se ainda não decorreu o

tempo suficiente para a recuperação do investimento feito, a denúncia do

contrato (e, portanto, a sua resilição) só produzirá efeitos depois que tiver

249

transcorrido esse tempo suficiente. Em tal situação, poderá o contratante

prejudicado (o que efetuou os investimentos consideráveis) recorrer ao

judiciário, pleiteando que seja imposta ao outro a manutenção do contrato, até

que tenha fluído o tempo necessário, conforme o caso concreto, para que o seu

investimento possa ser recuperado.

Veja-se que se trata, de modo claríssimo, da aplicação do

princípio da boa-fé, pois é certo que o contratante autor dos investimentos só

os efetuou porque contava em recuperá-los, com o passar do tempo, na

exploração do negócio. Logo, se ao outro sujeito fosse permitida a ruptura

imediata (ou após a fluência de um curto aviso prévio), estaria sendo frustrada

essa legítima expectativa gerada no investidor, restando pois desprotegida a

confiança do sujeito, sendo evidente que a proteção adequada dessa confiança,

no caso, é precisamente a determinação no sentido de que o contrato venha a

ser mantido por mais algum tempo.

Convém acrescentar, ainda, que o caput do artigo 473, ao se

referir à necessidade de “denúncia notificada à outra parte”, para fins de

resilição unilateral, não menciona o prazo da mesma, ou seja, não esclarece

qual é a antecedência que deve ser observada, por ocasião do aviso prévio de

que o contrato será em breve rompido. Mas é evidente, contudo, que isso não

significa que o denunciante poderá valer-se de qualquer prazo, por menor que

seja, para comunicar sua intenção de romper unilateralmente o negócio.

Na realidade, quando as partes contratantes, na elaboração do

contrato, silenciam sobre o prazo do aviso prévio, em caso de resilição

unilateral, isso significa que a disposição do referido caput do artigo 473 adere

ao contrato, passando a valer como se fosse uma cláusula do mesmo. Logo,

essa mencionada cláusula, ao ser interpretada, deverá sê-lo na conformidade

250

do que dispõe o artigo 113, também do Código Civil, ou seja, deverá ser

interpretada conforme a boa-fé e os usos do lugar.

Dessa forma, conforme o caso concreto, a denúncia deve ser feita

em um prazo que se mostre razoável para que o outro contratante não venha a

sofrer prejuízos consideráveis, ou seja, para que tenha tempo de se preparar

para a ruptura, minimizando as suas eventuais perdas, e é certo que o tempo

necessário para que isso possa ser feito dependerá das circunstâncias que

acompanham o caso, tais como a natureza jurídica do contrato, o vulto

econômico do mesmo, a maior ou menor estrutura organizacional dos

envolvidos, etc.

E, por último, na realidade se pode apontar que mesmo o

parágrafo único, do artigo 473, nada mais é do que uma situação peculiar

dessa interpretação conforme a boa-fé, caracterizando-se pelo fato de ter

havido investimentos de alto valor e por não ter ainda decorrido um tempo

razoável para a recuperação dos mesmos, e por essa razão a denúncia terá que

ser feita com um prazo bastante longo, precisamente para permitir que o outro

contratante consiga minimizar os seus prejuízos, pelo menos recuperando o

seu investimento.

c) condenação ao pagamento de uma indenização.

Na realidade, nas situações examinadas nas duas alíneas

anteriores, as soluções alvitradas poderão ser também acompanhadas com a

imposição, a um dos sujeitos, de ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo

outro. A indenização pura e simples, desacompanhada de outras medidas

capazes de proteção à boa-fé, só se mostrará como adequada nos casos em que

251

não for possível a adoção de outras medidas mais eficientes e aptas à proteção

do sujeito.

Contudo, deve-se alertar para um importante aspecto: logo ao

iniciarmos o presente item, esclarecemos a diferença entre a proteção à boa-fé

e a violação do princípio da boa-fé, eis que, em muitos casos, a atuação do juiz

buscará proteger a boa-fé de um dos sujeitos envolvidos no negócio, mas sem

que isso signifique, necessariamente, que o outro sujeito tenha infringido o

princípio da boa-fé (remetemos o leitor à leitura dos primeiros cinco

parágrafos do presente item, para mais detalhadas explicações).

Ocorre que, para que seja cabível a imposição do dever de

indenizar, é indispensável que tenha ocorrido a infração ao princípio da boa-

fé, ou seja, se apenas se tratar de proteger a boa-fé de um dos sujeitos, mas

sem que o outro tenha violado o multicitado princípio, não deverá ser imposta

indenização alguma. Em outras palavras, um dos sujeitos será condenado a

ressarcir os prejuízos unicamente se atuou de modo a infringir o princípio da

boa-fé, ou seja, se atuou de má-fé, não cabendo tal condenação apenas como

simples meio de proteção à boa-fé do outro.

Assim, por exemplo, na hipótese acima figurada, da pessoa que,

estando de boa-fé, celebrou contrato com o absolutamente incapaz, já vimos

que a intervenção judicial não tratará de reprimir o comportamento do

incapaz, mas sim de atribuir efeitos ao negócio jurídico, de modo a proteger a

boa-fé do que com o incapaz negociou. Ora, mesmo que essa pessoa de boa-fé

tenha sofrido prejuízos, parece-nos evidente que o incapaz não será condenado

a indenizá-los, exatamente pelo fato de que não se cogita de sua atuação ter

violado o princípio da boa-fé.

Não é demais lembrar que a reparação dos danos só se mostra

cabível em virtude de uma atuação ou omissão capaz de causar dano a alguém

252

ou de violar direito de outrem, como se observa nos artigos 186 e 187, ambos

do Código Civil. Nas hipóteses que estamos examinando, portanto, a

imposição do dever de indenizar só será possível quando houver uma atuação

ou omissão de um dos sujeitos, que tenha violado o princípio da boa-fé e

causado dano a alguém. Fora dessa situação, não será cabível indenização

alguma.

d) consideração dos efeitos jurídicos do negócio, embora este seja nulo.

Em outras hipóteses, ainda, a proteção à boa-fé funciona como

elemento de superação da nulidade do negócio jurídico, ou seja, com o escopo

explícito de protegê-la, torna-se possível considerar que um determinado

negócio, embora nulo, possa produzir seus efeitos normais, como se fosse

válido.

Esse seria o caso, por exemplo, onde a nulidade decorresse de um

vício formal, sendo que tal vício tivesse sido provocado por um dos sujeitos

do negócio, sendo que esse mesmo sujeito foi quem veio, posteriormente, a

pleitear a declaração de nulidade absoluta, em função da invalidade a que ele

mesmo deu causa.

Seria a hipótese, também, daquele que negociou com o

absolutamente incapaz, sem saber (e sem ter condições de descobrir) que se

tratava de incapaz absoluto, sendo que o negócio foi celebrado em condições

que podem ser consideradas como normais, para os negócios daquela espécie

e segundo as circunstâncias do caso concreto (veja-se, adiante, o item 2.3.2.2,

onde esse negócio celebrado pelo incapaz absoluto é examinado em seus

pormenores).

253

Em alguns casos, em proteção à boa-fé, a própria lei cuida de

manter os efeitos do negócio jurídico. Seria o caso, por exemplo248, da

sucessão causa mortis, na qual o juiz homologou a partilha em favor do

herdeiro aparente que já estava com a posse do bem, sendo que esse herdeiro,

algum tempo depois, vende esse bem a um terceiro. Posteriormente, um outro

herdeiro ajuíza ação de exclusão por indignidade, e o alienante do bem vem a

ser declarado indigno, e, portanto, despido da condição de herdeiro. Veja-se

que, em relação ao indigno, a exclusão retroage, fazendo com que tenha que

devolver ao monte todos os bens que recebeu.

No entanto, em relação ao terceiro que estava de boa-fé, e que em

função da aparência de que estava negociando o bem com o herdeiro, seu

legítimo proprietário, firmou a confiança na legitimidade da sua aquisição, ou

seja, criou a justa expectativa de que estava adquirindo válida e regularmente

esse mesmo bem, os efeitos do negócio serão mantidos, ou seja, a aquisição

será considerada válida, e o herdeiro aparente, agora excluído por indignidade,

deverá devolver ao monte o valor que recebeu, pois o bem em si mesmo

permanecerá com o adquirente, como se encontra expresso no artigo 1.817, do

nosso Código Civil.

De qualquer modo, essa possibilidade de superação da nulidade

do negócio jurídico, em se tratando de tema ligado ao objeto principal da

presente pesquisa, será novamente abordada, em maiores minúcias, mais à

frente, motivo pelo qual, no presente item, limitamo-nos a dar notícia sobre a

mesma.

d.1) consideração de efeitos típicos do contrato, ainda que contrato não exista.

248 O exemplo é de Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro , p. 41.

254

Vimos, no item 1.8, supra, que, em algumas situações, é até

mesmo possível que não tenha havido uma declaração da vontade, mas que

apesar disso serão produzidos efeitos jurídicos idênticos aos de um contrato,

ainda que contrato não tenha havido, em virtude da aplicação do princípio da

boa-fé.

Seria o caso, narrado no local mencionado, do furto de um carro

deixado por um cliente em um estacionamento oferecido gratuitamente pelo

banco. Ainda que se entenda que não houve contrato de depósito, entre o

cliente e o banco e em relação ao carro, mesmo assim terá havido, em virtude

desse contato social entre ambos, uma relação contratual de fato, ou seja, um

comportamento social típico, que por si só já é capaz de gerar o dever

acessório de proteção à pessoa e aos bens (no caso, o carro) do cliente, e por

isso o banco responderá pelos prejuízos, por não ter se desincumbido

adequadamente desse dever de proteção.

Como se vê, portanto, ainda que se entenda que não houve

contrato, tal discussão se torna supérflua, pois os efeitos jurídicos que serão

produzidos, no que se refere aos deveres acessórios, serão idênticos aos de um

contrato, e por isso, para efeitos práticos, não se vislumbra diferença entre o

enquadramento contratual ou aquiliano do dever de proteção, nesse caso

específico.

255

2. Violações típicas da boa-fé.

2.1. Considerações gerais.

O objetivo precípuo do presente estudo, como desde o início já o

dissemos, é o exame dos elementos característicos e das conseqüências da

chamada teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium), fazendo

dela um cotejo com outros institutos assemelhados, todos eles tendo em

comum o fato de que se constituem em violações dos comportamentos que, a

partir do exame à luz da boa-fé, seriam aqueles esperados para o caso concreto

que está sendo apreciado.

Tendo em vista tal objetivo, e levando em conta precisamente o

fato de que a boa-fé é o elemento que se mostra como fator de ligação entre os

diversos institutos a serem cotejados, foi que começamos nossa análise a partir

de algumas digressões sobre a boa-fé, traçando um rápido panorama sobre a

evolução da mesma, desde a bona fides dos romanos, com caráter subjetivo,

até chegarmos à boa-fé como uma norma de conduta, de caráter objetivo, que

impõe aos sujeitos a observância dos deveres colaterais, consistindo estes na

adoção de um comportamento que se mostre adequado e necessário ao

atingimento do resultado final esperado para o negócio.

No presente capítulo, continuaremos a analisar essas violações

dos comportamentos apurados como sendo os adequados para cada caso

concreto, mas agora o enfoque principal deixa de ser na boa-fé em si mesma249

249 Mas não se pode perder de vista que, na realidade, essa divisão da matéria “conforme padrões” é, acima de tudo, para mais fácil compreensão do tema e grupamento das soluções de situações que se mostrem similares umas às outras, pois na realidade continua-se a tratar da própria boa-fé, eis que as situações dela derivadas, a toda evidência, não perdem suas características, ou seja, continuam a ter os mesmos efeitos e o mesmo alcance do princípio geral da boa-fé. Nesse sentido, pode-se dizer que “las consecuencias o las derivaciones inmediatas del principio general de la buena fe, construidas doctrinal o jurisprudencialmente,

256

e passa a se concentrar nas violações, que são reunidas conforme alguns

padrões que se manifestam com maior freqüência, nos negócios jurídicos, e

que receberam denominações específicas da doutrina. Esse é o caso do próprio

venire contra factum proprium, que de modo extremamente sintético pode ser

descrito como sendo a infração do dever de coerência, que se manifesta como

um subproduto do dever de lealdade, conforme veremos adiante.

Nosso exame, contudo, começará pela figura mais ampla do

abuso do direito, que na realidade se constitui em instituto de maior

generalidade, e por isso capaz de abranger diversas outras violações de caráter

mais restrito (inclusive o venire), também configuradas a partir de

comportamentos-tipos. Com efeito, e desde logo adiantando o tema do

subitem seguinte, pode-se observar que as legislações em geral definem o

abuso do direito como uma violação dos limites impostos pela boa-fé, ou seja,

trata-se de uma desobediência genérica à conduta aferida a partir da boa-fé.

Dentro dessa descrição genérica, contudo, enquadram-se outras, que têm

características mais específicas e bem definidas, e que também implicam em

violação dos limites impostos pela boa-fé, inclusive o venire contra factum

proprium.

Antes de nos lançarmos na análise dessas figuras mencionadas,

que se constituem em violações específicas do comportamento que deveria ser

adotado, conforme as imposições decorrentes da boa-fé, mais algumas

observações, de cunho geral, se fazem indispensáveis.

en torno a particulares situaciones de intereses, de carácter típico, tienen el mismo valor y el mismo alcance que el principio general de que dimanan y en que inmediatamente se fundan”. Cf. DÍEZ-PICAZO, La doctrina de los propios actos, pp. 139-140, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 38. Aliás, é exatamente por essa razão, ou seja, porque continua a se tratar de análise do princípio da boa-fé, que logo em seguida veremos, nesse mesmo item referente às violações típicas da boa-fé, os institutos jurídicos nos quais são agrupadas essas violações, tais como o venire contra factum proprium, o abuso do direito, a exceptio doli , etc.

257

Em primeiro lugar, como bem observa DÍEZ-PICAZO250, a

norma que ordena que se tenha um comportamento conforme os ditames da

boa-fé é um princípio geral do direito, e por essa razão tem o caráter de fonte

secundária do Direito, ou seja, dentre outras funções servindo como elemento

de integração das lacunas da lei. Desse modo, não havendo norma especial

que se mostre adequada para a solução daquele caso concreto que se encontra

em exame, tal princípio deve ser aplicado para a solução do litígio.

Em segundo lugar, convém recordar que a boa-fé pode se

apresentar sob as mais diversas modalidades, em cada um dos casos concretos,

sendo certo que a divisão precisa entre os diversos deveres acessórios só existe

mesmo para fins didáticos, pois é muito comum que, em uma situação real,

um determinado dever acessório esteja abrangendo um outro, como logo em

seguida exemplificaremos.

De um modo genérico e abrangente, há quem prefira apontar que

o comportamento que viola o princípio da boa-fé é aquele que se apresenta

como desleal, qualquer que seja o modo pelo qual essa deslealdade se

concretize, sendo que o que de fato vai interessar é que as conseqüências, para

a outra parte, sejam bastante graves. Nesse sentido a lição de Béatrice

Jaluzot251.

Além disso, como mencionamos brevemente, acima, não existe

uma separação rígida, clara e perfeitamente delineada, entre os diversos

deveres colaterais, por isso que tal separação apenas cumpre finalidade

didática. Comentamos, retro, por exemplo, separadamente, sobre os deveres

acessórios de proteção e de informação (item 1.8). Muitas situações podem

250 DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 39, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 38. 251 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 89, n° 325.

258

ocorrer, no entanto, em que a informação deve ser prestada, por um dos

sujeitos ao outro, sob pena de sérios danos à pessoa ou ao patrimônio.

Seria o caso, por exemplo, das informações necessárias para o

manuseio seguro de uma máquina que funciona sob pressão, informações

essas sem as quais há o sério risco até mesmo de forte e grave explosão. Ora,

como determinar se, em tal caso, estamos diante do dever acessório de

informação ou do dever de proteção? Simplesmente não é possível esse

enquadramento preciso, pois a situação apresenta traços que permitem

classificá-la tanto em um quanto em outro dos dois deveres acessórios, que no

caso se mesclam de modo inseparável.

De qualquer modo, por outro lado se percebe que o que se mostra

mais do que suficiente é que se possa identificar se houve ou não, no caso,

situação na qual se poderá apontar que foi violado o princípio da boa-fé. Uma

vez identificada tal violação, haverá de se mostrar completamente irrelevante,

para qualquer finalidade prática que seja, determinar-se se o dever lateral

violado foi o de proteção ou o de informação.

2.2. O abuso do direito.

Antes do exame do instituto em si mesmo, tracemos algumas

breves considerações sobre a denominação do mesmo. O problema é que

encontramos, com alguma freqüência, no texto de alguns ilustres autores, a

referência ao “abuso de direito”252, o que, com todo o respeito devido a tão

252 Dentre outros: Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 187 e ss.; Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 468; Sílvio Venosa, Direito Civil – Parte Geral , p. 492; J. Franklin Alves Felipe e Geraldo Magela Alves, O Novo Código Civil Anotado, p. 44; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 1, p. 462. Esta última e ilustre autora, inclusive, usa indistintamente as expressões “abuso do direito” e “abuso de direito”, ambas na p. 462, da obra citada. Com a mesma imprecisão

259

eminentes juristas, não se mostra adequado, eis que mais correto se mostraria

falar em “abuso do direito”.

Com efeito, como veremos em detalhes, logo em seguida, a figura

do abuso do direito se relaciona, invariavelmente, com um direito subjetivo,

que ao ser exercido por seu legítimo titular, ultrapassa certos limites (um dos

quais é a boa-fé, daí o nosso interesse no tema). Poder-se-ia falar, portanto, de

modo mais completo, em “abuso no exercício do direito”, por parte de seu

titular. Em outras palavras, quando se usa a expressão “abuso do direito”, fica

claro que se trata de um direito (subjetivo) que foi exercido de modo irregular,

por seu titular.

Por outro lado, a expressão “abuso de direito” pode causar a

(falsa) impressão de que se trata de um abuso que integra o direito, ou seja,

um abuso que é tolerado e regido pelo direito, o que a toda evidência se

mostraria uma expressão contraditória em si mesma, pois se o comportamento

se mostrar abusivo, é evidente que não estará dentro do campo protegido pelo

direito, será por este rejeitado, e não regido.

Mesmo em linguagem corriqueira, do quotidiano, quando se fala

que alguma coisa é de direito, quer-se sempre significar que tal coisa está

amparada pelo direito, encontra respaldo nas normas jurídicas. Assim, por

exemplo, quando A tem um crédito contra B, já vencido, e resolve cobrá-lo, é

comum que A diga algo como “é de direito que eu cobre o que B me deve”, e,

quem quer que o ouça, imediatamente compreenderá que A pretendeu dizer

que a cobrança que pretende fazer está amparada pelas normas jurídicas.

Da mesma forma, quando se comenta, em relação a um

trabalhador, que “é de direito que receba o pagamento dos dias que

terminológica, usando as duas expressões, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral, v. 1, p. 467.

260

trabalhou”, o sentido, facilmente captado por qualquer ouvinte, é que o direito

dá amparo a que esse trabalhador receba o pagamento que lhe é devido,

referente aos dias em que efetivamente trabalhou.

Por último, embora infinitas situações pudessem ser ainda

mencionadas, tome-se, à guisa de comparação, como um derradeiro exemplo,

a expressão “Instituto de direito”, na qual fica fácil de perceber que se está a

referir a um instituto, seja ele qual for, que é regido e protegido pelas normas

jurídicas, o que não ocorre com o abuso, que por isso não pode ser de direito,

mas sim do direito.

Não foi sem razão, portanto, que o ilustre Pontes de Miranda253

anotou que “a expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado de fato’

e ‘estado de direito’; porém, não ‘abuso de fato’ ou ‘abuso de direito’. Abusa-

se de algum direito, do direito que se tem. Leis falam de ‘abuso de direito’,

expressão que aparece em certos juristas desatentos à terminologia científica

e indiferentes à sua exatidão. ‘Abuso do direito’, ou abuso do exercício do

direito é que é. Recebemo-la dos livros franceses e, lá, só se usa ‘abus du

droit’.”.

No mesmo sentido a lição de Rizzatto Nunes254, que aponta ser

correta a expressão abuso do direito, e não abuso de direito. E o mesmo se

pode apontar, ainda, em relação à obra clássica de Pedro Baptista Martins255,

que desde o título já se vale da expressão correta.

E nem se argumente, em sentido contrário, que a própria lei usa a

expressão “abuso de direito” (Código de Processo Civil, art. 273, II), pois é

certo que nem mesmo a lei poderá passar por cima das barreiras lingüísticas

para transformar em certo o errado. A expressão usada pelo texto legal, abuso 253 Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, arts. 1°-45, pp. 382-383. 254 Luiz Antônio Rizzatto Nunes, Manual de Introdução ao estudo do direito, p. 144. 255 Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, passim.

261

de direito, apenas significa que o legislador também deve se juntar às fileiras

dos muitos que usam com erronia a expressão. Aliás, nosso legislador nunca

serviu como parâmetro para aferição do apuro técnico, e tanto é assim que

esse mesmo legislador pátrio, na Lei de Greve (Lei nº 7.783/89), já se refere

ao abuso do direito, em franca contradição consigo mesmo.

Ainda em relação à denominação dessa figura, convém uma

segunda observação. É que a boa-fé, como já vimos, em sua função essencial

de critério limitador, impõe limites não apenas em relação ao exercício dos

direitos, mas também quanto ao cumprimento de deveres e, de modo ainda

mais amplo, em relação a todas as condutas capazes de gerar conseqüências

jurídicas (veja-se, retro, o item 1.8). Cabe, então, indagar o porquê de apenas

se fazer referência ao exercício dos direitos, silenciando-se sobre essa questão

dos deveres e sobre as demais condutas do sujeito.

Na realidade, essa denominação restrita, que não corresponde à

realidade mais ampla do papel limitador da boa-fé, decorre de circunstâncias

históricas256. O que ocorreu foi que, no século XIX, o liberalismo e o

individualismo foram elevados à máxima potência pelo Direito, o que fez com

que os direitos subjetivos fossem considerados quase que como sendo

absolutos, ou, pelo menos, com uma amplitude muito grande, o que levou a

excessos claramente inaceitáveis no exercício de tais direitos, mostrando a

necessidade de que fossem impostos alguns limites.

Nesse sentido, pode-se dizer, com Alvino Lima257, que com a

teoria do abuso do direito foi modelado um novo conceito de dir eito subjetivo,

que buscou exatamente se contrapor à noção clássica, vale dizer, buscou-se a

revisão de um conceito já secular, que se baseava no individualismo e no

256 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 219-220. 257 Alvino Lima, Culpa e Risco , pp. 215-216.

262

absolutismo dos direitos258. Contra tal noção de direitos subjetivos absolutos,

veio a ser construída a idéia de que existe uma missão social do direito.

Dessa forma, como veremos logo em seguida, ainda no presente

item, os tribunais começaram a tratar do tema a partir da análise, nos casos

concretos que lhes eram apresentados, de situações nas quais se verificava que

o titular de um direito o havia exercido de um modo inaceitável, e embora não

lhe fosse negado o direito em questão, era-lhe negado exercê-lo daquele

modo, e por isso a decisão era desfavorável ao próprio titular do direito.

Assim, foi tão-somente pelo fato da necessidade de limitações ter sido

constatada em situações referentes ao exercício de direitos que essa figura

recebeu denominação restritiva, abrangente de apenas um dos seus vários

aspectos.

Além disso, convém alertar que, embora a figura do abuso do

direito encontre o seu campo primordial de atuação no domínio das relações

contratuais259, na realidade a mesma é aplicável a todos os direitos subjetivos,

inclusive em relação ao exercício do direito de ação. Com efeito, como ensina

Pedro Baptista Martins260,

“o exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade, porque abusa de seu direito. E esse abuso pode verificar-se também no exercício da defesa...”.

258 O dogma do absolutismo dos direitos subjetivos, explica Josserand, foi reforçada, em França, a patir da Revolução Francesa, notadamente com a Declaração dos Direitos do Homem, pois o direito revolucionário estava impregnado de um individualismo intenso, pois considerava o homem como um fim em si mesmo, mais do que como um elemento integrante da comunidade; como um indivíduo, mais do que como a célula primeira da sociedade. Cf. Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I , p. 118, n° 161. 259 Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 5. 260 Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 71.

263

No mesmo sentido a opinião de Cléber Lúcio de Almeida261, Juiz

do Trabalho das Minas Gerais, que ensina que o exercício do direito de ação

tem como pressuposto a necessidade de proteção jurídica, como se encontra

insculpido no art. 3º, do Código de Processo Civil brasileiro. Logo, se a

efetiva proteção jurídica não for o objetivo daquele que busca o Judiciário,

estará configurado o abuso do direito de ação, uma vez que tal direito, de

modo claro e inegável, estará sendo exercido com desvio de sua finalidade.

Um outro esclarecimento, que deve ser trazido desde logo, é o

que se refere ao foco a ser dado no presente item deste estudo. É que a teoria

do abuso do direito causou o surgimento de duas correntes doutrinárias

opostas, uma que o abordou sob o aspecto subjetivo, e outra que o considerou

sob o ponto de vista objetivo.

Para os adeptos da primeira corrente, o abuso do direito ocorre

quando o seu respectivo titular exercita seu direito sem que tenha necessidade

de fazê-lo, apenas movido pela intenção de prejudicar; para a segunda, no

entanto, para que se configure o abuso, é suficiente que ocorra o exercício

anormal do direito, ou seja, que não esteja de acordo com sua finalidade

econômica ou com sua função social262.

No entanto – e este é o esclarecimento a ser dado –, no presente

trabalho apenas examinaremos a figura do abuso do direito sob o prisma

objetivo, ou seja, considerando-se a a finalidade econômica e social do direito

subjetivo, pois foi essa a posição adotada de modo claro e expresso pelo nosso

Código Civil, em seu artigo 187, embora não se possa deixar de observar que

ainda existem resquícios, em nosso Diploma Civil, da teoria subjetiva, como

261 Cléber Lúcio de Almeida, Abuso do Direito no processo do trabalho, p. 37. 262 Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale , p. 161.

264

ocorre em relação ao artigo 1.228, § 2º, sobre o qual teceremos alguns

comentários adiante.

Feitas essas pequenas ressalvas, prossigamos.

A questão do abuso do direito foi tratada, no Código Civil pátrio,

no artigo 187, o qual estabelece que também comete ato ilícito o titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu

fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Expressamente,

como se vê, nosso Código Civil indicou como ilícito o exercício abusivo do

direito, ao lado do ato ilícito previsto no artigo anterior (art. 186). E esclareça-

se que o artigo 186 trata do ato intrinsecamente ilícito, ou seja, ilícito em si

mesmo, por violar seus limites internos, enquanto o artigo 187 se refere ao ato

extrinsecamente ilícito, ou seja, que o é por ter violado seus limites

externos263.

Como se vê, a idéia que se destaca como básica é a de que os

direitos subjetivos têm limites ao seu exercício264, limites esses que podem ser

263 A distinção é feita por Josserand, que ensina que “le refus de contracter peut revêtir plus qu’un caractère abusif; il peut se présenter à nous comme un acte illégal, intrinsèquement illicite”. Cf. Louis Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, p. 127. 264 Nesse sentido, ensinam Diez-Picazo e Antonio Gullon que “Definido el derecho subjetivo como una situación de poder que el ordenamiento jurídico atribuye o concede a la persona como un cauce de realización de legítimos intereses y fines dignos de la tutela jurídica, resulta evidente que este poder tiene que estar de algún modo limitado, pues sin límites sería la justificación de la absoluta arbitrariedad”. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona – Negocio Jurídico, p. 517. No mesmo sentido, ainda, a lição de Béatrice Jaluzot, para quem “La conséquence juridique essentielle qu’entraîne l’abus de droit et qui donne tout son sens à l’institution est la limitation des droits subjectifs... La notion d’abus de droit ne peut resteur cohérente que si l’on respecte l’idée générale qui la gouverne: elle permet au juge de contrôler l’exercise des droits subjectifs”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 406, n°s 1418 e 1420. Mas a autora, na mesma obra (p. 408, n° 1426), faz interessante observação, no sentido de que a figura do abuso do direito, quando coloca limites ao exercício do direito subjetivo de uma pessoa, ao mesmo tempo faz nascer um novo direito para a outra. Assim, por exemplo, quando se proíbe a um dos contratantes o exercício do direito de resilir unilateralmente o contrato, ao mesmo tempo se está dando ao outro o direito de ver o contrato prosseguir. Nesse mesmo sentido é a lição de Menezes Cordeiro, que ao colocar em cotejo as figuras da suppressio e da surrectio, na demonstração de que aquela é a conseqüência, o subproduto desta, ensina que “quando, porém, o beneficiário incorra numa vantagem específica e autônoma, há, para ele, um direito subjetivo novo: ocorre um fenômeno de surrectio. Paralelamente, sendo esse direito novo um direito relativo, adstringe-se a contraparte a um dever. Da mesma forma, o titular-exercente pode, por força das regras que vedam o abuso do direito, ver um direito seu de tal forma coarctado pela restrição ou, simplesmente,

265

impostos não apenas pela boa-fé, mas por parâmetros outros, como os bons

costumes e a finalidade econômica ou social. A boa-fé e os bons costumes não

estão vinculados a cada direito subjetivo, sendo de natureza genérica, face ao

seu conteúdo normativo, enquanto a finalidade econômica ou social, a toda

evidência, está diretamente ligada ao direito de que se trata.

Para Louis Josserand265, os direitos subjetivos são produtos

sociais, concedidos pela sociedade, mas que não nos são atribuídos

abstratamente e para que os usemos de modo discricionário, pois cada um

deles tem uma razão de ser e está animado de um certo espírito, que não pode

ser desconsiderado por seu titular, e sempre que tais direitos são exercidos,

devemos nos conformar a esse espírito e permanecer dentro das linhas em que

o direito foi instituído, pois caso contrário estaríamos desviando o direito de

sua destinação, ou seja, estaríamos cometendo abuso capaz de nos atribuir a

correspondente responsabilidade.

Em relação à finalidade econômica e social do direito subjetivo,

já em 1960 ensinava Alvino Lima266 que, além dos limites objetivos, que são

fixados pela lei, os direitos subjetivos também possuem limites de ordem

teleológica ou social, e que a teoria do abuso do direito nada mais é do que a

manifestação concreta dessas idéias. Dizia o mestre que, em vez do direito-

incompatibilizado com um novo direito surgido na esfera da contraparte beneficiária, que caiba falar de uma verdadeira extinção”. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 826. Mas é de se observar que o ilustre autor português inverte os termos da equação, vale dizer, aponta que primeiro surge o direito da contraparte, e a partir daí é que os direitos do sujeito que se mostrarem incompatíveis com esse direito recém-surgido poderão sofrer redução ou mesmo ser extintos. A questão será retomada no item 2.5, quando examinarmos as figuras da suppressio e da surrectio, e para lá remetemos o leitor. 265 Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 224, n° 224. “Les droits subjectifs, produits sociaux, concédés par la société, ne nous sont pas attribués abstraitement et pour que nous en usions discrétionnairement, ‘ad nutum’; chacun d’eux a sa raison d’être, sa mission à accomplir; chacun d’eux est animé d’un certain esprit qu’il n’appartient pas à son titulaire de méconnaitre ou de travestir; lorsque nous les exerçons, nous devons nous conformer à cet esprit et demeurer dans la ligne de l’institution; sans quoi, nous détornerions le droit de sa destination, nous en abuserions, nous commettrions une faute de nature à engager notre responsabilité”. 266 Alvino Lima, Culpa e Risco , p. 217.

266

poder, como prerrogativa soberana concedida ao seu titular, o que se tem é o

direito-função, concedido à pessoa para que possa auferir todos os proveitos

que a lei lhe confere, mas desde que o faça sem ofender aos interesses da

comunhão social267.

Complementa essa idéia a lição de Francisco Amaral268, segundo

a qual deve-se entender como fim econômico ou social “a função instrumental

própria de cada direito subjetivo”, sendo essa função instrumental que

justifica que esse mesmo direito tenha sido atribuído ao seu titular e que

condiciona o seu exercício. Em outras palavras, ainda na lição do ilustre

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, essa concepção parte da

idéia de que os direitos subjetivos são atribuídos para que sirvam de

instrumento à realização de interesses, e por isso só podem ser exercidos em

atenção a essa instrumentalidade, sob pena de se configurar o abuso.

Pode-se ainda acrescentar, a partir do artigo 187, supra transcrito,

que a boa-fé referida no mesmo, claramente, é a boa-fé objetiva, ou seja, a

boa-fé norma comportamental. Com efeito, o que se vê no texto legal é que o

abuso não decorre da intenção que moveu o titular do direito ao exercê-lo, mas

do exercício em si mesmo, ou seja, a norma legal apanhou o comportamento

do titular do direito, impondo-lhe que, por ocasião do seu exercício, adote

conduta que esteja situada dentro dos limites impostos pelos diversos fatores

mencionados, dentre os quais a boa-fé. Não é demais recordar que uma das

267 No mesmo sentido é o entendimento de Antônio Chaves, para quem “os direitos subjetivos, produtos concedidos, pela sociedade, não nos são atribuídos abstratamente, e para que deles usemos discricionariamente, ad nutum; cada um deles tem sua razão de ser, sua missão a cumprir, cada um deles é animado de um certo espírito, que seu titular não pode desconhecer ou disfarçar. Quando exercemos, devemos conformar-nos com esse espírito e permanecer na linha da intuição, sem o que desviaríamos o direito do seu destino, abusaríamos dele, cometeríamos uma falta de natureza e comprometeríamos nossa responsabilidade”. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade Pré Contratual, p. 124. 268 Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale , p. 162.

267

funções essenciais da boa-fé é exatamente servir como critério limitador do

exercício dos direitos (veja-se, acima, o item 1.8).

E ainda convém que se observe que, em se tratando de limites

impostos a direitos subjetivos, além dos que se encontram previstos no

dispositivo legal mencionado (art. 187, Código Civil brasileiro), a toda

evidência também existem outros limites, trazidos pelas normas que criam

cada um desses direitos subjetivos. Para que se chegue a tal conclusão, basta

que se recorde que os direitos subjetivos nada mais são do que uma liberdade

de atuação que a lei confere ao sujeito, para que possa auferir vantagens, mas

que o faz desde logo impondo limites, ou seja, a própria norma legal que

reconhece ao sujeito a faculdade de agir (facultas agendi) já o faz dizendo

quais são os limites dentro dos quais deve se dar essa mesma atuação269.

Como didaticamente esclarece Delia Rubio270, a respeito dessa

temática da limitação dos direitos subjetivos, a mesma pode ocorrer por

diversos caminhos, como as restrições concretas referentes a cada espécie de

direito (seria o caso, por exemplo, das restrições à propriedade em virtude das

relações de vizinhança), as restrições administrativas quanto ao exercício de

269 Nesse sentido, referindo-se precisamente aos limites impostos aos direitos subjetivos, esclarecem Diez-Picazo e Antonio Gullon que “¿Cuáles son estos límites a que debe someterse o entenderse sometido el derecho subjetivo? Hay, en primer lugar, unos límites a los que se puede llamar ‘naturales’, toda vez que derivan de la natureza propia de cada derecho y de la manera como es configurado de acuerdo con la función económica o social que a través de él se trata de realizar. El derecho aparece definido en la ley en virtud de esta naturaleza y la definición legal implica ya el establecimiento de sus linderos o confines...Al lado de los límites que hasta ahora hemos mencionado, es posible encontrar unos límites genéricos aplicables a todos los derechos, y que se fundamentan en la idea misma de lo que el derecho sea y de la finalidad para cual es concedido o atribuido al particular. Estos límites genéricos o institucionales se apoyan sobre estas bases: 1ª. El ejercicio del derecho debe hacerse conforme a las convicciones éticas imperantes en la comunidad. 2ª El ejercicio de un derecho debe ajustarse a la finalidad económica o social para la cual ha sido concedido o atribuido al titular. La primera consideración lleva a la exigencia de que el ejercicio de un derecho subjetivo se ajuste a los dictados de la buena fe. La segunda impone la prohibición del abuso del derecho. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona – Negocio Jurídico, pp. 517-519. 270 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 222.

268

certas atividades, ou as restrições municipais quanto ao direito de construir, e

assim por diante.

Tratando sobre o tema, diz Pietro Perlingieri271 que a noção do

abuso do direito não se exaure na configuração dos limites de cada poder,

devendo-se ainda observar a correlação à mais ampla função da situação

global, da qual esse mesmo poder é expressão, sendo por isso possível

apresentar uma grande variedade de comportamentos em relação a cada

situação e à sua concreta função.

À guisa de exemplo do que foi dito nos três parágrafos anteriores,

sobre essa diversidade de limites possíveis, veja-se que o proprietário de um

terreno, quando vai exercer seu direito subjetivo de construir nesse seu

imóvel, sofre, dentre outras, duas restrições: a) não poderá abrir janela a

menos de metro e meio da linha divisória; b) não poderá erguer alta coluna,

próxima à linha divisória, que não tenha qualquer outra finalidade além de

impedir a iluminação e a ventilação da construção existente no terreno

vizinho.

A primeira restrição é inerente ao direito subjetivo de construir,

ou seja, nasce junto com ele, faz parte de sua gênese, pois já consta do proprio

texto legal que o reconheceu. A segunda, no entanto, não está mencionada na

origem genética desse direito, mas decorre da previsão genérica do artigo 187,

ou seja, decorre da consideração sobre a abusividade do modo como está

sendo exercido o direito de construir.

Assim, pode-se facilmente concluir que cada direito subjetivo

encontra duas ordens de limitações, uma que faz parte da sua gênese, ou seja,

o direito já nasceu enquadrado dentro de limites previstos na própria lei que o

271 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria Cristina De Cicco), p. 122.

269

criou, e outra que se encaixa na questão dos parâmetros vistos acima, que

servem para demarcar o campo onde termina o exercício regular e onde

começa o exercício abusivo do direito.

Mas deve-se observar que, quando são ultrapassados os limites

previstos na própria lei que criou o direito subjetivo, o que se tem,

tecnicamente, não é o abuso do direito, mas uma ilegalidade. A explicação se

faz necessária porque é muito comum que se encontre, em decisões judiciais, a

referência ao abuso do direito, quando na verdade o que se tem é a pura e

simples violação da norma legal explícita, a ilegalidade manifesta. Assim, por

exemplo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que

PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - CABIMENTO - ART. 535 CPC. EMBARGOS PROTELATÓRIOS - MULTA (CPC, ART. 538). - Não pode ser conhecido recurso que sob o rótulo de embargos declaratórios, pretende substituir a decisão recorrida por outra. Se não há contradição ou omissão a suprir, os embargos declaratórios merecem rejeição. - O abuso do direito ao recurso, contribuindo para inviabilizar, pelo excesso de trabalho, o Superior Tribunal de Justiça, presta um desserviço ao ideal de Justiça rápida e segura. - Se os embargos declaratórios envolvem intuito protelatório, aplica-se a multa cominada pelo Art. 538, Parágrafo Único, do CPC.272

Na ementa acima, como se vê, tratou-se da apresentação de

Embargos Declaratórios de cunho procrastinatório, situação que já se encontra

expressamente prevista no Código de Processo Civil, nos artigos 535 e

seguintes, tanto em relação aos contornos precisos de cabimento do recurso

em questão (art. 535) quanto em relação às conseqüências jurídicas quando

tais contornos são ignorados, com o cabimento da multa respectiva (CPC, art.

272 EDcl no AgRg no REsp 164648/MG; Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial 1998/0011629-0, 1ª T. Ac. unânime. Relator Min. Humberto Gomes de Barros, j. 03/08/1999, p. DJ 13.09.1999, p. 42.

270

538, parágrafo único). Logo, parece-nos que se mostra completamente

desnecessário o recurso à figura do abuso do direito. Por outro lado, somos

forçados a reconhecer que, no caso, não se vislumbra qualquer conseqüência

jurídica em decorrência de se ter feito a referência à figura do abuso, em vez

de simplesmente ser apontada a infração à norma legal. Tratou-se, portanto, de

simples reforço lingüístico.

Antes de prosseguirmos, importante observação se mostra

necessária. É que, como acabamos de ver, os limites dos direitos subjetivos,

cuja transposição implica na figura do abuso do direito, estão sempre ligados

às finalidades desse mesmo direito, ou seja, à “causa” em virtude da qual esse

direito foi atribuído ao seu titular. Por essa razão, ensina Josserand273 que

existem alguns poucos direitos que não são motivados, ou seja, não possuem

uma causa específica (“não causais”), pois em si mesmos contêm sua própria

finalidade, e por isso escapam à disciplina do abuso do direito, tendo caráter

absoluto, e por isso seus titulares podem exercê-los para todos os fins, para

qualquer que seja o objetivo, ainda que malicioso, sem riscos de serem

responsabilizados por isso.

Como exemplos de tais direitos que seriam absolutos, aponta o

respeitado jurista francês, como exemplos, o direito dos ascendentes de não

autorizarem o casamento do seu descendente menor, o direito do ascendente

de deserdar os seus filhos, nos casos legais, o do co-proprietário, de requerer a

partilha dos bens indivisos, etc.

Cometeremos, neste ponto, a enorme imprudência de discordar de

tão ilustre e conhecido autor, pois nos parece que mesmo tais direitos são

passíveis de incidência na figura do abuso, mesmo porque não existe, no nosso

entendimento, direito que possa ser livremente usado com objetivo malicioso. 273 Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 120, n° 164.

271

É verdade, desde logo se adianta que com isso concordamos, que seus titulares

não poderão ser civilmente responsabilizados, em caso de exercício

inadequado, o que por si só não significa que não possa haver abuso, mas tão-

somente quer dizer que, nesses casos, o combate ao abuso poderá ser feito

através do desfazimento judicial da situação criada em virtude do exercício

abusivo.

Assim, por exemplo, suponha-se que os pais decidiram não

autorizar o casamento do seu descendente menor apenas com o intuito de não

vê-lo emancipar-se, passando a partir daí a gerir o seu próprio patrimônio.

Ora, é evidente que o filho menor, em tal caso, poderá sempre recorrer ao juiz

para obter o suprimento judicial à autorização negada, de modo a contornar

essa negativa despropositada dos seus próprios pais, como aliás se encontra

expresso no artigo 1.519, do nosso Código Civil, que explicitamente se refere

à negativa injusta da autorização. Da mesma forma, se um dos condôminos

requer a súbita divisão do bem comum, apenas com a finalidade de atrapalhar

o negócio que estava sendo entabulado por outro condômino, em relação à sua

quota ideal, causando-lhe grave prejuízo, parece-nos que este último poderá

requerer ao juiz que a indivisão seja mantida por mais algum tempo (desde

que seja breve), até a conclusão do negócio em curso.

Prossigamos.

A expressão “abuso do direito” foi cunhada pelo jurista belga

Laurent274, em 1883, após estudar uma série de decisões das cortes francesas,

ainda no século XIX, nas quais era reconhecido o direito do réu, mas apesar

disso o mesmo era condenado, por ter exercido esse direito de um modo tido

por irregular. Assim, por exemplo, um determinado proprietário resolveu

274 Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 427, n° 1489.

272

construir, em seu terreno, uma falsa chaminé, que para nada lhe serviria, mas

tão-somente tinha a finalidade de vedar a claridade em uma janela do imóvel

vizinho. Entendeu o tribunal que construir era um direito do proprietário, mas

fazê-lo naquelas condições equivalia a exercer de modo irregular esse mesmo

direito.

A figura do abuso do direito, como hoje o conhecemos, não

encontra suas raízes históricas no direito romano. É que os romanos, com o

seu senso eminentemente prático, não buscavam teorizações genéricas, com

conceitos que se mostrassem aplicáveis a todos os temas jurídicos. Muito pelo

contrário, o que se via no direito romano era a adoção de soluções jurídicas

específicas para cada tipo de situação, ou seja, institutos localizados, válidos

apenas para os casos que apresentassem em comum uma determinada

característica.

É possível encontrarmos semelhanças do abuso do direito com

alguns institutos isolados do direito romano, tais como a aemulatio, a exceptio

doli e as relações de vizinhança275, mas nenhum desses, repete-se, foi marcado

por uma generalização que lhes permitisse atingir todo o campo das relações

sociais reguladas pelo direito, vale dizer, nenhum desses institutos poderia ser

considerado como sendo um limite genérico, válido para todos os direitos

subjetivos.

A aemulatio era o exercício de um direito que não trazia qualquer

utilidade para o seu titular, e apenas era impulsionado pela intenção de causar

prejuízo a outrem, ou seja, era de cunho marcadamente subjetivo, centrando-

se no aspecto psicológico da intenção do agente276. Os atos de emulação

275 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 673. 276 Não se pode deixar de observar que há autores que vêem nessa “intenção de prejudicar” (animus nocendi) o critério mais antigo para a identificação do abuso do direito, sendo evocado pela doutrina e pela jurisprudência dos mais diversos países. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Béatrice Jaluzot, La

273

tiveram grande repercussão nas relações de vizinhança, constituindo-se em

importante limitação ao direito de propriedade, não sendo despiciendo

recordar que o nosso Código Civil, ainda hoje, ao tratar do direito de

propriedade, de modo expresso proibiu os atos de emulação 277, como se vê no

artigo 1.228, § 2º, que se refere aos atos que não tragam ao proprietário

qualquer comodidade ou utilidade e que sejam animados pela intenção de

prejudicar outrem278.

A exceptio doli , no direito romano, correspondia às atuais

exceções substanciais, ou seja, uma defesa indireta alegada pelo réu, na qual

não se negava o mérito do direito invocado pelo autor, mas apontavam-se

razões de outra ordem para obstaculizá-lo. Essas razões tinham um conteúdo

substantivo, isto é, diziam respeito à própria substância do comportamento do

autor, que havia agido de modo doloso. Essa figura, que ainda hoje encontra

grande aplicação prática, foi absorvida pela figura mais ampla do abuso do

direito, e por isso não costuma ser mencionada expressamente, nas diversas

decisões dos tribunais onde se pode identificá-la.

bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais , p. 413, n° 1447. O que nos parece oportuno esclarecer é que os contornos do abuso do direito, como hoje é conhecido, são completamente distintos da figura da aemulatio, e foi por isso que mencionamos, acima, que as origens da figura não se encontram no direito romano, precisamente por serem diferentes as características dos institutos que eram encontrados neste. E tanto é assim que a própria Béatrice Jaluzot reconhece, na mesma obra, pouco mais à frente, que a intenção de prejudicar é um critério que se mostrou insuficiente, e que hoje é rejeitado pela maior parte dos sistemas jurídicos (p. 414, n° 1450). 277 Na realidade, o Diploma Civil apenas repete posição que ainda se mostra bastante influente entre nós, uma vez que, como bem aponta Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das negociações no direito civil brasileiro , p. 108, “o recurso à boa-fé para fundamentar o abuso do direito não pode ser encontrado na tradição brasileira que, muito apegada ao direito francês, sempre procurou caracterizar o instituto com arrimo na teoria dos atos emulativos...”. 278 Embora, como apontamos acima, existam nítidas diferenças entre a aemulatio romana e a figura atual do abuso do direito, não se pode deixar de observar que a opinião dos juristas medievais, sobre a ilicitude dos atos de emulação – notadamente no direito de vizinhança – se constituiu em precedente imediato e importante da teoria do abuso do direito, pois trouxe a lume a tese da necessidade de limitação do exercício dos direitos subjetivos conforme os limites decorrentes de sua própria finalidade social e econômica, sendo, pois, o primeiro passo para a superação da concepção absolutista do direito subjetivo. Cf. Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 160-161.

274

Assim, por exemplo, figure-se a hipótese na qual uma empresa

construtora, depois de ter oferecido ao público em geral a aquisição das

unidades autônomas de um condomínio edilício recém-construído, e vindo a

celebrar diversos compromissos de compra e venda em relação a tais

unidades, contrai uma dívida e oferece em garantia hipotecária o terreno onde

foi erguido o condomínio e as construções nele feitas.

O credor, embora tendo conhecimento de que vários dos

promitentes compradores já estão ocupando as unidades autônomas,

comparece ao registro imobiliário e verifica que não foram registrados os

compromissos de venda e compra, e por essa razão aceita a garantia

hipotecária, vindo a registrar sua hipoteca no Cartório do Registro Imobiliário.

Essa situação acima descrita, que é de ocorrência prática

corriqueira, atribui ao credor hipotecário, em caso de não pagamento da

dívida, a possibilidade de excutir o imóvel hipotecado, inclusive em relação

àquelas unidades autônomas que já estão ocupadas pelos promitentes

compradores cujos compromissos não foram registrados?

Um exame formal da situação, tão-somente à letra do texto legal,

levaria à resposta positiva, pois a hipoteca, sendo direito real, adere ao imóvel

e atribui ao seu titular, o credor, a preferência sobre qualquer outro direito

subjetivo (exceto os direitos reais registrados há mais tempo, o que no caso

não existe), permitindo-lhe, pois, levar o imóvel à venda e ter preferência, no

pagamento, sobre todos os demais credores, como se vê no artigo 1.422, do

Código Civil.

No entanto, nessa mesma situação acima hipotetizada, são

inúmeras as decisões do Superior Tribunal de Justiça nas quais se reconheceu

que o mutuante, sendo notório que várias das unidades autônomas já haviam

sido negociadas com os promitentes compradores (e estavam sendo por eles

275

ocupadas) antes mesmo da constituição da hipoteca, não poderia fazer com

que seu direito de credor hipotecário viesse a prevalecer sobre os direitos dos

possuidores dos imóveis, promitentes compradores, ainda que tais direitos não

fossem reais, mas meramente pessoais, eis que não havia sido feito o registro.

Sobre o tema, em relação à posição do STJ, já escrevemos, alhures, que

“ E também decidiu a Corte Superior, na mesma linha indicada no parágrafo anterior, que quando é celebrado o contrato de financiamento da construtora, é a instituição financeira que deve buscar se inteirar das condições do imóvel, verificando se os mesmos já foram alienados ao público (pois a isso de destinam) e se o preço já foi parcial ou totalmente pago pelos adquirentes, que são terceiros de boa-fé279. Não fazendo tal verificação, terá procedido a instituição financeira de modo negligente, não podendo pois argüir que os compromissos de compra e venda não estavam registrados 280”.281

É possível identificar em tais decisões, como se vê, a exceptio

doli, pois o credor, sabendo (ou devendo saber) desde logo que as unidades

autônomas já haviam sido negociadas com terceiros, que por elas já estavam

pagando, agiu com dolo ao recebê-las como parte de sua garantia, que apenas

se poderia estender às unidades que ainda não houvessem sido prometidas aos

adquirentes. Logo, a defesa dos promitentes compradores não poderá negar os

direitos do credor hipotecário, que estão expressamente previstos na lei, mas

deverá impor-lhes o obstáculo do comportamento doloso, a exceptio doli .

No entanto, dentro do aspecto histórico que no momento nos

interessa, o que se verifica é que a exceptio doli , embora possa facilmente

receber uma generalização que lhe confira aplicabilidade em áreas diversas do

279 STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 287774/DF, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 15.02.01, DJ 02.04.01, p. 302. 280 STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 329968/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 09.10.01, DJ 04.02.02, p. 394. 281 Aldemiro Rezende Dantas Júnior, Comentários ao Código Civil, v. XIII (Coord. Arruda Alvim e Thereza Alvim), p. 521, comentário ao artigo 1.473.

276

direito, entre os romanos era usada em situações específicas, de modo

casuístico, e portanto não pode ser apontada como sendo a origem do abuso do

direito, que se constitui limitação genérica aos direitos subjetivos. De qualquer

modo, em relação ao instituto da exceptio doli, dele falaremos em maiores

detalhes, adiante, para que possa ser cotejado com a figura do venire contra

factum proprium.

E quanto às relações de vizinhança, finalmente, é certo que aqui

se tem um grande foco de concentração de situações onde o comportamento

de um dos vizinhos influirá negativamente na órbita dos outros, o que a cada

dia mais se agrava pelo fato de que as pessoas moram cada vez mais

concentradas, cada vez mais próximas umas das outras, face à grande

proliferação dos condomínios em edificações. Trata-se de campo fértil,

portanto, para o surgimento do abuso do direito.

No entanto, não se pode deixar de observar que as relações de

vizinhança, ao contrário do que ocorre com a aemulatio e com a exceptio doli,

não se constituem em um instituto jurídico propriamente dito, mas tão-

somente em um âmbito de convívio social, para o qual o ordenamento jurídico

destinou inúmeras regras, como podemos ver nos artigos 1.277 a 1.313, do

Código Civil, lembrando ainda que diversas outras normas expressas também

interferem nessas relações, impondo-lhes limites, como é o caso, por exemplo,

dos “regulamentos administrativos”, expressamente indicados pelo artigo

1.299 do mesmo Código.

Nessas condições, cabe recordar o que já dissemos acima, no

sentido de que a violação dos limites impostos pela lei não deve ser

enquadrada como sendo caso de abuso do direito, mas sim de manifesta

ilegalidade. Logo, no campo das relações de vizinhança, pelo fato de

existirem, em grande quantidade, essas normas que se inserem na limitação

277

genética dos direitos subjetivos dos vizinhos, torna-se restrito o cabimento do

abuso do direito, uma vez que este não se confunde com a violação das

referidas normas, embora sua ocorrência seja possível, em relação às situações

de vizinhança para as quais não haja sido feita a expressa limitação pela lei.

De todo modo, mais uma vez em relação ao aspecto histórico, é

certo que no direito romano as relações de vizinhança traziam uma série de

limitações aos comportamentos dos vizinhos – como até hoje o fazem –, mas

que apenas o faziam para aquelas hipóteses específicas e casuísticas, não

tendo qualquer caráter de generalidade de aplicação. Também não se encontra

aí, portanto, a origem histórica do abuso do direito. É importante, contudo,

continuarmos nossa investigação, inclusive para que se possa aferir se a figura

do abuso do direito que se encontra no artigo 187, do nosso Código Civil, é a

mesma que foi assim batizada por Laurent, no estudo da jurisprudência

francesa.

O Código Civil francês não trouxe qualquer dispositivo legal que

possa ser entendido como a positivação, em França, do abuso do direito. É

certo que o referido Código trouxe inúmeras limitações aos direitos subjetivos,

mas já vimos que tais limitações não se confundem com o abuso do direito,

que se refere a limites de outra ordem. Em outras palavras, é evidente que o

Código de Napoleão, ao criar direitos subjetivos, o fez prevendo limites, como

sói ocorrer com todos os direitos subjetivos, que são sempre limitados, mas

sendo que tais limites, que se integram à gênese de cada direito, e por isso são

específicos para o mesmo, não são idênticos aos do abuso do direito, que são

genéricos, e com eles não se confundem.

O abuso do direito, portanto, surge como construção dos próprios

tribunais franceses, que não puderam se valer de textos legais, eis que estes

simplesmente não existiam, e nem da recepção do direito romano, que não

278

apresentava qualquer instituto a partir do qual tivesse havido a generalização

das características do instituto, como vimos. Surge, contudo, sem que

houvesse uma fundamentação muito clara, ora esteando-se na necessidade de

respeitar os direitos alheios, ora na desconsideração da finalidade prevista pela

lei, na criação do direito, e ora havendo mesmo quem negasse a possibilidade

de existência do abuso do direito, sob o argumento que pode ser assim

sintetizado: se é abuso, está fora do direito, e se é direito, não é abuso.

Veio de Planiol282 a negativa mais contundente, apontando o

mestre que as doutrinas que insistiam em afirmar que o uso de um direito

poderia se transformar em um abuso e constituir uma falta, estavam

inteiramente esteadas em uma linguagem insuficientemente estudada, pois a

fórmula “uso abusivo dos direitos” seria uma logomaquia, porque quando se

usa de um direito, o ato é necessariamente lícito; e quando tal ato é ilícito, é

porque já foi ultrapassado o campo do direito, e o titular agiu sem direito,

naquilo que a Lei Aquilia chamava de injúria.

Josserand283, contudo, no nosso entendimento com ampla

vantagem, respondeu a essas críticas de Planiol, apontando que a contradição

e a logomaquia por ele apontadas não existem, e para afastá-las é suficiente

que se recorde que a palavra “direito” possui dois sentidos completamente

282 Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, t. II , p. 282, n° 871. “Les jurisconsultes et les législateurs modernes ont au contrairie une tendance à considérer l’usage d’un droit comme pouvant devenir un abus, et par suite constituer une faute. Ils parlent volontiers de l’usage abusif des droits... Cette nouvelle doctrine repose tout entière sur un language innsuffisamment étudié; sa formule ‘usage abusif des droits’est une logomachie, car si j’use de mon droit, mon acte est licite; et quand il est illicite, c’est que je dépasse mon droit et que j’agis sans droit, ‘injuria’, comme disait la loi Aquilia”. 283 Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 231, n° 436. “Cependant, cette contradiction et cette logomachie n’existent point; pour les faire se dissiper il suffit de se rappeler que le mot ‘droit’ a deux sens très différents; tantôt il designe l’ensemble de la règle sociale, la ‘juricité’, et tantôt il s’applique à un droit subjective, isolément envisagé. C’est dans cette seconde acception seulment, qu’il peut être question d’abus. Il y a droit et droit; l’acte abusif est celui qui, accompli en vertu d’un droit subjectif dont les limites ont été respectées, est cependant contrairie au droit envisagé dans sons ensemble; on peut avoir pour soi tel droit déterminé et avoir cependant contre soi le droit tout entier; c’est à cette situation que correspondent l’adage summum jus summa injuria et la théorie de l’abus.

279

diferentes, tanto servindo para designar o conjunto de regras sociais, quanto

para indicar um determinado direito subjetivo, isoladamente considerado. E é

só nessa segunda acepção que se pode questionar o abuso. O ato abusivo seria

aquele ligado a um direito subjetivo cujos limites internos foram respeitados,

mas que se mostra contrário ao direito enquanto conjunto de regras. O titular

pode ter por si o direito determinado, e contra si todo o conjunto em que

consiste o direito.

Essas observações servem para destacar que, no seu nascimento,

nos tribunais franceses, o abuso do direito não era uma conseqüência de uma

conduta exigida pela boa-fé, ou pelo menos não havia qualquer associação

feita pela doutrina entre o comportamento abusivo e a boa-fé.

Da França, a figura do abuso do direito foi recebida na Alemanha,

e inclusive incluída expressamente no Código Civil alemão, ao contrário do

que ocorreu no país de onde se originou. No entanto, a inclusão no BGB foi

feita em uma regra tímida, o que se explica pelo fato de que esse Código,

sendo elaborado depois que os tribunais franceses já haviam se defrontado

com diversas situações que levaram ao surgimento da figura do abuso do

direito, aproveitou para inserir várias limitações aos direitos subjetivos na

própria norma que os criava, notadamente nas relações de vizinhança, o que

tornava menos necessário o recurso à figura do abuso do direito284.

284 Mas há outras diferenças significativas no modo como o abuso do direito é visto na França e na Alemanha. Assim, por exemplo, observe-se que os direitos contratuais podem ser provenientes diretamente das vontades das partes contratantes, ou seja, sua fonte é a autonomia privada, ou podem ser provenientes da lei, apresentando-se como disposições previstas pelo legislador para aquele tipo específico de contrato. Em relação à primeira categoria de direitos, ou seja, aqueles que provêm da vontade das partes, não há qualquer divergência quanto à sua limitação pela figura do abuso do direito. No entanto, em relação à segunda, vale dizer, aqueles que têm origem diretamente na lei, enquanto a jurisprudência alemã não vê qualquer obstáculo à sua limitação em virtude do abuso do direito, os juízes franceses entendem que essa limitação não é possível, pois os direitos cuja origem se encontra diretamente na lei não estariam sujeitos aos limites decorrentes da figura do abuso do direito. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais , p. 410, n° 1434. Veja-se que essa questão apresenta grande interesse prático, o que pode ser facilmente demonstrado com o cotejo de dois dispositivos do Código Civil brasileiro: a) o artigo 575, do referido Código, prevê que o locatário, se não restituir a coisa ao término

280

Dessa forma, a figura do abuso do direito chegou ao Código Civil

alemão no artigo 226, segundo o qual “o exercício de um direito é

inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar um dano a outrem”285. Tem-

se aí, como se vê, uma norma de cunho objetivo, pois não há qualquer

referência à intenção ou à culpa do titular do direito subjetivo, mas sim à

característica do direito em si mesmo, que foi exercido com o objetivo de

causar dano a outrem. Mas a maior vantagem foi o fato de tal dispositivo ter

sido incluído na Parte Geral do Código Civil, o que o desvinculou das relações

de vizinhança ou de qualquer outro ramo específico do direito, permitindo sua

invocação, portanto, para todo o direito privado.

do contrato, apesar de notificado pelo locador, pagará o aluguel que este vier a arbitrar, mas o parágrafo único esclarece que, se esse valor arbitrado para o aluguel for manifestamente excessivo, o juiz poderá reduzi-lo, embora sem perder de vista o seu caráter de penalidade; b) no artigo 582, por sua vez, referente ao contrato de comodato, prevê o Código Civil que o comodatário constituído em mora pagará, até restituir o bem, o aluguel que for arbitrado pelo comodante, sem que seja feita qualquer ressalva quanto ao valor arbitrado de modo excessivo. A questão que se coloca, portanto, é a de se saber se o comodante, ao exercer seu direito, diretamente decorrente da lei, de fixar o valor do aluguel, estará limitado pela figura do abuso do direito ou se, ao contrário, poderá exercê-lo livremente, sem qualquer restrição, uma vez que quando o legislador quis impor limites, o fez de modo claro, como se vê no artigo 575, referente ao contrato de locação. Segundo a visão da jurisprudência francesa, em se tratando de direito cuja fonte direta é a lei, não se aplica a figura do abuso do direito; conforme a jurisprudência alemã, contudo, o controle judicial se mostra cabível, podendo o juiz reduzir o valor arbitrado de modo manifestamente excessivo, por se caracterizar a figura do abuso do direito. Entre nós, as opiniões doutrinárias são divididas. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, o aluguel deverá ser pago na quantia fixada pelo comodante, “mesmo que em cifra exageradamente elevada, pois não se trata de retribuição correlativa da utilidade, mas de uma pena a que se sujeita o contratante moroso” (Instituições de Direito Civil, v. III, p. 238). Na lição de Paulo Nader, contudo, embora a lei não sinalize qualquer parâmetro para o aluguel, este “deverá corresponder ao valor da época e do lugar, não se justificando uma cifra elevada” (Curso de Direito Civil – Contratos, p. 347). De nossa parte, pensamos que ambos estão equivocados. Em relação à opinião de Caio Mário, o fato de não se tratar de retribuição, mas sim de uma penalidade, claramente não se mostra suficiente para que se entenda que o comodante pode fixar livremente o valor, ainda que em quantia exageradamente elevada, e tanto assim que o Código Civil, alguns artigos antes (art. 575, parágrafo único), refere -se à redução do valor manifestamente excessivo, mas sem perder de vista que se trata de uma penalidade, ou seja, aponta de modo claro para a conciliação entre as duas figuras, a da penalidade e a da vedação ao abuso do direito. E quanto à lição de Paulo Nader, basta que se observe que, se for fixado o valor correspondente ao aluguel da coisa, naquela época e lugar, estará simplesmente sendo arbitrada uma retribuição, transformando-se de modo forçado o comodato em aluguel e perdendo-se de vista o caráter de penalidade. Pensamos, portanto, que Caio Mário está equivocado por admitir a fixação de valor exageradamente elevado, enquanto Paulo Nader está equivocado por admitir a fixação de valor muito baixo, insuficiente para funcionar como retribuição e penalidade. Assim, o que nos parece é que o valor deverá ser sempre moderadamente (e não exageradamente) superior ao do que corresponderia ao aluguel da coisa, ou seja, deverá ser um valor tal que, simultaneamente: a) implique em uma retribuição pelo uso da coisa; b) imponha ao comodatário moroso uma penalidade; c) não seja tão elevado ao ponto de caracterizar o abuso do direito. 285 Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.

281

No entanto, a regra trazida pelo BGB apresentou um grave e

evidente inconveniente, que foi o de fazer menção ao exercício do direito cujo

fim somente tem o objetivo de infringir dano a outrem, e por isso não satisfez

às necessidades da vida social, pois é certo que, quase sempre, é possível

encontrar mais de um objetivo possível para o mesmo exercício de um direito,

e se tal ocorrer, a dicção expressa do Código alemão impede que o

comportamento possa ser caracterizado como sendo abusivo.

Caracterizada tal insuficiência, começaram os alemães a buscar

fundamentos mais adequados para a caracterização do abuso do direito, e em

um primeiro momento buscaram socorro no artigo 826, do próprio Código

Civil, segundo o qual “quem, de um modo atentatório contra os bons

costumes, causar, dolosamente um dano a um outro, estará obrigado, para

com o outro, à indenização do dano”286. A idéia, declaradamente, era a de

complementar as deficiências do artigo 226287. Passa-se, então, a considerar

como elemento central do abuso do direito a figura dos bons costumes.

Contornou-se, assim, o problema do “escopo único”, que tanto

dificultou a utilização do artigo 226. No entanto, outros três problemas

surgiram, de igual ou maior gravidade. Em primeiro lugar, o artigo 826 exigia

que tivesse havido atuação dolosa, o que impedia que também fossem

considerados abusivos atos onde houvesse negligência ou imprudência, ou nos

quais não houvesse meios de demonstrar o dolo do agente.

Em segundo lugar, a solução legal era dirigida para a indenização

do dano, e não para a cessação do abuso, sendo certo que, muitas vezes,

interessa muito mais à vítima que o abuso termine do que a indenização do

prejuízo. Ou seja, a solução mais adequada, em grande parte dos casos, seria a

286 Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão. 287 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 693.

282

de estipular um comportamento a ser seguido pelo sujeito, mas a solução do

texto legal sempre apontava para a solução das perdas e danos, caso a conduta

adequada não tivesse sido adotada.

Por último, havia a imprecisão conceitual sobre o que se deveria

entender por “bons costumes”, uma vez que não estava preenchido o conteúdo

do mesmo pelo direito, mostrando-se por isso indispensável o recurso a

elementos metajurídicos, providência essa que não era – e não é – bem vista

pelos juristas alemães, sempre notabilizados pelo pragmatismo.

Assim, também o artigo 826, embora tenha servido de base para a

solução de inúmeros casos concretos, veio a se mostrar insuficiente para a

largueza da vida real, pois diversas hipóteses, nas quais havia comportamento

claramente inadmissível, ficaram de fora do seu alcance, em virtude dos

problemas acima relatados. Continuou a busca, portanto, por uma outra norma

legal que se mostrasse mais adequada, e que veio a ser encontrada no artigo

242, do BGB, segundo o qual “o devedor está obrigado a executar a

prestação como a boa-fé, em atenção aos usos e costumes, o exige”288.

O artigo 242, portanto, apresentava algumas vantagens bastante

óbvias, podendo-se apontar, em primeiro lugar, o fato de ser esteado em uma

regra aberta, capaz de abarcar uma grande generalidade de situações, em vez

de ficar limitada a uma situação específica. Além disso, não traçava

considerações subjetivas em relação ao agente, não se preocupando em buscar

se o comportamento do mesmo havia sido doloso ou culposo ou qual teria sido

a intenção do agente ou o escopo do ato. Por último, a solução alvitrada pelo

texto legal passava pela imposição, ao sujeito, de uma conduta adequada para

o caso concreto, conforme os ditames da boa-fé e os costumes referentes

àquele tipo de negócio. 288 Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.

283

E assim foi que, dos bons costumes, passou-se a considerar a boa-

fé como o elemento central para a determinação dos limites que, uma vez

ultrapassados, estaria caracterizado o abuso do direito. Béatrice Jaluzot289

resume essa evolução da seguinte forma:

“Progressivamente, a jurisprudência alemã veio a vincular a doutrina do abuso do direito à boa-fé, mais exatamente ao artigo 242 do BGB... em concorrência com a boa-fé, era a noção de violação dos bons costumes, do artigo 138 do BGB, que também oferecia um fundamento adequado. Contudo, a questão foi delineada pela jurisprudência do Tribunal do Império em uma série de decisões tomadas durante a segunda guerra mundial, e a partir daí a Corte federal se apoiou na boa- fé do artigo 242. As razões dessa vinculação foram que só a noção de boa-fé era capaz de abranger todos os casos nos quais a jurisprudência havia aplicado o abuso do direito: enquanto não podia ser aplicado o artigo 226, em razão de sua condição muito estreita, a intenção de prejudicar, e que o artigo 826 não abrangia todos os casos, particularmente aqueles de abuso do direito simplesmente objetivo e sem culpa, e também porque nem todo abuso do direito é uma violação dos bons costumes, o artigo 242 foi considerado como o único fundamento jurídico para a interdição do abuso do direito, na medida em que limita o exercício dos direitos” (tradução livre).

E é certo que essa evolução viria a influenciar, posteriormente, a

recepção, pelo Código Civil brasileiro (e vários outros, pelo mundo afora), das

idéias alemães sobre o abuso do direito, ainda que, curiosamente, nada conste

sobre as mesmas no Código Civil alemão (pelo menos, não com a clareza dos

289 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 432, n°s 1503 e 1504. “Progressivement la jurisprudence allemande en est venue à rattacher la doctrine de l’abus de droit à la bonne foi, plus exactment au § 242 BGB... En concurrence avec la bonne foi venait la notion de contravention aux bonnes moeurs du § 138 BGB qui offrait elle aussi um fondement adéquat. Cependant, la question a été tranchée par la jurisprudence du Tribunal d’Empire dans une série de décisions rendues durant la seconde guerre mondiale et la Cour fédérale s’appuie depuis lors sur la bonne foi et le § 242. Les raisons de ce rattachement sont que seule la notion de bonne foi était à même d’embrasser tous les cas dans lesquels la jurisprudence avait appliqué l’abus de droit: alors qu’il ne pouvait être question du § 226 en raison de sa condition trop étroite, l’intention de nuire, et que le § 826 n’embrasse pas tous les cas, en particulier ceux d’un abus de droit simplement objectif et sans faute, et aussi parce que tout abus de droit n’est pas une violation des bonnes moeurs, le § 242 a été considere comme seul fondement juridique pour l’interdiction de l’abus de droit, en t ant que limite à l’exercice des droits”.

284

outros Códigos Civis, como é o caso do art. 187, do Código brasileiro).

Vejamos como se deu essa recepção.

Cabe observar, de início, que o nosso Código Civil anterior, de

1916, não se referia expressamente ao abuso do direito, apenas trazendo

disposição, no artigo 160, I, segundo a qual não se constituía em ato ilícito

aquele que se apresentava como o exercício regular de um direito. A partir

dessa disposição legal, extraiu a nossa doutrina290 a conclusão de que,

contrario sensu, o exercício irregular desse mesmo direito, que seria o abuso

do direito, constituiria ato ilícito.

Adotou o nosso Código Civil antigo, portanto, a mesma falta de

clareza do Código Civil suíço, cujo artigo 2º, segunda parte, dispõe que “O

abuso evidente de um direito não encontra proteção legal”291. Com efeito,

facilmente se percebe que em ambos os códigos faltou a apresentação de

qualquer parâmetro, que pudesse permitir ao juiz, no caso concreto, a aferição

segura sobre se teria ou não havido o abuso, uma vez que não houve sequer

uma pista sobre quais seriam as características para a identificação do mesmo.

O Código Civil pátrio se limitou a mencionar o exercício irregular, enquanto

o suíço apenas se referiu à figura do abuso do direito, ambos se mostrando

incompletos, portanto.

Necessário, neste ponto, um deslocamento até a Grécia, País onde

vigorou, em todo o século XIX e nos primeiros quarenta anos do século XX, o

Corpus Iuris Civilis, recebido dos romanos. Ocorre que a doutrina alemã,

como já vimos linhas atrás, foi dominada, no século XIX, pela chamada

Escola Histórica, que havia tomado como ponto de partida, para o estudo do

Direito Civil o direito romano, mas cuidando de mesclá-lo com os valores 290 Nesse sentido, por todos, veja-se a lapidar obra de Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 92. 291 Tradução de Souza Diniz, Código Civil suíço .

285

culturais atualizados do povo alemão. Por essa razão, a doutrina alemã teve

enorme influência no Direito Civil grego, uma vez que serviu de base para que

os gregos absorvessem o direito romano adaptado para os tempos atuais.

Em 1946, finalmente, os gregos adotaram o seu próprio Código

Civil, sendo evidente que a elaboração do mesmo foi fortemente influenciada

pela doutrina originária da Alemanha, que já havia sido recebida pela forma

descrita no parágrafo anterior, e por isso o Código Civil alemão foi o ponto de

referência do Código Civil grego. Só que, na década de 40, em pleno século

XX, a doutrina alemã, como vimos retro, já havia interpretado e modificado o

conteúdo do Código Civil alemão, e por isso os gregos se utilizaram não

apenas do texto original do BGB, mas o fizeram considerando as

interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, referentes às dificuldades que

haviam surgido na prática e que a doutrina e a jurisprudência já haviam

superado.

Ora, vimos há pouco que os alemães, em relação à figura do

abuso do direito, haviam passado, sucessivamente, do ato que só pudesse ter o

objetivo de causar dano a outrem (art. 226) para os bons costumes (art. 826) e

a boa-fé (art. 242), e nesta última fase se encontrava o direito alemão

(impondo os limites do abuso do direito com base nos bons costumes e na

boa-fé) quando foi elaborado o Código grego, que ainda buscou, no projeto do

Código Civil italiano, a referência à finalidade social e econômica do

direito292. Desse modo, o artigo 281, do Código Civil grego, estabeleceu que

“o exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos

pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do

direito”.

292 Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 715.

286

Em 1966 entrou em vigor a segunda codificação civil portuguesa,

que recebeu, em seu artigo 334, o artigo 281 do Código Civil grego. Com

efeito, lê-se no artigo 334, do Código Civil luso, que “é ilegítimo o exercício

de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos

pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse

direito”, recebendo de modo muito claro e nítido a influência do mencionado

dispositivo do Código Civil grego.

O artigo 187, do Código Civil brasileiro, por sua vez, foi

claramente inspirado no artigo 334 do Código Civil português, inclusive com

a classificação do ato abusivo como ato ilícito (ilegítimo). Em doutrina,

convém que se alerte, discute-se se o abuso do direito é ou não ato ilícito. Para

nós, no entanto, a discussão se mostra estéril, pois cabe à lei definir quais são

os limites da licitude, e a norma legal foi expressa em mencionar que o abuso

do direito ultrapassa tais limites, devendo pois ser considerado como ato

ilícito. De ato ilícito, então, se trata, e passaremos ao largo da referida

polêmica, por falta de interesse para o presente trabalho.

Também o Código Civil argentino, adotando a mesma linha de

conceituação, aponta em seu artigo 1.071 que “la ley no ampara el ejercicio

abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que

aquélla tuvo em mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos

por la buena fe, la moral y las buenas costumbres”.

O que se verifica é que, de modo concreto, a identificação do

abuso do direito, no nosso Código Civil e no argentino, adotou o critério da

função social do direito, ou seja, estará caracterizado o abuso do direito toda

vez que um determinado direito tiver sido desviado de sua função social, uma

vez que os direitos subjetivos existem essencialmente, dentro de um interesse

social, e não apenas dentro do interesse de seus titulares, e por essa razão o

287

seu exercício deve ser limitado pelo interesse social a que devem servir293. É

interessante notar que muda por completo o enfoque dos direitos subjetivos,

que deixam de ser vistos sob o prisma de sua estrutura e passam a ser

considerados sob a ótica de sua função, vale dizer, tais direitos são

funcionalizados aos valores eleitos pelo ordenamento294.

Na verdade, o que se pode constatar é que, uma vez revelada pela

doutrina alemã a íntima ligação entre a boa-fé e a figura do abuso do direito,

os Códigos Civis em geral se valeram da primeira para poder apresentar um

conceito para o segundo, ou seja, para caracterizar o abuso do direito em

função da boa-fé, sendo que aquele começa a partir do ponto em que cessam

as condutas admissíveis, pois estas se encontram no domínio da boa-fé, e além

delas já se adentra pelo campo do abuso do direito.

Usando interessante descrição feita pela doutrina295, pode-se dizer

que, representando-se o caminho de um certo comportamento jurídico, ambas

as figuras, a boa-fé e o abuso do direito, encontram-se no mesmo ponto limite.

Contudo, antes desse ponto têm-se os comportamentos pautados pela boa-fé,

que se faz presente em todo o setor das condutas admissíveis, enquanto que,

além desse mesmo ponto, tem-se a presença do abuso em todo o trajeto, sendo

ultrapassado o limite dos comportamentos aceitáveis pelo Direito.

Só a título de melhor esclarecimento do que já foi visto

anteriormente, e aproveitando essa mesma figura utilizada no parágrafo

anterior, veja-se que a boa-fé não se limita a esse ponto mencionado, além do

qual se terá o abuso do direito, mas está presente em todo o caminho

percorrido até que seja atingido tal ponto, ou seja, estará presente em todos os

293 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 418, n° 1461. 294 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 9, nota de rodapé nº 8. 295 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 223.

288

comportamentos adotados pelo sujeito do negócio jurídico. É por isso que

comentamos, por exemplo (veja-se, retro, o item 1.8), que a boa-fé permeia

não apenas o momento da celebração ou o da execução do contrato, mas

também os momentos que o antecedem e aqueles que se seguem à sua

extinção296.

Na realidade, contudo, como bem esclarece Menezes Cordeiro297,

o abuso do direito representa um gênero, que toma por base as condutas

situadas além das que são ditadas pela boa-fé, e que é formado por diversas

espécies, todas elas tendo suporte na boa-fé, mas cada uma tendo suas próprias

peculiaridades, e para a solução dos casos reais não é na figura do abuso do

direito que se encontram as soluções, mas nessas espécies que com ele têm em

comum a ordenação pela boa-fé. O abuso do direito, portanto, sob essa ótica,

apenas serve como ponto de referência para que sejam reunidas de modo

sistemático essas espécies, cujo estudo faremos em seguida, examinando de

modo mais detalhado, contudo, a figura do venire contra factum proprium,

que nos servirá de parâmetro para a comparação com as demais espécies

ligadas ao abuso do direito.

2.2.1. A exceptio doli .

Ensina Menezes Cordeiro298 que a exceção, em Direito

substantivo, é a situaçao na qual a pessoa que se encontra adstrita a um dever

pode, licitamente, recusar a efetivação da pretensão correspondente. Na lição

de Ovídio da Silva, vemos que a exceção é uma defesa indireta apresentada 296 Nesse sentido, mas especificamente em relação à figura do abuso do direito, ensina Pedro Baptista Martins que “o abuso do direito pode manifestar-se em qualquer de suas fases: pré-contratual, contratual e pós-contratual”. Cf. Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 38. 297 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 706. 298 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 719.

289

pelo réu, sendo assim classificada porque não tem por finalidade negar a

existência do direito do autor. Muito pelo contrário, quando o réu se defende

argüindo exceção substancial, está reconhecendo que tal direito existe, mas ao

mesmo tempo está apontando que o pedido deve ser julgado improcedente, em

virtude da existência de algum elemento extrínseco que pode ser oposto ao

autor, impedindo, modificando ou mesmo extinguindo a eficácia do seu

direito299.

A exceptio doli, ou exceção de dolo, portanto, significa, como o

próprio nome indica, uma defesa indireta, da qual o réu poderá se valer para

repelir a pretensão do autor, embora sem negar-lhe o direito, tendo por suporte

o fato de que tal direito foi exercido de modo doloso, tendo havido

comportamento que implicou em violação da boa-fé, por parte do seu titular.

No caso da exceção de dolo, o “elemento extrínseco” que poderá ser oposto

contra o autor consistirá no dolo deste, ou seja, a pretensão do autor será

repelida sob o argumento de que o mesmo agiu de modo doloso. Representa,

de certo modo, “a proteção de um direito contrário ao exercitado pelo autor

e, em tal sentido, um instrumento de flexível proteção da eqüidade e da boa-

fé”300.

Dito em outras palavras, a exceptio doli foi um meio processual

genérico de defesa, criado pelos romanos para obstaculizar as ações que se

fundavam no dolo do autor, sendo depois ampliada para abranger qualquer

atuação que se mostrasse iníqua ou contrária à bona fides, o que levou a

apresentar conteúdo difuso, capaz de abranger um grande número de

hipóteses, cujo ponto em comum é precisamente a presença do dolo do autor,

299 Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 1: Processo de Conhecimento, p. 319. 300 Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, p. 210.

290

em algum momento de sua atuação301, sendo certo, contudo, como veremos

logo em seguida, que essa indefinição conceitual acabou por levar ao

abandono dessa exceptio.

Em sua origem, no Direito romano, a exceção de dolo cumpria

um duplo papel, dividindo-se em exceptio doli praeteriti (ou specialis) e

exceptio dolis praesentis (ou generalis). A primeira, exceptio doli specialis,

era apontada pelo réu quando o dolo do autor havia ocorrido no momento em

que a relação jurídica material se formara, ou seja, em um momento anterior à

ação (em momento pretérito). A segunda, exceptio doli generalis, por sua vez,

indicava o dolo em que havia ocorrido o autor no momento em que se deu a

discussão da causa (ou seja, no momento presente, em relação à ação)302.

Sem maiores investigações pode-se concluir que a exceptio doli

specialis perdeu a sua finalidade, a partir do surgimento da figura dos vícios

da vontade, na formação do negócio jurídico. Com efeito, em se tratando de

dolo de um dos sujeitos, no momento mesmo em que se deu o surgimento da

relação material, ou seja, no momento em que ocorreu o negócio jurídico,

parece evidente que essa espécie de exceptio foi absorvida pela figura do dolo,

de um modo geral, podendo esse surgir, também, sob a forma de dolo de

aproveitamento, no caso específico do estado de perigo. Restou apenas,

portanto, a figura da exceptio dolis generalis.

Na realidade, a exceptio doli foi usada, notadamente pela

jurisprudência alemã, para abranger situações diversificadas, às quais não se

conseguia dar uma unidade sistemática, e acabou se transformando em mero

sinônimo de resistência a um direito cujo titular agiu em desconformidade

com a boa-fé. Tal idéia, como se vê, é por demais ampla, pois não se esclarece 301 Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, pp. 169-172. 302 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 722.

291

de modo preciso em que consistiria essa violação da boa-fé, ou seja, qual o

parâmetro a ser considerado para aferir essa atuação desconforme.

Como explica Béatrice Jaluzot303, enquanto nos tribunais

franceses a jurisprudência referente à boa-fé se esteava no abuso do direito, na

Alemanha, ao contrário, o fundamento primeiro era a exceptio doli generalis.

O grande desenvolvimento da jurisprudência nesses dois países levou à

aproximação das duas teorias, mas sendo que o instituto do Direito romano

não garantia os fundamentos teóricos suficientes para as decisões, e mesmo se

tratava de uma qualificação inadequada, pois em muitos casos a presença da

exceptio era reconhecida sem que tivesse havido um comportmento doloso, ou

seja, um comportamento conscientemente ilícito, ou mesmo que nem se

tratasse de uma exceção, que as partes pudessem relevar, mas sim de um

obstáculo jurídico que o juiz poderia considerar ex officio.

E nem se diga, como pretenderam alguns doutrinadores de

escol304, sustentar que mediante o recurso à exceptio doli não se buscaria

sancionar uma conduta culposa, mas sim evitar-se um resultado imoral e

injusto, o que se apresentaria como uma situação objetiva, e não de cunho

subjetivo. Em palavras mais claras, a exceção de dolo teria um fundamento de

natureza objetiva, situado fora da intenção do agente. Data venia, pretender

falar-se em dolo fora do âmbito das intenções, significa das duas uma: ou se

trata de mero jogo de palavras, ou, então, trata-se de qualquer outra coisa, mas

não de exceção de dolo, sob pena de termos um absurdo similar ao do abuso

do direito sem o exercício de um direito.

303 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 428, n° 1492. 304 Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, pp. 243-244. O ilustre autor espanhol aponta que buscar para a exceção de dolo um fundamento objetivo, que esteja fora da intenção do agente, pode parecer contraditório (p. 244). Na verdade, não parece contraditório, é amplamente contraditório.

292

Por essa razão, há quem aponte que a exceptio doli foi atingida

pelo desinteresse da doutrina e da jurisprudência 305, importando mais pelo

relevante papel histórico que desempenhou, enquanto se tentava fincar as

fundações de normas esteadas na boa-fé, uma vez que hoje encontra maior

aplicação a análise de violações mais específicas e mais precisamente

delimitadas da boa-fé, e que por isso encontram aplicação concreta de modo

mais científico, em vez de, como ocorria com a exceptio doli, apenas servir de

reforço lingüístico para decisões já anteriormente tomadas, em casos de

violação da boa-fé.

De modo semelhante, aponta Jaluzot306 que os autores começaram

a descrever as duas teorias, a exceptio doli e o abuso do direito, como sendo

duas aparições paralelas, que se identificavam reciprocamente em sua

essência, e com isso as duas teorias foram progressivamente sendo

assimiladas, o que acabou por resultar na substituição progressiva da

terminologia usada na Alemanha, ou seja, os juristas alemães descartaram a

expressão latina e passaram a usar a tradução literal da noção francesa do

abuso do direito.

E também os tribunais alemães passaram a invocar a teoria

francesa, para justificar suas decisões, chegando a apontar de modo expresso

que o abuso do direito, que fora desenvolvido a partir da exceptio doli

generalis e da figura correspondente no direito francês, era reconhecido de um

modo geral. E a terminologia latina começa a ser abandonada.

Na realidade, desde a entrada em vigor do Código Civil alemão,

em 1900, a aplicabilidade da exceptio doli já havia sofrido um baque, eis que o

BGB simplesmente não tratou da mesma, o que desde logo levou a doutrina a 305 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 741. 306 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 428-429, n°s 1493 e 1494.

293

discutir acerca da sua sobrevivência no direito germânico. Apesar desse

silêncio, principalmente em virtude de sua tradição, a jurisprudência alemã

continuou a fazer referência à exceptio, mesmo após a entrada em vigor do

Código Civil, pois se este, por um lado, não a mencionou, por outro, também

não a afastou. Só que a exceptio se apresentava muito ampla, muito fluida, e a

doutrina começa a apontar que os casos onde a mesma era invocada, em sua

maioria, nada mais eram do que hipóteses de interpretação da lei, e não,

verdadeiramente, hipótese da exceptio307, o que conduziu à sua absorção pela

figura do abuso do direito, acima mencionada.

Os tribunais que continuavam a fazer referência à exceptio doli

generalis, na realidade, valiam-se da valoração dos problemas concretos à luz

das normas legais que constavam do Código Civil alemão, notadamente as que

se referiam à boa-fé e aos bons costumes e, depois de atingida a solução,

faziam uma referência à exceptio, como reforço dos argumentos expendidos.

Ou seja, usava-se um conceito central, codificado, para atender às situações

periféricas da vida real, e depois se mencionava a exceptio doli, que apenas

servia como reforço lingüístico. Não havia, portanto, a preocupação de

deduzir da própria figura da exceptio as soluções possíveis para cada situação

concreta308.

Por todas essas razões, as referências à exceptio doli generalis

começaram a rarear na jurisprudência. Desse modo, tendo a figura

desaparecido dos tribunais, sobreveio também, como conseqüência, a escassez

doutrinária, pois deixou-se de pesquisar o tema porque o mesmo não era mais

visto em debate nos tribunais, em casos concretos. De fato, atualmente, há

pouca ou quase nenhuma referência doutrinária ao instituto da exceptio doli,

307 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 723-730. 308 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 733.

294

decorrendo principalmente, como já comentamos, supra, da mesma ter sido

fundida com a figura do abuso do direito, sendo esta que é mencionada em

situações nas quais se mostra dificil a sistematização do desrespeito à boa-fé,

sem a preocupação de reconhecimento da exceptio doli.

A exceptio doli, de fato, é figura de amplitude e generalidade

significativas, e por isso a sua topologia adequada é aqui, como um subitem

do abuso do direito. De qualquer modo, no aspecto que nos interessava, que

era o de um cotejo com a figura do venire contra factum proprium, já

podemos apontar com facilidade a crucial diferença entre ambas, consistente

no fato de que a exceptio doli pressupõe, como é evidente, o dolo do sujeito,

exigência essa que não se encontra no venire, como passaremos a examinar

logo em seguida.

2.3. O venire contra factum proprium.

2.3.1. Considerações gerais.

A expressão venire contra factum proprium, que poderia ser

vertida para o vernáculo em tradução que se apresentaria em algo do tipo “vir

contra seus próprios atos”, ou “comportar-se contra seus próprios atos”, pode

ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das

hipóteses nas quais uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois

comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por

ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em

virtude do primeiro.

Em outras palavras, há uma contradição entre os dois

comportamentos, pois a partir da análise do primeiro havia surgido a legítima

295

expectativa de que outra seria a conduta a ser adotada por ocasião do segundo.

Nas palavras de Béatrice Jaluzot309, todo comportamento será contrário à boa-

fé se for qualificado como contraditório, o que ocorre quando se mostra

contrário a um comportamento anterior da mesma pessoa.

O primeiro comportamento, portanto, é o “factum proprium”, e o

segundo, é o “venire”. Quando os dois são contraditórios, ou seja, quando o

venire (segundo comportamento) se mostra contrário ao factum proprium, é

que poderá ser caracterizada a figura do venire contra factum proprium,

dependendo ainda, contudo, da presença de outros elementos, como veremos

em seguida.

A proibição do venire310, como facilmente se pode identificar,

refere-se à proteção da boa-fé311, ou melhor, refere-se à necessidade de que

cada um dos sujeitos de um negócio jurídico adote conduta que seja

consentânea com a boa-fé, o que, em última análise, como já vimos, retro,

significa que cada um desses sujeitos deverá respeitar os deveres laterais que

surgem em todos os negócios jurídicos, e que são impostos exatamente em

função da necessidade de observância da boa-fé. E qual seria esse dever

acessório, a ser observado, e cuja inobservância estaria a caracterizar o venire? 309 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 89, n° 326. “Tout comportement sera contraire à la bonne foi s’il est qualifié de contradictoire c’est-à-dire s’il est contraire à um comportement antérieur de la même personne”. (Tradução livre). 310 Mas desde logo observando que por vezes, levando em conta outros valores, a própria lei permite, expressamente, esse comportamento contraditório, ou seja, nem sempre é proibido o venire contra factum proprium. Assim, por exemplo, os pais, tutores ou curadores que já se manifestaram no sentido de conceder a autorização para o casamento do menor púbere, podem revogá-la enquanto não se der a celebração do matrimônio (Código Civil, art. 1.518), ou seja, podem adotar um segundo comportamento que é exatamente o oposto do primeiro, tendo força para desfazê-lo. Da mesma forma, a autorização dada pelos pais, para que seu filho seja adotada, pode ser revogada enquanto não tiver sido publicada a sentença que constitui a adoção (art. 1.621, § 2º). E outros exemplos poderiam ser citados, como veremos adiante. 311 No entanto, convém ressaltar que essa ligação tão estreita entre a boa-fé e o venire contra factum proprium não se mostra assim tão pacífica, sendo contestada por autores de nomeada. Nesse sentido, por exemplo, José Luis de Los Mozos, após afirmar que não há dúvidas acerca da relação entre atos próprios e boa-fé, alerta que na especial conduta contraditória que informa a doutrina dos atos próprios, intervêm outros ingredientes, que não decorrem da simples aplicação da boa-fé, e que por essa razão não se pode reconduzir essa matéria (a doutrina dos atos próprios) a qualquer dos tipos de boa-fé, objetiva ou subjetiva, por mais que se pretenda fazer generalizações. Cf. José Luis de Los Mozos, El principio de la buena fe, pp. 183-184.

296

Se tomássemos como embasamento apenas este começo de

abordagem do tema, poderíamos ser tentados a mencionar um dever lateral de

coerência, uma vez que o venire contra factum proprium, conforme acabamos

de mencionar, abrange as situações onde há comportamentos contraditórios,

ou seja, nas quais não há coerência entre os dois comportamentos adotados,

em momentos distintos, em relação ao mesmo negócio jurídico e pelo mesmo

sujeito. Ou, em vez de um “dever de coerência”, poderíamos optar por um

mais claro e significativo “dever de não ser contraditório”.

Tais denominações, no entanto, haveriam de se mostrar tão

precipitadas quanto inverídicas, uma vez que não estariam espelhando o

aspecto que se revela como sendo o verdadeiro eixo de sustentação do venire.

Com efeito, como veremos em maiores detalhes, logo à frente,

em muitas ocasiões a falta de coerência do sujeito não é proibida e nem gera

conseqüências jurídicas quando vem a ser constatada. Dito de outra forma,

nem toda incoerência comportamental pode ser descrita como sendo caso de

venire, ou seja, nem toda conduta que venha a se revelar contraditória com

uma conduta anterior pode ser descrita como sendo hipótese de venire contra

factum proprium.

À guisa de rápido exemplo pode-se apontar a hipótese daquele

que envia, a pessoa ausente, proposta de contrato. É certo que esse proponente

poderá se retratar, enquanto a proposta não tiver chegado ao conhecimento

daquele a quem se destinava, ou se ambas, a proposta e a retratação, chegarem

juntas a esse mesmo destinatário.

Veja-se que o segundo comportamento, ou seja, a retratação, é

nitidamente contraditório em relação ao primeiro, a proposta, e tanto assim

que o desfaz por completo. E, no entanto, essa incoerência não é proibida e

nem vai gerar qualquer conseqüência jurídica, simplesmente prevalecendo a

297

retratação sobre a proposta, ou seja, prevalecendo o segundo comportamento

sobre o primeiro, eis que os dois são incompatíveis entre si, e portanto não

haveria como fazer-lhes a conciliação.

Logo, fica assim demonstrado que a referência a um eventual

dever de coerência (ou dever de não ser contraditório), na realidade, em

termos científicos, não significa absolutamente nada, eis que não permite

identificar o fenômeno sob estudo, por abordar apenas um invólucro maior, no

qual estão inseridas diversas outras espécies de violações da coerência. Não

serve, portanto, como paradigma para a busca que estamos a empreender.

A questão que se apresenta como sendo de nuclear importância,

portanto, é a identificação precisa dessa espécie de coerência ou, por outras

palavras, a apuração de quais são as situações nas quais a incoerência (a

contradição) não poderá ser tolerada.

Em relação ao tema, desde cedo adiantamos o que será

demonstrado logo adiante: a incoerência que se caracteriza como venire é tão-

somente aquela que destrói a confiança que havia surgido na outra parte, ou

seja, a partir do primeiro comportamento adotado por um dos sujeitos, o outro

passou a acreditar (a confiar) que em um segundo momento a conduta a ser

adotada seria no mesmo sentido da primeira, seria coerente com ela, e essa

crença vem a ser destruída pelo comportamento que se choca com o anterior.

Para que se chegue a tal conclusão, convém recordar o que já

vimos, retro (item 1.9), no sentido de que não se está buscando,

primordialmente, a repressão à má-fé de um dos sujeitos, mas sim a proteção à

boa-fé do outro. Ora, a questão da coerência é ligada à pessoa do sujeito cuja

atuação não será admitida, enquanto a confiança se refere ao outro sujeito,

cuja boa-fé se busca proteger. Em outras palavras, se a idéia central fosse a

repressão à incoerência, isso equivaleria à busca da punição à má-fé.

298

O que se buscará, portanto, é proteger a confiança do outro

sujeito, pois aí se estará voltando o foco para a proteção à boa-fé, e não para a

punição à má-fé. Pode-se dizer, portanto, que o venire contra factum proprium

tem como foco um elemento externo à pessoa que adota os dois

comportamentos que se mostram incoerentes, sendo tal elemento externo a

confiança que se formou no outro sujeito. A incoerência em si mesma,

portanto, se mostra irrelevante, apenas interessando as suas conseqüências

quanto ao outro sujeito, vale dizer, se houve ou não o surgimento da

confiança.

No dizer de Béatrice Jaluzot312, um comportamento contraditório

será abusivo (e, portanto, não será tolerado) quando um elemento de confiança

havia surgido na outra pessoa, ou quando as circunstâncias particulares do

caso concreto fazem com que o exercício de um direito se apresente como

sendo desleal, sendo certo que o elemento temporal se apresenta como um

argumento de peso (embora não seja o único) para essa caracterização. Assim,

mais claramente será caracterizado o comportamento contraditório como

abusivo se a parte, durante longo tempo, se comportou de uma certa forma, e

subitamente mudou o seu comportamento.

Poderia ser enquadrada a proibição do venire dentro do dever de

lealdade, que por nós já foi examinado, mas ainda assim o espectro ficaria

muito amplo, pois é de um aspecto específico da lealdade que se trata, ou seja,

de não frustrar a confiança que foi criada no outro agente do negócio jurídico.

O que efetivamente se mostra mais adequado, portanto, é o falar-se em

proteção à confiança.

312 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, pp. 89-90, n°s 327 e 328.

299

E é importante destacar que o repúdio ao venire contra factum

proprium nada tem a ver com a questão do pacta sunt servanda, e sim com a

aparência, com o fato exterior (o comportamento inicialmente adotado) que

fez surgir a interior confiança por parte do outro sujeito313. Se no caso

concreto se mostra razoável supor que dessa aparência resultou a formação da

confiança, no íntimo do outro sujeito, então a sua quebra será inadmissível,

sendo atraídas as regras do instituto em exame.

Neste ponto abriremos breve parêntese para alargar e

fundamentar a afirmação feita nos parágrafos imediatamente anteriores, no

sentido de que o comportamento contraditório será caracterizado como

abusivo. É que a figura do venire contra factum proprium, de fato, enquadra-

se na figura mais ampla do abuso do direito, ou seja, este constitui o gênero

mais amplo, enquanto o venire se apresenta como uma de suas espécies, ou

seja, como uma das situações de ocorrência concreta do abuso, o que pode ser

facilmente demonstrado.

Para tanto, basta que se observe que o abuso do direito, em

simplificada explicação, pode ser descrito como o exercício do direito de

modo contrário à boa-fé ou às suas finalidades social e econômica, como já

vimos. Ora, é evidente que a ocorrência do venire, quebrando a confiança que

foi despertada na outra parte, não apenas viola a boa-fé, mas além disso ainda

agride as finalidades do direito subjetivo, pois é claro que, diante dos

princípios da dignidade humana e da solidariedade social, não se poderia

conceber que um determinado direito subjetivo, qualquer que seja tal direito,

pudesse ter sido criado com a finalidade de frustrar as expectativas

legitimamente criadas pela contraparte. Logo, se frustrar as expectativas não

era a finalidade, mas apesar disso a frustração ocorreu, pode-se afirmar que foi 313 Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 44.

300

desatendida a finalidade para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido

à parte.

Assim, é fácil de concluir que toda ocorrência do venire contra

factum proprium, traduzindo uma agressão à boa-fé e um desvio da finalidade

para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido ao seu titular, poderá

sempre ser enquadrada como um caso de abuso do direito. Apenas se

complementa essa afirmação observando-se que, esse caso particular de

abuso, por ter características próprias e bem definidas, e por se tratar de

situação de ocorrência concreta freqüente, passa a ser estudado em separado,

por suas próprias características, que se destacam dentro da figura mais ampla

do abuso do direito, embora seja um caso peculiar deste.

Encerrando essas observações iniciais, convém realçar um

importante aspecto, que muitas vezes passa despercebido, quando se

examinam as questões ligadas à boa-fé, e para o qual já havíamos chamado a

atenção, poucas linhas atrás. É que, em verdade, a proibição do venire contra

factum proprium, muito mais do que destinada à proibição da conduta de má-

fé, na realidade destina-se, precipuamente, à proteção da confiança (rectius:

proteção da boa-fé), e essa diferença gera importantes conseqüências práticas,

conforme veremos mais adiante.

Assim, por exemplo, se um dos sujeitos não se comporta

conforme os ditames da boa-fé objetiva, assumindo comportamento

claramente contraditórios, mas o primeiro desses comportamentos, por alguma

razão, não havia feito surgir a confiança no espírito do outro sujeito, não se

terá aí hipótese de venire, pois o que de fato interessaria seria a quebra da

confiança, para caracterizá-lo, e não a simples contradição que poderia tê-la

quebrado, mas que na realidade não o fez.

301

2.3.2. Elementos característicos.

Comecemos observando que não há, no nosso ordenamento

jurídico, qualquer regra que possa ser apontada com uma proibição geral de

que um sujeito adote comportamentos contraditórios entre si, e por isso não é

possível a análise minuciosa de um dispositivo legal específico, a partir do

qual possam ser extraídas as características que ora buscamos.

Na realidade, pode-se mesmo apontar que nos ordenamentos

jurídicos em geral não se costuma encontrar uma regra que, de modo genérico,

proíba a adoção de comportamentos contraditórios. No entanto, como veremos

logo em seguida, há no nosso ordenamento jurídico (e nos ordenamentos em

geral) diversas disposições legais, a partir das quais se pode apreender a idéia

da proibição de comportamentos contraditórios, atendidos alguns outros

requisitos.

Vimos, reiteradas vezes, que o venire contra factum proprium

consiste em um comportamento que viola o dever de portar-se conforme os

ditames da boa-fé. Vimos, em um segundo momento, que o venire se insere na

figura do abuso do direito. A boa-fé objetiva e o abuso do direito, portanto,

podem mostrar-se como pontos de partida para o exame do instituto em

estudo, mesmo porque ambos têm em seu favor a vantagem da positivação

expressa, como já vimos, estando a boa-fé prevista no artigo 422 e o abuso do

direito (também com menção à boa-fé) no artigo 187, ambos do Código Civil

brasileiro.

No entanto, é evidente que nenhuma dessas duas vinculações,

com o abuso do direito e com a boa-fé, tem precisão terminológica suficiente

para que, a partir delas, possam ser apontadas as características do venire. E é

fácil de se chegar à conclusão dessa insuficiência, uma vez que tanto a

302

conduta de boa-fé quanto o abuso do direito são expressões por demais

amplas, como já examinamos, que comportam diversas hipóteses, cada uma

delas com suas próprias e diversas características, e das quais o venire é

apenas uma.

Apesar de insuficiente, por si só, para a identificação do venire

contra factum proprium, é evidente que essa inserção do mesmo nos vastos

domínios da boa-fé (e apenas vamos nos referir a esta, uma vez que a violação

da boa-fé já se insere na figura do abuso do direito) já funciona como uma

primeira orientação para a nossa busca. Sabemos, a partir daí, que o venire

consiste em uma conduta que viola a boa-fé, ou seja, que infringe algum dos

deveres colaterais que da boa-fé decorrem. Resta-nos identificar qual é esse

dever, o que faremos logo em seguida.

Além disso, também sabemos que o venire, por definição,

consiste em um comportamento que se mostra contraditório com um outro

comportamento anterior, do mesmo sujeito. Nessas condições, é mais do que

evidente que a primeira exigência a ser apontada, de modo amplo, para que se

possa reconhecer a ocorrência do venire, é a existência de dois

comportamentos, de um mesmo sujeito, que entre si são contraditórios, de um

modo tal que essa contradição viola pelo menos um dos deveres acessórios

que decorrem da boa-fé.

Essa idéia inicial sobre o venire contra factum proprium, como

dissemos acima, pode ser apreendida a partir de várias disposições positivadas

no nosso ordenamento jurídico. Examinemos algumas dessas disposições,

antes de uma análise mais minuciosa e detalhada dos elementos que podem

caracterizar o venire, desde logo observando, no entanto, que nessas situações

expressamente retratadas pelo Código Civil o operador não poderá se valer da

figura do venire contra factum proprium, uma vez que existe disposição

303

normativa própria para a espécie, e em tais condições, como, de modo breve,

já vimos anteriormente, não faria qualquer sentido que se buscasse a solução

supletiva da figura do venire.

Portanto, faremos referência aos dispositivos legais apenas para

que, a partir deles, possamos tentar extrair os elementos necessários à

caracterização do venire contra factum proprium, mas nas situações neles

retratadas não se deverá recorrer a esse instituto. Essa questão do não uso da

figura do venire quando existe norma legal expressa para a questão, será vista

em detalhes logo adiante, no próximo subitem.

a) em relação à formação dos contratos, dispõe o artigo 427, do

Código Civil, que a proposta vincula o proponente, salvo natureza ou

circunstâncias especiais do negócio. No entanto, esclarece logo em seguida o

mesmo Diploma Civil, no artigo 428, IV, que não haverá essa vinculação

quando a proposta tiver sido enviada por correspondência e, antes dela, ou

pelo menos simultaneamente com ela, chegar ao conhecimento da outra parte

a retratação do proponente.

Duas situações distintas são enfocadas pelo Código Civil, como

se vê nos dois dispositivos legais supramencionados. Na primeira, o

destinatário da proposta já tomou conhecimento desta, e por isso não mais se

admite a retratação. Na segunda, no entanto, o destinatário ainda não havia

tomado ciência dos termos da proposta, e neste caso o proponente será

admitido a se retratar. O que essas duas situações têm em comum e o que têm

de diferente? Vejamos.

Em comum, ambas as disposições legais apresentam como

integrantes de seu conteúdo dois comportamentos que se mostram

contraditórios entre si. Com efeito, nas duas situações enfocadas a norma legal

304

trata, em primeiro lugar, da proposta de contrato e, em segundo, da retratação

referente a essa mesma proposta. Ou seja, o primeiro comportamento do

sujeito, tratado pela norma, é a apresentação de uma oferta, tendo em vista a

celebração de um contrato; o segundo, contraditório em relação ao primeiro, é

exatamente o oposto deste. No entanto, em um dos casos o comportamento

contraditório é proibido, enquanto no outro é expressamente admitido, sendo

certo que essa diferença de soluções decorre da diferença entre as duas

situações, a ser vista em seguida.

A diferença é bastante simples de ser identificada. É que, no

primeiro caso, como o outro sujeito, destinatário da oferta, dela já tomou

conhecimento, já se formou, em seu íntimo, a expectativa de celebrar o

contrato, e portanto o legislador resolveu proibir o proponente de frustrar essa

mesma expectativa, legitimamente formada. No segundo, no entanto, a

proposta ainda não havia chegado ao conhecimento do destinatário, e por esta

razão ainda não havia surgido no mesmo a expectativa de celebrar o contrato,

e por isso o comportamento contraditório foi admitido, eis que nenhuma

expectativa será por ele frustrada.

E essa conclusão pode ser ainda reforçada se observarmos que,

mesmo nos casos em que a proposta já havia chegado ao conhecimento do

destinatário, ainda assim poderá ser admitido o comportamento contraditório

do proponente, consistente na retratação, desde que a oferta tenha sido

formulada em termos ou em circunstâncias tais que não permitam o

surgimento da expectativa em relação ao destinatário (art. 427, 2ª parte). Seria

o caso, por exemplo, da proposta formulada de modo condicional ou com a

ressalva de que ainda dependeria de uma confirmação da existência em

estoque ou de algum outro fator, mas sempre de modo a deixar claro que o

proponente ainda não estava definitivamente vinculado aos seus termos.

305

Esse primeiro dispositivo observado mostra, de modo muito

claro, um aspecto relevantíssimo no estudo do venire contra factum proprium,

ao qual já havíamos nos referido, que é o fato de que nem toda incoerência ou

contradição de comportamentos é proibida, mas tão-somente se proíbe aquela

capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, mediante a frustração das

expectativas legitimamente geradas. Essa abordagem será aprofundada por

ocasião do exame dos elementos caracterizadores do venire, no subitem

próximo.

E, ainda mais, pode-se desde logo também apontar que, mesmo

em relação aos comportamentos que se mostram capazes de repercussão na

esfera jurídica alheia, criando expectativas acerca do desfecho de um negócio

jurídico, ainda assim nem toda contradição é rejeitada pelo ordenamento

jurídico, vale dizer, nem todo comportamento contraditório será caracterizado

como venire inadmissível.

Tomemos, para mais fácil análise, o seguinte exemplo: uma

pessoa, mediante testamento público, nomeou A e B como seus herdeiros.

Veja-se que a disposição testamentária, se vier a ser cumprida, repercut irá na

esfera jurídica dos herdeiros testamentários. Além disso, em se tratando de

testamento público, A e B logo tomaram conhecimento de tais disposições, e

por isso ambos têm a expectativa de receber uma quota do patrimônio, quando

vier a ser aberta a sucessão do de cujus. Apesar disso, o testador, a qualquer

instante, poderá mudar de idéia e revogar todas as disposições patrimoniais

contidas em seu testamento anterior, para isso bastando que elabore um novo

testamento, nos termos do artigo 1.969, do Código Civil.

Nesse caso, como se vê, houve um primeiro comportamento (a

nomeação dos herdeiros testamentários) que veio a ser contraditado pelo

segundo (o desfazimento dessa mesma nomeação), afetando a esfera jurídica

306

alheia e frustrando as expectativas dos possíveis herdeiros, que subitamente

deixaram de sê-lo, em virtude da revogação do testamento. E apesar disso

tudo, a lei expressamente permite essa contradição, que em hipótese nenhuma

poderá ser caracterizada como venire contra factum proprium.

O problema, como veremos adiante (veja-se, infra, o item

2.3.2.2), é que se assim não fosse, vale dizer, se não houvesse a tolerância em

relação a determinadas contradições, todo o comportamento humano posterior,

em relação a um certo negócio jurídico, seria desde logo previsível, ou seja,

após ter sido adotado um primeiro comportamento, os demais já poderiam ser

previamente descritos, caso não se admitisse a hipótese de contradição

alguma. E a permissão normativa para a atuação humana se esgotaria logo na

primeira conduta, pois as demais apenas se apresentariam como uma simples e

previsível conseqüência da mesma.

Na realidade, o legislador sopesa os elementos envolvidos na

situação específica de comportamentos contraditórios, e em alguns casos

conclui que permitir a contradição é menos nocivo à harmonia do sistema

jurídico do que proibi-la. Em outras situações, no entanto, considerados os

elementos e os valores envolvidos na situação concreta, o legislador decide

proibi-la. Aproveitemos esse mesmo exemplo do testamento para tratarmos

dessa segunda hipótese, ou seja, quando o legislador, em virtude dos valores e

dos elementos do caso concreto, opta por proibir a contradição entre as

condutas.

Suponha-se que, no mesmo testamento onde A e B foram

nomeados como herdeiros, o testador também reconheceu C como sendo seu

filho, havido fora do casamento. Em relação ao reconhecimento do filho,

como se sabe, o testamento não poderá ser revogado, tendo o nosso Código

Civil cuidado de proibi-lo até mesmo em dois dispositivos diferentes, como se

307

vê nos artigos 1.609 e 1.610. Veja-se, portanto, que em relação ao mesmo

negócio jurídico, uma parte admite a contradição, ou seja, a nomeação dos

herdeiros pelo testador, enquanto a outra, a que se refere ao reconhecimento

da filiação, não a admite.

Nessas condições, é fácil de se perceber que a diferença entre as

soluções passa pelos valores envolvidos em cada uma das situações. No

primeiro caso, de um lado tem-se a autonomia da vontade do testador e, do

outro, as atribuições patrimoniais por ele feitas, e o legislador optou por

preservar a autonomia da vontade, por isso que, mesmo depois de ter sido feita

uma primeira atribuição, poderá o testador, a qualquer tempo, optar por

modificá-la, não precisando de qualquer justificação para fazê-lo, sendo

suficiente a sua vontade livre.

Na segunda hipótese, contudo, embora de um lado esteja presente

a autonomia da vontade (no sentido de que o testador poderia não ter feito o

reconhecimento do filho no testamento, e optou livremente por fazê-lo), do

outro está um valor maior, que em última análise é o da própria dignidade da

pessoa humana, que envolve o direito à filiação, ao reconhecimento de sua

origem familiar. Assim, ponderados tais valores em conflito, adequadamente

concluiu o legislador que a dignidade do filho reconhecido não poderia ficar

flutuando ao sabor das mudanças de humor do testador, e por isso vetou a

possibilidade da contradição.

Além do mais, não se pode deixar de mencionar que, no caso do

reconhecimento do filho, ao contrário do que ocorre quanto à atribuição de um

quinhão hereditário ao herdeiro testamentário, o que se está fazendo é o

reconhecimento de que um fato efetivamente ocorreu. Ora, em relação à

veracidade de um fato, é possível apenas uma escolha binomial: ou o fato é

verdadeiro, ou o fato não é verdadeiro. Assim, a partir do momento em que o

308

testador disse que o fato é verdadeiro, não mais será admitido a se desdizer,

sem qualquer justificativa.

Essas questões, como já mencionamos acima, serão discutidas em

maiores detalhes no item seguinte, mas desde logo já servem para antecipar as

enormes dificuldades que se tem em obter uma conceituação precisa para o

venire contra factum proprium, uma vez que as particularidades de cada

hipótese concreta conduzem a soluções diferentes para situações que, a uma

primeira vista, apresentam os mesmos elementos formadores.

b) no Direito de Família, ao tratar da separação judicial litigiosa,

dispõe o artigo 1.572, do Código Civil, que qualquer dos cônjuges poderá

propor a respectiva ação, imputando ao outro qualquer ato que importe grave

violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.

Assim, por exemplo, no caso de adultério (art. 1.573, I), o cônjuge inocente

pode, imediatamente, repudiar a vida em comum com o outro e propor a ação

mencionada.

No entanto, da simples leitura do artigo 1.572 se verifica que o

elemento fundamental, para que seja possível a obtenção da separação judicial

litigiosa, é que a vida em comum tenha se tornado insuportável, o que vem a

ser ratificado no parágrafo único do artigo 1.573, que permite ao juiz o

acolhimento de outros fatos, não previstos expressamente na lei, mas que

tornem evidente a impossibilidade da vida em comum. Logo, contrario sensu

da disposição legal comentada, se a vida em comum não se tornou

insuportável, não deverá ser deferido o pedido de separação judicial litigiosa.

Dessa forma, suponha-se que, mesmo após a descoberta do

adultério, o outro cônjuge resolveu continuar a conviver com o adúltero. Se,

algum tempo depois, o cônjuge inocente decidir separar-se do adúltero, poderá

309

fazê-lo de modo consensual ou em virtude de alguma outra conduta culposa de

seu cônjuge, mas não em virtude daquele adultério, cuja descoberta não

impediu que ambos continuassem a vida em comum, ou seja, não a

impossibilitou.

Veja-se que, no fundo, o que o legislador fez foi proibir que o

cônjuge inocente adotasse comportamento contraditório. Com efeito, se após

ter descoberto o adultério (ou qualquer outra grave violação dos deveres do

casamento) o primeiro comportamento do cônjuge foi uma abstenção, ou seja,

absteve-se de tomar qualquer providência para a ruptura litigiosa da sociedade

conjugal, não lhe será permitido que, posteriormente, venha a adotar um

segundo comportamento, contraditório em relação ao primeiro, que seria a

propositura da ação de separação judicial, mesmo porque a primeira abstenção

fez surgir no cônjuge infrator a expectativa de que seria possível, apesar da

descoberta de sua infração, a continuidade da vida conjugal.

O mesmo desenvolvimento, feito nos parágrafos anteriores,

poderia ser apresentado também para a anulação do casamento em virtude de

erro essencial de um dos cônjuges, ao consentir, sobre a pessoa do outro (arts.

1.556 e 1.557). Com efeito, nos diversos incisos do artigo 1.557 encontra-se

muito clara a idéia de que não basta o erro sobre a pessoa do cônjuge, sendo

ainda indispensável que em virtude da descoberta do mesmo a vida em

comum se torne insuportável.

Logo, se após a descoberta do erro o cônjuge enganado continua a

coabitar com o outro (salvo nos casos de doença física ou mental), esse seu

primeiro comportamento, tolerando a convivência em comum, não lhe

permitirá que, posteriormente, venha a ajuizar a ação de anulação do

casamento em virtude desse mesmo erro, uma vez que esse segundo

310

comportamento se apresenta como sendo claramente contraditório, em relação

ao primeiro.

Aproveitam-se os dispositivos acima mencionados para observar,

como será exposto de modo mais minucioso algumas linhas à frente, que os

comportamentos contraditórios podem ser omissivos ou comissivos, ou seja,

tanto o primeiro quanto o segundo dos comportamentos podem consistir em

uma ação ou em uma omissão, um fazer ou um não fazer, sendo tal aspecto

irrelevante para a caracterização do venire, desde que fique clara a

contradição, além dos outros elementos que serão examinados.

c) ao estabelecer as disposições gerais acerca dos negócios

jurídicos, dispõe o Código Civil, no artigo 111, que o silêncio implicará em

anuência quando as circunstâncias ou os usos autorizarem que assim se

entenda, e não for necessária a declaração de vontade expressa. O silêncio que

autoriza a que se entenda que o mesmo implica em uma declaração de

vontade, ou seja, implica em anuência, é o chamado silêncio qualificado (pelas

circunstâncias especiais).

Logo, não é qualquer silêncio, diante de uma declaração de

vontade, que implicará em concordância com essa mesma declaração. Assim,

por exemplo, se A apresenta a B uma proposta de contratar, se este último

nada responder, seu silêncio não poderá ser compreendido como sendo uma

aceitação da proposta que lhe foi dirigida.

Essa situação, há até poucos anos, era muito comum entre nós:

algumas empresas, notadamente administradoras de cartões de crédito,

enviavam seus produtos com a observação de que, caso o destinatário não os

desejasse, deveria telefonar para um determinado número e informar que não

tinha a intenção de contratar. Caso o destinatário não se manifestasse, a

311

empresa considerava o contrato perfeito, e passava a enviar as faturas ao

“cliente”314. Na realidade, essa falta de manifestação do cliente, esse silêncio,

não pode ser interpretada como concordância com o aperfeiçoamento do

contrato.

Em circunstâncias especiais, aí sim é que o silêncio poderá ser

entendido como manifestação da vontade. Seria o caso, por exemplo, de dois

sujeitos que já mantêm entre si um longo histórico negocial, da seguinte

forma: um deles, sendo fabricante de enfeites natalinos, todos os anos, em

meados de outubro, independentemente de pedido, envia para o outro, que é

comerciante, um lote com diversos enfeites. O comerciante recebe esses

enfeites, coloca-os à venda em sua loja e, no final do mês de dezembro, envia

ao fabricante o pagamento referente aos mesmos. Esse negócio, com essas

mesmas condições, já se repete há vários anos.

Em um certo ano, contudo, o comerciante decidiu mudar de ramo,

passando a vender outros produtos, e não mais pretende comercializar enfeites

de natal em sua loja. Em meados de outubro, no entanto, o fabricante, sem

saber do que estava acontecendo, envia para o outro, como vem fazendo há

vários anos, os enfeites. O comerciante, ao recebê-los, não se manifesta, não

dizendo que os aceita e nem que os rejeita. Neste caso específico, o silêncio do

comerciante implicará em anuência com o negócio, que se aperfeiçoará com

essa declaração silenciosa da vontade.

A diferença entre as duas hipóteses, por óbvio, reside no fato de

que, na primeira, não havia qualquer razão para que a administradora de

cartões de crédito pudesse criar a expectativa de que o contrato seria

efetivamente celebrado, e por isso o silêncio não pôde ser entendido como

314 Essa prática, ao que parece, hoje foi abandonada, pois formou-se de modo unânime a opinião acerca de sua abusividade.

312

sendo concordância com a proposta. Na segunda, no entanto, o histórico dos

negócios que vinham se repetindo há longo tempo entre as partes fez com que

o silêncio do comerciante fosse interpretado pelo fabricante como sendo uma

declaração da vontade, e por isso criou nesse fabricante a legítima expectativa

de que o negócio, como ocorria todos os anos, estava aperfeiçoado.

Em outras palavras, em uma das situações o silêncio de um dos

sujeitos (aqui entendido como falta de rejeição explícita) não serviu para a

criação de qualquer expectativa, em relação ao outro, e por isso, se esse

silêncio vier a ser posteriormente rompido (mediante a rejeição explícita do

aperfeiçoamento do contrato), esse comportamento contraditório não estará

violando qualquer expectativa, e por isso será tolerado. Na outra situação,

contudo, esse mesmo silêncio (falta de rejeição explícita) fez com que

surgisse, no espírito do outro envolvido, a certeza de que o contrato estaria

firmado, sendo que a rejeição posterior estaria quebrando essa certeza sobre o

aperfeiçoamento da avença, e por isso não será permitida, por se constituir

essa contradição em exercício do direito de um modo que não se admite.

Hipótese interessante, positivada em nosso ordenamento apenas a

partir da vigência do atual Código Civil, e que engloba o silêncio nas duas

situações acima examinadas, ou seja, sem que possa ser considerado como

manifestação da vontade e podendo ser feita tal consideração, é a que se refere

à assunção de dívida.

Com efeito, em relação ao instituto da assunção de dívida, para

que a mesma se aperfeiçoe, conforme exigência que é apresentada de modo

explícito, no artigo 299, do Código Civil, é indispensável o consentimento

expresso do credor. Logo, se é exigida a declaração de vontade expressa do

credor, é evidente que se deve concluir que o silêncio deste, ao ser notificado

313

para dizer se concorda com a transferência da dívida para um outro devedor,

não pode ser interpretado como anuência.

Essa conclusão, mencionada no parágrafo anterior, e que já

poderia ser obtida a partir do artigo 111, que como vimos afasta a

possibilidade de se interpretar o silêncio como concordância, nos casos em

que a lei exige manifestação expressa da vontade, foi ainda repetida no

parágrafo único, do artigo 299, que de modo claro estabeleceu que, caso o

credor venha a ser notificado pelo devedor, ou pelo que pretende assumir o

lugar deste, para dizer se concorda ou não com a assunção, o silêncio deverá

ser interpretado como recusa.

Em outras palavras, se o credor simplesmente não se manifestar

acerca da notificação, isso não o impedirá de, mais tarde, alegar que a

transferência da dívida é ineficaz, em relação a ele, credor, uma vez que não

manifestou o seu assentimento em relação à mesma. Isto acontece porque o

simples envio da notificação, sem qualquer indicação sobre qual poderá ser a

resposta do credor, não permite aos notificantes que venham a concluir pela

possibilidade de que tal concordância seja dada, ou seja, não permite que se

crie a expectativa do aperfeiçoamento da transferência da dívida para o novo

devedor.

Logo, se a qualquer momento o credor vier a romper o seu

silêncio, manifestando-se expressamente pela rejeição da assunção, não se

poderá apontar, aí, o comportamento contraditório (silêncio-manifestação)

capaz de caracterizar o venire contra factum proprium, uma vez que não

houve a frustração de qualquer expectativa gerada no outro sujeito.

No entanto, nessa mesma hipótese de assunção de dívida,

suponha-se que esta se encontra garantida pela hipoteca que recai sobre um

imóvel do devedor, e que esse sujeito que pretende assumir a dívida e passar a

314

ser o novo devedor é o comprador desse imóvel hipotecado. Nesta situação, o

adquirente notifica o credor sobre a assunção, para que diga se concorda ou

não com a mesma. Neste caso, contudo, diferentemente do anterior, o silêncio

do credor, caso este não se manifeste em 30 dias, implicará em concordância

do mesmo com a transferência do débito (art. 303).

A diferença, entre essas duas variantes da assunção de dívida, é

que no primeiro caso a pessoa do devedor é essencial para o cumprimento da

obrigação, uma vez que, caso não haja o pagamento voluntário, será o

patrimônio do próprio devedor que irá servir para que o credor possa exigir o

pagamento forçado. Logo, a mudança da pessoa do devedor pode conduzir a

uma situação em que o novo devedor seja desprovido de patrimônio, o que vai

causar transtornos ao credor.

No segundo caso, no entanto, existe um bem imóvel que se

encontra vinculado ao cumprimento da obrigação, e por isso, em princípio, a

pessoa do devedor não fará muita diferença para tal cumprimento, uma vez

que o credor será preferencialmente satisfeito com a venda do bem oferecido

em garantia hipotecária, independentemente de quem seja o devedor ou de

quem seja o proprietário do imóvel.

Logo, nesse segundo caso, é bastante razoável que se suponha

que o credor não se oporá à transferência do débito, eis que a mesma em nada

o afetará, e por isso se mostra razoável que, com o silêncio do credor, surja no

adquirente do imóvel hipotecado a legítima expectativa no sentido de que esse

silêncio implica em concordância, e por isso não será permitido ao credor,

posteriormente, insurgir-se contra a assunção, uma vez que tal insurgência,

revelando-se contraditória com o silêncio inicial, estaria frustrando a legítima

expectativa do outro sujeito.

315

Dito de outra forma, e utilizando a terminologia acima

mencionada, pode-se dizer que, no segundo caso, ou seja, quando existe a

garantia hipotecária da dívida, o silêncio do credor estará qualificado pelas

circunstâncias especiais (precisamente a existência da garantia real), e por isso

poderá ser entendido como uma declaração de vontade, como um primeiro

comportamento. Na outra hipótese (quando não há a garantia), contudo, não é

isso o que acontece, ou seja, não há as circunstâncias especiais capazes de

adjetivar o silêncio e transformá-lo em declaração de vontade, e por isso não

se poderá entendê-lo como um fato próprio do credor.

d) situação recentemente positivada em nosso direito, e que serve

para um perfeito contraste entre os comportamentos contraditórios que se

caracterizam como venire contra factum proprium e os comportamentos

contraditórios que se constituem em descumprimento de determinação legal, é

a que diz respeito ao contrato de empreitada, mais especificamente no que se

refere ao aumento da obra sem que tenha havido instruções escritas do dono

da mesma.

No Código Civil de 1916, dispunha o artigo 1246 que, quando o

empreiteiro (arquiteto ou construtor) tivesse aceito a incumbência de executar

uma obra segundo o plano previamente ajustado com o dono da mesma, se

porventura esse mesmo empreiteiro viesse a alterar ou aumentar a obra

pactuada, em relação à planta, sem que para isso tivesse recebido instruções

escritas do outro contratante, não poderia reclamar qualquer complemento no

preço ajustado, ainda que em virtude de tais aumentos ou alterações viessem a

ser majorados os seus gastos com a obra e ainda mesmo que em virtude dessa

alteração a obra se tornasse mais valiosa.

316

Em outras palavras, na hipótese de eventual alteração da obra, em

relação ao plano ajustado anteriormente entre os contratantes, não se

permitiria ao empreiteiro pleitear qualquer pagamento a maior, além de

sujeitá-lo a ter a obra rejeitada, em virtude do descumprimento do contrato,

não lhe socorrendo o argumento de que, em virtude das alterações, a obra teria

ficado melhor, ou mais valiosa, ou mais útil, etc. Tão-somente interessava era

o fato de que a alteração não havia sido autorizada.

No entanto, o que nos casos concretos muitas vezes se verificava,

era que o dono da obra, embora ciente da efetivação das alterações, seja

porque lhe haviam sido comunicadas verbalmente, pelo empreiteiro, ou então

porque costumava acompanhar de perto os trabalhos, comparecendo

freqüentemente ao local, às mesmas não se opunha, uma vez que, de fato,

tornariam o resultado final melhor, mais agradável ou mais valioso do que

aquele que havia sido previamente ajustado.

Posteriormente, no entanto, quando o empreiteiro, por ter

efetuado maiores gastos do que os previstos inicialmente, em virtude das

alterações, ou por ter tido um maior trabalho, pleiteava um acréscimo no

pagamento, o dono da obra recusava-se a pagá-lo, sob a alegação de que não

havia autorizado por escrito a efetivação das alterações, e por essa razão não

estava obrigado ao pagamento de qualquer adicional ao valor inicialmente

convencionado.

Seria o caso, por exemplo, da construção de uma casa em um

amplo terreno, sendo que da planta constavam apenas quartos de dormir, nas

não suítes. O empreiteiro, considerando que havia muito terreno disponível, e

que o material já adquirido se mostrava suficiente, toma a iniciativa de

acrescentar um banheiro a dois dos quartos, transformando-os em suítes. O

dono da construção, que todos os dias visitava a mesma, tomou inequívoco

317

conhecimento da alteração, viu que havia quartos da casa sendo transformados

em suítes, mas nada disse sobre a modificação. Mais tarde, no entanto,

recusou-se a pagar qualquer valor adicional pela mesma, ao argumento de que

não a havia autorizado por escrito.

Veja-se que se tratava, claramente, de venire contra factum

proprium, por parte do dono da obra, conforme os elementos caracterizadores

dessa figura, que veremos logo adiante, no item seguinte: o primeiro

comportamento do dono da obra, o factum proprium, havia consistido em uma

omissão, ou seja, não se opusera a que o empreiteiro efetivasse alterações na

planta convencionada, apesar de ter plena ciência sobre as mesmas, e não o

fizera, obviamente, por serem do seu interesse, uma vez que a obra resultaria,

em virtude de tais alterações, mais valiosa, mais útil ou mais agradável. Essa

omissão levou o empreiteiro a acreditar que o outro contratante tinha interesse

em que as modificações fossem feitas, e por isso continuou a fazê-las, ainda

que não dispondo da autorização formal, por escrito, pois supunha que havia a

autorização tácita.

Mais tarde, no entanto, o segundo comportamento, o venire,

contrariava essa expectativa, pois o dono da obra, em relação ao qual o

empreiteiro acreditara que concordava e aceitava as modificações

introduzidas, simplesmente recusava-se a pagar por elas em virtude do não

atendimento a uma exigência formal, como se nelas não tivesse interesse

algum, em nítido exemplo de comportamento contraditório e inaceitável. Em

outras palavras, o primeiro comportamento fizera surgir uma justificada

expectativa no empreiteiro, em relação ao interesse que o dono da obra teria

em vê-la modificada para melhor, sendo que essa mesma expectativa veio a

ser frustrada pelo segundo dos comportamentos, que violava a conduta

imposta pela boa-fé.

318

O Código Civil de 2002, ao tratar desse mesmo tema, estabeleceu

no artigo 619, de modo semelhante ao que fazia o revogado Código, que não

terá direito a exigir qualquer acréscimo no preço o empreiteiro que, depois de

ter aceito a tarefa de executar uma obra conforme o plano aceito pelo dono da

mesma, venha a introduzir modificações no projeto original, a não ser que tais

alterações tenham resultado de instruções escritas, passadas pelo dono da obra.

Até aí, como se vê, exatamente igual ao que dispunha o Código Civil anterior.

No entanto, o parágrafo único desse mesmo artigo 619, trouxe o

acréscimo de regra que não constava do Diploma Civil antigo, e que teve

precisamente a finalidade de coibir essa atuação de má-fé, que violava a

legítima expectativa do empreiteiro. Com efeito, estabelece o parágrafo único,

do artigo 619, do Código Civil, que mesmo que não tenha havido a

autorização escrita, o dono da obra terá que pagar ao empreiteiro os aumentos

e acréscimos, conforme o que for arbitrado para o caso em questão, se se fez

sempre presente à obra, mediante continuadas visitas, e portanto não havia

como desconhecer as alterações efetuadas, e mesmo assim nunca protestou

contra as mesmas.

Como se vê, preocupou-se o legislador do novel Diploma Civil

em proibir especificamente que o dono da obra pudesse adotar o

comportamento contraditório acima mencionado e dele buscar obter

vantagens, ou seja, uma omissão capaz de gerar legítima expectativa no

empreiteiro, seguida de uma recusa quanto ao pagamento dos acréscimos

decorrentes das alterações feitas na obra.

E é importante realçar que, na verdade, a lei adotou como

parâmetro, tão-somente, a conduta do dono da obra em si mesma, sem se

preocupar com outras considerações como a valorização da obra, se a mesma

se tornou mais bonita, mais agradável, se o dono gostou do resultado final, etc.

319

O que interessa, tão-somente, é se ele se omitiu, e se essa conduta omissiva foi

suficiente para provocar a legítima expectativa do empreiteiro, sendo tal

expectativa frustrada pela subseqüente recusa quanto ao pagamento. Se isso

ocorreu, quaisquer outras considerações se mostram completamente

desnecessárias.

Veja-se, portanto, que aqui se tem um claríssimo exemplo do

contraste acima mencionado: na vigência do Código Civil anterior, se a nítida

injustiça da situação levasse o juiz a decidir, em um caso concreto, que o dono

da obra teria que pagar pelo acréscimo, mesmo que não houvesse a

autorização escrita (e na verdade já era essa a posição da jurisprudência315),

esse juiz não encontraria apoio em texto legal expresso, e por essa razão teria

que se valer da idéia de violação da conduta conforme os ditames da boa-fé,

vale dizer, teria que se valer, em última análise, do próprio instituto do venire

contra factum proprium.

Na vigência do Código Civil atual, contudo, esse suporte não

mais precisa ser buscado na figura do venire, pois o próprio texto legal já

cuidou, expressamente, de afirmar que a contradição comportamental é

proibida, e que por isso, caso ocorra, será repelida no caso concreto, uma vez

que o dono da obra dela não se poderá valer, tendo que pagar pelos acréscimos

ainda que não tenha manifestado por escrito a sua concordância ou a sua

autorização, mas simplesmente porque se omitiu e com isso gerou legítima

expectativa na outra parte contratante. Não haveria qualquer sentido, portanto,

315 DIREITOS CIVIL E ECONÔMICO. CONTRATO DE EMPREITADA. SUBEMPREITADA. ALTERAÇÃO DO VALOR DO PREÇO. EXTRAORDINÁRIO. EXECUÇÃO À VISTA DO SUBEMPREITEIRO QUE INCLUSIVE FISCALIZOU E ACOMPANHOU A OBRA. AUTORIZAÇÃO TÁCITA. VALIDADE. INTERPRETAÇÃO AO ART. 1.246 DO CÓDIGO CIVIL. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO. Interpretando o art. 1.246 do Código Civil, a doutrina acolhe a tese de que, se o serviço extraordinário foi executado às claras, inclusive sob a supervisão de prepostos da subempreiteira, tem-se como pertinente a cobrança dos seus valores, independentemente de autorização por escrito. STJ, REsp 103715/MG, 4ª. Turma, Ac. unânime. Re l. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. J. 05.10.1999. DJ 288.02.2000, p. 84.

320

na presença desse texto legal expresso, que o juiz buscasse socorro na figura

mais instável e menos precisa da boa-fé.

e) uma última situação, embora não versando diretamente sobre

comportamentos contraditórios proibidos (muito pelo contrário, trata-se de

hipótese na qual a contradição é expressamente admitida), servirá para que

possamos extrair mais algumas observações sobre os elementos que

caracterizam o venire contra factum proprium. Trata-se do instituto da lesão,

defeito do negócio jurídico previsto no artigo 157, do nosso atual Código

Civil, e que se concretiza quando uma pessoa, em virtude de premente

necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente

desproporcional à contraprestação que irá receber.

Concretizada a lesão, a conseqüência, da mesma forma que

ocorre em relação a todos os demais vícios da vontade, é a anulabilidade do

negócio, cuja anulação poderá ser requerida pela parte prejudicada, ou seja,

pela parte que, em virtude de sua situação difícil, concordou em receber

prestação muito inferior à que irá cumprir em favor do outro sujeito. Veja-se,

portanto, que o próprio sujeito que celebrou o negócio mais adiante poderá

requere-lhe a anulação, o que sem sombra de dúvida caracteriza a contradição

entre os dois comportamentos, o primeiro consistente na celebração do

negócio, e o segundo, no pedido de anulação do mesmo.

Suponha-se, por exemplo, que uma pessoa, cujo filho se encontra

gravemente enfermo, necessitando de um tratamento médico urgente,

inclusive com uma delicada e cara intervenção cirúrgica, possui um imóvel

avaliado em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Essa pessoa, para poder

custear o tratamento de saúde do filho que se encontra enfermo, oferece o

321

imóvel à venda, solicitando pelo mesmo o preço da avaliação, ou seja, um

milhão de reais.

Ocorre que, como se sabe, não é muito fácil e nem muito rápido

que se consegue vender um imóvel de tão grande valor. Assim, passado um

mês, o imóvel ainda não foi vendido. O pai e proprietário, preocupado com o

estado de saúde do filho, que estava se agravando, reduz o preço para

novecentos mil reais, mas ainda assim, mais um mês se passa e o imóvel não é

vendido, enquanto mais e mais se deteriora a saúde do filho. E, assim, o preço

vai sendo reduzido mas o imóvel não consegue ser vendido.

Decorridos seis meses, o preço já tendo sido reduzido para

quinhentos mil reais, o imóvel continua em mãos do desesperado pai, que é

então informado pelo médico que a situação do filho, em breve, será

irreversível. O pai, então, oferece o imóvel à venda por cem mil reais, valor

suficiente para que seja pago todo o tratamento de saúde do seu filho, embora

muito abaixo do valor real do imóvel.

Depois dessa redução para apenas dez por cento do valor real, o

imóvel vem a ser rapidamente vendido, permitindo ao pai, finalmente, o

custeio do tratamento de saúde que poderia salvar a vida do filho. Eis aí a

lesão, onde a prestação que um dos sujeitos vai cumprir, qual seja, a entrega

do imóvel, é manifestamente desproporcional à contraprestação que irá

receber, pois enquanto entregará um bem cujo valor é de um milhão de reais,

apenas receberá, como contraprestação, o preço de cem mil reais. Esse vício

da lesão permite que o vendedor, futuramente, venha a buscar o desfazimento

do negócio, em virtude de sua anulabilidade.

No entanto, é fácil de identificar, no caso, a existência de dois

comportamentos contraditórios, adotados pelo mesmo sujeito. No primeiro

deles, o próprio vendedor tomou a iniciativa de oferecer seu bem à venda pelo

322

preço de cem mil reais. No segundo comportamento, no entanto, depois de já

estar aperfeiçoado o contrato de compra e venda, o próprio vendedor toma a

iniciativa de requerer-lhe a decretação da invalidade, por haver enorme

desproporção entre as duas prestações principais. Só que, na hipótese, esse

caso de comportamentos contraditórios é expressamente previsto pela lei, que

permite seja pedida a decretação da anulação (Código Civil, artigo 171, II).

O motivo dessa permissão de comportamentos incompatíveis

entre si, como facilmente se conclui, é que no caso existe uma justificativa

para a contradição, decorrente do fato de que, no primeiro desses

comportamentos, a vontade do sujeito não foi perfeita, mas viciada pelo vício

da lesão. O que se buscará demonstrar, portanto, ao ser requerida a anulação

do negócio, é precisamente esse fato de que a primeira atuação do sujeito não

deve ser considerada, pois contém vício que permite pleitear-lhe a decretação

da invalidade. Ora, uma vez sendo invalidado o primeiro comportamento, não

haverá o fato próprio, ou seja, o segundo comportamento não será

contraditório a coisa alguma, eis que o primeiro foi retirado do mundo

jurídico.

Na realidade, embora o exemplo acima tenha sido referente,

especificamente, ao vício da lesão, de modo mais amplo pode-se apontar que

será admitido o comportamento contraditório sempre que no primeiro dos

comportamentos a vontade do sujeito tiver sido afetada por um dos vícios da

vontade. Assim, por exemplo, na hipótese da assunção de dívida, examinada

na alínea anterior, ainda que o credor tivesse concordado expressamente com a

mesma, poderia posteriormente impugná-la, não ficando livre o antigo

devedor, se este, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.

No caso, como se vê, o primeiro comportamento do credor, a concordância

com a assunção, teria sido viciado pela ocorrência do erro ou ignorância, e por

323

isso esse credor poderia, futuramente, impugnar a liberação do devedor antigo,

ainda que tivesse expressamente concordado com a substituição dele pelo

novo devedor.

Ainda de modo semelhante, o artigo 814 do Código Civil

estabelece que as dívidas de jogo não obrigam o pagamento, mas também

dispõe que não se pode recobrar a quantia voluntariamente paga, salvo se foi

ganha por dolo ou se o que perdeu e pagou é menor ou interdito. Assim, a

dívida de jogo é inexigível, mas se foi voluntariamente paga (primeiro

comportamento), não pode o que pagou pleitear a devolução (segundo

comportamento), face à evidente e incontornável contradição entre essas duas

atuações do perdente. No entanto, a existência do dolo (vício da vontade) na

formação da dívida justificaria esse comportamento contraditório.

Aproveitemos o exemplo acima, referente ao pagamento de

dívida de jogo, para ampliarmos ainda um pouco mais a nossa abordagem. É

que o referido artigo 814, na realidade, não faz exceção apenas no caso do

dolo, mas também na hipótese de ser incapaz (menor ou interdito) o que

perdeu e pagou. Como se vê, portanto, tem-se aí, de modo mais amplo, uma

causa de invalidade do primeiro comportamento, o que engloba, é evidente,

também os casos de vício da vontade. Dito, portanto, de modo mais amplo,

podemos afirmar que, em regra, quando ocorrer uma causa de invalidade, em

relação ao primeiro dos comportamentos do sujeito, estará justificada a

contradição, e havendo tal justificativa, é de clareza solar que não se poderá

falar em venire contra factum proprium.

No entanto, desde logo se adiante que, em certos casos, mesmo a

invalidade do primeiro comportamento não será capaz de afastar a

configuração do venire contra factum proprium, como teremos a oportunidade

de examinar mais à frente.

324

A partir dessa primeira abordagem, ainda que de situações

específicas e delimitadas, já puderam ser colhidos – e poderão ser

generalizados – alguns caracteres dos elementos que devem estar presente

para que se possa aferir a presença do venire contra factum proprium, e a

partir de tal constatação podemos agora partir para a análise individualizada e

mais pormenorizada de cada um dos três elementos essenciais que integram o

instituto, ou seja, seccionando-o quanto aos comportamentos, quanto à

contradição em si mesma, e quanto ao dever acessório que está sendo violado.

Comecemos pela análise dos comportamentos.

2.3.2.1. Os comportamentos contraditórios.

a) validade de cada comportamento, individualmente considerado.

Aponte-se, desde logo, que no venire, cada um dos

comportamentos, quando individualmente considerado, mostra-se válido,

mesmo porque, se não o fosse, não estaríamos na seara do venire contra

factum proprium, mas no puro e simples campo da ilegalidade. O que vem a

se mostrar ilícito, portanto, não é o considerar isolado de qualquer dos dois

comportamentos, mas a conduta do sujeito considerada de modo global, ou

seja, a conduta considerada como o conjunto dos dois comportamentos

mencionados.

Assim, por exemplo, suponha-se que em sua primeira atuação, o

sujeito gerou no outro a expectativa de que lhe venderia um determinado bem,

sendo que, posteriormente, um segundo comportamento desse mesmo sujeito

frustrou essa expectativa que havia sido gerada. Parecem estar presentes, no

325

caso, as características do venire contra factum proprium. No entanto,

suponha-se que esse bem, em relação ao qual surgiu a expectativa da venda,

era um bem público ou pertencente a um terceiro. Nesse caso, não se tratará de

venire, mas sim de um ato ilegal, inválido em si mesmo, sendo desnecessário

que se considere a conduta global para que seja aferida essa ilegalidade.

Interessantes hipóteses concretas, que surgiram e surgem com

grande freqüência em nossos tribunais, e que se enquadram na situação acima

descrita, ou seja, aquela na qual o primeiro comportamento é inválido em si

mesmo, são as que se relacionam com a fiança locatícia e com o oferecimento

do bem imóvel em garantia real hipotecária, e a possibilidade de ser

posteriormente penhorado o imóvel que se constitui em bem de família.

Vejamos essas duas hipóteses.

A Lei nº 8.009/90, ao dispor sobre o bem de família legal,

estabeleceu como regra central a impenhorabilidade do mesmo. No entanto,

essa mesma regra legal cuidou de apresentar, em seu artigo 3º, algumas

dívidas capazes de excepcionar a impenhorabilidade, ou seja, dívidas para

cujo atendimento se mostra permitida a penhora do imóvel, ainda que se trate

de bem de família. Dentre tais exceções, a Lei 8.009/90 incluiu a hipótese de

execução da hipoteca quando o imóvel tivesse sido oferecido como garantia

real pelo próprio casal ou entidade familiar (art. 3º, V), e a Lei nº 8.245/91,

posteriormente, introduziu a exceção referente às obrigações decorrentes de

fiança locatícia (art. 3º, VII).

Suponha-se, portanto, que em um caso concreto, aquele que se

ofereceu como fiador, em um contrato de locação, veio a ter seu único imóvel

residencial (e, portanto, bem de família) penhorado. Ou, então, que o devedor,

tendo oferecido seu único imóvel como garantia real, ao deixar de cumprir a

prestação a que se comprometera, vem a ter esse mesmo imóvel penhorado. O

326

fiador (ou o devedor), em tais condições, deduz embargos de terceiro, esteado

no argumento de que aquele imóvel, por sua qualidade (bem de família), não

pode ser atingido pela apreensão judicial, nos termos do Código de Processo

Civil, art. 1.046, § 2º.

À primeira vista, aparentam estar presentes os elementos que

caracterizam o venire contra factum proprium, ou seja, a existência de dois

comportamentos que se mostram contraditórios entre si, e sendo que o

segundo tem força suficiente para frustrar a expectativa que havia sido criada

pelo primeiro, no sentido de que o bem imóvel em questão poderia ser

utilizado como garantia patrimonial para o pagamento da dívida.

No entanto, de venire não se trata, uma vez que se esbarra no

primeiro dos requisitos, ora em exame, ou seja, não se tem um comportamento

inicial válido, eis que o imóvel que se constitui em bem de família não poderia

ter sido oferecido como garantia real hipotecária, ainda que com tal oferta

tivesse inicialmente concordado o casal ou entidade familiar. Com efeito, após

muita celeuma surgida entre os doutrinadores e mesmo nos tribunais, vieram

as Cortes Superiores a decidir que não é possível a renúncia à garantia de

impenhorabilidade do bem de família, uma vez que o direito à moradia se

constitui em direito fundamental (Constituição Federal, art. 6º), e por isso não

pode ser objeto de renúncia316.

316 PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - COISA JULGADA - TERCEIRO - INEXISTÊNCIA

- ART. 472 CPC - FIANÇA - OUTORGA UXÓRIA - AUSÊNCIA - INEFICÁCIA TOTAL DO ATO - FIADOR. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. ART. 3º, VII, DA LEI Nº 8.009/90. NÃO RECEPÇÃO.

I - A coisa julgada incidente sobre o processo de conhecimento e conseqüente embargos opostos por um cônjuge não pode atingir o outro, quando este não tiver sido parte naqueles processos. (art. 472, do Código de Processo Civil).

II - A ausência de consentimento da esposa em fiança prestada pelo marido invalida o ato por inteiro. Nula a garantia, portanto. Certo, ainda, que não se pode limitar o efeito dessa nulidade apenas à meação da mulher.

III - Com respaldo em recente julgado proferido pelo Pretório Excelso, é impenhorável bem de família pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 não foi recepcionado pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000).

Recurso provido.

327

Ressalte-se, contudo, antes de prosseguirmos, que será possível a

caracterização do venire contra factum proprium, mesmo na hipótese de ter

sido inválido o primeiro negócio jurídico, quando essa invalidade decorre de

vício formal do negócio, mas não tendo havido dolo das partes envolvidas e

nem tendo sido afetada a vontade que cada um declarou para a celebração de

tal negócio. Esta hipótese será retomada adiante, ao tratarmos das situações

onde o sujeito que se comportou de modo contraditório não havia ficado

vinculado em função do seu primeiro comportamento.

b) cada comportamento deve ser uma atuação jurídica, e não simples ato

material.

Além disso, ou seja, além da exigência de validade individual de

cada um dos dois comportamentos, tem-se ainda que cada um deles deve se

constituir em uma atuação jurídica, vale dizer, deve ser capaz de repercutir na

esfera jurídica de alguém, não podendo se falar em venire contra factum

proprium quando se tem a contradição ocorrendo tão-somente entre atos

materiais. Tomemos um exemplo banal, mas que com extrema facilidade

servirá para a demonstração do que acabamos de afirmar. Um transeunte

decide atravessar uma rua. Chegando ao outro lado, no entanto, muda de idéia

e decide atravessar de volta, retornando para o ponto de onde havia saído.

É evidente, em tal exemplo, que se pode apontar a existência de

contradição entre os dois comportamentos adotados pelo transeunte, ou seja, o

atravessar da rua em um sentido e, logo em seguida, no outro. No entanto, não

se consegue vislumbrar, em cada um dos atos praticados, qualquer eficácia

jurídica, e por esse motivo essa contradição se mostra juridicamente

328

irrelevante. Ora, se a contradição não tiver interesse jurídico, é evidente que

não se poderá falar na ocorrência do venire.

Deve-se tomar cuidado, no entanto, com as palavras usadas para a

descrição dessa característica acima enunciada. Com efeito, parece-nos

equivocado o ensinamento de Anderson Schreiber 317, quando sustenta que o

factum proprium não precisa ser “juridicamente relevante”, podendo se

apresentar como um fato “inapto a produzir quaisquer efeitos jurídicos”, ou

seja, um fato que “na maior parte dos casos... é absolutamente desconsiderado

pelo direito positivo”. Em conclusão, diz o ilustre autor, não se exige do

factum proprium que seja juridicamente relevante, mas sim que possa

“repercutir na esfera alheia, gerando legítima confiança”, eis que “não se

pode aceitar como factum proprium aquela conduta que não seja capaz de

repercutir sobre outras pessoas”.

Ora, mas a partir do momento em que o comportamento do

sujeito repercute na esfera alheia, passou a ser juridicamente relevante, ou

seja, passou a ser um fato jurídico, capaz de provocar conseqüências jurídicas

relevantes. Não é demais recordar a clássica lição de Miguel Reale318, que ao

falar sobre o fato jurídico esclarece que se trata daquele que se trata de todo e

qualquer fato da vida social que venha a corresponder ao modelo de

comportamento previsto na norma de direito, ou seja, é o fato capaz de

provocar conseqüências jurídicas. Logo, se o factum proprium é aquele que

repercute na esfera jurídica alheia, então provoca conseqüências jurídicas, ou

seja, é um fato jurídico, é juridicamente relevante.

Na verdade, no essencial não há qualquer distinção entre a

conclusão alcançada por Anderson Schreiber e a que foi por nós mencionada, 317 Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, pp. 129-130. 318 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, pp. 201-202.

329

poucas linhas acima: o factum proprium deverá, necessariamente, repercutir

na esfera jurídica alheia. Apenas não nos parece adequado o caminho

percorrido pelo ilustre jurista para tentar explicar como teria chegado a tal

conclusão.

c) o segundo comportamento não pode ser descumprimento de vinculação

decorrente do primeiro.

Ainda em relação aos comportamentos, é necessário que o

segundo não corresponda à violação de uma obrigação decorrente do

primeiro319, ou seja, os dois comportamentos devem ser independentes, sendo

o segundo autônomo em relação ao primeiro. Dito em outras palavras, o

primeiro comportamento (o factum proprium), se isoladamente considerado,

não é vinculante, não vincula o sujeito a um específico e determinado

comportamento posterior. A vinculação surgirá apenas porque, no contexto da

situação, verificou-se o surgimento da confiança no segundo sujeito, e

proteção a esse confiança é que conduzirá à necessidade de que o segundo

comportamento se mostre coerente, rejeitando-se o que seja contraditório (o

venire).

Ora, se do primeiro comportamento já tivese decorrido para o

sujeito a obrigação de se comportar de uma determinada forma, e se tal

obrigação não fosse cumprida, o que se teria seria o inadimplemento de uma

relação obrigacional, e não o venire contra factum proprium, ou seja, o

problema estaria situado no campo do inadimplemento obrigacional, e não no

campo dos comportamentos regidos pela boa-fé.

319 No mesmo sentido a lição de Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, pp. 126-127.

330

Assim, por exemplo, suponha-se que A e B celebraram um

contrato de compra e venda, sendo A o vendedor. Desse primeiro

comportamento – a celebração do contrato – decorre uma obrigação, a ser

concretizada em um segundo comportamento, que será o de entregar a coisa

vendida ao comprador. Se A, contudo, no momento em que deveria entregar o

bem a B, não o fizer, é evidente que se terá aí um comportamento

contraditório, mas também o é que não se faz necessário o recurso à figura do

venire, uma vez que, na realidade, o que houve foi o descumprimento de uma

prestação obrigacional. E a solução será dada pela norma específica que trata

do inadimplemento das obrigações, não se deixando ao juiz qualquer campo

para que possa construir uma solução por meio do venire.

Na realidade, ao contrário do que afirma Menezes Cordeiro320,

não é que em tal hipótese não ocorra o venire contra factum proprium, mas

sim que não há necessidade de se recorrer à figura do mesmo, uma vez que o

venire – como os demais institutos ligados à boa-fé –, como já vimos, tem

caráter apenas complementar, supletivo, atuando tão-somente quando não

existe solução legal específica para aquela situação. No entanto, não se pode

negar que estão presentes todos os elementos necessários à caracterização do

venire, ou seja, do primeiro comportamento (a celebração do contrato) surgiu

para o outro sujeito a legítima expectativa de que o segundo seria a entrega da

coisa, e essa expectativa foi injustificadamente frustrada.

Houve, portanto, a frustração da expectativa criada, e isso nada

mais é do que a violação de um dever lateral oriundo da boa-fé. Não é demais

observar que, quando o artigo 422, do Código Civil, impõe aos contratantes o

dever de observar, na execução do contrato, o princípio da boa-fé, não está se

referindo apenas aos deveres acessórios, mas também, como se mostra 320 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 746.

331

evidente, aos deveres centrais do contrato, mesmo porque é em função destes

últimos que aqueles devem ser observados. Logo, se o não cumprimento de

um dever acessório significa não se comportar conforme os ditames da boa-fé,

o descumprimento dos deveres principais também significa a mesma coisa.

A diferença, que se mostra óbvia, entre as duas hipóteses

mencionadas, é que para o descumprimento dos deveres centrais já existe

previsão legal específica, eis que se trata do próprio descumprimento do

contrato, e por isso não se faz necessário o recurso à figura mais ampla e mais

genérica da violação da boa-fé.

Dito em outras e, esperamos, mais claras palavras, o princípio da

boa-fé, que deve ser observado na conclusão e na execução dos contratos (art.

422), impõe a observância dos deveres laterais, mas também impõe o

cumprimento da prestação em si mesma, ou seja, a observância do dever

principal. Cumprir a prestação pactuada nada mais é do que observar o

princípio da boa-fé. Só que, em relação ao descumprimento dos deveres

laterais a lei nada diz (e nem poderia, pois os mesmos só são aferíveis em

concreto, como já vimos), e por isso se faz necessária a invocação da figura

mais ampla e genérica da boa-fé, enquanto que, em relação à prestação em si

mesma (dever central), houve o tratamento legal específico, por isso que se

mostra desnecessário falar-se, no caso concreto, em violação da boa-fé.

De uma certa forma, portanto, pode-se até mesmo dizer que existe

um certo paralelismo entre o instituto do venire contra factum proprium e o

princípio da obrigatoriedade das convenções (pacta sunt servanda). Com

efeito, em uma certa medida pode-se dizer que ambos vinculam, sendo que a

obrigatoriedade das convenções atua nesse sentido (vinculando o sujeito)

quando o negócio jurídico se aperfeiçoou e dele decorre a vinculação quanto

ao cumprimento da prestação central; o venire, por sua vez, vincula o sujeito

332

precisamente naqueles casos em que, ou não se aperfeiçoou o negócio jurídico

ou, então, do aperfeiçoamento não decorre a vinculação do pacta sunt

servanda. Este, portanto, vincula em alguns negócios jurídicos, enquanto

aquele funcionará como vínculo apenas na falta deste.

Retornando, agora, ao ponto de partida das digressões acima, ou

seja, à classificação jurídica do descumprimento da prestação contratual como

sendo hipótese de venire contra factum proprium, o que podemos observar é

que, no descumprimento da prestação, houve comportamentos contraditórios

entre si, como já vimos acima, e essa contradição implicou na injustificada

frustração de uma expectativa que havia surgido no espírito do outro

contratante. E isso é precisamente o venire, ou seja, a inexecução da prestação

contratual pode ser classificada como hipótese de venire contra factum

proprium, só que uma hipótese que já encontra previsão legal mais precisa e

específica.

No entanto, não se pode deixar de observar que, ainda que de

venire se trate, no caso concreto o juiz, mais do que não deverá, não poderá

valer-se da figura do venire ao buscar a solução, sendo-lhe imposto o recurso à

figura do inadimplemento contratual. É que o venire, como todas as figuras

que decorrem da boa-fé, mostra contornos que em abstrato são imprecisos, e

só podem ser delimitados com precisão em cada caso concreto, o que sempre

deixa alguma margem para a atuação conforme o sentimento de equidade do

juiz, que terá que construir a solução para aquele caso específico, o que pode

servir como amplificador para uma certa insegurança jurídica.

Esclareça-se que não se trata de fazer da segurança jurídica um

valor absoluto, dentro do ordenamento jurídico. Muito pelo contrário, pois se

por um lado é certo que a segurança jurídica é um dos valores que devem ser

considerados, dentro do ordenamento, por outro, também é certo que não é o

333

único. Por essa razão, ocorrem situações onde se faz necessário o aparente

sacrifício da segurança jurídica, para que se possa evitar a concretização de

uma manifesta e inaceitável injustiça321, e se necessário for, deverá ser

afastada sem maiores cerimônias a norma legal322, que será substituída pelos

321 Não se pode deixar de mencionar, ainda que brevemente, acerca do tema “segurança juridica”, as certeiras colocações disparadas por Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, pp. 59-75, que apresenta uma muito bem elaborada descrição da passagem do “mundo da segurança”, em que tudo era estável e previsível (em relação ao Direito Civil, a previsibilidade decorria do fato de estar todo ele contido no Código Civil – a “era dos códigos”), para uma era de incertezas e de instabilidades, onde a busca da prevenção contra o totalitarismo e as arbitrariedades das ditaduras levou ao abandono da legalidade estrita, acima da qual foram colocados valores fundamentais, tais como a dignidade e a solidariedade, que não podem jamais ser ignorados. Isso tem gerado, explica a autora, uma crise de identidade sem precedentes na aplicação do Direito Civil, uma vez que há profundo descompasso entre seus conceitos essenciais, formulados no Direito romano, em um contexto completamente distinto e em nenhuma hipótese harmonizável com o panorama dos dias atuais, e mesmo assim, muitas vezes, o que se vê é a invocação pura e simples de tais conceitos, para aplicação direta em casos concretos atuais, com resultados obviamente catastróficos. Essa falta de percepção da mudança do contexto – e, de modo mais preciso, da mudança dos paradigmas do direito civil – pode ser muito claramente percebida, ao que nos parece, com todo o respeito devido ao autor, no texto de Flávio Tartuce, A revisão do contrato pelo novo Código Civil. Crítica e proposta de alteração do art. 317 da Lei 10.406/02. In: Delgado, Mário Luiz e Alves, Jones Figueirêdo, Novo Código Civil – Questões Controvertidas, pp. 131 e seguintes. Após passar várias páginas reproduzindo velhos conceitos, tais como autonomia da vontade, força obrigatória dos contratos, pacta sunt servanda, o contrato tem, entre os contratantes, a mesma força obrigatória que uma lei , etc., inclusive mencionando, expressamente a “previsão já no Direito Romano” (p. 132), e a presença de alguns institutos mencionados “desde a antiguidade” (p. 141), busca o autor concluir (pp. 143 e seguintes) sobre qual seria o fundamento legal, em nosso direito, da possibilidade de revisão dos contratos, se o artigo 478 ou o artigo 317, ambos do Código Civil, e acaba por concluir que é o segundo deles, o 317. Ora, data venia, na realidade nenhum dos dois dispositivos mencionados é o verdadeiro fundamento da possibilidade de revisão do contrato, pois tal fundamento, na realidade, encontra seu suporte diretamente na tábua axiológica que salta aos olhos a partir do texto constitucional, notadamente os princípios da dignidade humana e da solidariedade social, dos quais decorre a imposição do equilíbrio contratual, sob pena de revisão ou mesmo resolução do contrato. Logo, se fossem retirados do Código Civil os dois dispositivos mencionados, ainda assim não fariam falta alguma, pois continuaria sendo possível a revisão do contrato onde as prestações, por força de inesperada alteração das circunstâncias, viessem a apresentar inaceitável desequilíbrio, em extremo desfavor de um dos contratantes. 322 Ao traçar a diferença entre os princípios fundamentais e o que ele denomina de “normas restritas” (as regras), aponta Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito, p. 56, que a principal diferença não é a que se refere à maior generalidade dos princípios, mas sim à sua qualidade argumentativa superior. Por essa razão, prossegue, havendo colisão, deve-se proceder à interpretação em conformidade com os princípios, sem que as regras devam preponderar por apresentarem, supostamente, fundamentos definitivos. Tal primazia faz que, tanto na colisão de princípios quanto no conflito de regras, seja sempre um princípio, e não uma regra, que deverá ser erigido como preponderante para aquela situação concreta, e arremata dizendo que “jamais haverá um conflito de regras que não se resolva à luz dos princípios”. Dessarte, hoje nos parecem completamente inaceitáveis e ultrapassadas as posições que sustentam que os princípios gerais adquirem força normativa na falta de disposição legal, direta ou indireta, e que por isso o juiz não poderá aplicá-los se isso “contravir a uma disposição certa de lei” (Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 274-275). Na verdade, é a lei que não poderá ser aplicada quando violar algum dos princípios fundamentais.

334

valores fundamentais eleitos pelo texto constitucional, tais como a dignidade

humana, a solidariedade social, a isonomia, a liberdade, etc323.

Nesse sentido, referindo-se especificamente à questão dessa

possibilidade de afastamento da norma legal que se apresente em choque com

o princípio da boa-fé, são claras e taxativas as palavras de Karl Larenz324, para

quem

“Pero se pregunta si el § 242 [do Código Civil alemão] es solamente uma norma, que como otros preceptos jurídicos coactivos rige tambiém, como éstos, junto a todas las demás normas (dispositivas o coactivas) y tiene el mismo ámbito de aplicación, o si representa un ‘princípio supremo’ del Derecho de las relaciones obligatorias, de forma que todas las demás normas han de medirse por él y en cuanto se le opongan han de ser en princípio pospuestas. La jurisprudencia se ha decidido, hace ya mucho tiempo, por la segunda posición y conforme a este criterio no es raro que limite la aplicabilidad de otros preceptos legales cuando ello pueda conducir de algún modo a un resultado injustificado según la buena fe”.

Na verdade, contudo, esse sacrifício da segurança jurídica é tão-

somente aparente, pois não se pode confundir esse valor “segurança” com o

cumprimento literal da norma legal, sem levar em conta a questão dos valores

envolvidos e uma possível injustiça manifesta como o resultado a ser obtido.

Segurança jurídica não é sinônimo de fossilização e de cumprimento estrito e

impensado da norma legal325.

Na realidade, portanto, o que de fato está ocorrendo, quando se dá

prevalência à boa-fé sobre a aplicação de um texto legal literal e expresso, é

que se está buscando a realização da justiça do caso concreto, e ao serem

sopesadas as circunstâncias e as características desse caso concreto, 323 Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, pp. 67-68. 324 Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, pp. 145-146. Aliás, o próprio título dado pelo ilustre jurista alemão ao item onde trata desse tema já se mostra bastante esclarecedor: “La buena fe como principio fundamental de la relación obligatoria” (p. 142). 325 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 166.

335

interpretando-se sistematicamente (não nos esqueçamos que a boa-fé também

é uma norma que integra esse mesmo sistema) o texto legal, achou-se por bem

afastar sua aplicação na hipótese em exame. Essa questão da interpretação

sistemática será retomada mais à frente, de modo minucioso (veja-se, adiante,

o item 2.3.3).

Assim, repete-se, não se trata de elevar o valor segurança jurídica

a um patamar tão elevado que possa se tornar inatingível pelos outros valores

também envolvidos. No entanto, é certo que a segurança jurídica não poderá

ser afastada de modo imotivado. Havendo justificativa para o seu sacrifício

(aparente, como vimos), o mesmo deverá ser feito sem maiores hesitações.

Não existindo tal justificativa, no entanto, é certo que se deverá atender ao

valor em questão. No caso em exame, se a própria lei já expusesse solução

satisfatória para o caso a ser decidido pelo juiz, não faria sentido admitir-se

que este pudesse criar soluções outras, sob pena de desnecessário sacrifício da

tão comentada segurança jurídica.

Desse modo, embora seja certo que ao juiz não se pode negar um

espaço onde possa atuar com liberdade, por outro lado esse espaço não pode

fugir daquele que é delimitado pela própria lei, e nos casos onde a lei já dispôs

sobre a solução a ser adotada, não poderá o juiz ignorar o texto legal para a

construção de soluções outras. O que se vê, portanto, é que embora o

descumprimento contratual possa ser juridicamente classificado como

hipótese de venire contra factum proprium, na prática isso de pouco ou nada

servirá, eis que se trata de hipótese de venire onde a solução já foi

previamente fixada pelo legislador, não se deixando margem para a

construção judicial.

c.1) a expectativa sem que tenha havido vinculação.

336

Questão secundária, mas de grande relevância, que deve ser agora

examinada, é a seguinte: dissemos, logo acima, que o primeiro

comportamento não pode ter causado uma vinculação tal que o segundo se

constitua, tão-somente, em um descumprimento de obrigação anteriormente

assumida. A questão que se coloca, então, é a de perquirir como é possível que

um dos sujeitos, não tendo se vinculado ao cumprimento de qualquer

obrigação, ainda assim possa frustrar a expectativa alheia. Em outras palavras,

se não houve a vinculação, não seria de se admitir que, no exercício de sua

autonomia da vontade, o segundo comportamento fosse livre, podendo ser

adotado qualquer comportamento que não seja em si mesmo ilícito?

Na realidade, o que de fato interessa é que tenha havido a

frustração de uma expectativa, sendo que essa inexistência da vinculação pode

decorrer de fatores diversificados, tanto em um contrato nulo quanto em um

contrato válido.

Tome-se a hipótese de um contrato que seja nulo em virtude da

ocorrência de um vício formal, como por exemplo o fato de ter sido celebrado

mediante escrito particular, quando a lei exigia a solenidade da escritura

pública. Depois de celebrado e cumprido o contrato, vem um dos contratantes

a argüir-lhe a nulidade, pleiteando a restituição das coisas ao seu status quo

ante. De fato, isoladamente considerada a questão do desrespeito à exigência

de escritura pública, a nulidade existe, por não ter sido respeitada a

determinação legal quanto à forma, nos termos do art. 166, IV, do Código

Civil.

No entanto, na situação acima descrita, é evidente que esse

contratante, ao requerer o desfazimento dos efeitos de um contrato que por ele

mesmo havia sido livremente celebrado, sem que tenha havido qualquer

337

mácula na formação e na manifestação de sua vontade, estará incidindo em

inadmissível venire contra factum proprium, por isso que esse segundo

comportamento se mostra claramente inconciliável com o primeiro. Uma vez

celebrado – e mesmo cumprido – o contrato, era razoável supor que cada um

dos contratantes contasse com a manutenção da prestação recebido em virtude

do mesmo, e por isso tais prestações deverão ser mantidas, apesar da nulidade

contratual.

E aqui já destacamos, em adiantado, que por efeito do venire

contra factum proprium é possível que determinados dispositivos legais

devam ser relidos ou reinterpretados, de modo a que não ocorram contradições

no sistema jurídico como um todo. Trataremos do tema de modo mais

minucioso, adiante, ao examinarmos as conseqüências jurídicas, em relação ao

negócio, da identificação do comportamento que se constitui em venire contra

factum proprium.

Ainda em relação ao exemplo acima, é evidente que não pode ter

havido dolo por parte do que foi vítima do comportamento contraditório.

Assim, por exemplo, se os contratantes deliberadamente não cumpriram a

formalidade exigida pela lei porque pretendiam furtar-se ao pagamento de um

determinado tributo, por exemplo, é evidente que não poderá alegar que a

contradição comportamental do outro frustrou sua a legítima expectativa, eis

que ninguém será ouvido quando alegar em seu favor a própria torpeza.

Suponha-se, em outro exemplo ligado ao vício de forma, que uma

doação foi feita verbalmente, dizendo o doador ao donatário que estava lhe

dando um presente (situação, como se vê, bastante corriqueira no quotidiano).

Ocorre que esse presente não era um bem de pequeno valor ou não se lhe

seguiu a imediata tradição.

338

Em qualquer desses casos, conforme texto legal expresso, a

doação deve ser feita por escrito, mediante instrumento público ou particular,

como se vê no artigo 541, do Código Civil. Ressalte-se, por óbvio, que no

caso não existe qualquer dolo ou má-fé do donatário, uma vez que é bastante

comum que as pessoas pensem que doações (“presentes”) podem ser feitas

sem maiores formalidades, bastando as vontades de quem doa e de quem

recebe.

Algum tempo depois, contudo, já tendo havido a tradição e

estando a coisa doada em poder do donatário, o doador ajuíza ação na qual

pleiteia a declaração de nulidade do contrato, sob a alegação de vício de

forma. De fato, como já comentamos acima, por não ter sido atendida a

exigência legal quanto à forma a ser adotada, o contrato de doação, neste caso,

mostra-se inválido.

No caso em tela, no entanto, o comportamento do doador implica,

de modo claro, em venire contra factum proprium, por isso que se mostra

completamente inconciliável com sua primeira atitude, ao manifestar de modo

inequívoco o seu animus donandi, ainda que não se tenha valido da

formalidade imposta pela norma legal. Cabe, aqui, a lapidar afirmação de

Pontes de Miranda326, segundo a qual “a ciência jurídica e a técnica jurídica

legislativa foram descobrindo casos em que seria proveitoso amparar o que

confiou, dando-se eficácia a negócios jurídicos, que não na teriam, sem novas

regras jurídicas sobre a boa-fé”.

Nos dois exemplos acima, embora tenha sido gerada a confiança

do outro contratante, no sentido de que poderia aproveitar a prestação que lhe

fora entregue, na realidade não havia uma vinculação do sujeito que veio a se

comportar de modo contraditório, uma vez que o primeiro comportamento 326 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, V. 1 , pp. 192-193.

339

consistiu na celebração de um contrato nulo, e este, como se sabe, não deve

vincular o contratante.

Além das situações acima, nas quais é inválido o negócio jurídico

que foi celebrado com o primeiro dos comportamentos contraditórios, e por

isso não houve vinculação, também é possível que esta não se verifique ainda

mesmo que se trate de negócio jurídico válido. Seria o caso, por exemplo de

uma pessoa que prometesse a outra que faria uma doação em favor desta

última. Posteriormente, no entanto, o contrato de doação não vem a ser

celebrado. Neste caso, opinam os doutrinadores327 que o “promitente

donatário” não pode exigir o cumprimento da promessa, uma vez que a

doação exige que ainda esteja presente, no momento de celebrar o contrato, o

animus donandi.

No entanto, embora não seja exigível o cumprimento da doação

prometida, facilmente se constata que o segundo dos comportamentos

mostrou-se contraditório com o primeiro, e veio a frustrar a expectativa do

outro sujeito, no sentido de receber a liberalidade prometida. Logo, esse

descumprimento da promessa implica em venire contra factum proprium, e

poderá dar origem ao pleito de perdas e danos, por iniciativa do “promitente

donatário” frustrado.

Na realidade, não se pode deixar de observar que essa situação

acima descrita foi expressamente enfocada pelo nosso atual Código Civil. De

fato, ao tratar dos contratos preliminares, dispôs o Código, em seu artigo 464,

que o interessado poderá requerer ao juiz que supra a vontade da parte

inadimplente, que deixou de cumprir a promessa objeto do contrato 327 Por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. III, p. 178, que ensina que “se o promitente-doador recusasse a prestação, o promitente-donatário teria ação para exigi-la, e, então, ter-se-ia uma doação coativa, doação por determinação da Justiça, liberalidade por imposição do juiz e ao arrepio da vontade do doador... nada disto se coaduna com a essência da doação”. Mas a questão desperta alguma polêmica, entre os doutrinadores, como aponta o ilustre jurista mineiro, na mesma obra e local.

340

preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação, caso em que a

solução se dará em perdas e danos (art. 465). É precisamente esse o caso da

promessa de doação, ou seja, a natureza da obrigação impede que lhe seja

exigida a execução em espécie, e por isso se transmuda em perdas e danos,

que em última análise estarão sendo referentes à frustração da expectativa

gerada.

Situação que se tem repetido com freqüência, na prática, e que já

comentamos brevemente, linhas atrás (veja-se o item 1.7, na primeira parte

deste estudo), é aquela onde a Administração Pública contrata trabalhador sem

que tenha havido a aprovação prévia do mesmo em concurso público.

Posteriormente, ao dispensar esse mesmo trabalhador, a própria

Administração Pública sustenta que a contratação do mesmo foi irregular, e

por isso não poderá gerar os efeitos normais de um contrato de trabalho. Como

se vê, há um claríssimo comportamento contraditório, adotado pela

Administração Pública, em relação à sua primeira atuação, que consistiu na

contração em si mesma.

E não é demais recordar, como já vimos em minúcias, supra, que

também à Administração Pública, nas suas relações com os administrados, se

impõe a observância da boa-fé objetiva, como regra de conduta, sendo-lhe

proibido o venire contra factum proprium. E convém recordar, também, que

em virtude do princípio da impessoalidade, que se encontra insculpido no

artigo 37, da Constituição Federal, pouco importa que tenha mudado a pessoa

do administrador, para a caracterização do venire, pois os comportamentos

contraditórios são da Administração Pública, e não do administrador público

que lhes dá concreção.

A observação é feita porque temos visto, no exercício diário das

atividades jurisdicionais, a alegação do administrador de que teria sido o seu

341

antecessor, e não ele, o responsável pela contratação irregular. Na realidade,

em relação ao trabalhador, quem responderá será a Administração Pública que

o contratou, e não a pessoa mesma do administrador. Logo, foi a

Administração Pública (e não o administrador) quem contratou de modo

irregular, e é essa mesma Administração Pública que agora, ao dispensar esse

mesmo trabalhador, pretende escapar dos efeitos jurídicos do contrato sob a

alegação de que o mesmo foi nulo. Caracterizada, portanto, a seqüência de

comportamentos contraditórios, adotados pela mesma pessoa (de direito

público).

Prosseguindo, veja-se que o contrato celebrado nessas condições

acima mencionadas, vale dizer, sem que tenha sido aprovado em concurso

público o servidor contratado, de fato é nulo de pleno direito, pois assim o diz,

de modo expresso, o artigo 37, § 2°, da Constituição Federal. No entanto,

quem deu causa a essa nulidade foi a própria Administração Pública, pois é

para ela, Administração, e não para o trabalhador, que se dirige a norma

insculpida no artigo 37, II, da Lex Mater, que exige a aprovação em certame

público, salvo para os cargos em comissão que tenham sido declarados em lei

como sendo de livre nomeação e exoneração.

Logo, quando a própria Administração Pública, depois de ter

violado a norma que restringia as contratações, e com isso dado causa à

nulidade absoluta do contrato, por vício formal (a não obediência à

formalidade do concurso público), vem, em um momento posterior, a pleitear

o reconhecimento da nulidade, com a conseqüente ausência de efeitos

jurídicos em favor do contratado, tem-se aí um caso muito claro de venire

contra factum proprium328. O Tribunal Superior do Trabalho, embora tenha

328 Na realidade, essa situação se encontra em uma zona limítrofe entre o venire contra factum proprium e o tu quoque. O problema é que a grande diferença entre ambos se dá pelo enfoque principal: enquanto no

342

repelido a pretensão de que de tal ato não poderia produzir efeitos (Súmula

363), fê-lo de modo tímido, que se tem mostrado claramente insuficiente para

desestimular o primeiro dos comportamentos, ou seja, a contratação irregular,

sem o concurso público prévio 329.

venire o objetivo principal é a tutela da confiança do outro sujeito, ou seja, o objetivo primordial é a proteção à boa-fé desse sujeito, no tu quoque , como veremos adiante (item 2.4), o escopo principal é a repressão à má-fé, e não a proteçao à confiança. Nesse caso da contratação sem concurso, pela administração pública, a experiência quotidiana tem mostrado que, no mais das vezes, surge no contratado a esperança de que será mantida sua vinculação com o serviço público, pelo simples fato de que o contratado, em geral pessoa de pouca qualificação e nenhum estudo, acredita que se o ato de sua contratação foi praticado pelo administrador público, então o mesmo é lícito e válido. E essa confiança, ao ser protegida mediante o reconhecimento de efeitos jurídicos do contrato nulo, se apresenta como hipótese de venire. Por outro lado, no entanto, vê-se claramente a presença, também, da má -fé da administração pública, que na hora de contratar simplesmente ignora a clareza do texto constitucional, que proíbe a contratação sem concurso público, e futuramente, ao dispensar o trabalhador, adota posição jurídica diametralmente diversa, ou seja, invocando em seu favor a norma que ela mesma, administração, descumpriu, e essas características permitem identificar a figura do tu quoque. 329 O Tribunal de Justiça de Minas Gerais aprovou Acórdão do qual constam as três coisas mencionadas no texto (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. 5ª Câmara Cível, Ac. unânime. Apelação Cível nº 000.261.310-7/00. Rel. Desembargadora Maria Elza. Data do Acórdão: 16.05.2002. Publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais em 02.08.2002): a) a atuação da Administração se constitui em venire contra factum proprium; b) embora nula a contratação, serão produzidos diversos efeitos desse contrato nulo, e não apenas o pagamento dos salários; c) a Súmula 363, do TST, é inconsistente, por reconhecer que a inadmissível atuação contraditória da Administração Pública teria força para afastar a produção dos efeitos jurídicos. Face à clareza e didatismo da referida decisão, pede-se venia para a transcrição de longo trecho da mesma:

“ Se a nulidade é bastante clara, o mesmo não se pode dizer em relação à amplitude de seus efeitos, que é objeto de divergência jurisprudencial. O Tribunal Superior do Trabalho tem jurisprudência firme no sentido de que a decretação da nulidade tem efeitos retroativos, razão pela qual o servidor contratado com ofensa à Constituição teria direito apenas a salário, excluídas todas as demais parcelas remuneratórias. Tal entendimento, utilizado como base pelo magistrado a quo, foi consolidado no enunciado 363 da Súmula do Tribunal e no item 85 da Orientação Jurisprudencial de sua Subseção I de Dissídios Individuais, que dizem, respectivamente, o seguinte: "363. Contrato nulo. Efeitos A contratação de servidor público, após a Constituição de 1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no seu art. 37, II, e § 2º, somente conferindo-lhe direito ao pagamento dos dias efetivamente trabalhados segundo a contraprestação pactuada." "85 - Contrato nulo. Efeitos. Devido apenas o equivalente aos salários dos dias trabalhados. A contratação de servidor público, após a CF/88, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no art. 37, II, da CF/88, sendo nula de pleno direito, não gerando nenhum efeito trabalhista, salvo quanto ao pagamento do equivalente aos salários dos dias efetivamente trabalhados." No entanto, em duas oportunidades, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Primeira Turma, se pronunciou em sentido frontalmente contrário. A primeira foi no Recurso Especial 284.250/GO (DJU 12-11-2001, p. 128), relator o Ministro Humberto Gomes de Barros, e a segunda foi no Recurso Especial 326.676/GO (DJU 04-03- 2002, p. 196), relator o Ministro José Delgado, este último assim ementado, no que interessa:

343

"1. A declaração de nulidade de contrato de trabalho, por inobservância do art. 37, II, da CF/88 (ausência de concurso público), gera efeitos ex nunc, resultando para o empregado o direito ao recebimento dos salários e dos valores existentes nas contas vinculadas ao FGTS em seu nome. 2. O empregado não concorre diretamente para a prática de ato ilícito cometido pelo empregador, quando o contrata sem concurso público, afrontando o art. 37, II, da CF. 3. Aplicação do princípio da boa-fé e da primazia da realidade." A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é mais consistente, por ser mais adequada à concretização do princípio constitucional da moralidade administrativa (art. 37, caput, da Constituição). A doutrina e a jurisprudência mais recentes vêm entendendo o princípio da moralidade administrativa como veiculador do dever de boa-fé para a Administração Pública. É neste sentido o posicionamento doutrinário de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao discorrer sobre o citado princípio: "Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé". (Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 89) Também é este o posicionamento de José Guilherme Giacomuzzi, autor de preciosa monografia sobre o tema: "A boa-fé objetiva terá, na tentativa de encontrar o conteúdo dogmá tico do princípio da moralidade (art. 37 da CF de 1988), a maior relevância. É ela, em suma, que preencherá o espaço - objetivo - do princípio, o qual tem por função veiculá -la." (A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 226-227). O Superior Tribunal de Justiça já aceitou a aplicação da boa-fé no Direito Público, como conseqüência da consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. É o que se vê no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 6.183/MG (DJU 18-12-1995, p. 44.573; LEXSTJ 82/90), por sua Quarta Turma, relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que, em seu voto condutor do acórdão, pontuou o seguinte: "No direito civil, desde os estudos de Jhering, admite-se que do comportamento adotado pela parte, antes de celebrado o contrato, pode decorrer efeito obrigacional, gerando a responsabilidade pré-contratual. O princípio geral da boa-fé veio a realçar e deu suporte jurídico a esse entendimento, pois as relações humanas devem pautar- se pelo respeito à lealdade. O que vale para a autonomia privada vale ainda mais para a Administração Pública e para a direção das empresas cujo capital é predominantemente público, nas suas relações com o cidadão. É inconcebível que um Estado Democrático, que aspire a realizar a justiça, esteja fundado no princípio de que o compromisso público assumido pelos seus governantes não tem valor, não tem significado, não tem eficácia. Especialmente quando a Constituição da República consagra o princípio da moralidade administrativa". É contrário à boa-fé permitir que a Administração municipal se aproveite de uma ilegalidade por ela mesma cometida. É ínsito à boa-fé e à moralidade administrativa proibir o venire contra factum proprium, ou seja, proibir que quem deu causa, por ato próprio, a uma ilicitude, dela se aproveite. Neste sentido são os posicionamentos doutrinários de José Guilherme Giacomuzzi (Ob. cit., p. 275) e Egon Bockmann Moreira, este último no seguinte trecho: "Do princípio da boa-fé objetiva deriva, quando menos, o seguinte: (...) b) proibição do venire contra factum proprium (conduta contraditória, dissonante do anteriormente assumido, ao qual se havia adaptado a outra parte e que tinha gerado legítimas expectativas)". (Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 91). Sobre tal proibição, explica Arruda Alvim: "O que se diz a esse respeito é que ‘o exercício de um direito constitui inadmissível abuso de direito, quando o exercício atual do direito não é conciliável com a conduta anterior do autor’. Na jurisprudência espanhola anotam-se os seguintes entendimentos: a) ‘é jurisprudência estabelecida por este Supremo Tribunal que aquele que reconheceu a validade de um ato não pode sucessivamente invocar contra os seus próprios atos’; b) similarmente, o autor espanhol diz que ‘cada um é livre para determinar-se e atuar livremente em qualquer direção, mas, uma vez realizado o ato, a pessoa não pode subtrair das conseqüências do ato, que são para ela como que vinculantes’". (Juiz Federal. Lista Tríplice. Alegada Inobservância do art. 93, II, da Constituição Federal. Revista de Direito

344

Com efeito, o Tribunal Superior do Trabalho, em um primeiro

momento, aprovou a Súmula 363, prevendo que em favor do servidor

contratado sem concurso apenas seria devido o salário dos dias efetivamente

Constitucional e Internacional. Ano 9, nº 36. São Paulo, Revista dos Tribunais, julho-setembro de 2001, p. 291) Portanto, se o Município réu contratou os autores, pagando-lhes, além do salário, outras parcelas remuneratórias previstas em lei, gerou nos mesmos legítimas expectativas que não devem ser frustradas. Não pode o Município, de uma hora para outra, deixar de reconhecer os efeitos pretéritos de atos por ele praticados, aproveitando-se da situação e violando o princípio da moralidade administrativa. Tal entendimento já foi acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 184.487/SP (DJU 03-05-1999, p. 153; RSTJ 120/386), por sua Quarta Turma, relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, assim ementado, no que interessa: "A teoria dos atos próprios impede que a administração pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade do seu procedimento." Em seu voto condutor do acórdão explicou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, citando entendimentos doutrinários, inclusive o de Celso Antônio Bandeira de Mello: "Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos, depois de estabelecer situações em cuja seriedade os cidadãos confiaram. ‘A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança formam a base de todo o tráfego jurídico e em particular de toda a vinculação jurídica individual. Por isso, não se pode limitá-las às relações obrigacionais, mas aplicá-lo sempre que exista qualquer vinculação jurídica, ou seja, tanto no Direito Privado, como no Direito Público’ (Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, I/144. Insistindo nesse ponto de vista, Jesus Gonzales Peres, no seu ‘El principio general de la buena fe em el Derecho Administrativo’, observa que todas as pessoas, inclusive as de Direito Público, devem pactuar sua conduta de acordo com o princípio da lealdade, sendo improcedente a pretensão dirigida à anulação por defeitos formais do ato praticado por quem aceitar o cumprimento da outra parte (pág 82). Isso porque, como ensinava o mestre Clóvis do Couto e Silva, o primeiro no Brasil a acentuar a importância do tema e divulgá-lo em seus escritos, a boa-fé objetiva é o princípio orientador do ordenamento jurídico. (...) No caso dos autos, o Município criou todas as condições para que o negócio se realizasse assim como se realizou, não sendo conforme à boa-fé alegar defeito no parcelamento que ele mesmo implantou, frustrando a expectativa daqueles que confiaram na regularidade do ato da autoridade pública. ‘Se o ato nulo ou anulável produziu relação jurídica da qual resultaram prestações do administrado (pense-se em certos casos de permissão de uso de bem público ou de prestação de serviço público) e o administrado não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, a invalidação do ato não pode resultar em locupletamento da Administração à custa do administrado e causar-lhe um dano injusto em relação a danos patrimoniais passados. (...) Com efeito, se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração ao praticá-lo feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato estará, ipso facto, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do Direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de quem, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde, quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar, mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consistente em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou, como, de resto, teria de confiar.’ (Celso Antônio, Boletim de Licitações e Contratos, Ano XI, nº 4, Abril/1998)."

345

trabalhados, e nada mais: férias, 13° salário, anotação da Carteira de Trabalho

e Previdência Social, FGTS, etc., nada disso seria devido a esse trabalhador.

Posteriormente, com a inclusão do artigo 19-A330, na Lei 8.036, de 11.05.1990

(dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS), foi que o

TST passou a admitir que, além dos salários, também seria devido o FGTS

sobre o mesmo331. De qualquer forma, como se vê, embora essa admissão dos

efeitos do ato nulo já seja uma forma de combater a contradição entre os

comportamentos da Administração Pública, é muito tímida, pois há inúmeros

outros efeitos que também deveriam ser admitidos, e que deixamos de

abordar, no presente estudo, por fugirem ao estreito âmbito de abrangência do

mesmo.

Vimos, acima, a hipótese de ser nula a contratação, por

infringência ao dispositivo constitucional (art. 37, II e § 2°) que exige a prévia

aprovação em concurso público, para que haja a contratação pela

Administração Pública. Vimos, ainda, que quando a Administração,

posteriormente, tenta escapar dos efeitos jurídicos da contratação irregular,

alegando a nulidade a que ela mesma deu causa, tem-se aí hipótese de venire

contra factum proprium, que também à Administração se proíbe, sendo que,

por isso, alguns dos efeitos do contrato de trabalho serão produzidos, ainda

que tal contrato seja nulo, devendo ser pagos ao trabalhador os salários dos

dias efetivamente trabalhados e o FGTS incidente sobre tais salários.

Outra situação que também pode ser relacionada a essa primeira,

é a do empregador que contrata, como empregado, menor de 16 anos, sem que

o seja na qualidade de aprendiz. Lembremos, inicialmente, que o art. 7°,

XXXIII, da Constituição Federal, proíbe qualquer trabalho ao menor de 330 A inclusão do referido artigo foi feita pela Medida Provisória 2.164-1, de 24.08.2001. 331 A Súmula 363 foi alterada, passando a prever também o cabimento do FGTS, pela Resolução 121/2003, publicada no Diário de Justiça de 21.11.2003.

346

dezesseis (16) anos, salvo na qualidade de menor aprendiz, a partir dos

quatorze (14) anos de idade. Logo, se for contratado o menor de 16 anos, por

empregador, tal contrato será nulo de pleno direito, por ter sido descumprida a

idade mínima fixada para a contratação válida de empregado, mas essa

nulidade não poderá ser argüida pelo próprio empregador que lhe deu causa,

sob pena de se configurar o venire contra factum proprium.

Assim, suponha-se que o empregador tenha celebrado essa

contratação ilegal, ou seja, tenha contratado empregado que ainda não

completou a idade mínima de dezesseis anos. Posteriormente, ao dispensar

esse empregado, pretende o empregador, alegando em seu próprio favor a

nulidade da contratação, que desse contrato não decorra qualquer efeito

jurídico, uma vez que o mesmo encontra-se fulminado pela nulidade absoluta.

Ora, é evidente que essa pretensão do empregador irá configurar a atuação

contraditória, o venire contra factum proprium, uma vez que estará alegando a

nulidade a que ele mesmo, empregador, deu causa. E, nessa hipótese, serão

gerados não apenas alguns dos efeitos jurídicos do contrato de trabalho, mas

todos os efeitos de um contrato válido, tais como o aviso prévio, as férias, o

13° salário, o FGTS com a multa de 40%, etc.

Mas qual seria o motivo dessa solução assim tão diferenciada, ou

seja, embora nas duas hipóteses se configure, sem qualquer dúvida, o venire,

na primeira delas (contratação sem concurso) apenas são produzidos uns

poucos efeitos (pagamento dos salários e do FGTS), enquanto na segunda

(contratação de menor de 16 anos) todos os efeitos normais de um contrato

válido serão produzidos? A diferença, na realidade, decorre do fato de que, no

primeiro caso, há patrimônio público em jogo, ou seja, o pagamento das

parcelas trabalhistas seria feito pela Fazenda Pública, o que em última análise

significa que a conta seria paga por toda a sociedade, enquanto que no

347

segundo caso a conta será paga, exclusivamente, pelo empregador que

contratou de modo irregular.

Assim, na primeira hipótese, de um lado se encontra a proteção

ao trabalho humano, e do outro se encontra a proteção ao patrimônio público,

que diz respeito a toda a sociedade, e o Tribunal Superior do Trabalho

entendeu que, no confronto entre ambos, este último é que deveria receber a

maior proteção, apenas sendo devidos os salários e o FGTS para evitar o

enriquecimento sem causa da Administração Pública. Na segunda hipótese,

contudo, de um lado encontra-se a proteção ao trabalho humano (e, por que

não, a proteção ao menor), e do outro se encontra o interesse particular de um

indivíduo, que é o empregador, sendo óbvio que a prevalência deverá ser da

proteção ao trabalho humano332.

De tudo o que foi dito no presente subitem, destacamos o fato de

que a inocorrência da vinculação em nada depende de ter sido válido ou

inválido o negócio jurídico formado a partir do primeiro dos dois

comportamentos do sujeito que serão cotejados, por isso que o venire contra

factum proprium poderá surgir tanto numa quanto noutra hipótese, vale dizer,

tenha sido válido ou inválido tal negócio. Além disso, como veremos em

maiores detalhes, mais à frente, cumpre também realçar que os efeitos do

reconhecimento do venire podem variar, em cada caso concreto, conforme os

demais interesses que se encontrem envolvidos em cada situação concreta.

d) comportamentos podem implicar em uma ação ou em uma omissão.

332 Apenas estamos apontando as razões que têm levado o Tribunal Superior do Trabalho a decidir de modo tão diferente, em dois casos de nulidade, sendo que em ambos se caracteriza o venire contra factum proprium, o que não significa, em absoluto, que concordemos com a solução adotada pelo TST. Muito pelo contrário, em relação ao trabalhador contratado sem concurso parece-nos que errou fragorosamente a Corte Superior Trabalhista, assistindo total razão ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como vimos retro, nas duras críticas tecidas à Súmula 363.

348

Prosseguindo-se na análise desses comportamentos, pode-se em

seguida mencionar que cada um deles poderá se constituir em uma ação ou em

uma omissão, sendo tal fato absolutamente irrelevante, eis que a contradição

não depende especificamente de um comportamento ativo ou passivo para

surgir. Aliás, bastante comum, na prática, é que o primeiro comportamento,

embora sem conter uma vinculação, transmita indícios claros de que o sujeito

irá cumprir um não fazer, ou seja, irá tolerar uma certa situação, a qual não

estaria normalmente obrigado a tolerar, ou irá se abster de praticar um

determinado ato que, em regra, poderia praticar sem qualquer obstáculo. Só

que, posteriormente, vem a atacar a situação que deveria tolerar ou a praticar o

ato de que se deveria abster.

O primeiro comportamento deu origem ao que se costuma chamar

de renúncia tácita, ou seja, causou no outro sujeito a nítida impressão de que o

omisso havia renunciado à prática do ato.

Ou, ao contrário, o primeiro comportamento, ainda que não

vincule o sujeito, transmite a clara idéia de que o mesmo adotará um

determinado comportamento positivo, gerando no outro a expectativa de que

um ato específico será praticado, sendo que isso não ocorre.

O Direito do Trabalho se mostra campo fértil para todos esses

tipos de situações acima mencionadas, e nesse campo trabalhista é que iremos

buscar alguns exemplos, que nos ajudarão a obter uma melhor compreensão

do tema.

Suponha-se que em uma determinada organização empresarial,

ficou vago um certo cargo, para o qual se mostram indispensáveis a

participação em um treinamento específico, que é realizado fora do horário de

trabalho, e a disponibilidade de condução própria. Nessas condições, o

349

empregador designa um de seus empregados para participar desse

treinamento, sem que lhe tenha, contudo, prometido nomeá-lo para a vaga. O

empregado, para quem a nomeação significaria uma ascensão funcional,

inclusive com melhoria do patamar remuneratório, adquire uma motocicleta,

para pagar em prestações, por saber da indispensabilidade de uma condução

própria. O empregado conclui com êxito o treinamento, mas apesar disso o

empregador não o nomeia, sem apresentar qualquer justificativa para isso.

Ora, é certo que o empregador não estava obrigado à nomeação

do empregado, eis que a nada se comprometera, assim como também é certo

que pode nomear quem bem entender para a vaga. No entanto, ao designar

aquele empregado específico para participar do treinamento, deu indícios

claros de que tinha a intenção de nomeá-lo para a vaga que estava aberta. Esse

empregado, portanto, ficou na legítima expectativa de que poderia ser

nomeado, caso obtivesse sucesso no treinamento, e em virtude disso não

apenas investiu seu dinheiro, na compra de um veículo próprio de transporte,

mas além disso investiu seu tempo disponível, para poder habilitar-se à vaga.

Ao exercer o seu poder de nomear outro trabalhador para o cargo,

portanto, o empregador agiu de modo contraditório, ou seja, primeiro deu

sinais claros de que iria praticar um determinado ato (nomear aquele

empregado para o cargo), mas depois comportou-se de modo contrário ao que

se poderia esperar, a partir da análise de seu comportamento anterior (ou seja,

deixou de praticar o ato sobre cuja prática dera indícios). Tem-se aí um caso

claro de venire contra factum proprium, cuja conseqüência, provavelmente,

seria a condenação do empregador a indenizar os danos causados ao

empregado, já que, em princípio, não caberia ao juiz interferir na organização

empresarial e determinar que o empregado em questão é que passasse a ocupar

o cargo disputado.

350

Mostramos, acima, exemplo onde o primeiro comportamento

transmitiu a idéia de que um determinado ato seria praticado, sendo no entanto

que o segundo comportamento consistiu precisamente na abstenção desse ato

que se supunha seria praticado. Vejamos, agora, a hipótese inversa, ou seja,

hipótese na qual o sujeito dá sinais de que não praticará um determinado ato

ou que irá tolerar uma certa situação, mas em seguida vem a praticá-lo ou a

atacar essa mesma situação.

Suponha-se, novamente na esfera das relações de trabalho, que

um empregado, tendo recebido proposta de melhor emprego, resolveu pedir

dispensa, dando imediatamente aviso prévio ao empregador. Este, no entanto,

sabendo que se trata de um bom empregado, produtivo, dedicado, honesto e

leal, decide tentar mantê-lo na empresa e, para tanto, oferece-lhe um aumento

salarial, de modo a igualar a proposta feita pela outra empresa. O empregado,

diante da proposta, decide aceitá-la, rejeitando por isso a outra proposta de

emprego que recebera. Poucos meses depois, contudo, o empregador vem a

dispensá-lo.

Ora, se por um lado não se pode negar que é direito potestativo do

empregador dispensar o empregado, desde que lhe pague todas as parcelas

rescisórias, por outro, não se pode deixar de constatar que, no caso, o primeiro

comportamento do empregador, tentando convencer seu empregado a não

deixar a empresa, inclusive apresentando proposta de majoração salarial,

como forte argumento para o convencimento do trabalhador, transmitiu ao

obreiro sinais claros de que a intenção do empregador era a de se abster da

prática desse ato, ou seja, de não exercer esse direito potestativo de dispensá-

lo.

Nessas condições, quando o empregador praticou o segundo ato,

agiu em clara contradição com o seu comportamento anterior, uma vez que

351

praticou ato em relação ao qual fizera surgir no outro sujeito a justa

expectativa de que se absteria, ou seja, exerceu direito em relação ao qual

havia manifestado sua intenção, ainda que de forma indiciária, no sentido de

que não pretendia exercê-lo.

Ao fazê-lo, esse comportamento contraditório esvaziou a

expectativa legitimamente criada pelo empregado, e por isso tem-se, aí, mais

uma vez, hipótese cristalina de venire contra factum proprium, cuja

conseqüência poderia ser a indenização a ser paga ao empregado, em virtude

da expectativa frustrada e levando ainda em conta o emprego ao qual

renunciou, ou mesmo, conforme a situação, a determinação de reintegração do

empregado ao emprego, com a manutenção no mesmo por um período

razoável, a critério do juiz, para compensar o outro emprego dispensado.

Mas deve-se observar que o empregador, para que se configure o

venire, não prometeu ao empregado que o manteria no emprego, mas apenas

deu indícios de que isso ocorreria. É que, caso tivesse havido a efetiva

promessa de que o empregado não seria dispensado, aí se trataria de

estabilidade no emprego, provisória ou definitiva, com direito à reintegração

sem maiores considerações sobre a expectativa frustrada ou sobre a

contradição entre os dois comportamentos.

Em um caso concreto, no qual tivemos a chance de orientar um

dos envolvidos, um técnico em manutenção de computadores era titular de

uma microempresa, cuja atividade-fim consistia precisamente em prestar

atendimento aos clientes quanto à manutenção de hardwares e softwares. A

folha de clientes da empresa não era muito grande, e por essa razão o titular da

mesma acabou aceitando uma proposta de emprego de uma empresa maior,

para trabalhar como técnico de manutenção de computadores, mas agora na

condição de empregado.

352

Ao ser admitido, contudo, o trabalhador informou ao empregador

que tinha alguns clientes antigos, para os quais já prestava a manutenção há

bastante tempo, e que tinha a intenção de continuar prestando tais serviços,

independentemente de sua prestação de trabalho decorrente da relação de

emprego, apenas tomando o cuidado de fazê-lo em suas horas de folga, após a

jornada de trabalho ou nos finais-de-semana. O dono dessa empresa de maior

porte, empregadora, comentou que, nessas condições, não haveria qualquer

problema em que o empregado continuasse, paralelamente, prestando seus

serviços de assistência técnica na qualidade de autônomo.

Algum tempo depois, no entanto, o empregador determinou ao

empregado que cessasse o atendimento à sua própria clientela, sob pena de

caracterizar a falta grave denominada de concorrência desleal, prevista no art.

482, c, da Consolidação das Leis do Trabalho, e que consiste precisamente na

negociação habitual, por conta própria, em concorrência com a empresa, ou

seja, o empregado atua na mesma área de atuação de seu empregador, e com

isso tem condições de captar a clientela que foi captada por seu empregador à

custa de investimentos na divulgação do negócio.

Em regra, nessa situação acima descrita, de fato o empregador

poderia exigir que seu empregado cessasse a atuação em área que implica em

concorrência direta com a da atividade empresarial, sob pena mesmo de restar

caracterizada a falta grave do empregado, consistente na concorrência desleal.

Nesse caso, no entanto, parece muito claro que essa exigência se constituiria

em venire contra factum proprium, uma vez que o segundo comportamento se

põe de modo oposto ao que se poderia esperar a partir do primeiro, frustrando

a expectativa gerada para o empregado.

Com efeito, percebe-se que o empregador, ao mencionar, no ato

da admissão, que não se opunha a que o empregado pudesse conservar o

353

atendimento à sua própria clientela, ainda que se tratasse de atuação na própria

área onde atuava a empresa empregadora, transmitiu indícios claros de que iria

tolerar aquela situação, ainda que, nas hipóteses normais, não estivesse

obrigado a tolerá-la. No entanto, em um segundo momento, resolveu não mais

tolerar aquela concorrência que contra si desenvolvia o empregado, e ao fazê-

lo frustrou a expectativa que ele mesmo havia gerado no empregado com o

seu comportamento anterior. Caso de venire, portanto, como se disse acima.

De um modo geral, a doutrina333 e a jurisprudência334 trabalhistas

se valem da noção do venire – muito embora sem usar a expressão – em um

caso de omissão ligado à justa causa para a dispensa do empregado. Trata-se

da hipótese que em regra é denominada de “perdão tácito”, mas que nada mais

é do que uma hipótese de venire contra factum proprium, onde o primeiro

comportamento consistiu em uma omissão. Suponha-se que um empregado

cometeu uma falta muito grave, que justificaria a imediata ruptura do contrato

pelo empregador. Este, contudo, embora tenha tomado conhecimento do ato

praticado pelo empregado, simplesmente deixa passar o tempo sem adotar

qualquer medida punitiva.

Nesse caso, não mais se admitirá que o empregador, decorrido

longo tempo do momento em que teve ciência da prática do ato faltoso, venha

a punir o empregado com a justa causa. A doutrina e a jurisprudência, como

vimos acima, referem-se à ocorrência do “perdão tácito”, mas na verdade, é

de fácil percepção que se trata de hipótese de venire. Com efeito, o primeiro

comportamento do empregador foi a omissão, por isso que o mesmo se

333 Amauri Mascaro Nascimento, Curso de Direito do Trabalho, pp. 698-699. 334 JUSTA CAUSA. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE NA APLICAÇÃO DA PENA. A não

observância ao princípio da imediatidade na aplicação da penalidade máxima, ante a ocorrência de falta reputada grave pelo empregador, atrai a presunção de perdão tácito. A questão não se caracteriza apenas pelo transcurso do tempo, mas também por qualquer medida adotada pelo empregador reveladora da inequívoca intenção de manter o empregado em seus quadros. TRT 2ª Região (SP), 4ª T., Acórdão n° 20050455057, unânime. Relator Juiz Paulo Augusto Câmara. J. 12.07.2005, p. DOE SP 22.07.2005.

354

absteve de adotar qualquer medida punitiva, continuando a manter o

empregado em seu ambiente de trabalho. Logo, não poderá esse empregador,

posteriormente, atuar de modo contraditório, dispensando o empregado por

justa causa em virtude desse mesmo fato, em relação ao qual se omitira, uma

vez que a partir dessa omissão foi criada no empregado a justa expectativa de

que não seria dispensado por justa causa.

Deve-se desde logo ressaltar, contudo, dois aspectos que mais à

frente serão examinados de modo detalhado. O primeiro deles é que essa

demora do empregador em punir, primeiro se omitindo de adotar qualquer

punição e depois dispensando por justa causa, não pode ser justificada, pois,

se o for, não se caracterizará o venire, e a dispensa por justa causa será válida

(veja-se, adiante, o item 2.3.2.2). E o segundo é que essa demora injustificada,

de fato, faz surgir no empregado a expectativa de que o mesmo não mais será

dispensado por justa causa, pois transmite-lhe a impressão de que, apesar da

falta, não houve a quebra da fidúcia que é inerente ao contrato de trabalho, e o

surgimento dessa expectativa é essencial à caracterização do venire contra

factum proprium (veja-se, à frente, o item 2.3.2.3).

Na hipótese acima, vimos situação onde a contradição foi

detectada no comportamento do empregador, que, após uma omissão,

pretendeu uma atuação, sendo que esta era contraditória com aquela. Vejamos,

agora, hipótese semelhante, mas sendo que o comportamento contraditório é

do empregado, observando que se trata de questão enfrentada nos tribunais

trabalhistas com enorme freqüência.

A Constituição Federal assegurou à empregada gestante a

proteção contra a dispensa imotivada, desde a confirmação da gravidez até

cinco meses após o parto, sendo que tal proteção é de natureza objetiva, como

já comentamos linhas atrás (item 1.8), ou seja, protege-se a gravidez em si

355

mesma, e não o seu conhecimento por parte do empregador ou mesmo por

parte da empregada. Dito de modo mais claro, a garantia ao emprego será

mantida ainda que, no momento da dispensa da empregada, nem ela mesma

soubesse que estava grávida, sendo irrelevante esse aspecto subjetivo.

Nessas condições, é corriqueiro que uma empregada grávida

venha a ser dispensada no momento em que o empregador (e, por vezes, a

própria empregada) não sabia do estado gravídico. Descoberta a gravidez, a

empregada pode requerer sua reintegração ao emprego, em sede

administrativa ou, se necessário, mediante o ajuizamento de ação trabalhista.

Por outro lado, sabe-se o prazo prescricional, em relação às pretensões do

empregado que sejam resultantes das relações de trabalho, é de dois anos após

o término do contrato, nos termos do artigo 7°, XXIX, da Constituição

Federal.

A empregada, então, deixa transcorrer in albis o período de

gestação, até que seu filho venha a nascer, em nenhum momento informando

ao seu antigo empregador que estava grávida, no momento da dispensa, e nem

ajuizando a reclamatória trabalhista. Após o nascimento de seu filho, a

empregada ainda aguarda mais uns cinco ou seis meses, e só aí ingressa com a

ação trabalhista, deduzindo sua pretensão contra o seu antigo empregador.

Importante observar que, transcorridos os nove meses da gestação e mais os

cinco ou seis meses após o nascimento, ainda não houve a fluência integral do

prazo prescricional, que é de dois anos. Ou seja, a pretensão deduzida pela

empregada ainda não foi fulminada pela prescrição.

Por outro lado, o período de garantia do emprego era de

aproximadamente 14 meses (os nove meses da gestação e mais cinco meses

após o parto), o que significa que tal período, no momento em que a ação foi

ajuizada, já havia se esgotado. Logo, não faria mais sentido que a empregada

356

pleiteasse a sua reintegração ao emprego, pois esta não lhe é mais garantida, e

dessa forma o pedido que vem a ser apresentado, invariavelmente, é o de

pagamento dos salários e demais verbas trabalhistas referentes aos 14 meses

de garantia de emprego.

Ocorre que a garantia constitucional não se refere ao pagamento

dos salários referentes a um período não trabalhado, mas sim à permanência

no emprego por um determinado período. Logo, se a empregada deixou

transcorrer, sem qualquer providência, esse mesmo prazo, esse seu primeiro

comportamento (a omissão, quanto às providências que poderia ter adotado)

parece indicar que a mesma não tem qualquer interesse em retornar ao

trabalho. Por isso, o segundo comportamento – o ajuizamento da ação – se

mostra contraditório, pois foi deduzido pleito que é uma mera decorrência do

direito de retornar ao trabalho, direito esse que foi inviabilizado pela

inatividade de sua própria titular. Pode-se vislumbrar aí, portanto, a ocorrência

do venire contra factum proprium335.

335 Convém observar, contudo, que não é essa a posição do Tribunal Superior do Trabalho, que em recentes decisões vem admitindo que o fato de já se ter esgotado o prazo de estabilidade, quando do ajuizamento da ação, não impede que se defira à empregada a indenização do período correspondente. Pensamos que está equivocada aquela Corte Superior Trabalhista, mas deixamos de enfrentar a polêmica, por não se constituir a mesma no foco do presente estudo, onde apenas se pretendeu apontar um possível caso de venire e, por questão de lealdade ao leitor, optou -se por noticiar que a posição contrária é a que predomina no Tribunal Superior do Trabalho. Assim, por exemplo, no Recurso de Revista RR - 75656/2003-900-02-00, publicado no DJ - 05/08/2005, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, cuja ementa ficou assim redigida:

FGTS. VERBA INDENIZATÓRIA. O empregador não pode se eximir de cumprir a obrigação de pagar o FGTS e multa, se único responsável pela dispensa indevida da Reclamante, pois detentora de estabilidade gestante, e devidos no caso de cumprimento do contrato de trabalho regularmente. Recurso não conhecido. ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS. A demora no ajuizamento da ação não importa renúncia de direito, pois devida a indenização no caso de o período estabilitário já ter se exaurido (Súmula 244, II, do TST). Recurso de Revista conhecido e não provido.

E no voto desse mesmo Acórdão ficou anotado que:

.................... 2 - ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS a) Conhecimento O Tribunal Regional analisou a questão no julgamento dos Embargos Declaratórios da Reclamada. Concluiu: “A reclamante propôs a ação dentro do biênio constitucional, em que é pleno o seu direito

357

Mas veja-se que estamos nos referindo à hipótese na qual o

período de garantia de emprego se escoou diante de omissão absoluta da

empregada, daí a contradição. É evidente que completamente diversa seria a

situação se a empregada tivesse desde logo requerido a sua reintegração, em

sede administrativa, mas não fosse atendida pelo empregador. Ou, então, a

hipótese na qual a empregada tivesse ajuizado sua ação, que foi contestada

pelo empregador, sendo que o trânsito em julgado da decisão que mandou

reintegrá-la só veio a ocorrer após o transcurso integral do prazo de garantia

do emprego. Em tais casos não haveria comportamento contraditório algum,

mesmo porque nem ao menos houve qualquer omissão da empregada.

Essa hipótese, na realidade, da empregada que deixa transcorrer

in albis o período de sua estabilidade, para só depois apresentar reclamação,

mais se aproxima da figura da suppressio, e por isso será explorada um pouco

mais, quando nos debruçarmos sobre tal instituto.

de ação. A alegação de que a propositura tardia da ação afastaria o direito à estabilidade é impertinente” (fl. 329). A Reclamada defende a tese de que o ajuizamento tardio da presente reclamação afasta a pretensão da Reclamante. Transcreve arestos para o cotejo de teses. Os arestos de fl. 337 autorizam o conhecimento do Recurso, pois trazem tese no sentido de que a demora no ajuizamento da ação importaria na renúncia da garantia do emprego. Conheço, por divergência jurisprudencial. b) Mérito O artigo 10, II, “b”, do ADCT assegura à gestante, estabilidade no emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A dispensa realizada em confronto com a referida norma, é nula, sendo necessária a reintegração da empregada no emprego ou, no caso de exaurido o período estabilitário, o pagamento dos salários correspondentes ao período. Esse o entendimento pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho, conforme dispõe a Súmula 244, II: “Gestante. Estabilidade provisória. (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 88 e 196 da SDI-1) - Res. 129/2005 - DJ 20.04.05 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (art. 10, II, "b" do ADCT). (ex-OJ nº 88 - DJ 16.04.2004) II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. (ex-Súmula nº 244 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) III - Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo, não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 - Inserida em 08.11.2000)” Assim, o fato da reclamação ter sido ajuizada após o período estabilitário, não prejudica a Autora, pois devidos os salários e demais direitos relativos ao período estabilitário.

358

Há uma outra situação que é de grande importância no Direito do

Trabalho, mas que também pode interessar ao campo do Direito

Administrativo, e cuja freqüência com que se verifica na prática justifica que

façamos, aqui, a sua minuciosa abordagem. Trata-se de situação que pode ser

desdobrada em duas hipóteses, na primeira das quais o empregado é enviado,

pelo empregador, para fazer um curso no exterior (ou mesmo dentro do

Brasil), para aperfeiçoamento no serviço ou para que possa começar a operar

com um equipamento específico, sendo esse treinamento de vários meses de

duração, com todas as despesas pagas pela empresa e com a manutenção do

pagamento normal do salário.

Encerrado o curso, no entanto, pouco depois do empregado ter

retornado ao seu trabalho normal, o mesmo vem a ser dispensado pelo

empregador, sem que para isso tenha dado qualquer causa justificadora dessa

brusca ruptura do contrato de trabalho.

Qualquer das partes contratantes, em um contrato de trabalho por

prazo indeterminado, empregado e empregador, como já mencionamos acima,

tem o direito potestativo de romper esse mesmo contrato (salvo nas hipóteses

de estabilidade, onde o empregador perde tal direito), bastando que avise

previamente ao outro contratante. Neste caso específico, no entanto, o

exercício de tal direito por parte do empregador se constitui em inadmissível

quebra de coerência, que vem a frustrar expectativa legitimamente surgida,

caracterizando-se portanto o venire.

Com efeito, fácil é de se perceber que o empregador, ao enviar

seu empregado para participar de um curso no exterior, fazendo alto

investimento financeiro nesse aprimoramento do trabalhador, fez com que este

último acreditasse que, no regresso, teria o seu emprego assegurado. Com

efeito, é bastante razoável que se suponha que quando uma empresa investe

359

altas somas na formação e aperfeiçoamento de um funcionário, fá-lo por

pretender contar com tal empregado em seus quadros, e não por ter a intenção

de dispensá-lo. Logo, a dispensa imotivada desse mesmo empregado se

caracteriza em comportamento contraditório inadmissível.

E é de se ver que o empregado, em virtude da expectativa de que

seria mantido em seu emprego, também fez investimentos de ordem pessoal,

concordando em ficar longe da família e longe de seu centro habitual de

ocupações e de convivência social, para poder participar do treinamento que

lhe permitiria um melhor aproveitamento nos quadros da empresa. Logo, essa

expectativa frustrada deverá ser reparada mediante o pagamento de

indenização ou pela reinserção desse empregado nos quadros da empresa,

conforme se mostrar mais conveniente no caso concreto.

Nessa primeira hipótese, acima exemplificada, o interesse maior,

presente no primeiro comportamento, era o do empregador, que pretendia que

seu empregado recebesse um treinamento voltado para aperfeiçoá-lo no

desempenho de suas tarefas. Mas também é corriqueira a situação na qual o

interesse principal é do empregado ou, pelo menos, de ambos, empregado e

empregador, conjuntamente.

É o que se dá, por exemplo, quando um empregado de uma

empresa (ou um servidor público) é liberado de suas funções, sem prejuízo do

salário (ou dos vencimentos), para poder participar de um curso de natureza

científica, como mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Veja-se que o

empregador (ou a Administração Pública) não terá um benefício direto, pois o

empregado não estará sendo treinado especificamente para um melhor

desempenho no serviço.

No entanto, é evidente que esse tomador dos serviços, seja ele um

empregador particular ou seja a Administração Pública, tem a expectativa de

360

que, no retorno do trabalhador, estando este com um melhor embasamento

científico, será possível um ganho na produtividade ou na qualidade dos

serviços. E essa confiança na obtenção de um melhor desempenho, como é

bastante intuitivo, engloba a idéia de que o empregado (ou servidor), após o

retorno às atividades, deverá prestar seus trabalhos para aquele mesmo

tomador que lhe custeou os estudos.

Muitas vezes, no entanto, tão logo retorna ao trabalho, esse

empregado ou servidor público, agora com uma formação científica mais

sólida, recebe uma proposta de um outro emprego, com melhor salário (pois o

novo empregador nada desembolsou para essa sua melhor formação), e se

despede do emprego ou pede exoneração do serviço público. Nesse caso, foi o

empregado que exerceu de modo inadmissível seu direito potestativo de

romper o contrato, incidindo em venire contra factum proprium.

Com efeito, quando o empregado pediu afastamento para poder

estudar, custeado pelo empregador, surgiu neste a expectativa de que obteria

retorno, uma vez que o empregado retornaria ao trabalho com uma maior

qualificação, ainda que o curso para o qual se afastara não fosse diretamente

ligado às atividades inerentes a sua função na empresa. Ao pedir demissão,

após a conclusão com êxito desse mesmo curso, o empregado frustrou as

expectativas legitimamente criadas pelo empregador, e por isso deverá reparar

os prejuízos causados.

Tais situações, na prática, geralmente envolvem um aditivo

contratual, no qual se prevê que o empregado, em troca do custeio dos seus

estudos, a ser feito pelo empregador, se compromete a não pedir demissão

durante um determinado prazo, que se mostre razoável para que o empregador

possa recuperar seu investimento, sob pena de ter que indenizar o empregador.

Discute-se, em Direito do Trabalho, se é válido ou não esse tipo de cláusula.

361

Penso não haver qualquer dúvida sobre a validade da mesma, pois nada mais

faz do que preservar a conduta de boa-fé das partes contratantes.

O que não é válido, isso sim, é a previsão contratual da qual

conste, simplesmente, que o empregado não poderá pedir dispensa, durante

um determinado tempo, pois é direito fundamental o exercício livre de

qualquer trabalho ou profissão (CF, art. 7º, XIII), não se podendo forçar a

manutenção do vínculo do trabalhador a um determinado contrato (CF, 7º,

XX), notadamente quando se observa que, no contrato de trabalho, a prestação

a ser fornecida pelo empregado diz respeito, diretamente, à sua própria

dignidade, pois é a sua força física, óbvia e indissoluvelmente ligada à sua

pessoa, que estará sendo colocada à disposição do empregador. E exatamente

esse mesmo raciocínio pode ser desenvolvido quanto à relação entre o

servidor público e a Administração Pública.

Só que não é disso que se trata, mas sim da indenização a ser

paga pelo empregado ao empregador. O empregado, portanto, não poderá ser

forçado a manter-se vinculado ao contrato, dele podendo se desvencilhar a

qualquer tempo. No entanto, se essa for a sua opção, deverá arcar com as

conseqüências da mesma, inclusive o pagamento da indenização ao seu

empregador. Em outras palavras, o empregado sempre terá a liberdade de

escolher entre continuar prestando seus trabalhos àquele mesmo empregador,

durante um tempo razoável, ou então indenizá-lo em virtude do investimento

frustrado.

Na realidade, parece-me que mesmo que não houvesse qualquer

cláusula contratual prevendo a mencionada indenização, ainda assim a mesma

seria devida, pelo empregado ao empregador. É que a hipótese, nitidamente,

como já vimos, é de venire contra factum proprium, ou seja, de um

comportamento contraditório que frustra expectativa legítima, e por isso

362

deverá indenizar essa frustração. A única diferença é que, quando existe a

cláusula contratual (e na prática ela sempre existe), a questão será resolvida

mediante o recurso à previsão legal já existente, e que se refere ao

inadimplemento das obrigações, como já vimos linhas atrás. E, não existindo

tal cláusula, deverá o sujeito prejudicado (no caso, o empregador) valer-se da

figura do venire, para buscar o ressarcimento dos seus prejuízos.

e) O segundo comportamento deve piorar a situação do outro sujeito.

Por último, em relação aos comportamentos contraditórios, pode-

se observar – embora a observação seja tão óbvia que possa parecer

tautológica – que a caracterização do venire contra factum proprium se dará

tão-somente quando, entre os dois comportamentos contraditórios, o segundo,

em relação ao primeiro, estiver piorando a situação do outro sujeito, aquele no

qual se formou a expectativa acerca de um negócio jurídico. Se o segundo

melhorar a situação do outro sujeito, é evidente que não se poderá falar em

venire.

Com efeito, a idéia que se encontra subjacente ao instituto do

venire – e, de modo geral, a todos os institutos decorrentes da boa-fé como

norma de conduta – é a proteção de um sujeito que, em virtude de um primeiro

comportamento de um outro (o factum proprium), criou uma legítima

expectativa, em relação a um determinado negócio jurídico. Logo, para se

protegê-lo é que não se admite o comportamento contraditório, ou seja, um

segundo comportamento (o venire) que venha a frustrar a expectativa

razoavelmente gerada a partir do primeiro.

Assim, se o que se quer impedir é que o venire (a segunda

conduta) venha a frustrar a confiança que o outro sujeito depositou no

363

negócio, parece evidente que se pode concluir que o que não se admitirá é que

essa segunda conduta venha a impedir que se mantenha ou concretize aquele

negócio que se esperava, criando uma situação nova que se mostra

desfavorável a esse sujeito a quem se pretende proteger.

Mas se, ao contrário, o segundo comportamento, ao se mostrar

contraditório com o primeiro, melhora a situação do outro sujeito, ou seja,

torna-lhe mais favorável a situação jurídica que era esperada a partir da

primeira conduta, é claro que não se terá aí a ocorrência do venire contra

factum proprium. Se não fosse assim, o instituto criado para proteger o sujeito

estaria sendo invocado para prejudicá-lo, o que a toda evidência se mostra

inaceitável.

A título de exemplo, para mais fácil compreensão do que acima

se disse, examinemos alguns fatos ocorridos em uma situação concreta, na

qual houve um claríssimo comportamento contraditório, mas de modo tal que

o segundo comportamento favoreceu o outro sujeito, e por isso, sem qualquer

dúvida, foi considerado como válido.

No caso em questão, um determinado empregado, que gozava de

estabilidade decenal, ou seja, aquela que, antes da vigência da atual

Constituição Federal336, era assegurada a todos os empregados que, não sendo

optantes do FGTS, tivessem pelo menos dez anos de serviço na mesma

empresa, teria supostamente cometido uma falta grave, especificamente a de

desídia (em outras palavras, o empregado teria sido negligente), motivo pelo

336 A estabilidade decenal, prevista no artigo 492 da CLT, é incompatível com o regime do FGTS. Assim, até 1966, data em que foi instituído o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (Lei n° 5.107/66), todos os empregados adquiriam essa mencionada estabilidade, tão logo completassem dez anos de serviço na empresa. A partir da instituição, como a adesão ao FGTS dependia de opção do trabalhador, os empregados optantes deixaram de adquirir a estabilidade, ao completar dez anos de serviço, sendo a mesma mantida, no entanto, para os não-optantes do regime. A partir da Constituição Federal de 1988, no entanto, todos os empregados passaram a ser, obrigatoriamente, vinculados ao regime do FGTS, e por isso todos os contratos de trabalho celebrados após 05.10.1988 se tornaram incompatíveis com a aquisição da estabilidade prevista no artigo 492, da CLT.

364

qual o empregador resolveu dispensá-lo por justa causa. Com tal finalidade, o

empregador ajuizou inquérito para apuração de falta grave337.

No entanto, no curso desse processo judicial para apuração da

suposta desídia do empregado, o empregador, no caso um grande banco,

enviou para esse empregado supostamente desidioso o comunicado de que o

mesmo estava sendo promovido por merecimento. Ora, é evidente que a

imputação de conduta desidiosa (negligente) ao empregado é absolutamente

incompatível com a promoção por merecimento, pois não há como se admitir

que o empregado, se realmente fosse negligente, pudesse ser merecedor da

ascensão funcional. Logo, o segundo comportamento do empregador (a

promoção) mostrou-se contraditório, em relação ao primeiro (a dispensa por

desídia).

Só que essa contradição, no caso, ocorreu de um modo tal que

veio a melhorar a situação jurídica do outro sujeito (o empregado), ou seja,

veio a retirá-lo de uma situação em que estava sendo acusado de negligente

para uma outra, na qual foi apontado como merecedor de promoção, e

portanto esse venire, ou seja, esse segundo comportamento contraditório,

mostra-se plenamente admissível, não se podendo falar na ocorrência do

venire contra factum proprium.

Não é demais lembrar que a figura do venire contra factum

proprium foi criada para conferir proteção ao sujeito que poderia ser afetado

pelos comportamentos contraditórios (no caso apontado, o empregado), pois

em virtude destes poderia ter frustradas suas expectativas que foram válida e

razoavelmente criadas. Logo, não haveria o menor sentido em que se

337 O empregado estável, esclareça-se, só pode ter o seu contrato resolvido por iniciativa do empregador se vier a cometer falta grave, devidamente reconhecida em processo judicial (o inquérito), pois apenas a decisão judicial transitada em julgado é que terá força para resolver o contrato, nos termos do artigo 494, da CLT.

365

invocasse essa mesma figura do venire contra factum proprium em desfavor

daquela pessoa a quem se deseja proteger, vale dizer, seria ilógico que se

apontasse a contradição entre as condutas para manter o primeiro dos

comportamentos (a dispensa por desídia), afastando-se os efeitos do segundo

(o reconhecimento do mérito do empregado).

2.3.2.2. A contradição.

Examinado o primeiro dos elementos que devem estar presentes,

para que se caracterize o venire contra factum proprium, passemos agora ao

exame do segundo desses elementos, ou seja, a contradição em si mesma.

Uma primeira observação, que na verdade ressalta de alguns dos

dispositivos legais que já examinamos, é que a contradição verificada entre os

comportamentos do sujeito deve ser injustificada. Assim, por exemplo, se a

contradição foi aferida no cotejo de um comportamento atual com um anterior,

sendo que neste (o primeiro comportamento) se tratou de situação na qual era

inexigível que o sujeito se comportasse de outra forma, não se terá

concretizado o venire, pois a contradição, no caso, está justificada.

E é interessante ressaltar que essa ocorrência da inexigibilidade

de conduta diversa, capaz de justificar a contradição e impedir que se

caracterize o venire, vai se manifestar, sempre, em relação ao primeiro dos

comportamentos, pois o segundo servirá exatamente para o desfazimento do

primeiro. À guisa de exemplo, podemos nos reportar ao caso da lesão, previsto

no artigo 157, do Código Civil brasileiro.

No exemplo que examinamos, linhas atrás, um pai, precisando

custear o tratamento de saúde que o filho necessita com a máxima urgência,

oferece à venda, por cem mil reais (R$ 100.000,00), um imóvel de sua

366

propriedade, cujo valor real é de um milhão de reais (R$ 1.000.000,00). Mais

tarde, no entanto, esse pai, vendedor, busca a anulação do negócio, face à

manifesta desproporção entre a prestação que recebeu e a que entregou.

Como se percebe, na situação acima descrita há uma evidente

contradição entre os dois comportamentos, aquele no qual foi pactuada a

venda e aquele no qual se pleiteou o desfazimento dessa mesma venda. No

entanto, no caso não se verifica o venire contra factum proprium, uma vez

que, por ocasião do primeiro comportamento, o vendedor não agiu de forma

verdadeiramente livre, mas o fez pressionado pela urgência das circunstâncias,

eis que precisava arcar com as despesas do tratamento.

Destaque-se, contudo, que a inexigibilidade de conduta diversa

não é a única justificativa possível para a contradição, capaz de afastar a figura

do venire. Basta que reexaminemos a figura da assunção de dívida, por nós já

abordada, retro. O credor, mesmo tendo concordado com a substituição do

devedor por outro, poderá buscar a responsabilidade do antigo devedor se o

novo era insolvente, ao tempo da assunção, e ele, credor, não o sabia (art. 299,

parte final). Veja-se que não se pode falar, na hipótese, de inexigibilidade de

conduta diversa, pois o credor poderia, no primeiro comportamento, ter

adotado uma outra conduta, não concordando com a assunção.

O que ocorre, portanto, nessa situação retratada no artigo 299, do

Código Civil, como já havíamos comentado linhas atrás, é que se verifica a

ocorrência do erro ou ignorância do credor, ou seja, há um vício da vontade, e

este é capaz de justificar a contradição, afastando a caracterização do venire

contra factum proprium. O que as duas situações têm em comum, portanto, é

o fato de que, em ambas, no primeiro comportamento, a vontade do sujeito

não foi verdadeiramente livre, mas viciada pelas circunstâncias, quer pela

urgência por elas imposta, quer por desconhecê-las.

367

Em uma primeira aproximação, na tentativa de sistematizar essa

questão da justificativa da contradição, portanto, podemos dizer que estaria a

mesma justificada, afastando a caracterização do venire, sempre que se

apurasse que, no primeiro dos comportamentos, não se tratou de um ato da

vontade livre, ou seja, houve algum vício na vontade do sujeito. Se bem

observarmos, essa afirmação acaba por se confundir com o requisito de que

tenha sido válido cada um dos comportamentos contraditórios (veja-se, retro,

o item 2.3.2.1, a), pois se tivesse havido o vício da vontade, o primeiro

comportamento teria sido inválido, o que em regra, como já vimos, afasta a

ocorrência do venire.

O problema é que essa falta da vontade livre, no primeiro dos

comportamentos, não se mostra como suficiente para justificar a contradição,

por isso que haverá situações em que, mesmo não tendo havido vontade livre

na primeira das duas atuações (ou omissões), ainda assim poderá ser

caracterizada a ocorrência do venire. Por outro lado, há hipóteses nas quais

não houve qualquer vício da vontade, no primeiro comportamento (ou seja, a

vontade do sujeito estava livre de defeitos), e mesmo assim a contradição

poderá ser justificada. Vejamos.

Suponha-se que um determinado bem, que havia sido avaliado

por um perito em duzentos mil reais (R$ 200.000,00), foi vendido por seu

proprietário, sendo o preço ajustado em cento e noventa e cinco mil reais (R$

195.000,00). O comprador, até o momento da celebração do contrato, nem ao

menos conhecia o vendedor. Posteriormente, no entanto, constata-se que o

vendedor, em virtude de deficiência mental, é pessoa absolutamente incapaz,

não tendo o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil,

sendo que a perícia médica, no processo de interdição, constata que esse

368

estado já existia no momento em que foi celebrado o contrato de compra e

venda acima mencionado.

Desse modo, tendo em vista a incapacidade absoluta do vendedor,

este, devidamente representado por seu curador, ajuíza ação de nulidade, para

desfazer o negócio de compra e venda. Em tal caso, poderá o comprador

alegar a ocorrência do venire contra factum proprium, ou seja, poderá ele

apontar que o comportamento do vendedor (embora representado, no segundo

momento), sendo contraditório com o primeiro, se apresenta como capaz de

frustrar sua boa-fé? Não temos dúvidas em afirmar que sim: o comprador

poderá opor, à pretensão de desfazimento do contrato, sua boa-fé e a legítima

expectativa que do negócio havia surgido, apesar da inexistência de previsão

legal, em nosso Código Civil, ao contrário do que ocorre em algumas

legislações alienígenas.

Com efeito, em vários outros Códigos Civis (Código Civil

francês, art. 503338; Código Civil italiano, art. 428339; Código Civil português,

arts. 150 c/c art. 257340), existe a previsão explícita de que os atos anteriores à

338 Art. 503. Les actes antérieurs pourront être annulés si la cause qui a déterminé l’ouverture de la

tutelle existait notoirement à l’époque où ils ont été faits. 339 Art. 428. ATTI COMPIUTI DA PERSONA INCAPACE D’INTENDERE O DI VOLERE. – Gli atti

compiuti da persona che, sebbene non interdetta, si provi essere stata per qualsiasi causa, anche transitoria, incapace d’intendere o di volere al momento in cui gli atti sono stati compiuti, possono essere annullati su instanza della persona medesima o dei suoi eredi o aventi causa, se ne risulta un grave pregiudizio all’autore.

L’annullamento dei contratti non può essere pronunziato se non quando, per il pregiudizio che sia derivato o possa derivare alla persona incapace d’intendere o di volere o per la qualità del contratto o altrimenti, risulta la malafede dell’altro contraente. (grifei)

................ A necessidade de que tenha havido má -fé, por parte do outro contratante, para que o contrato possa ser anulado, atende à exigência de tutela da confiança da contraparte. De fato, quando a outra parte tem conhecimento do estado psíquico do sujeito, não houve confiança em relação à validade do contrato, e por isso será possível a anulação. Mas essa possibilidade não existirá, ao contrário, se o outro contraente, não conhecendo o estado de incapacidade, adquiriu confiança sobre a validade do contrato. Nesse caso, a exigência de tutela da confiança prevalece sobre a exigência de tutela do incapaz, e o contrato permanecerá válido. Cf. F. del Giudice (Coord.), Codice Civile spiegato Articolo per Articolo, v. 1, p. 273, nota 4 ao artigo 428. 340 ARTIGO 150º (Actos anteriores à publicidade da acção).

369

sentença de interdição (no caso do Código português, a observação se refere

aos atos anteriores à propositura da ação, e não à sentença de interdição)

também poderão ser anulados em virtude da incapacidade, se esta já existia,

mas desde que fosse notória ou existissem razões para que fosse conhecida

pela outra parte. Contrario sensu, portanto, esses atos deverão ser mantidos,

ainda que a loucura já existisse, mas se a mesma não era notória e nem havia

qualquer razão para que a outra parte dela tivesse conhecimento, uma vez que

o negócio se realizou nas condições normais para os negócios daquela espécie.

No nosso ordenamento, no entanto, não existe norma legal

semelhante, e por essa razão seria possível apontar-se que o negócio praticado

pelo amental seria sempre nulo, pouco importanto se já existe ou não a

sentença de interdição. Ocorre que, como aponta Sílvio Rodrigues341, “tal

solução é demasiado severa para com os terceiros de boa-fé que com ele

negociaram, ignorando sua condição de demente. De modo que numerosos

julgados têm aplicado, entre nós, aquela solução encontradiça alhures,

segundo a qual o ato praticado pelo psicopata não interditado valerá se a

outra parte estava de boa-fé, ignorando a doença mental que o afetava”.

E prossegue o mestre, na mesma obra e local342, e ainda

comentando sobre o tema, dizendo que

“A meu ver tal solução não destoa da lei. O interesse geral, representado pelo anseio de infundir segurança aos negócios jurídicos, impõe que se prestigie a boa- fé. Dessa maneira, devem prevalecer os negócios praticados

Aos negócios celebrados pelo incapaz antes de anunciada a proposição da acção é aplicável o

disposto acerca da incapacidade acidental. ARTIGO 257º (Incapacidade acidental). 1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente

incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratório.

2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar. 341 Sílvio Rodrigues, Direito Civil, v. 1: Parte Geral, p. 49. 342 Sílvio Rodrigues, Direito Civil, v. 1: Parte Geral, pp. 49-50.

370

pelo amental não interditado, quando a pessoa que com ele contratou ignorava e carecia de elementos para verificar que se tratava de um alienado. Entretanto, se a alienação era notória; se o outro contratante dela tinha conhecimento; se podia, com alguma diligência, apurar a condição de incapaz; ou, ainda, se da própria estrutura do negócio ressaltava que seu proponente não estava em seu juízo perfeito, então o negócio não pode ter validade, pois a idéia de proteção à boa-fé não mais ocorre”.

No entanto, veja-se que no presente exemplo, no que diz respeito

à vontade, a situação mostra-se ainda mais grave do que nos exemplos

anteriores. Com efeito, nas situações anteriormente abordadas (a do pai que

vendia o imóvel por um décimo do seu valor e a do credor que concordava

com a assunção da dívida sem saber do estado de insolvência do novo

devedor), havia um vício da vontade, o que significa que pelo menos havia

uma vontade, embora viciada (no primeiro caso, pela lesão, e, no segundo,

pelo erro). No caso do amental, no entanto, ora figurado, simplesmente não há

vontade alguma, por isso que se trata de pessoa absolutamente incapaz,

privada por completo de seu discernimento.

Apesar disso, ou seja, apesar de ser mais grave o defeito da

vontade, conforme as diferenças apontadas no parágrafo anterior, ainda assim

pensamos que, no caso da venda do imóvel pelo incapaz absoluto, o negócio

deverá ser mantido, rejeitando-se a pretensão de que seja declarada a nulidade

do mesmo, uma vez que tal nulidade teria o efeito de frustrar a boa-fé do

comprador, e é precisamente em homenagem e proteção a essa boa-fé que o

contrato, no caso, não poderá ser anulado, inobstante se trate de nulidade

absoluta.

Vejamos, agora, a hipótese inversa, ou seja, aquela na qual houve

a contradição (pelo menos aparentemente), não se verificou qualquer vício da

vontade no primeiro dos comportamentos do sujeito, e mesmo assim a

contradição poderá ser considerada como justificada.

371

Vimos, no subitem anterior (veja-se, retro, 2.3.2.1), que no caso

do empregado ter cometido falta grave, a demora do empregador na adoção de

medidas punitivas, mesmo já tendo ciência da ocorrência do ato faltoso, se

caracterizará como caso de venire contra factum proprium (denominado pela

doutrina especializada de “perdão tácito”), e o empregador não mais poderá

punir o seu empregado, posteriormente, em virtude desse mesmo fato. No

entanto, suponha-se que o empregador, após ter tomado conhecimento da

prática do ato pelo seu empregado, não adotou de imediato qualquer medida

punitiva, mas não o fez porque decidiu apurar minuciosamente o ocorrido,

inclusive com a abertura de chance de ampla defesa para o empregado.

Ora, em tal situação, dependendo do maior ou menor porte e da

complexidade da estrutura organizacional da empresa empregadora, é possível

que essa apuração demore alguns meses, e portanto a demora na aplicação da

punição não poderia caracterizar o venire, eis que estaria justificada pelo fato

do empregador ter sido cauteloso, não dispensando o empregado sem a prévia

e completa apuração dos fatos.

Nesse mesmo sentido, a jurisprudência343 dos nossos tribunais

trabalhistas, embora sem fazer qualquer referência ao venire contra factum

proprium (ainda que para afastá-lo), é tranqüila em admitir que a estrutura

complexa de uma empresa, na qual existam diversos níveis hierárquicos e uma

rígida descrição, feita pelo regulamento da empresa, sobre os procedimentos a

343 EMENTA: JUSTA CAUSA. IMEDIATIDADE. PERDÃO TÁCITO. Diante da complexidade do

sistema financeiro em geral, bem como do número de correntistas envolvidos em trama de monta articulada por empregado bancário, claro que a empresa necessita de um tempo para realizar todo o levantamento das operações irregulares imputadas aotrabalhador. Assim, tem-se que o lapso de 4 meses, havido entre a ciência da infração e a efetivação da rescisão é razoável, justificando-se pela cautela em se apurar melhor as evidências e, ainda, pela necessidade das providências administrativas centralizadas em empresa de grande porte e de complexa administração, não havendo falar em perdão tácito ou decadência do direito de punir, nem em inobservânica de imediatidade, posto que não é ela sinônimo de automaticidade irrefletida. TRT 3ª Região (MG), Processo n° 01105-2001-080-03-00, 8ª T., Ac. unânime, Rel. Juiz Paulo Maurício Ribeiro Pires. J. 07.08.2002, p. DJMG 22.08.2002, pág. 17.

372

serem adotados para a apuração de atos faltosos do empregado, justifica que a

aplicação da punição se dê de modo mais demorado do que ocorreria em uma

empresa de estrutura simplificada. Em outras palavras, portanto, justifica a

aparente contradição.

Como se vê, portanto, voltando ao que mencionamos linhas atrás,

o simples fato da vontade não ser efetivamente livre, ou seja, de ser viciada,

não é suficiente para justificar a contradição e ter o efeito de afastar a

caracterização do venire; por outro lado, o fato de ter sido livre a vontade não

impede que possa ser justificada a contradição. Há, portanto, mais um fator a

ser considerado, e que é o que poderíamos denominar de “normalidade do

negócio”. Em outras palavras, o vício da vontade, em si mesmo, não é o

aspecto mais relevante, para que se considere a contradição como sendo

justificada, e com isso se afaste a ocorrência do venire.

O que de fato interessa é perquirir se o negócio jurídico foi ou

não celebrado dentro das condições de normalidade, para aquele tipo de

negócio. Se o foi, então é legítima a expectativa do outro sujeito, no sentido de

que o negócio deva ser mantido. Em caso contrário, vale dizer, se as condições

do negócio claramente se mostram inadequadas para aquele tipo de situação,

ainda que o outro sujeito não tenha conhecimento de qualquer defeito relativo

à vontade, ainda assim não poderá alegar que em virtude desse negócio

formou-se em seu íntimo a expectativa de sua manutenção.

Em confirmação dessas observações, dentre os três exemplos

acima, trazidos a exame, veja-se que, no caso do incapaz absoluto, apesar de

tal incapacidade, nada há de anormal no negócio, pois a coisa vendida havia

sido avaliada em duzentos mil reais, e o valor venal foi de cento e noventa e

cinco mil reais, sendo certo que é bastante comum e razoável que haja uma

ligeira flutuação no preço, para mais ou para menos, quando cotejado com o

373

valor da avaliação previamente feita. E é precisamente por ter o primeiro dos

comportamentos (a celebração do negócio) apresentado todos os traços de

normalidade, ou seja, por ter sido contratado nas mesmas condições em que

normalmente seriam celebrados os contratos, nessa mesma situação, foi que

surgiu no outro sujeito a expectativa que impedirá o desfazimento contratual.

Nos outros dois exemplos, no entanto, diferente é a situação, pois

tanto no caso da lesão quanto no caso da concordância com a assunção de

dívida, é de se observar que o sujeito, no primeiro dos seus comportamentos,

agiu de um modo que não seria o normal para aquele tipo de situação. No caso

da lesão, as condições do negócio são claramente inadequadas, não se

podendo considerar como normal que um imóvel cujo valor situa-se em torno

de um milhão de reais venha a ser vendido pelo preço de cem mil reais.

E veja-se que, mesmo que o comprador não saiba do problema de

saúde do filho do vendedor (na verdade, se soubesse, não seria hipótese de

lesão, mas de estado de perigo), ainda assim, qualquer pessoa mediana saberia

identificar que o valor da venda se mostra completamente irreal, sendo tão

grande a desproporção entre as prestações que não poderá esse comprador

pretender-se opor ao desfazimento do negócio sob a alegação de que havia

legitimamente acreditado que o mesmo não apresentava nada de anormal e por

isso deveria ser mantido. Esse padrão de normalidade, como é evidente, só

pode ser aferido em cada circunstância concreta, e não depende do

conhecimento (ou da falta dele) por parte do comprador.

No terceiro dos exemplos, ou seja, no caso da assunção de dívida,

pode-se com facilidade chegar à mesma conclusão acima, ou seja, o primeiro

dos comportamentos do credor, ao concordar com a assunção da dívida pelo

novo devedor, fugiu do comportamento que poderia ser considerado como

normal. Com efeito, parece evidente que o credor, se soubesse da situação de

374

insolvência do novo devedor, que lhe foi apresentado pelo antigo, não teria

concordado com a substituição. Logo, a concordância fugiu ao que se poderia

considerar como normal, pois a normalidade, ao contrário, seria exatamente a

não concordância.

E também aí, nesse caso do erro ocorrido no assentimento

referente à assunção de dívida, pode-se mais uma vez observar que se mostra

absolutamente irrelevante o fato do antigo devedor de nada saber sobre o

estado de insolvência do novo, pois ainda assim aquele poderá ser

responsabilizado pelo credor, que dele poderá exigir o pagamento da

obrigação. É que o antigo devedor tinha o dever de ter investigado a situação

patrimonial do devedor por quem se pretende fazer substituir. Se não o fez, foi

negligente; se o fez e descobriu a situação ruinosa do novo devedor, e sobre

ela silenciou, então agiu com dolo. E se diligenciou para averiguar essa

situação patrimonial do novo devedor, mas sobre a mesma nada descobriu, de

qualquer forma agiu com culpa in eligendo, e continuará a ser responsável.

Após essas observações, podemos tentar formular uma primeira

conclusão sobre as características da contradição em si mesma, ou seja, no

sentido de que a mesma, para que se possa caracterizar o venire contra factum

proprium, deve ser injustificada. O que se pode concluir, a partir da análise até

aqui feita, é que será justificada a contradição, e por isso não se poderá argüir

a ocorrência do venire contra factum proprium, quando o defeito no primeiro

comportamento disser respeito à declaração de vontade, sendo que em virtude

desse defeito essa declaração não ocorreu dentro dos padrões de normalidade

dos negócios da espécie, e por isso poderia – e mesmo deveria – ter sido

detectada a falha pelo outro sujeito, impedindo a formação da legítima

expectativa.

375

Quando, ao contrário, apesar do defeito no primeiro

comportamento dizer respeito à declaração de vontade, essa declaração levou

a que o negócio fosse celebrado dentro das condições normais, assim

entendidas aquelas que se poderia esperar para os negócios daquele tipo, neste

caso a contradição não se justifica, uma vez que a falha detectada no primeiro

comportamento não impediu que fosse criada no outro sujeito a legítima

expectativa da correção e da adequação do negócio, e este, por tal razão,

deverá ser mantido, sendo o vício, no caso, irrelevante.

Convém observar, neste ponto, que a extrema dificuldade em se

chegar a uma conclusão sobre as características dessa contradição,

especificamente na apuração dos casos em que a mesma pode ser considerada

como justificada, e por isso capaz de afastar o reconhecimento da ocorrência

do venire, é inerente às características da própria figura em exame. Ora, o

venire contra factum proprium, como já vimos reiteradas vezes, está

enquadrado no espectro mais amplo da violação dos deveres acessórios que

decorrem da boa-fé como norma de conduta, ou seja, da boa-fé objetiva.

Portanto, se a boa-fé em si mesma, em seu aspecto objetivo, não

pode ser conceituada de um modo único, que seja amplo o bastante para

abarcar, em um conceito teórico, todas as ocorrências práticas possíveis, uma

vez que suas características sempre dependerão das circunstâncias do caso

concreto, parece bastante evidente que também as situações capazes de serem

identificadas como sendo de violação dessa mesma boa-fé, seja em virtude da

contradição ou de qualquer outro motivo, também não poderão ser

enquadradas em uma conceituação única, capaz de abarcar e permitir

aprioristicamente a identificação de todas as situações concretas.

Essas colocações vêm com a finalidade de se alertar que, em

verdade, no máximo se consegue alcançar uma aproximação de um conceito

376

amplo – e foi a esse resultado que chegamos acima –, que possa permitir a

identificação do maior número de casos possíveis, mas sem perder de vista

que a riqueza de situações da vida quotidiana sempre poderá trazer nuances

que surpreendam e afastem o cabimento do conceito elaborado. Em outras

palavras, sempre haverá situações que, não tendo embora as características

apontadas acima, poderão ser identificadas como sendo de contradição que, no

caso, se mostra amplamente justificada. Ou, ao contrário, situações que,

embora apresentando os caracteres acima identificados, no caso concreto não

afastarão a caracterização do venire contra factum proprium.

Assim, por exemplo, dentro dessas inúmeras variantes que podem

ocorrer em cada caso concreto, pode-se apontar que se o vício, em vez de ser

referente à capacidade do agente, dissesse respeito à forma, neste caso, como

já examinamos (veja-se, retro, o item 2.3.2.1, c.1), a desobediência à previsão

legal sobre a forma não afeta a correspondência entre a vontade real do agente

e aquela que foi efetivamente externada, e por essa razão pode-se apontar que

o vício de forma, em regra, não afeta as condições normais do contrato, por

isso que tal vício, no que se refere a obstaculizar a ocorrência do venire contra

factum proprium, se mostrará completamente irrelevante.

Continuando o exame da contradição que se mostra capaz de

marcar a conduta do sujeito como venire contra factum proprium, pode-se em

seguida apontar que não é todo e qualquer comportamento contraditório que

dá origem ao venire, independentemente de ser ou não justificada a

contradição. Ora, basta que se observe que se toda e qualquer contradição

fosse proibida, assim que uma pessoa tomasse uma posição, em relação a um

certo e determinado negócio, a partir daí já estaria irremediavelmente

vinculada, e todos os seus comportamentos posteriores, referentes a esse

377

mesmo negócio, já seriam previamente conhecidos, face à proibição absoluta

de que viessem a ser contraditados.

Se fosse admissível tamanha rigidez, nessa hipótese, como

acertadamente aponta Menezes Cordeiro344, “as permissões normativas

esgotar-se-iam no primeiro exercício e todo o relacionamento social

converter-se-ia num edifício rígido de deveres irrecusáveis”, ou seja, a partir

de um primeiro comportamento, qualquer que fosse ele, a pessoa acabaria

vinculada, de modo que todos os seus comportamentos posteriores tivessem

que mostrar absoluta coerência, o que se mostraria contra a natureza humana e

mesmo contra a própria natureza do Direit o, sendo por isso uma idéia

inconcebível e inaceitável.

Assim, a contradição deverá sempre se verificar entre

comportamentos humanos que, no caso concreto, possam ser considerados

como juridicamente relevantes. Tal afirmação, contudo, longe de por fim à

questão, suscita uma outra e evidente pergunta, sobre quais os critérios para

que um determinado comportamento possa ser considerado juridicamente

relevante em relação a um determinado caso concreto.

É certo que a maior ou menor relevância de um determinado fato

jurídico, no que se refere a um negócio jurídico específico, estará sempre a

depender do ângulo que se queira examinar, desse mesmo negócio. Assim, por

exemplo, se o que se pretende examinar é se houve ou não a ocorrência da

prescrição, o fato essencial a ser examinado é o transcurso do tempo, sendo o

que se mostra de maior relevância jurídica. Em relação à ocorrência dessa

prescrição, em regra se mostrará irrelevante perquirir se uma obrigação é

portável ou quesível.

344 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 751.

378

No entanto, caso se pretenda examinar se o devedor, que não

procurou o credor para efetuar o pagamento, está ou não em mora, se dará

exatamente o inverso da situação acima descrita, ou seja, agora é o decurso do

tempo que se mostrará juridicamente irrelevante, enquanto que a

caracterização da obrigação como sendo quesível ou portável se mostrará

como o fator de maior relevância jurídica.

Da mesma forma, pode-se apontar que, para fins de

caracterização da fraude contra credores, em caso de perdão de dívida, oferta

de garantia, ou de transmissão gratuita de bens, quando tais atos sejam

praticados por devedor insolvente ou que, em virtude deles, seja levado ao

estado de insolvência, mostra-se absolutamente irrelevante perquirir se o

devedor perdoado, o credor que recebeu a garantia ou o adquirente dos bens,

ou o próprio devedor insolvente, sabiam ou não do estado de insolvência, pois

em qualquer dos casos estará caracterizada a fraude e poderão os credores

quirografários, prejudicados pelo desfalque do patrimônio do devedor, buscar

a anulação do negócio jurídico.

No entanto, quando o que se quer é examinar se o alienante de um

determinado bem, em contrato comutativo, apenas restituirá o preço recebido,

em caso de vício redibitório, ou se, ao contrário, além do preço também

responderá pelas perdas e danos sofridas pelo adquirente, nesse caso já se

mostrará essencial examinar se o alienante sabia ou não da existência do

defeito oculto, capaz de tornar a coisa imprestável para o seu uso normal ou

reduzir-lhe de modo acentuado o valor. E mesmo a ciência do adquirente se

mostra relevante, pois se sabia do vicio, então nem ao menos se trata de vício

redibitório.

Pois bem, todas essas comparações acima foram apenas para

realçar que o que se mostra juridicamente relevante, em cada análise de um

379

negócio jurídico, depende da finalidade que se pretende obter com a análise

em questão. No caso específico que estamos examinando, o que se pretende é

a identificação de quais os comportamentos humanos que se mostram

relevantes para fins de, identificada a contradição entre eles, ser também

identificada a ocorrência do venire contra factum proprium. Em relação a tal

finalidade, é fácil de se perceber que o comportamento juridicamente

relevante será tão-somente aquele que, nas circunstâncias do caso concreto,

mostrou-se capaz de causar, no outro sujeito, a expectativa de que o negócio

seria celebrado ou mantido.

Além disso, pode-se ainda acrescentar que essa possibilidade de

que seja formada a expectativa, quanto ao negócio jurídico, deve ser aferida

em relação ao sujeito mediano, normal, e não em relação àquela pessoa que se

mostra demasiadamente crédula. Em outras palavras, o comportamento

mencionado deve ser suficiente para gerar a legítima expectativa em pessoa

mediana, não servindo como referência a pessoa que, sem qualquer análise

crítica, cria essa expectativa a partir de qualquer situação ainda que as

circunstâncias desta indiquem que seja muito pouco provável que venha a se

confirmar o negócio jurídico.

Ora, se o “grau de credulidade” tivesse que ser levado em conta,

para fins de verificação da ocorrência do venire contra factum proprium, aí já

não teríamos mais a análise de comportamentos contraditórios, mas sim o

exame do maior ou menor grau de percepção do outro sujeito, e duas situações

idênticas, com exatamente as mesmas características, poderiam ou não se

caracterizar como venire, conforme fosse maior ou menor esse grau, o que

teria o evidente efeito de aumentar de modo indesejado a insegurança dos

negócios jurídicos e, principalmente, a insegurança na aferição do que deve

380

ser, em cada caso, a conduta conforme a boa-fé, que deixaria de ter análise

objetiva.

Como fecho do presente subitem, convém que se aponte que essa

convivência de casos onde a contradição entre os comportamentos não é

tolerada, fazendo com que se caracterize o venire, com situações nas quais a

contradição encontra-se justificada (e mesmo expressamente admitida pela

norma legal), e por isso não há que se falar em ocorrência do venire contra

factum proprium, não quebra a harmonia do sistema jurídico, mas apenas lhe

confere maleabilidade e amplitude suficientes para que a partir dele se possa

fazer o enfrentamento de situações diversificadas.

Ora, já examinamos, por diversas vezes, que a boa-fé, enquanto

regra de conduta, não poderá jamais ser enclausurada em um conceito teórico

previamente formulado de modo completo e acabado, pois sempre serão

necessários e indispensáveis a avaliação e o enquadramento conforme as

circunstâncias do caso concreto. Logo, no examinar dessas circunstâncias

serão enfocadas tanto as hipóteses nas quais a contradição será admitida

quanto aquelas nas quais a contradição será considerada como comportamento

inadmissível. E isso, repete-se, não rompe a harmonia do sistema, mas apenas

o deixa aberto, para ser completado pelo operador do direito na análise das

circunstâncias de cada caso concreto.

2.3.2.3. O dever acessório que está sendo violado.

Examinamos, até aqui, cada um dos comportamentos

contraditórios do sujeito, assim como a própria contradição, buscando extrair

os sinais característicos desses elementos, de modo a detectar quando a sua

presença será indicativa da ocorrência do venire contra factum proprium.

381

Nessa análise, repetidas vezes mencionamos que a contradição entre as duas

condutas do sujeito caracterizará o venire todas as vezes em que for violado

um dever acessório, decorrente da necessidade de que os sujeitos, em um

negócio jurídico, adotem conduta compatível com os ditames da boa-fé. Neste

item, portanto, nosso exame incidirá precisamente sobre esse dever acessório,

cuja violação se mostra indispensável à configuração do venire.

É certo que o venire pode ser descrito com o auxílio à fórmula

mais ampla de aplicação da boa-fé, ou seja, pode-se dizer, com acerto, que o

comportamento que de modo inadmissível afronta a conduta anterior do

sujeito, é inadmissível exatamente porque se constitui em um procedimento

que se mostra contrário à boa-fé. Só que também é certo que essa descrição se

mostra por demais imprecisa, não permitindo um critério sequer razoável para

a identificação do venire.

O problema é que a boa-fé, como já examinamos na primeira

parte do presente estudo, é demasiadamente ampla, dela decorrendo inúmeros

deveres acessórios, cuja violação pode ser caracterizada de diversas formas,

nem sempre se constituindo em venire, sendo certo que o Direito, enquanto

ciência, não se compraz com essa imprecisão terminológica, ou seja, com o

uso de termos que abrangem muito mais do que aquilo que com eles se

pretende descrever. Logo, não é aceitável que se pretenda descrever o venire

contra factum proprium, simplesmente, como sendo uma “violação da boa-

fé”, uma vez que dentro dessa mesma expressão “violação da boa-fé” outros

institutos também estão contidos.

Na realidade, jamais se pode perder de vista um balizamento que

se mostra essencial para o cientista do direito, que é a permanente necessidade

382

de busca da precisão terminológica. Assim, como ensina Bobbio345, mostra-se

completamente inadmissível essa ambigüidade de expressões, uma vez que o

jurista – ou, de modo mais amplo, qualquer cientista, ao examinar seu ramo

das Ciências – necessariamente terá que iniciar o exame do instituto em foco

com a determinação do significado das palavras que passam a fazer parte da

proposição normativa a ser examinada, devendo tal significado ser mantido de

modo uniforme, até o final da pesquisa, sob pena de se tornar incompreensível

o resultado obtido.

A idéia, portanto, é que em tal análise terminológica venha a ser

fixado o conjunto de regras que estabelecem o uso de determinada palavra, ou

seja, deverá ser fixado o conceito correspondente a essa palavra. E não é

despiciendo observar que é essa definição precisa que marca de modo claro a

diferença entre um termo científico e um não científico: o primeiro

corresponde a um conceito exatamente definido, com significação precisa,

enquanto o segundo é usado de diversos modos.

O jurista, enquanto cientista, com seu trabalho intelectual, tende à

construção de termos definidos com exatidão, sendo certo que não há qualquer

rigor científico quando se procede, com indiferença ao emprego de um ou

outro termo para expressar o mesmo instituto jurídico ou, ao contrário, quando

se usa um único termo que é capaz de abranger diversos institutos jurídicos,

cada um com suas próprias características.

Por outro lado, é evidente – e não se pode deixar de reconhecê-lo

– que nem sempre se mostra fácil essa busca de determinação da terminologia

precisa, e é exatamente em virtude dessa dificuldade que muitas vezes nos

deparamos com estudos que optam pelo caminho mais fácil da imprecisa

345 Norberto Bobbio, Teoria della scienza giuridica, passim.

383

generalização terminológica, renunciando à busca de perseguir o rigor para

um termo ou grupo de termos.

Nesse sentido, especificamente em relação ao venire contra

factum proprium, assiste ampla razão a Menezes Cordeiro 346 quando afirma

que se tornou comum, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a afirmação

genérica de que o venire é aplicação da boa-fé. Ou, então, a também genérica

afirmação de que o assumir de comportamentos contraditórios viola a regra da

observância da boa-fé. O problema é que essa falta de rigor terminológico

abala todo o sistema, tendo o indesejado efeito localizado de tornar muito

vaga – e, por isso, insegura – a justificação científica do venire.

Trazendo o enfoque para o nosso trabalho, podemos então afirmar

que a conceituação do venire apenas com base na violação genérica da boa-fé,

ao lado de se mostrar inútil para a identificação do instituto, não se mostra

capaz de dar esteio à justificação científica do mesmo. Faz-se necessária,

portanto, a apuração mais precisa e cirúrgica sobre qual é o aspecto da boa-fé

que está sendo violado. De modo mais claro, necessário se mostra que

identifiquemos, dentre os diversos deveres laterais que derivam da boa-fé,

qual é o que está sendo violado pela contradição dos comportamentos, de

modo a caracterizar a ocorrência do venire contra factum proprium.

Ao examinarmos a questão dos comportamentos contraditórios

(item 2.3.2.1, supra), por várias vezes mencionamos que estaria caracterizado

o venire contra factum proprium quando, em virtude do primeiro

comportamento, o outro sujeito tivesse legitimamente criado a expectativa de

que o negócio seria celebrado ou mantido, sendo que essa expectativa veio a

ser frustrada pelo segundo dos comportamentos. Logo, de modo amplo, pode-

se apontar que o venire se liga ao dever que o sujeito tem de não frustrar a 346 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 752.

384

expectativa que, em virtude do seu comportamento, foi criada pelo outro

sujeito.

Esse dever de não frustrar a expectativa para cuja criação se

contribuiu, a partir de uma primeira conduta, como facilmente se percebe,

pode ser inserido no dever acessório de lealdade. Só que esse contexto – dever

de lealdade – ainda se encontra mais amplo do que o desejado, sendo

necessário que façamos delimitação ainda mais precisa.

Com efeito, já verificamos, ao examinarmos os deveres laterais

das obrigações, que o dever de lealdade pode se manifestar de diversas

formas: dever de não abandonar injustificadamente as negociações, dever de

não fazer concorrência desleal com o outro sujeito (tanto no caso do

empregado quanto no caso de alienação de um fundo de comércio), dever de

prestar assistência, mesmo após a extinção do contrato em virtude do

cumprimento, etc.

Dessa forma, como já havíamos comentado superficialmente,

linhas atrás, de modo mais específico, dentro do dever acessório de lealdade, a

violação do mesmo que se mostra capaz de caracterizar o venire é aquela que

viola a confiança de uma das partes de que o negócio seria concluído ou

mantido em determinadas condições, confiança essa que se formou de modo

legítimo, em um dos sujeitos, por ser a conclusão ou a manutenção das

condições a conseqüência natural do anterior comportamento do outro

agente347.

Mas veja-se que essa ligação específica do venire contra factum

proprium com a quebra da confiança, deixando-se de lado o enquadramento

do mesmo no instituto mais amplo da boa-fé, é relativamente recente, tendo 347 De Los Mozos explica que a confiança tem sua origem em um dos aspctos da fides romana, mais especificamente a fidelidade, que se apresenta como um fundamento natural das relações humanas, dela derivando a confiança. José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 22.

385

sua origem nos estudos da doutrina alemã, já na segunda metade do século

XX, mais especificamente nos estudos desenvolvidos por Canaris, conforme

noticia Menezes Cordeiro348, esclarecendo o ilustre jurista português, contudo,

que é possível a ocorrência de casos de venire nos quais não se tenha uma

situação clara de violação da confiança 349.

Temos, portanto, que haverá a caracterização do venire contra

factum proprium sempre que um sujeito, comportando-se em contradição com

o seu próprio comportamento anterior, frustrar a confiança que em virtude

deste havia feito surgir no outro envolvido no negócio. Veja-se que essa

delimitação mais precisa, saindo-se do campo amplo da frustração à boa-fé,

para o campo mais claramente delimitado da quebra da confiança, torna mais

clara e confiável a identificação do venire, pois fornece parâmetro mais

preciso, e por isso mesmo mais capaz de emprestar consistência e segurança à

identificação do venire em situações concretas, afastando ou pelo menos

reduzindo a margem de subjetividade do julgador.

Vejamos um exemplo, para o mais fácil entendimento dessas

colocações acima. Vimos, retro (veja-se o item 2.3.2.1), exemplo no qual o

empregador, embora ciente de que o seu empregado havia cometido falta

grave, nada fez, abstendo-se de adotar qualquer medida punitiva em desfavor

348 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 742. 349 Idem, ob. cit., p. 755, nota n° 413. O jurista se refere à situação onde uma pessoa, perante o tribunal arbitral, argüiu que a competência seria do tribunal comum; posteriormente, perante o tribunal comum, argüiu que havia sido firmado compromisso arbitral, e portanto a demanda deveria ser remetida para o juízo arbitral. Mas esclarece o mestre que essa situação só pode ser enquadrada como sendo hipótese de venire contra factum proprium se a este for dado um sentido amplo. Perante o nosso direito positivo, contudo, se por um lado é certo que tal comportamento violaria o dever de proceder com lealdade e boa-fé, expressamente imposto no artigo 14, II, do Código de Processo Civil, por outro lado, não nos parece que se concretize, aí, a figura do venire, mas sim a figura da litigância de má -fé, expressamente prevista no artigo 17, IV, do Código de Processo Civil, por estar a parte opondo resistência injustificada ao andamento do processo. Podemos apontar, no nosso direito positivo, situação semelhante à do exemplo mencionado por Menezes Cordeiro, e que se encontra expressamente vedada pela norma legal: trata-se da hipótese prevista no artigo 806, do Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho), que de modo explícito proíbe à parte a argüição de conflito de competência (conflito “de jurisdição”, na dicção legal), quando já houver oposto na causa a exceção de incompetência.

386

do mesmo. Ora, é pacífica a doutrina trabalhista ao afirmar que a fidúcia, ou

seja, o elemento confiança, do empregador em relação ao empregado, é

indispensável à manutenção do contrato de trabalho, e tanto assim que as

hipóteses de justa causa são descritas pela doutrina como sendo casos nos

quais o empregado agiu de modo a quebrar tal fidúcia.

Assim, quando o empregador tomou conhecimento do ato faltoso,

praticado pelo seu empregado, poderia ter sido quebrada essa fidúcia, se a

falta foi grave o bastante para quebrá-la. No entanto, se o empregador, mesmo

após tal descoberta, manteve o empregado no mesmo posto de trabalho, ou

seja, se manteve intocado o contrato, tal comportamento leva a crer que a

fidúcia não foi afetada, apesar da falta cometida, pois se tivesse sido, não faria

sentido que o contrato de trabalho fosse mantido sem um de seus elementos

naturais.

Logo, essa omissão do empregador, que se constituiu no primeiro

comportamento do mesmo, foi suficiente para gerar no empregado a confiança

de que seu contrato será mantido, ou seja, de que em virtude daquela falta

específica o mesmo não será desfeito por justa causa, e por isso não será

admissível que esse empregador, posteriormente, venha a agir de modo a

frustrar essa confiança, vale dizer, venha a se valer daquela falta grave, em

relação à qual nada fizera, para depois dispensar o empregado por justa causa,

quando este já tinha razões para acreditar que isso não mais ocorreria.

No entanto, se o falar-se em “confiança” mostra-se adequado para

a solução de um problema, qual seja o de maior precisão e segurança na

identificação dos casos de venire, por outro lado, vem a gerar um outro

obstáculo, que precisa ser desde logo superado, sob pena de emperrar todo o

estudo do tema.

387

O problema é que até agora centramos nosso estudo na questão da

boa-fé enquanto norma de conduta, ou seja, a boa-fé objetiva, imune a

aspectos subjetivos como culpa, dolo, intenção, etc. Ora, nessas condições,

como se poderá fazer para identificar a confiança, uma vez que esta se forma

no íntimo do sujeito, ou seja, tem contornos nítida e predominantemente

subjetivos? Não estaria essa busca de um elemento subjetivo subvertendo toda

a estrutura doutrinária referente à boa-fé enquanto fonte dos deveres

acessórios dos negócios jurídicos, ou seja, não se estaria a subjetivar um

instituto que, para a finalidade do presente estudo, só interessa no seu aspecto

objetivo?

Na realidade, essa dificuldade é apenas aparente. Em primeiro

lugar, pode-se com tranqüilidade apontar que não há subversão de coisa

alguma, pois a análise objetiva da boa-fé é feita em relação ao sujeito que atua

de modo contraditório, em seus dois comportamentos, e não em relação ao

outro sujeito, no qual se forma a confiança. Dito de outro modo, o aspecto

objetivo deve ser aferido no sentido de que, uma vez verificada a contradição

do segundo comportamento, em relação ao primeiro, pouco importa se o

sujeito que agiu dessa forma incoerente sabia da contradição, se a provocou

intencionalmente ou pelo menos por sua culpa, etc. Todos esses detalhes são

absolutamente irrelevantes, pois só o que interessa é que a contradição em si

mesma tenha existido.

Logo, podemos apontar que a objetividade da avaliação se refere

ao agente dos comportamentos contraditórios, em relação ao qual serão

desconsiderados os fatores de subjet ivação, e não em relação ao agente

confiante, vale dizer, aquele no qual foi criada a confiança como decorrência

da conduta original do outro.

388

Em segundo lugar, pode-se também mencionar que, embora de

fato haja a subjetivação, em relação ao “agente confiante”, nessa aferição do

surgimento ou não da confiança, é possível aproximá-la de uma análise

objetiva. Procede-se a essa aproximação de diversas formas. Assim, por

exemplo, em vez de serem consideradas as características específicas do

confiante, seu grau de instrução, sua crença religiosa, sua maior ou menor

idade, etc., deve-se buscar fazer a análise em relação a uma pessoa mediana da

sociedade. Em outras palavras, o que se deve perquirir é se, naquelas mesmas

condições, seria razoável que uma pessoa normal, de inteligência mediana,

acreditasse (confiasse), a partir do comportamento do outro sujeito, que o

negócio seria celebrado ou mantido naquelas condições.

Veja-se que, a não ser assim, seria praticamente impossível a

aferição do surgimento – ou não – da confiança, pois teriam que ser levados

em conta fatores que se mostram quase como impenetráveis, tais como a

maior ou menor fé religiosa do confiante, a existência de uma intuição mais

apurada do que a média, o grau de credibilidade no que é dito pelas demais

pessoas, etc. O juiz, portanto, em um caso concreto, deve ignorar essas

características pessoais que nos diferenciam uns dos outros, considerando um

sujeito médio, comum.

No exemplo apresentado acima, onde o empregador, embora

ciente do grave ato faltoso cometido por seu empregado, não adotou qualquer

medida punitiva, qualquer pessoa mediana, que estivesse no lugar do

empregado, naquelas mesmas condições, ou seja, vendo o tempo passar sem

que contra ele fosse adotada qualquer providência, justif icadamente

acreditaria que o empregador, apesar de conhecer a falta, decidira não aplicar

ao empregado qualquer punição. Essa é a confiança capaz de assinalar a

389

ocorrência do venire contra factum proprium, aferida conforme os padrões

médios da sociedade, vale dizer, conforme os padrões de normalidade.

Nessa mesma linha de raciocínio, no exemplo que vimos acima

(veja-se o item 2.3.2., b) na hipótese de separação judicial litigiosa com esteio

no adultério ou em outra grave violação dos deveres do matrimonio, se mesmo

após descoberta essa grave violação, o cônjuge inocente continua a conviver

com o culpado, é de se imaginar que tal convivência ainda é possível, ou seja,

que não se tornou impossível a vida em comum. Assim, dessa manutenção da

vida em comum surge no cônjuge culpado, assim como surgiria em qualquer

pessoa mediana, nos padrões de normalidade, a justa expectativa de que não

haverá a ruptura da sociedade conjugal em virtude da atribuição de culpa, uma

vez que tal ruptura pressupõe a impossibilidade da vida em comum, e no caso

aparenta não haver tal impossibilidade.

Dessarte, qualquer pessoa normal teria a confiança de que ainda

será mantida a vida em comunhão, e por ter gerado essa confiança na

manutenção dessa situação, ao concordar com a persistência da vida em

comum mesmo após a descoberta da grave violação dos deveres conjugais, o

cônjuge inocente não mais poderá, futuramente, valer-se dessa mesma

violação para estear a separação litigiosa. Poderá separar-se de modo

consensual ou com esteio em outra ocorrência que também se configure como

grave violação dos deveres conjugais, mas não mais nesse fato que, mesmo

depois de descoberto, não o afastou da vida em comum com o outro.

Além disso, e também com forte traço de objetivação, em relação

ao aspecto subjetivo da confiança, mostra-se importante o comportamento do

“confiante”, adotado posteriormente ao primeiro dos comportamentos do

sujeito que agiu de modo contraditório. Assim, se o primeiro dos

comportamentos de um dos sujeitos (o factum proprium) faria com que um

390

sujeito médio acreditasse que o contrato seria fechado, e depois do mesmo o

outro sujeito (o confiante) passou a efetuar despesas que não precisaria

realizar, caso não fosse aperfeiçoada a avença, tem-se aí fortíssimo indício de

que efetivamente houve o surgimento da confiança.

Suponha-se, à guisa de exemplo, que as negociações diziam

respeito à venda de um carro, e o vendedor se comportou de tal modo que

levou o comprador a acreditar que o contrato seria efetivamente celebrado. O

comportamento do vendedor foi de tal modo que qualquer pessoa normal

acreditaria que de fato o pacto se aperfeiçoaria. O comprador, logo após essa

conduta inicial do vendedor, mandou ampliar a garagem de sua casa, de modo

a comportar mais um carro, e comprou acessórios automotivos que servem

especificamente para aquele modelo que estava negociando com o vendedor.

Todo esse conjunto de fatores permite uma avaliação esteada em

elementos objetivos, extraídos da conduta de um dos sujeitos, mas de modo a

aferir-lhe uma situação subjetiva, ou seja, se efetivamente houve a formação

da confiança em que o negócio seria fechado.

É que a idéia de inadmissibilidade do venire engloba a questão de

ser inviável, salvo com a ocorrência de prejuízos, que o sujeito confiante

simplesmente retorne à situação anterior, em virtude da não celebração do

contrato ou da não manutenção das condições que esperava. Em outras

palavras, o que se quer impedir é que o confiante, embora possa, material e

juridicamente, retornar à situação anterior, tenha que arcar com os custos de

fazê-lo, se isso decorre de injustificada contradição comportamental do outro

sujeito, por isso que este é que deverá arcar com tais prejuízos.

Mas algumas importantes observações devem ser feitas neste

ponto. A primeira delas é que o surgimento da confiança se mostra

indispensável, para que se possa caracterizar o venire contra factum proprium.

391

Logo, se por qualquer razão não houve a formação da confiança pelo sujeito,

não se caracterizará o venire, pouco importando que uma pessoa normal,

mediana, naquelas circunstâncias teria confiado no fechamento do contrato ou

na manutenção de determinadas condições.

Assim, por exemplo, no caso acima, referente à venda do veículo,

suponha-se que, apesar do vendedor ter se comportado de modo tal que levaria

qualquer pessoa mediana a acreditar que o carro lhe seria efetivamente

vendido, o comprador, por alguma razão, não criou a expectativa de que tal

venda seria realizada, ou seja, não teve no seu íntimo a formação da confiança.

Neste caso, o eventual comportamento contraditório do vendedor,

abandonando injustificadamente as negociações e desistindo da venda, não

seria caracterizado como venire contra factum proprium.

Além disso, essa confiança, ainda que tenha efetivamente surgido

no íntimo do sujeito (o confiante), o que se pôde aferir, em um caso concreto,

por exemplo, em virtude das despesas que esse sujeito realizou em função do

negócio que esperava realizar, se a mesma decorre de excesso de ingenuidade

ou de falta de diligência do confiante, em tais casos não se poderá falar em

venire contra factum proprium.

Nesse sentido foi que mencionamos, reiteradas vezes, o sujeito

normal, mediano, ou seja, o sujeito que cria a expectativa quando a situação se

mostra razoavelmente favorável a que a mesma seja criada, e que além disso

tomou os cuidados necessários, para evitar que fosse ludibriado apenas em

virtude de sua negligência. É que, em algumas situações, a própria lei cuida de

estabelecer alguns requisitos de ordem prática, sendo certo que os mesmos se

constituem em fatos que deverão ser atendidos para que se possa falar em

surgimento da confiança.

392

Assim, suponha-se que dois sujeitos estão negociando a venda de

um imóvel, sendo que o vendedor adotou comportamento tal que se mostrou

suficiente para levar o comprador a acreditar que o negócio seria celebrado, ou

seja, despertou no íntimo do comprador a confiança que se mostra necessária à

caracterização do venire. O vendedor, por exemplo, pediu todos os dados do

comprador para redigir a minuta do contrato, ou para redigir um contrato de

promessa de compra e venda, referente ao imóvel. Posteriormente, no entanto,

o vendedor simplesmente devolveu os documentos do comprador, sem

maiores explicações, informando que o negócio não seria concretizado.

Têm-se aí, aparentemente, todos os elementos necessários à

caracterização do venire contra factum proprium. No entanto, suponha-se,

ainda, que no caso em questão o imóvel não está e nunca esteve registrado em

nome do vendedor, sendo que este não é e nunca foi o proprietário do mesmo,

e nem ao menos está autorizado pelo proprietário a negociar a venda do bem.

Ora, em tal caso, apesar de haver surgido a confiança no comprador, isso

ocorreu em virtude da clara negligência do mesmo, que deixou de adotar um

cuidado básico, indispensável a quem pretende comprar um imóvel, que é a

aferição sobre a propriedade do bem, junto ao registro imobiliário, para

verificar se está tratando com o proprietário ou, pelo menos, com a pessoa

autorizada.

Logo, em tal caso a confiança se formou sem qualquer

embasamento que a justificasse, tratando-se de simples negligência do sujeito,

e por isso não estará caracterizado o venire.

Assim, em relação ao dever lateral que é violado, na

caracterização do venire contra factum proprium, pode-se dizer, em resumo,

que se trata da quebra da confiança que surgiu em um dos sujeitos em virtude

do comportamento primário do outro, mas sendo que essa confiança precisa

393

ter surgido em uma situação na qual qualquer pessoa mediana, naquelas

mesmas condições, também confiaria nas conseqüências jurídicas do negócio

em questão. E, além disso, essa confiança não pode decorrer da ingenuidade

ou do excesso de credulidade do confiante, bem como não pode ser decorrente

de sua negligência, por ter deixado de tomar os cuidados necessários para a

celebração dos negócios jurídicos daquela espécie.

2.3.2.4. Um conceito para o venire contra factum proprium.

A partir desses elementos que caracterizam a ocorrência do venire

contra factum proprium, acima examinados, já se mostra possível buscarmos

um conceito abrangente, capaz de indicar com razoável precisão uma

descrição para o instituto em questão.

Assim, parece-nos que o venire pode ser conceituado como sendo

uma seqüência de dois comportamentos que se mostram contraditórios entre si

e que são independentes um do outro, cada um deles podendo ser omissivo ou

comissivo e sendo capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, de modo tal

que o primeiro se mostra suficiente para fazer surgir em pessoa mediana a

confiança de que um determinado negócio jurídico será concluído ou mantido

em determinadas condições, enquanto o segundo vem a frustrar a legítima e

razoável expectativa que havia sido criada no outro sujeito, sem que exista

justificativa fática ou amparo legal que possa justificar a contradição entre os

comportamentos e a conseqüente frustração da expectativa, sendo em tal caso

irrelevante averiguar se houve dolo ou culpa do que agiu de modo

contraditório.

2.3.3. Conseqüências jurídicas do venire contra factum proprium.

394

Vimos, até aqui, como se pode identificar, em uma situação

concreta, a ocorrência do venire contra factum proprium. A etapa seguinte,

portanto, consiste na aferição sobre quais são as conseqüências jurídicas dessa

identificação, ou seja, o que fazer com os negócios jurídicos abrangidos pelo

primeiro e pelo segundo dos comportamentos contraditórios. Esse exame, que

agora se faz especificamente em relação ao venire contra factum proprium, já

foi feito, linhas atrás, em relação às violações da boa-fé em geral (remetemos

o leitor à leitura do item 1.9).

Na realidade, ao longo do desenvolvimento feito nas linhas

anteriores, apontamos diversas soluções diferentes, variando as conseqüências

jurídicas conforme a situação específica de que se tratava. O problema é que

não há possibilidade de se estabelecer uma solução única, devendo o juiz, em

cada caso concreto, buscar a solução que melhor atenda aos interesses da parte

prejudicada e sem que se constitua em ônus excessivo e desnecessário para o

que agiu de modo contraditório, mas, ao mesmo tempo, também sem perder

de vista que, em regra, existem ou podem existir normas de ordem pública,

aplicáveis àquele caso concreto.

É facilmente explicável o motivo da diversidade de soluções. É

que a figura do venire, como já mencionamos diversas vezes, em última e

ampla análise consiste na violação da conduta que era imposta em virtude da

boa-fé, sendo que para a obediência a tal conduta devem ser observados

deveres acessórios, e o venire se caracteriza pelo desrespeito de tais deveres.

Ocorre que a conduta imposta pela boa-fé – e, em conseqüência, os deveres

acessórios – só pode ser aferida na situação concreta, depois de observadas as

peculiaridades de cada caso, não se podendo traçar previamente uma receita

sobre qual seria tal conduta.

395

Ora, se a conduta esperada só pode ser aferida no caso concreto,

então a violação dessa conduta terá conseqüências jurídicas que também só

poderão ser aferidas em cada hipótese concreta, mesmo porque, como se

mostra claro, o significado de “violar a conduta ditada pela boa-fé” não se

mostra uniforme, variando para cada situação. Assim, o comportamento que

em um caso concreto implica em violar a boa-fé objetiva, poderá ser

perfeitamente válido em uma outra situação, e vice-versa. Da mesma forma,

suponha-se que haja duas situações, as duas implicando em comportamentos

que violam a boa-fé enquanto norma de conduta. Como se mostra evidente,

conforme a hipótese que se examina, a violação da boa-fé poderá ser mais

grave ou menos grave, e por isso poderá ser diversa a solução jurídica a ser

adotada para cada uma delas.

Assim, pode-se apontar que o balizamento a ser seguido como

parâmetro, em cada caso concreto, será sempre a proteção da pessoa na qual

surgiu a expectativa, a partir do primeiro comportamento, e cuja confiança

veio a ser posteriormente quebrada, mas o modo pelo qual esse objetivo vai

ser perseguido poderá variar de uma situação para outra. Com efeito, em

algumas situações essa proteção à confiança se dará pela preservação dos

efeitos jurídicos decorrentes do primeiro comportamento. Em outras, no

entanto, essa preservação se mostrará impossível, e a proteção se dará

mediante a estipulação de uma indenização. Em outras hipóteses, ainda, será

necessário, para a proteção, que se afaste a aplicação de norma legal expressa,

e assim por diante.

Mas de qualquer modo deve ser destacado que a idéia básica,

quando se examinam as conseqüências jurídicas do venire contra factum

proprium, não é a manutenção do primeiro comportamento adotado pelo

sujeito, ou dos seus efeitos jurídicos. O que de fato se busca, na realidade, é a

396

proteção da confiança surgida na outra pessoa, que de modo razoavelmente

justificado acreditou que estaria perfeita essa primeira conduta. Agora, essa

preservação da confiança pode se dar de variadas formas, inclusive pela

preservação do primeiro dos comportamentos (ou dos seus efeitos jurídicos),

sendo que não necessariamente isso ocorrerá. Tal preservação, portanto, como

se vê, é meramente eventual, e não se confunde com a finalidade maior da

rejeição do venire.

Uma das possibilidades, que inclusive já foi por nós examinada, é

a de que os efeitos jurídicos da ocorrência do venire consistam no afastamento

das conseqüências da nulidade do negócio jurídico. Veja-se que não é a

nulidade do negócio que estará sendo afastada, mas as suas conseqüências, ou

seja, o negócio jurídico será nulo, nos termos determinados pela norma de

ordem pública, mas essa nulidade, ao contrário do que seria o normal quando

o negócio jurídico é nulo, deverá produzir os efeitos (ou pelo menos alguns

deles) semelhantes aos de um negócio válido.

Essa solução pode ser adotada em relação aos negócios jurídicos

de efeitos continuados, ou seja, aqueles cuja execução e cujos efeitos se

prolonguem no tempo, e a conseqüência jurídica será a produção dos efeitos

em relação aos momentos que antecedem a declaração de nulidade, como

meio de proteger o sujeito confiante, mas com o reconhecimento pleno da

nulidade a partir de então. Em outras palavras, pode-se dizer que, em tal caso,

a nulidade produzirá apenas efeitos ex nunc.

Nessa situação se enquadra, por exemplo, a hipótese do menor de

dezesseis anos, examinada linhas atrás, que foi contratado como empregado,

sendo que o empregador, posteriormente, pretende invocar a nulidade absoluta

da contratação (por infração ao artigo 7°, XXXIII, da Constituição Federal)

em seu próprio favor, para furtar-se aos efeitos trabalhistas do contrato. Nesse

397

caso, será de fato declarada a nulidade absoluta do contrato, pois de fato o é,

mas desse contrato de trabalho deverão decorrer, até o momento dessa

declaração, todos os efeitos de um contrato válido.

Assim, embora nulo o contrato, o empregador deverá pagar ao

menor, ilegalmente contratado como empregado, as parcelas correspondentes

ao aviso prévio, férias mais um terço, décimo terceiro salário, FGTS mais

40%, etc., ou seja, todas as parcelas que teria que pagar se a contratação

tivesse sido válida. Veja-se que com essa solução, neste caso, consegue-se

conciliar a obediência à norma legal, que preceitua a nulidade absoluta da

contratação, com a proteção ao confiante, afastando a vantagem que o outro

sujeito (o empregador) pretendia obter invocando sua própria conduta

irregular.

Outra situação onde poderia ser adotada solução semelhante, e

que também já foi por nós examinada, é a do trabalhador contratado pela

Administração Pública, sem que tenha sido previamente aprovado em

concurso público de provas e títulos. Tal contrato, por força de disposição

constitucional expressa (Constituição Federal, art. 37, § 2°), é nulo de pleno

direito, mas apesar disso produzirá pelo menos alguns dos efeitos que

decorreriam de um contrato validamente celebrado, como por exemplo o

pagamento dos salários dos dias efetivamente trabalhados e o FGTS que sobre

tais salários incide, nos termos da Súmula 363, do Tribunal Superior do

Trabalho.

Não é demais observar que, nos dois exemplos acima

mencionados, verifica-se situação onde o negócio jurídico é nulo de pleno

direito, mas apesar disso são produzidos efeitos jurídicos. No entanto, no

primeiro dos exemplos são produzidos todos os efeitos de um negócio jurídico

válido, enquanto no segundo são produzidos apenas alguns desses mesmos

398

efeitos. A diferença se encontra na qualificação dos interesses que se

encontram contrapostos aos do sujeito confiante. No primeiro caso, trata-se

dos interesses de um particular, o empregador, enquanto no segundo estão os

interesses da Administração Pública, que acabam por envolver o interesse de

toda a sociedade. Para maiores detalhes sobre essa divergência quanto à

intensidade dos efeitos a serem produzidos, remetemos à leitura do item 1.7,

retro, mas o que pode ser aqui destacado é que se aplica o princípio da

proporcionalidade, fazendo-se um balanceamento dos interesses envolvidos e

das conseqüências de se dar prevalência a um ou a outro deles.

Outra solução possível, quando detectada a ocorrência do venire

contra factum proprium, é o puro e simples afastamento da nulidade, ou seja,

apesar do negócio jurídico ter sido celebrado em situação tal que a lei

expressamente o fulmina com a nulidade absoluta, no caso em questão, suas

peculiaridades, resultantes da conjunção do venire com a necessidade de

proteção ao sujeito confiante, recomendam que não se declare a nulidade,

mantendo-se o negócio como se fosse válido.

Essa solução se mostra mais adequada aos negócios de execução

instantânea, ou aqueles em relação aos quais, embora tenha havido uma

dilação no tempo, o contrato já se esgotou por completo, e não seria possível a

aplicação da solução acima alvitrada, ou seja, reconhecer os efeitos já

produzidos mas declarar a nulidade daí para a frente, pelo simples fato de que,

no caso, não existe mais qualquer efeito “daí para a frente”, eis que os efeitos

que eram esperados do contratos já foram todos produzidos, e a discussão, na

verdade, se limita em saber se serão mantidos ou se serão desfeitos.

Nessa situação se enquadra, por exemplo, a hipótese que

examinamos, referente à venda de um imóvel, feita por um vendedor

absolutamente incapaz, em virtude de deficiência mental, mas em condições

399

que seriam as normais para os negócios daquela espécie, inclusive quanto ao

preço ajustado, e sendo ainda que o comprador não conhecia o vendedor e não

tinha qualquer razão para saber sobre sua incapacidade. Constatada a

ocorrência do venire, embora o negócio seja nulo de pleno direito, nesse caso

poderão ser produzidos os efeitos normais da compra e venda, ou seja, será

transferida a propriedade para o comprador.

E a mesma solução também pode ser aplicada em relação ao

negócio jurídico onde houve vício formal, causado pelo próprio sujeito que

depois busca a sua nulidade. Ora, apesar do vício formal, de fato, gerar a

nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos do artigo 166, IV, do

Código Civil, nessa situação, a caracterização do venire leva a que, para

proteção do sujeito confiante, sejam mantidos os efeitos do negócio jurídico,

como se o mesmo tivesse sido válido.

Convém, neste ponto, que façamos um breve desvio do exame

das conseqüências jurídicas da ocorrência do venire contra factum proprium e

da gama de soluções possíveis, quando detectada tal ocorrência. É que nessas

duas primeiras soluções alvitradas, em ambas a solução apontada resulta no

afastamento da incidência de texto legal expresso.

Com efeito, na primeira linha de solução foi preconizado o

abandono das conseqüências da nulidade do negócio jurídico, ou seja, embora

se reconheça tal nulidade, são mantidos os efeitos do negócio, o que parece

contrariar o que se encontra expressamente disposto no artigo 182, do Código

Civil, que determina que as partes sejam devolvidas ao estado anterior, e por

isso inclui o desfazimento dos efeitos.

Na segunda das soluções possíveis que apontamos, por sua vez,

foi indicado o afastamento da nulidade, como se o negócio fosse válido,

apesar de que, em um deles, o agente (o vendedor) era absolutamente incapaz,

400

enquanto no outro havia a desobediência à forma imposta pela lei, por isso que

o afastamento da nulidade, em tais casos, parece infringir o que se encontra

expressamente disposto nos incisos I e IV, ambos do artigo 166 do Código

Civil, e que declaram a nulidade absoluta do negócio jurídico precisamente

nessas hipóteses de incapacidade absoluta do agente e de não atendimento à

forma prevista na lei.

Cabe, por isso, investigar se é possível adotar tais soluções, uma

vez que existem normas expressas dispondo em sentido contrário ao que

ambas parecem indicar. Não seriam essas soluções, portanto, caso de

inaceitável descumprimento da lei? A resposta que se impõe, na realidade, é a

negativa. Ora, é evidente que não se pode pinçar a norma legal que estipula a

nulidade do negócio jurídico quando o agente é absolutamente incapaz ou

quando não foi obedecida a formalidade imposta pela lei (art. 166, do Código

Civil), isolando-a das demais normas que constam do ordenamento jurídico.

Em outras palavras, não é possível a interpretação de um texto legal isolado,

considerado sozinho, em apartado das demais normas que compõem o

sistema.

Logo, o que se deve sempre buscar, como se sabe, é a

interpretação do sistema como um todo, como um conjunto harmônico de

normas jurídicas, não sendo aceitável o exame isolado de apenas uma dessas

normas, destacada do todo. Ora, quando se considera o sistema como um todo,

como já mencionamos linhas atrás (veja-se o item 2.3.2.2), encontramos,

dentro dele, normas que são aparentemente contraditórias entre si, mas que na

verdade podem e devem ser harmonizadas pelo operador do direito, conforme

as peculiaridades de cada situação concreta. No entanto, quando se dá

prevalência a uma dessas normas, por ser essa a solução recomendada pelas

peculiaridades do caso concreto, isso não significa que a outra estará sendo

401

descumprida, mas sim que estará recebendo uma interpretação sistemática,

capaz de harmonizá-la com as demais normas do sistema, e tal interpretação,

no caso, recomenda a sua não aplicabilidade.

Assim, por exemplo, se por um lado encontramos no sistema o

artigo 166, do Código Civil, que estabelece a nulidade absoluta do negócio

jurídico – e, portanto, a sua falta de efeitos jurídicos – quando não foi atendida

a exigência legal quanto à forma, por outro lado, encontramos nesse mesmo

sistema a regra insculpida no artigo 422, do mesmo Código Civil, que se

apresenta como uma necessidade de observação de uma conduta conforme os

ditames da boa-fé.

Desse modo, casos haverá – como nos exemplos apresentados –

nos quais o comportamento do sujeito poderá ser subordinado ao artigo 166 ou

ao artigo 422, sendo que a prevalência de um desses dois dispositivos

provocará o afastamento do outro, por se mostrarem inconciliáveis no caso

concreto. Desse modo, se o negócio for considerado nulo, sendo afastada a

produção das conseqüências jurídicas que lhe seriam naturais, estará sendo

obedecida a regra do artigo 166, mas estará sendo admitido um

comportamento que não se coaduna com os ditames da boa-fé objetiva, ou

seja, estará sendo descumprido o artigo 422. E vice-versa, ou seja, se for

rejeitada a conduta do sujeito que não se coaduna com as regras ditadas pela

boa-fé objetiva, estará sendo obedecido o artigo 422, do Código Civil, mas por

outro lado, estará sendo desatendido o artigo 166, do mesmo diploma legal.

Em qualquer das hipóteses, portanto, caberá ao operador do

direito, nas circunstâncias peculiares a cada um dos casos concretos, verificar

qual dos dois dispositivos deve receber prioridade de aplicação, e qual deles

deve ser afastado. E isso não significará, de modo algum, que um dos

dispositivos esteja sendo violado, mas apenas que, na sua consideração como

402

parte de um sistema, ao ser cotejado com outra norma também aplicável, em

tese, à mesma situação, tal dispositivo não se adequou às características da

hipótese concreta, e por isso não encontra aplicação. Trata-se, em síntese, de

uma solução sistemática para a problemática concreta, e não de uma solução

contra legem.

Prosseguindo nessa busca de soluções possíveis, podemos agora

apontar, em uma terceira linha de raciocínio, que em outros casos, no entanto,

é possível que não seja recomendável a manutenção de qualquer dos efeitos

jurídicos decorrentes do primeiro dos comportamentos, devendo todos ser

desfeitos, em virtude do segundo comportamento, cujo objetivo foi

precisamente o de desfazer os efeitos do primeiro. Nesse caso, portanto, não

se mostrando conveniente a preservação do primeiro comportamento, a

solução poderá ser dada através da indenização dos danos causados ao outro

sujeito, em virtude da quebra da confiança do mesmo. Isso acontece, por

exemplo, em relação aos atos da Administração Pública, quando o segundo

comportamento é ditado por razões de conveniência pública.

Suponha-se, por exemplo, que o governo federal tenha autorizado

a exploração de máquinas de jogos eletrônicos, tais como videopôquer e

outras similares. Uma vez autorizada a exploração, também foi autorizada a

importação e a venda dessas máquinas. Com base nessas medidas tomadas

pela Administração Pública federal, alguns empresários investiram grandes

somas na importação das mencionadas máquinas e na construção de lugares

adequados à sua utilização pelo público pagante em geral.

Poucos meses depois, contudo, diante da grande pressão feita por

alguns setores organizados da sociedade civil, o governo federal volta atrás e

decide proibir não apenas a importação e a venda das máquinas de jogos

eletrônicos, mas também a sua exploração. Ora, é evidente que essa segunda

403

medida, a proibição, mostra-se em absoluta e inconciliável contradição com a

primeira, a autorização para a importação e exploração, e frustra a expectativa

dos empresários que, acreditando na liberação inicialmente feita pelo governo,

investiram grandes somas de dinheiro na compra das máquinas e na

preparação dos lugares onde o público pagante poderia ter acesso às mesmas.

Caracteriza-se, portanto, de modo claro, o venire contra factum proprium.

No entanto, parece também evidente que, em tal caso, a proibição

se deu em virtude da discricionariedade do Administrador Público, que

entendeu que dessa forma estaria melhor atendendo aos interesses da

sociedade como um todo, e por isso não poderão prevalecer os interesses dos

particulares, vale dizer, dos empresários confiantes. Logo, a proibição atingirá,

de imediato, todos os empresários, não se podendo abrir exceção para aqueles

que realizaram investimentos quando ainda estava vigendo a liberação inicial,

caso contrário o interesse público estaria sendo afastado para que prevalecesse

o interesse dos particulares.

Nessa situação, portanto, a melhor solução a ser dada ao caso

concreto não será a preservação do comportamento inicial, ou seja, não será a

manutenção da autorização para a importação e para a exploração das

máquinas, mas sim a condenação do governo federal ao pagamento da

indenização cabível, de modo que se possa proteger os empresários confiantes

através da indenização dos seus prejuízos, e não da preservação do ato

revogado.

Veja-se que no exemplo acima, referente às máquinas de jogos, o

primeiro comportamento foi simplesmente desprezado porque o segundo era o

que melhor atendia à conveniência pública, conforme a apreciação

discricionária da Administração Pública, e por isso a proteção ao outro sujeito,

o confiante, foi resolvida mediante a indenização das perdas e danos. No

404

entanto, é possível que essa mesma solução, ou seja, mediante a indenização

dos prejuízos, venha a ser adotada em virtude da impossibilidade de ser

preservado o primeiro comportamento, e não em virtude da conveniência

pública.

Essa seria a hipótese, por exemplo, do abandono injustificado e

abusivo, por um dos sujeitos, das negociações preliminares, ainda na fase pré-

contratual, depois de ter induzido o outro a acreditar que o contrato seria

efetivamente celebrado, sendo que, logo após o abandono, o sujeito torna

impossível a celebração desse mesmo contrato. Vejamos um exemplo, para

melhor compreensão.

Suponha-se que estavam em curso, entre dois sujeitos, as

negociações referentes à venda de um determinado imóvel, sendo que o

vendedor adotou uma conduta tal que levou o comprador a confiar que o

negócio seria efetivamente celebrado entre eles. O vendedor, por exemplo,

pediu que o comprador desde logo redigisse a minuta do contrato e ambos

combinaram acerca do comparecimento ao Cartório, para a lavratura da

escritura pública. Só que o vendedor desistiu do negócio e recusou-se a

comparecer ao Cartório. Logo em seguida, esse mesmo vendedor alienou, a

título oneroso, o imóvel para outra pessoa, que de nada sabia sobre essas

negociações que haviam sido feitas com o primeiro sujeito, sendo que o

comprador, após ter sido lavrada a escritura pública, providenciou o imediato

registro da mesma junto ao Cartório do Registro Imobiliário.

Nesse caso, é bastante clara a ocorrência do venire contra factum

proprium, pois o vendedor, ao adotar um venire (a desistência injustificada em

relação ao fechamento do negócio) que se mostra inconciliável com seu

factum proprium, quebrou o dever de lealdade, frustrando a confiança que o

comprador havia firmado em relação ao fechamento do negócio. No entanto,

405

ao vender para terceiro de boa-fé esse mesmo imóvel que estava sendo

negociado, o vendedor impossibilitou que se pudesse cogitar da atribuição

judicial de efeitos jurídicos ao primeiro comportamento, ou seja, impediu que

o quase-comprador pudesse buscar judicialmente a conclusão do negócio, e

por isso a solução, forçosamente, se dará mediante a estipulação de uma

indenização em favor do comprador confiante.

Uma quarta linha de solução, que também pode ser adotada, é a

de forçar-se o sujeito que quebrou a confiança à celebração do negócio

jurídico que o outro sujeito, legitimamente, confiava que viria a ser celebrado.

Mas essa solução, como se mostra evidente, só pode ser adotada se não houver

qualquer impossibilidade a impedir esse aperfeiçoamento do negócio, como

ocorreu no exemplo visto no parágrafo anterior, onde um fato superveniente e

incontornável (a alienação para um terceiro) tornou impossível que se

buscasse a concretização do negócio frustrado.

Essa foi a solução (forçar a celebração do negócio) adotada em

um rumoroso caso concreto350, no qual uma grande fábrica de extrato de

tomate, todos os anos, distribuía aos produtores rurais de uma determinada

região, próxima às instalações fabris, sementes de tomate, para que fossem

plantadas, e na época da colheita essa mesma fábrica comprava toda a safra,

pois os tomates eram a matéria-prima usada no seu produto.

Em um determinado ano, contudo, depois de ter distribuído as

sementes, como vinha fazendo em todos os anos, após a colheita da safra, a

fábrica simplesmente recusou-se a comprar a produção dos agricultores,

alegando que havia sido detectada uma redução no consumo, e que por essa

razão precisaria também reduzir a sua produção, não sendo necessária a

aquisição de todos aqueles tomates colhidos. 350 Cf. Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, pp. 473 e ss.

406

De tal situação, percebe-se com facilidade que o primeiro

comportamento (o factum proprium), ou seja, a distribuição das sementes, foi

contrariado pelo segundo (o venire), a recusa quanto à compra da safra, sendo

certo que a partir da primeira conduta, levando-se em conta, inclusive, o

histórico dos negócios jurídicos celebrados entre a fábrica alimentícia e os

produtores rurais, estes confiaram, justificadamente, que toda a sua produção

seria comprada pela fábrica em questão, e essa confiança foi quebrada, não

tendo os produtores a quem vender todo o tomate colhido. Caracterizado está,

portanto, o venire contra factum proprium.

Não é demais lembrar, no sentido da observação já tantas vezes

feita, que ainda que fosse verdade o motivo alegado pela fábrica, ou seja,

ainda que efetivamente tivesse havido uma retração no consumo, para a

caracterização do venire o que interessa é a conduta em si mesma, e não a sua

motivação. Assim, se a conduta posterior do fabricante de extrato de tomate

veio a se mostrar contraditória, em relação à conduta anterior, sendo que tal

contradição quebrou a confiança gerada, é absolutamente irrelevante o motivo

dessa segunda conduta, pois de qualquer modo estará caracterizado o venire

contra factum proprium.

A solução, em tal caso, que se mostra mais adequada, é a

imposição, ao fabricante do extrato de tomates, da compra de toda a produção.

Mas veja-se que, neste caso, o estabelecimento de uma indenização, a ser paga

pelo fabricante em favor dos produtores rurais, englobando inclusive o lucro

cessante, atenderia de modo adequado a proteção dos mesmos, mas não seria a

melhor das soluções possíveis. Com efeito, como já comentamos linhas atrás,

o que se deve buscar é a proteção que melhor atenda aos interesses do sujeito

confiante, que se viu prejudicado, mas sem que se imponham ônus excessivos

e desnecessários ao outro sujeito.

407

Logo, nessas condições, embora o puro e simples estabelecimento

de uma indenização viesse a satisfazer os prejuízos sofridos pelos produtores,

constituir-se-ia em desnecessário ônus para o fabricante, por isso que a

imposição da conclusão do negócio, ao mesmo tempo em que proveria aos

produtores prejudicados o pagamento que efetivamente esperavam obter com

o negócio da venda dos tomates, permitiria ao fabricante, comprador forçado,

ficar com a produção, para usá-la como e quando melhor lhe conviesse.

Mas é evidente que se a conclusão do negócio se mostrasse

impossível, por fato imputável ao fabricante, nesse caso, como já vimos

poucas linhas atrás, a única solução possível seria efetivamente o

estabelecimento de uma indenização. Seria o caso, por exemplo, de em virtude

da demora na tramitação do processo judicial, ajuizado em face da recusa

injustificada do fabricante em adquirir a produção dos tomates, estes tivessem

apodrecido, sendo agora imprestáveis para qualquer coisa. Neste caso, a

impossibilidade da aquisição dos tomates teria ocorrido em decorrência de

fato atribuível ao fabricante, qual seja a recusa na aquisição dos tomates, e por

isso simplesmente se resolveria mediante indenização.

Uma outra possibilidade de efeitos jurídicos dos comportamentos

inadmissivelmente contraditórios, dentro dessas múltiplas soluções que

estamos examinando, seria a proibição de que o sujeito pudesse buscar

proveito em virtude de situação anteriormente provocada por sua própria

atuação dolosa.

Assim, se a pessoa que se beneficiaria com a implementação de

uma condição, maliciosamente vier a forçar o seu implemento, tal pessoa não

se poderá valer de sua própria malícia, pois a lei determina que, em relação ao

negócio jurídico em questão, a condição seja considerada como se não tivesse

sido implementada. Por outro lado, se a pessoa que seria desfavorecida pelo

408

implemento da condição vier a, de modo malicioso, obstaculizar o seu

implemento, para fins desse negócio jurídico a condição será havida como

implementada. Ambas as hipóteses estão previstas no artigo 129, do Código

Civil.

Veja-se que, nesses casos, atentaria contra a conduta imposta pela

boa-fé que o sujeito, após ter agido dolosamente para provocar uma certa

situação que lhe interessava (o implemento de uma condição ou, ao contrário,

o impedimento de que a mesma fosse implementada), pudesse invocar em seu

favor a sua própria atuação dolosa, e por isso tal hipótese foi taxativamente

rejeitada pela norma legal. Contudo, as situações descritas, referentes à

condição, melhor se encaixam na figura do “Tu quoque”, e por isso serão

examinadas logo adiante, quando fizermos a abordagem desse referido

instituto.

Como se viu, portanto, nos parágrafos anteriores do presente

item, há uma enorme diversidade de soluções possíveis, podendo haver grande

variação de um caso concreto para o outro. E o motivo dessa existência de

uma ampla gama de soluções, em reforço ao que já foi dito anteriormente,

pode ser encontrado no fato de que, em cada situação da vida real e concreta,

não se buscará, como objetivo primordial, a repressão à má-fé de um sujeito,

mas sim a proteção à boa-fé do outro (veja-se, a respeito, o que dissemos logo

no começo do item 1.9), ou seja, o que serve como balizamento e parâmetro

para o juiz é a busca da proteção ao prejudicado, mas ao mesmo tempo sem

que haja prejuízo excessivo e desnecessário para o outro – e, eventualmente,

ainda com atenção para o interesse público porventura envolvido no caso

concreto.

Logo, pode-se com tranqüilidade concluir que a solução a ser

adotada sempre terá que seguir esses vetores acima mencionados, ou seja, a

409

proteção à boa-fé do sujeito como base, e o não prejuízo excessivo para o

outro como complemento. Por isso, é claro que as medidas necessárias ao

atendimento dessas orientações não se mostram uniformes, pois terão que ser

variáveis e adaptáveis aos interesses do beneficiário a serem protegidos em

cada uma situação concreta. Ora, podendo haver uma enorme variedade de

interesses a serem protegidos, é evidente que terá que haver, simetricamente,

uma enorme variedade de medidas de proteção.

2.4. Tu quoque.

A figura em exame está ligada ao mesmo vetor axiológico que

orienta o brocardo segundo o qual ninguém será ouvido quando invocar em

seu favor a sua própria torpeza. De modo mais específico, se um sujeito violou

uma determinada norma jurídica (que pode ser legal ou contratual), não lhe

será possível que, posteriormente, venha a pretender exercer a mesma situação

jurídica que essa norma lhe havia atribuido, pois é intuitivo que fere de morte

a ética que uma pessoa possa desrespeitar um comando normativo e, ao

depois, vir a pretender exigir que terceiros acatem esse mesmo comando por

ela desrespeitado351. Veja-se que haveria evidente incoerência entre esses dois

momentos da atuação do sujeito, o em que ele desrespeitou a norma e o em

que ele pretende que outro venha a cumpri-la.

Tendo em vista essa contradição acima mencionada, o tu quoque,

aparentemente, nada mais seria do que um caso particular de venire contra

factum proprium, que se caracterizaria pelo fato de que a contradição entre o

primeiro e o segundo comportamentos ocorrem da seguinte forma: o factum

proprium consiste numa atuação irregular do sujeito, sendo que o venire se 351 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 837.

410

concretiza no fato de que, posteriormente, esse mesmo sujeito tenta tirar

proveito de sua própria atuação irregular. Aliás, a expressão significa,

literalmente, algo como “até tu”, indicando a supresa pelo fato de que alguém

tente se beneficiar de sua própria irregularidade no agir352. Há, portanto, uma

incoerência capaz de permitir a aproximação entre esta figura e o venire

contra factum proprium.

De fato, essa semelhança acentuada tem levado alguns autores a

apontar que o venire e o tu quoque mantêm entre si uma relação de gênero e

espécie, ou seja, o tu quoque seria uma subespécie do venire, sendo este o

gênero e aquele a espécie. Nesse sentido as opiniões de Anderson Schreiber353

e Cristiano Chaves de Farias354.

Na realidade, em que pese o alto gabarito dos autores

mencionados, parece-nos que estão ambos equivocados, pois embora as

semelhanças entre os institutos, de fato, existam, é certo que existe diferença

de tal monta que impede essa assimilação de um pelo outro, como veremos

logo adiante, podendo desde logo adiantar que a essência do venire repousa na

proteção à boa-fé, enquanto o cerne do tu quoque se encontra na repressão à

má-fé, diferença que por si só os torna inconfundíveis, embora existam

algumas situações que podem ser enquadradas em qualquer das duas figuras,

352 Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 478. 353 Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, pp. 177-178. O ilustre autor, em nota de rodapé, aponta que Menezes Cordeiro cogita dessa hipótese, ou seja, de que o venire seria o gênero e o tu quoque a espécie, e também da hipótese contrária, ou seja, de que o tu quoque seria o gênero, e o venire a espécie, vale dizer, este seria um subtipo daquele (p. 177, nota n° 292). Concessa venia, está equivocado o ilustre autor, uma vez que o festejado jurista português, embora de fato aponte essa possibilidade de que o venire e o tu quoque estejam um para o outro como um tipo e seu subtipo (p. 843), fá-lo apenas para fins de contraste com as idéias que sustenta logo em seguida, na mesma página 843 de sua obra, onde defende que mesmo que se adote uma concepção ampla do venire (o que aponta não ser recomendável), as especificidades do tu quoque são de tal ordem que não permitem a integração coerente e produtiva com o venire. Além disso, aponta o ilustre autor do além-mar que no tu quoque não se faz necessária uma situação de confiança como a que informa o venire contra factum proprium. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843. 354 Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 478.

411

uma vez que, simultaneamente, ocorre um comportamento contraditório (o

que permitiria a qualificação como hipótese de venire), ao mesmo tempo em

que a contradição se revela como reprovável e inaceitável má-fé do agente, o

que faz com que seja mais adequado o enquadramento na figura do tu quoque.

De modo mais amplo, pode-se dizer que, em termos jurídicos, o

tu quoque se caracteriza pela mudança de valoração em relação à mesma

situação, ou seja, o sujeito, diante de duas situações idênticas, adota dois

critérios valorativos completamente distintos, ou seja, vale-se da “utilização

de dois pesos e duas medidas”355. Ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, na

figura do tu quoque “a contradição não está no comportamento do titular-

exercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e

julgar-se”356.

Veja-se que nessa descrição mais ampla, feita no parágrafo

anterior, enquadra-se perfeita e completamente aquela que foi feita no

parágrafo que dá início a este item, ou seja, no caso da pessoa que

primeiramente se comportou de uma certa forma, em relação a uma norma

jurídica, vale dizer, desconsiderou-a, sendo que, posteriormente, tentou

valorizar essa mesma norma, buscando proteção nas regras que ela contém.

Hipótese na qual, no nosso entender, caracteriza-se a figura do tu

quoque, é aquela na qual o sujeito, maliciosamente, força o implemento da

condição que o favorece ou, ao contrário, impede o implemento da condição

que o desfavorece (CC, art. 129). Vejamos um exemplo. Suponha-se que A

fez em favor de B uma doação com cláusula de reversão, ou seja, com a

355 Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 279. 356 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843.

412

previsão de que se o doador A sobrevivesse ao donatário B, o bem doado

retornaria ao patrimônio do primeiro (CC, art. 547).

Nessas condições, estando A muito doente, prestes a morrer (o

que afastaria a possibilidade de implemento da condição), o filho de A, na

iminência de ver o bem doado definitivamente fora do seu alcance, mata o

donatário B, forçando dolosamente o implemento da condição (o donatário

morreu antes do doador).

Se esse filho de A pretender se beneficiar da situação que ele

mesmo criou, ou seja, pretender que o bem doado retorne ao patrimônio de

seu pai para, logo em seguida, quando este morrer, passar para o seu próprio,

parece-nos que caracterizado estará o tu quoque, ou seja, a busca de auto-

favorecimento em virtude da própria atuação irregular. E é por essa razão que

o artigo 129, do Código Civil brasileiro, determina expressamente que, nesse

caso, a condição resolúvel será considerada como não tendo sido

implementada.

Nesse mesmo caso de doação com cláusula de reversão, pode-se

ainda supor a situação inversa, ou seja, é o donatário B quem se encontra em

delicada situação de saúde, podendo morrer a qualquer instante, o que

equivalerá ao implemento da condição, com o retorno do bem doado ao

patrimônio do doador A. Para evitar que isso aconteça, o filho de B mata o

doador A, e assim impede que a condição possa vir a ser implementada (o

doador foi quem morreu antes do donatário).

É evidente que, nessa situação descrita no parágrafo anterior, o

filho de B não poderá pretender ser favorecido em virtude da situação que ele

mesmo, dolosamente, provocou com sua atuação ilegal, ou seja, não poderá

pretender receber o bem doado como parte da herança de seu pai, quando este

vier a falecer, e é por isso que o Código Civil, no mesmo artigo 129, manda

413

que, em relação ao filho de B, a condição seja considerada como tendo sido

implementada.

A mesma opinião é sustentada por Menezes Cordeiro que,

comentando o artigo 275357, do Código Civil português, cuja alínea 2 é

idêntica ao artigo 129 do Código Civil brasileiro, aponta que “no Código Civil

[português], a regra-mãe do tu quoque tem consagrações dispersas múltiplas.

O beneficiário da condição não pode aproveitar-se da sua verificação

quando, contra a boa-fé, a tenha provocado; o prejudicado não pode, da

mesma forma, beneficiar da não verificação quando, contra a boa-fé, a tenha

impedido – art. 275°/2”358.

E, da mesma forma que ocorre no Código Civil português,

também no Código Civil pátrio podemos encontrar, dispersas, várias situações

que, na realidade, se constituem em aplicação da figura do tu quoque. Só que,

em tais casos, como é evidente, não deverá o operador do direito valer-se da

figura em exame (salvo como eventual reforço argumentativo), uma vez que já

existe disposição legal expressa tratando do tema (veja-se, a respeito, o que

dissemos no item 2.3.2.1.c). Assim, por exemplo, quando o artigo 105, do

Código Civil brasileiro, esclarece que a incapacidade relativa de uma das

partes não poderá ser invocada pela outra, em proveito próprio, nada mais está

fazendo do que aplicar concretamente o tu quoque.

Com efeito, veja-se que se um dos sujeitos, sendo plenamente

capaz, negociou com outro, incapaz relativo, diretamente, ou seja, sem que

tivesse havido a assistência pelo representante legal (e sem que se trate da

357 ARTIGO 275º (Verificação e não verificação da condição). 1. A certeza de que a condição se não pode verificar equivale à sua não verificação. 2. Se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica,

tem-se por verificada; se for provocada, nos mesmos termos, por aquele a quem aproveita, considera-se como não verificada.

358 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 837-838.

414

ocultação maliciosa da idade, prevista no art. 180, do Código Civil), violou a

norma legal que trata dos requisitos de validade do negócio jurídico (artigo

104, do Código Civil). Logo, não poderá posteriormente pretender invocar

essa violação, que por ele mesmo foi cometida, para pretender beneficiar-se

com a anulaçao do negócio viciado, mesmo porque o instituto da incapacidade

tem como finalidade clara a proteção do incapaz, e não a da pessoa que com o

incapaz negociou.

Da mesma forma, quando o nosso Código Civil prevê a

possibilidade de exclusão por indignidade do herdeiro que foi o autor, co-autor

ou partícipe de homicídio doloso contra o de cujus (art. 1.814, I), está dando

aplicação prática à regra do tu quoque, pois não faria o menor sentido, ferindo

frontalmente a ética, que a própria pessoa que contribuiu para a morte do

titular do patrimônio venha a se beneficiar dessa mesma morte, apresentando-

se como herdeiro do falecido e recolhendo seu quinhão hereditário no

patrimônio que o mesmo deixou. E o mesmo raciocínio, ainda em tema de

exclusão do herdeiro por indignidade, poderia ser apresentado em relação ao

que impediu o de cujus de dispor livremente dos seus bens (art. 1.814, III).

Especificamente em relação aos contratos, facilmente pode-se

imaginar a ocorrência da figura do tu quoque. Imagine-se, por exemplo, que

um dos contratantes deixou de cumprir o seu dever lateral de informação, não

transmitindo ao outro a orientação precisa sobre o lugar onde a coisa devida

teria que ser entregue. Posteriormente, não tendo ocorrido a entrega, pretende

o credor que seja reconhecida a mora do devedor, e receber deste a

indenização correspondente ao inadimplemento contratual. Ora, é evidente

que o contratante que violou de modo significativo a norma contratual não

poderá pretender, ao depois, exigir do outro o cumprimento rigoroso desse

mesmo contrato.

415

Enquadra-se na figura do tu quoque, como é evidente, a chamada

exceção do contrato não cumprido, ou seja, quem não cumpriu a sua

prestação, no contrato sinalagmático, não poderá exigir que a parte contrária

cumpra a sua contraprestação359. No entanto, deve-se ter cuidado com o

alcance de tal afirmação. Começamos por observar que, no parágrafo anterior,

nos reportamos a uma violação qualificada do contrato, ou seja, a uma

violação que se mostre significativa. É que nem toda violação de uma

obrigação, por um dos contratantes, terá o condão de liberar o outro do

cumprimento de sua própria prestação, só ocorrendo tal liberação quando essa

primeira violação tiver afetado a estrutura sinalagmática, ou seja, tiver afetado

o equilíbrio das prestações recíprocas, como bem aponta Menezes Cordeiro360.

E o ilustre autor português exemplifica, na mesma obra e local

citados, narrando o seguinte caso concreto, apresentado diante dos tribunais

alemães. Os autores firmaram com o réu um contrato, do qual constava que

iriam construir um imóvel residencial, constando do contrato, ainda, a opção

de compra do imóvel, pelos autores. Para fins de experiência, quanto à

moradia no imóvel, os autores poderiam ocupá-lo, como locatários, pelo prazo

de três anos, sendo que o locador poderia rescindir o contrato a qualquer

tempo, se houvesse uma causa que o justificasse. No momento da celebração

do contrato, ajustou-se provisoriamente que os autores pagariam, pela

aquisição, a quantia de 4 mil marcos alemães, sendo o valor definitivo deixado

para fixação posterior, conforme os custos da construção.

359 Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 280. 360 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 845.

416

Dois anos depois, o locador (réu) informa aos locatários (autores)

que o valor definitivo, a ser por eles pago, é no valor de 8.253,68 marcos

alemães, sendo que os locatários impugnam tal valor e pedem informações

sobre como o mesmo foi apurado. O locador, sem responder, limita-se a

perguntar se os locatários pagariam a quantia, e agora são os locatários que

não respondem. O locador, então, rescinde o contrato, alegando que os

rendimentos e as possibilidades de crédito dos locatários (dados que eram por

ele conhecidos), não possibilitariam o pagamento da quantia necessária para a

aquisição, e que isso era um fato importante, pois não faria sentido manter-se

uma experiência que se destinava à aquisição do imóvel, se já estava

caracterizado que tal aquisição não teria como ocorrer.

Os locatários, então, ajuízam ação na qual sustentam que o

locador havia descumprido sua obrigação de prestar informações, ao não

esclarecer sobre o modo de apuração do montante a ser pago, e que por isso

não poderia rescindir o contrato em virtude da suposta impossibilidade do

mesmo vir a ser cumprido por eles, o que caracterizaria o tu quoque. O

tribunal, no entanto, considerando como provada a impossibilidade dos

autores adquirirem o referido imóvel, entendeu que, apesar de realmente ter

havido o descumprimento contratual pelo locador, a falta de informação não

chegou a perturbar a estrutura sinalagmática do contrato, pois ainda que

tivesse sido cumprido esse dever de informar, de qualquer modo os locatários

continuariam sem ter meios para a aquisição do prédio. Tais circunstâncias

impediriam a caracterização do tu quoque, sendo tal solução aplaudida por

Menezes Cordeiro361.

361 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 845-846.

417

Aproveitando situação descrita por Antônio Junqueira de

Azevedo362, vejamos um outro exemplo. Aponta o ilustre Professor Titular da

Faculdade de Direito da USP que “não tem sentido, como devedor, pagar com

a correção monetária ‘X’ e querer receber, como credor, com a correção

monetária ‘X+1’”. Essa hipótese tem se concretizado com freqüência em

relação às restituições de tributos cobrados indevidamente ou por valor maior

do que o devido. Veja-se que a fazenda pública, ao cobrar os tributos devidos

pelo contribuinte, vem a atualizar-lhes o valor pelo uso da taxa SELIC. No

entanto, quando o contribuinte é que se apresenta como credor, em relação a

tributo que tenha sido indevidamente cobrado, costuma a fazenda pública

sustentar a inaplicabilidade da taxa SELIC, pretendendo fazer a devolução

corrigida por outros índices de atualização, invariavelmente menores do que

os da SELIC. Trata-se, a toda evidência de caso explícito do tu quoque.

O Superior Tribunal de Justiça, pelo menos por algumas de suas

Turmas, tem repelido firmemente essa atuação de má-fé da fazenda pública,

embora não tenha, até o presente momento, feito referência explícita à figura

do tu quoque. E veja-se que, nesses casos, a valoração que a fazenda pública

dá à norma legal, entendendo que os seus créditos devem ser atualizados pela

taxa SELIC, tem levado o Superior Tribunal de Justiça a entender até mesmo

que o pedido de que a restituição seja corrigida pela SELIC se encontra

implícito, ainda que não tenha sido mencionado pelo contribuinte autor, em

sua petição inicial. Com efeito, já decidiu o STJ363 que:

362 Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 280. 363 STJ, 1ª Turma, AgRg no REsp 727.200/PB, Rel. Min. Luiz Fux, Ac. unânime, j. 08.11.2005, p. DJ 18.11.2005, p. 222.

418

TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. TESE DOS CINCO MAIS CINCO. LEI COMPLEMENTAR 118, DE 09 DE FEVEREIRO DE 2005. JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO. TAXA SELIC. 1. ...

............................... 3. Os valores recolhidos indevidamente devem sofrer a incidência de juros de mora até a aplicação da TAXA SELIC, ou seja, os juros de mora deverão ser aplicados no percentual de 1% (um por cento) ao mês, com incidência a partir do trânsito em julgado da decisão. Todavia, os juros pela taxa SELIC devem incidir somente a partir de 1º/01/96. Decisão que ainda não transitou em julgado implica a incidência, apenas, da taxa SELIC. 4. A determinação, na sentença, de incidência da Taxa SELIC sobre os valores a serem objeto da compensação pleiteada, embora inexistente pedido expresso da parte autora neste sentido, não implica em julgamento extra petita, porquanto integra o conteúdo implícito do pedido.

Vejamos uma outra hipótese. Seria o caso, agora, de uma ação

ajuizada perante a Justiça do Trabalho, na qual a empresa ré, ao apresentar sua

resposta, argüiu em preliminar da contestação a incompetência absoluta, em

razão da matéria, da Justiça laboral. A decisão primária, contudo, rejeitou a

preliminar, dando-se o juiz do trabalho por competente para instruir e julgar a

demanda. O Tribunal Regional do Trabalho, no entanto, ao apreciar Recurso

Ordinário que versava sobre outro tema, e não sobre a questão da

competência, ex officio veio a proclamar a incompetência ratione materiae da

Justiça Trabalhista, determinando a remessa dos autos para a Justiça estadual.

No lapso de tempo que medeou entre a sentença do juiz de

primeiro grau e o Acórdão do Tribunal, contudo, o reclamado pesquisou a

jurisprudência e percebeu que as decisões da Justiça do Trabalho, para os

casos similares àquele, eram mais favoráveis aos seus interesses do que as

decisões que vinham sendo proferidas pela Justiça estadual (o que ocorre, por

exemplo, em relação ao quantum das indenizações por dano moral, que têm

sido fixados pela Justiça do Trabalho em valores irrisórios). Por essa razão,

419

contra a decisão do Tribunal Regional, vem o reclamado a interpor recurso de

revista para o Tribunal Superior do Trabalho, pedindo que este declare que a

competência é da Justiça do Trabalho. Eis aí, perfeitamente caracterizada, a

ocorrência do tu quoque.

Com efeito, veja-se que, em um primeiro momento, o reclamado,

ao interpretar a norma legal, valorou-a de uma certa forma, entendendo que da

mesma exsurgia a incompetência ratione materiae daquele ramo especializado

do Judiciário. Posteriormente, no entanto, sem que tenha havido qualquer

alteração legislativa quanto à competência, que pudesse justificar a mudança

na sua posição jurídica, passa a empresa reclamada a valorar a mesma norma

legal de modo inverso, ou seja, adotando exatamente o oposto de sua posição

anteriormente adotada, entendendo agora que da norma se poderia aferir a

competência da Justiça do Trabalho364.

Observe-se que esses comportamentos da empresa reclamada,

sendo claramente contraditórios, o segundo em relação ao primeiro, podem

levar a que se confunda a situação com a ocorrência do venire, como já

comentamos acima. No entanto, como também já mencionamos, a diferença

entre ambos se mostra tão marcante que acaba por tornar impossível essa

mesma assimilação entre as duas figuras. É que, como já adiantamos algumas

linhas atrás, a essência do venire repousa na proteção à boa-fé, enquanto o

cerne do tu quoque se encontra na repressão à má-fé.

Em outras palavras, as situações que levam a repressão ao venire

contra factum proprium têm por escopo a proteção à boa-fé do outro sujeito,

ou seja, da contraparte, podendo ser assim esquematizada: a) um dos sujeitos

364 Situação semelhante é a descrita por Menezes Cordeiro, referente à parte que, diante do juízo arbitral, alega a incompetência dos árbitros, requerendo a remessa da questão para apreciação pelos juízes. Perante estes, contudo, alega em sua defesa a existência de compromisso arbitral. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 852.

420

adotou um primeiro comportamento; b) em virtude desse comportamento,

surgiu no outro uma confiança sobre qual seria o comportamento posterior; c)

esse comportamento posterior, no entanto, veio a contrariar o primeiro, de

modo a ser quebrada a confiança da contraparte; d) a proibição ao venire,

então, terá a finalidade de proteger essa confiança que foi quebrada, e que em

última análise, como já vimos anteriormente, concretiza a proteção à boa-fé.

Veja-se, portanto, que nessa hipótese de atuação do venire o que

se buscou foi proteger a boa-fé daquele que foi surpreendido pela atuação

incoerente e contraditória do outro, e por essa razão, pouco importa, como

também já vimos, se o que agiu de modo contraditório estava ou não de má-fé,

pois o que se está buscando, na repressão ao venire contra factum proprium,

não é a punição da má-fé (que pode nem ao menos ter existido) de um deles,

mas sim a proteção à boa-fé (à confiança) do outro. E não se poderá falar em

venire se não houve, por qualquer razão, o surgimento da confiança, por parte

do outro sujeito.

Na figura do tu quoque, no entanto, não se mostra indispensável o

surgimento dessa mesma confiança na contraparte, pois o que se busca

reprimir é a má-fé, a malícia do sujeito que adotou valorações diferentes para

uma mesma situação jurídica. Assim, no exemplo acima apontado, referente a

uma reclamação trabalhista, para a invocação da figura do tu quoque será

completamente indiferente pesquisar-se se no reclamante havia ou não surgido

a confiança no sentido de que o réu não iria sustentar uma posição diferente da

anteriormente sustentada, vale dizer, se não iria sustentar a competência da

Justiça do Trabalho, pois o que se buscará é a repressão à malícia do réu, e não

a proteção à boa-fé do autor.

E tanto é assim que o tu quoque poderá e deverá ser reprimido ex

officio, antes mesmo de ser intimado o autor sobre as alegações da empresa

421

reclamada, para que sobre elas se manifeste. E, ainda mais, mesmo que o autor

venha a se manifestar no sentido de que concorda com as alegações feitas pela

outra parte, pois também entende que a competência é da Justiça do Trabalho,

deixando claro que não houve qualquer frustração de expectativas ou quebra

de confiança, ainda assim terá ocorrido a figura do tu quoque, e o juiz poderá

atuar ex officio para reprimi-la.

Essa diferença entre as duas figuras, ao que nos parece, afasta

qualquer possibilidade de assimilação ou incorporação de uma delas pela

outra, pois os seus elementos característicos são claramente distintos, eis que

em um (o venire) é indispensável a presença da confiança, que virá a ser

quebrada pela atuação contraditória, enquanto no outro (o tu quoque), não há a

necessidade da presença dessa mesma confiança (embora, eventualmente, ela

possa estar presente). Nesse sentido é que Menezes Cordeiro sustenta que “o

venire contra factum proprium é proibido em homenagem à proteção da

confiança da pessoa que se fiou no factum proprium... Embora no tu quoque

seja de valorar – o que não tem sido feito – a posição da contraparte que

prevarica em segundo lugar, não há que lhe inserir uma situaçao de

confiança similar ou paralela à que informa o vcfp”365.

Assim, parece-nos demonstrado o que já havíamos afirmado

anteriormente, ou seja, que são inconfundíveis as duas figuras, não sendo

possível que fiquem abrangidas dentro de um mesmo tipo jurídico, ainda que

ambas sejam umbilicalmente ligadas à boa-fé e que em alguns casos

apresentem alguma semelhança mais acentuada.

2.5. Suppressio e surrectio.

365 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843.

422

A suppressio é a inadmissibilidade do exercício de um direito (ou

seja, a sua supressão, daí a denominação), por ter o seu titular deixado de

exercê-lo durante algum tempo, e, em virtude das circunstâncias da situação

concreta, essa omissão teve o efeito de gerar na contraparte a confiança de que

esse referido direito não mais seria exercido. Como se vê, trata-se, de uma

certa forma, dos efeitos do tempo sobre as relações jurídicas, razão pela qual

se deve tomar redobrado cuidado para evitar a confusão com outras situações

similares, tais como a prescrição e a decadência.

A ligação do instituto com a boa-fé reside no fato de que não é

suficiente, para caracterizá-lo, o simples retardamento no exercício do direito,

sendo além disso indispensável que em virtude dessa delonga tenha surgido no

outro sujeito a confiança, em termos objetivos, de que não mais haveria o seu

exercício, o que significa dizer que o lapso temporal deve vir acompanhado de

outras circunstâncias objetivas, capazes de fazer surgir essa confiança, de

modo tal que o exercício posterior e súbito do direito venha a contrariar a boa-

fé. Trata-se, portanto, da “inadmissibilidade de exercício de um direito por seu

retardamento desleal”366. Na realidade, como veremos adiante, nem sempre o

resultado será a perda do direito, podendo ser a redução do seu conteúdo.

Essa questão mencionada no parágrafo anterior, no sentido de que

o não exercício do direito, por si só, não se mostra suficiente, sendo necessário

que o mesmo esteja acompanhado de circunstâncias capazes de fazer surgir a

confiança, é essencial para que possamos fazer a separação entre a figura da

suppressio e os outros institutos que também refletem os efeitos da passagem

do tempo sobre os direitos, como a prescrição e a decadência, uma vez que

nestes institutos é suficiente a inatividade do titular do direito pelo transcurso

366 Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, p. 178.

423

do tempo previsto de modo específico na lei, sendo irrelevante a presença de

outras circunstâncias que acompanhem essa omissão. Na suppressio, como

aponta Menezes Cordeiro367, “é necessário um determinado período de tempo

sem exercício do direito e que se requer, ainda, indícios objetivos de que esse

direito não mais seria exercido”.

Além disso, contudo, pode-se ainda apontar que no caso da

prescrição e da decadência, em geral, não ocorrem maiores discussões em

relação ao momento exato de sua concretização, uma vez que, como

mencionado logo acima, a lei fixa de modo preciso o momento em que o lapso

temporal se inicia e o tempo que deverá decorrer, até que se dê a sua

consumação. No caso da suppressio, ao contrário, embora se possa

determinar, em regra, o momento preciso em que o direito poderia ter sido

exercido por seu titular, não há a menor possibilidade de se conhecer

previamente qual o tempo que será necessário decorrer até que possa estar

caracterizada a inadmissibilidade desse mesmo exercício pelo seu titular, pois

tal momento só poderá ser aferido em virtude das circunstâncias do caso

concreto, como aliás é a regra geral nos casos de proteção à boa-fé objetiva.

A origem da suppressio é jurisprudencial e relativamente recente,

mais precisamente nos tribunais alemães e suas decisões proferidas logo após

o término da primeira guerra mundial. A guerra, como se sabe, causou

profunda desordem econômica na Alemanha, o que resultou em uma inflação

elevadíssima naquele País.

Nessas condições, em um primeiro momento os tribunais

tedescos passaram a admitir a correção monetária dos créditos, afastando o

princípio do nominalismo, como forma de proteção ao credor. Logo em

seguida se percebeu, contudo, que quando o credor retardava por algum tempo 367 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 810.

424

a exigência do pagamento, isso fazia com que a quantia devida, tendo em vista

a inflação astronômica, fosse corrigida para valores muito elevados, atingindo

montantes que estavam fora do alcance do devedor, e por essa razão passaram

os tribunais a entender que a demora no exercício do direito, sendo causadora

de inaceitável desequilíbrio entre as prestações, se mostrava contrária à boa-fé

enquanto norma de conduta, podendo levar à perda da possibilidade de

exercício tardio do direito368.

Como se vê, o próprio surgimento da figura da suppressio já se

deu de um modo tal que havia as circunstâncias especiais, que quando

acompanhadas do decurso do tempo se mostravam capazes de gerar um

desequilíbrio que afetava a boa-fé negocial.

Por outro lado, parece evidente que se essas circunstâncias que

acompanham o lapso de tempo durante o qual o direito não foi exercido

apontarem em sentido contrário, de suppressio não se poderá mais falar. Dito

de modo mais claro, o retardamento que se mostra capaz de caracterizar a

suppressio é aquele acompanhado de circunstâncias que indiquem que o

direito não mais será exercido. Logo, contrario sensu, se essas circunstâncias

são tais que em virtude delas mesmas foi que o direito não pôde ser exercido,

a toda evidência não se caracterizará a figura da suppressio, pois nesse caso o

não exercício do direito pelo seu titular, durante o lapso temporal, estaria

justificado, por ter havido algum fato que o impediu.

Assim, por exemplo, suponha-se que o titular do direito deixou de

exercê-lo porque se encontrava em estado de coma, impossibilitado de

expressar a sua vontade; ou, então, que o direito não foi exercido porque o seu

titular se encontrava viajando para o exterior, por motivo de serviço público;

ou, ainda, que o titular do direito é militar e integra a força de paz deslocada 368 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 801-802.

425

pelo Brasil para a missão da ONU no Haiti. Ora, em todos esses casos é mais

do que evidente que o não exercício do direito estará plenamente justificado, e

o titular poderá exercê-lo tão logo desapareça essa causa que durante algum

tempo o impediu de fazê-lo, pouco importa se foi mais ou menos longo o

tempo durante o qual houve a abstenção.

De um modo geral, pode-se apontar que as mesmas causas que se

mostram capazes de interromper, impedir ou suspender a fluência do prazo

prescricional (no nosso ordenamento, artigos 197 a 202, do Código Civil),

também se mostram bastantes para justificar o não exercício do direito pelo

seu titular, afastando a possibilidade de caracterização da suppressio. Só que,

a toda evidência, pode-se ainda apontar que, quanto à suppressio, ao contrário

do que ocorre em relação à prescrição, o elenco legal de causas que se opõem

à fluência do prazo não se mostra taxativo, uma vez que o tema se encontra no

campo da boa-fé, onde as circunstâncias capazes de caracterizar a ofensa à

boa-fé (e, por isso, a suppressio) ou capazes de impedir essa caracterização,

jamais estarão contidas na norma legal de modo exaustivo, como já vimos,

sempre havendo a possibilidade de variações em função das circunstâncias do

caso concreto. Disso daremos exemplo adiante.

Do que foi dito até agora, já se torna relativamente simples

perceber que a suppressio nada mais é do que um caso particular de venire

contra factum proprium, caracterizado pelo fato de que o primeiro dos

comportamentos contraditórios sempre se apresentará como sendo uma

omissão (acompanhada de um prazo), ou seja, sempre consistirá na abstenção,

por parte do titular do direito, em relação ao seu exercício, e a contradição

ocorre porque o segundo comportamento se refere ao exercício desse mesmo

direito do qual até então se abstivera, quebrando a confiança que havia surgido

no outro sujeito quanto ao seu não exercício. Não é demais recordar que os

426

comportamentos contraditórios podem consistir tanto em uma ação quanto em

uma omissão, como já vimos em detalhes, retro (veja-se, a respeito, o que

escrevemos no item 2.3.2.1.d).

Mas é conveniente observar que o primeiro comportamento, ou

seja, o factum proprium, não é apenas o momento inicial em que se deu a

omissão, vale dizer, não é tão-somente o momento em que o direito poderia

ter sido exercido, por seu titular, mas não o foi. Na realidade, o factum

proprium consiste no conjunto formado pela omissão e mais o lapso temporal,

pois é apenas a partir de tal conjunto – e não de um momento único – que

poderá surgir na contraparte a confiança, a expectativa de que o direito não

mais será exercido. O factum proprium, portanto, não se apresenta como um

quadro instantâneo, como se fosse uma fotografia, mas sim como uma

sucessão de quadros, sendo mais adequada a sua comparação com um filme.

Além disso, há uma outra particularidade que poderia ser

apontada, e que consiste no fato de que, em relaçao à suppressio, por

definição, sempre haverá, no momento em que se verificou o primeiro

comportamento, a existência de um direito, eis que tal comportamento se trata,

precisamente, do não exercício desse mesmo direito. Em relação ao venire

contra factum proprium, no entanto, não há a necessidade de que tal direito

exista para a sua caracterização. De qualquer modo, essa questão perdeu

interesse a partir do momento em que o próprio venire, de modo geral,

também passou a ser considerado como um modo inadmissível (abusivo) do

exercício de um direito, ou seja, sempre haverá, no venire contra factum

proprium, a questão ligada ao exercício de um direito369.

Em alguns casos pode-se vislumbrar, em certos dispositivos

legais, a clara influência da figura da suppressio. Assim, por exemplo, dispõe 369 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 809-810.

427

o artigo 1.557, do nosso Código Civil, acerca da posibilidade de anulação do

casamento em virtude de erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, sendo que

o prazo decadencial para a propositura da ação é de três anos, contado a partir

da celebração, como se vê no artigo 1.560, III, do mesmo Diploma Civil.

Assim, se um dos cônjuges descobre, logo após o casamento, fato que até

então desconhecia, e que diz respeito à “honra e boa fama” do outro e se

mostra capaz de tornar insuportável a vida em comum, poderá de imediato

propor a ação anulatória, mas é certo que a sua inatividade durante vários

meses, deixando de pleitear a anulação até alguns dias antes da expiração do

prazo decadencial, por si só não acarretará a supressão do direito.

No entanto, se essa inatividade foi acompanhada por uma

circunstância especial, e que no caso descrito consiste no fato de que o

cônjuge que incidiu em erro, mesmo depois da descoberta desse fato que até

então desconhecia, continuou a coabitar com o outro, nesse caso passará a ser

inadmissível o direito de pleitear a anulação do casamento, pois essa

circunstância especial, acompanhada da omissão quanto ao exercício do

direito, mostra-se capaz de gerar no outro cônjuge a confiança de que o direito

não mais será exercido. E é por essa razão que o artigo 1.559, do Código

Civil, de modo expresso estabelece que a coabitação do cônjuge que incidiu

em erro com o outro valida o ato, retirando daquele, portanto, a possibilidade

de obter a sua anulação.

Essa situação descrita, ao que nos parece, reflete de modo claro

uma aplicação prática da suppressio, e, tivesse o legislador, por qualquer

razão, deixado de fazer a ressalva que se encontra no artigo 1.559, referente à

coabitação, ainda assim o direito de obter a anulação do casamento não mais

poderia ser exercido, só que aí por força da suppressio, uma vez que

inexistiria disposição legal expressa. Aliás, não é demais recordar, como já

428

vimos, retro (item 2.3.2.1.c), que os institutos ligados à boa-fé não devem ser

invocados quando existe norma legal expressa tratando sobre o mesmo tema,

pois seus contornos imprecisos podem ser geradores de insegurança jurídica.

Salvo, é evidente, quando a própria norma legal, conduzindo a solução injusta

e inaceitável, deva ser afastada em virtude da prevalência do princípio da boa-

fé.

Dissemos, alguns parágrafos atrás, que não se poderia falar em

suppressio quando houve alguma circunstância especial que, em vez de incutir

na contraparte a confiança de que o direito não mais seria exercido, funcionou

de modo contrário, ou seja, quando foi essa circunstância mesma que impediu

que o titular do direito o exercesse. Dissemos, ainda, que as causas que

impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, também impedem que se

possa falar em suppressio, sendo, no entanto, que o elenco legal referente à

prescrição, que em relação a esta se mostra taxativo, é apenas exemplificativo

em relação à suppressio, podendo ocorrer outras circunstâncias especiais, não

previstas na lei, que também se mostrem suficientes para afastar a

possibilidade de ser caracterizada a supressão do direito. Aproveitaremos essa

hipótese de anulação do casamento para exemplificar o que foi dito.

Suponhamos que, após o casamento, um dos cônjuges descobre

que o outro é portador de moléstia grave e transmissível, ou, então, que o

mesmo sofre de doença mental grave, que por sua natureza seja capaz de

tornar insuportável a vida em comum para o cônjuge “enganado”

(terminologia claramente inadequada, empregada pelo Código Civil). Em

qualquer desses casos, estando configurado o erro essencial sobre a pessoa do

cônjuge, nos termos do artigo 1.557, III e IV, do Código Civil brasileiro,

poderá ser requerida a sua anulação, no prazo de três anos, contado a partir da

429

data da celebração do casamento, conforme preceitua o artigo 1.560, III, do

mesmo Diploma Civil.

Em uma situação concreta, no entanto, continuemos a supor, um

dos cônjuges descobriu, uns poucos dias após o casamento, que o outro era

portador da doença mental grave, nas condições acima mencionadas. Só que

esse cônjuge não cuidou de ajuizar desde logo a ação de anulação, só vindo a

fazê-lo quando já eram decorridos dois anos e onze meses da data da

celebração do casamento. O simples retardo no ajuizamento da ação, como já

comentamos reiteradas vezes, não é suficiente para tornar inadmissível o

exercício do direito. No entanto, suponha-se que esse retardo, mais uma vez,

tenha vindo acompanhado da circunstância especial da coabitação entre os

cônjuges, mesmo após a descoberta da doença. Nesse caso, terá ocorrido a

suppressio? A resposta, aqui, ao contrário do exemplo anterior, deve ser

negativa.

Com efeito, veja-se que, nesse exemplo apresentado no parágrafo

acima, existe uma justificativa bastante plausível para que tenha continuado a

coabitação entre os cônjuges, mesmo após a descoberta da doença, pois se

assim não fosse, para não ver afastado (suprimido) o seu direito de requerer a

anulação do casamento, o cônjuge “enganado” se veria obrigado a, desde logo,

abandonar o outro à própria sorte, muitas vezes com conseqüências nefastas,

que poderiam levar ao agravamento de uma situação de saúde já delicada. E é

exatamente porque neste caso existe justificativa para o fato de ainda não ter

sido ajuizada a ação e de ter continuado a coabitação, que o Código Civil, no

artigo 1.559, logo após mencionar que a coabitação valida o casamento, e,

portanto, suprime o direito de obter-lhe a anulação, fez a ressalva para

informar que isso não se aplica nos casos em que o erro essencial consiste na

ignorância de moléstia grave e transmissível ou de doença mental grave.

430

Assim, pensamos que a partir desse último exemplo restam

demonstradas e mais bem explicadas as duas afirmações que haviam sido

feitas, ou seja: a) havendo uma circunstância especial que justifique a demora

no exercício do direito, pelo seu titular, afastada estará a ocorrência da

suppressio; b) as causas que se mostram bastantes para impedir a fluência do

prazo prescricional, também se mostram adequadas para evitar a

caracterização da suppressio, mas além dessas causas que se referem à

prescrição podem ocorrer outras, colhidas das circunstâncias do caso concreto,

e referentes, especificamente, ao afastamento da suppressio.

De qualquer modo, esses exemplos acima, referentes à anulação

do casamento, servem apenas para ilustrar o raciocínio, eis que não se trata,

verdadeiramente, de uma hipótese de suppressio, mas simplesmente de

aplicação da norma legal expressa, como já comentamos umas poucas linhas

atrás. Vejamos agora, portanto, uma situação que não se encontra prevista na

lei, mas na qual a jurisprudência tem reiteradamente se valido do conceito de

suppressio, embora sem fazer menção a essa terminologia e, muitas vezes,

segundo acreditamos, sem ter a menor noção de que está sendo aplicada a

referida figura. Trata-se da hipótese, comum na Justiça do Trabalho, da

ocorrência do (impropriamente) chamado “perdão tácito”, ao qual já nos

referimos ao falar sobre o venire contra factum proprium em geral (veja-se,

retro, o item 2.3.2.1.d), ocasião em que já apontamos que seria um caso de

venire onde o primeiro comportamento consistiria em uma omissão.

Com efeito, figure-se situação na qual o empregado tenha

praticado falta grave, capaz de servir como esteio para que o empregador

promova a resolução do contrato de trabalho por justa causa. Mesmo após ter

descoberto o cometimento dessa falta, no entanto, o empregador quedou-se

inerte, não exercendo durante vários meses o seu direito de resolver o contrato

431

por justa causa. Se, depois desse prazo, resolver exercer esse mesmo direito,

não poderá mais fazê-lo, por ter se caracterizado a ocorrência da suppressio

(“perdao tácito”). Nesse sentido:

JUSTA CAUSA. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE NA APLICAÇÃO DA PENA. A não observância ao princípio da imediatidade na aplicação da penalidade máxima, ante a ocorrência de falta reputada grave pelo empregador, atrai a presunção de perdão tácito. A questão não se caracteriza apenas pelo transcurso do tempo, mas também por qualquer medida adotada pelo empregador reveladora da inequívoca intenção de manter o empregado em seus quadros. TRT 2ª Região (SP), 4ª T., Acórdão n° 20050455057, unânime. Relator Juiz Paulo Augusto Câmara. J. 12.07.2005, p. DOE SP 22.07.2005.

Veja-se que a decisão acima revela de modo inequívoco a

presença da suppressio, ainda que sob a alcunha de “perdão tácito”, e tanto é

assim que a ementa transcrita deixa muito claro que não se trata, para a

supressão do direito do empregador de resolver o contrato por justa causa, da

simples inação acompanhada do decurso do tempo, sendo ainda necessário

que tenha havido a adoção de qualquer medida “reveladora da inequívoca

intenção de manter o empregado em seus quadros”, ou seja, qualquer medida

que possa ser considerada como a circunstância especial, que já mencionamos

acima, capaz de incutir no empregado a confiança de que o contrato seria

mantido, ou seja, que o direito de resolvê-lo por justa causa não mais seria

exercido pelo empregador.

E se fosse a hipótese inversa, vale dizer, se fosse o empregador

quem tivesse incorrido em grave descumprimento das obrigações contratuais,

situação na qual o empregado pode exercer o direito de considerar o contrato

resolvido por justa causa do empregador (art. 483, da CLT: “rescisão

indireta”), mas o trabalhador simplesmente se afastou do serviço, ficando um

longo tempo sem exercer seu direito de pleitear a “rescisão indireta” e, depois

432

desse tempo, vindo a fazê-lo, nesse caso também poderia restar caracterizada a

ocorrência da suppressio?

A resposta, aqui, deve ser mais cautelosa, pois se é verdade que,

em alguns casos, a mesma poderá ser positiva, também o é que, em outros,

tendo em vista as circunstâncias especiais da relação jurídica concreta,

notadamente as que se referem à hipossuficiência econômica e ao estado de

subordinação do empregado, essa demora poderá ser justificada, hipótese na

qual já vimos que resta afastada a caracterização da suppressio.

Assim, por exemplo, suponha-se que o empregador tratou o

empregado com rigor excessivo, ou, então, que deixou de pagar-lhe os salários

por período superior a três meses, hipóteses que se constituem em justa causa

do empregador, podendo o empregado considerar o contrato resolvido em

virtude da mesma, conforme dispõe o artigo 483, da CLT (no caso do atraso

dos salários, combinado com o Decreto-Lei n° 368/68). O empregado, diante

de tal situação, simplesmente afasta-se do trabalho, mas não pleiteia o

reconhecimento da rescisão indireta, ou seja, não ajuíza reclamatória para que

lhe sejam pagas as parcelas rescisórias que lhe seriam asseguradas, e que são

as mesmas que seriam devidas em caso de ruptura do contrato por iniciativa

expressa e imotivada do empregador.

Vários meses depois de ter-se afastado do trabalho, mas ainda

dentro do lapso prescricional de dois anos (Constituição Federal, art. 7°,

XXIX), o empregado ajuíza ação, perante a Justiça do Trabalho, na qual

pleiteia o reconhecimento da rescisão indireta e o conseqüente pagamento do

aviso prévio, seguro-desemprego, etc, ou seja, as parcelas que normalmente

decorreriam do reconhecimento dessa rescisão indireta. Nesse caso, o não

exercício do direito durante esse longo tempo caracterizou a ocorrência da

suppressio (“perdão tácito”), retirando do empregado a possibilidade de

433

exercer o direito de ver reconhecida a justa causa do empregador, como

reiteradamente tem entendido a jurisprudência dos tribunais trabalhistas

pátrios370.

No entanto – e é aí que vem a cautela que acima mencionamos –,

a demora do empregado, no exercício do seu direito de resolver o contrato por

justa causa do empregador, não pode ser examinada do mesmo modo que se

examina a demora deste último, na hipótese inversa, uma vez que o

empregado, além de ser hipossuficiente econômico, ainda se encontra em

estado de subordinação. Logo, mesmo que o empregador venha, ao longo de

vários meses, tratando o empregado com rigor excessivo, ou tratando-o de

modo tal que se repete no tempo a ofensa à honra do trabalhador, o fato deste

optar por continuar a trabalhar, sem adotar qualquer medida em relação ao seu

direito de ver o contrato resolvido por justa causa do patrão, tolerando os

desmandos do empregador que se vêm reiterando e acumulando nesses vários

meses, isso não implicará na suppressio, vale dizer, dessa situação não se

poderá concluir pela inadmissibilidade do empregado vir a exercer, em

momento posterior, seu direito de pleitear a rescisão indireta.

370 JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE ANOTAÇÃO DA CTPS. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE.

1. A justa causa do empregador não se caracteriza quando o empregado retarda a adoção de medida tendente a rescindir o contrato de trabalho decorrente de ato faltoso (ausência de anotação da Carteira de Trabalho). 2. Em face do princípio da atualidade ou imediatidade, opera-se o perdão tácito quando, verificando a ocorrência de um ato faltoso, não atua a parte interessada (empregado ou empregador) de forma imediata, deixando transcorrer tempo razoável entre o inadimplemento e o momento de promover a resolução do contrato de trabalho. 3. Recurso de revista de que parcialmente se conhece e a que se nega provimento. TST, 1ª T, Ac. por maioria, Redator Designado Min. João Orestes Dalazen, RR n° 689442, j. 18.06.03, p. DJ 12.09.03.

PRESCRIÇÃO INDIRETA. LAPSO MUITO GRANDE ENTRE A FALTA COMETIDA PELA

EMPRESA E A PROPOSITURA DA RECLAMATORIA. PERDÃO TÁCITO. Havendo lapso muito grande entre a falta grave cometida pela empresa, suficiente a ensejar a rescisão indireta, e a propositura da reclamatoria, ocorre o denominado perdão tácito, absolvendo a demandada dos onus que lhe foram imputados. Revista patronal conhecida e provida. TST, 3ª T, Ac. unânime, Relator Min. Roberto Della Manna, RR n° 52105, j. 14.12.92, p. DJ 06.08.93, pág. 15106.

434

Ora, como facilmente se pode imaginar, em um momento de

grave desemprego, como o que atualmente atravessa o nosso País, muitas

vezes a ruptura do contrato, pelo empregado, se mostraria muito mais danosa

do que ter que continuar a suportar os desmandos do patrão, principalmente

quando se trata de empregado de pouca ou nenhuma qualificação técnica,

situação na qual se mostra ainda mais difícil a obtenção de uma nova

colocação no mercado de trabalho. Em tal situação, portanto, estaria

plenamente justificada a demora do empregado, quanto ao exercício do seu

direito, uma vez que preferiu conservar o emprego em virtude da dificuldade

de obtenção de um outro, não podendo ser essa preferência confundida com a

pura e simples supressão do seu direito de resolver o contrato.

Nesse sentido é que se tem posicionado a jurisprudência dos

nossos tribunais, ou seja, diferenciando as hipóteses nas quais o empregado já

se afastou do emprego, ou seja, a relação jurídica já foi rompida (e, portanto,

desapareceu o estado de subordinação), daquelas nas quais o empregado ainda

continua trabalhando, e por isso, continua juridicamente subordinado ao

empregador e dependendo do salário para viver371.

371 AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. AUSÊNCIA DE

RECOLHIMENTOS DO FGTS. FALTA GRAVE. RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 5º, II, DA CF E 483, "A", DA CLT. CONTRARIEDADE AO ENUNCIADO Nº 13. DISSENSO PRETORIANO.

................................... A simples redação da alínea "d", do art. 483 da CLT não pode encerrar dúvida, a respeito da sua

aplicabilidade irrestrita. Com efeito, em que pese opiniões em contrário, as obrigações contratuais inadimplidas pelo empregador não podem ser objeto de perdão tácito por parte do empregado, cuja tolerância se deve, na absoluta maioria dos casos, à sua situação de dependência e hipossuficiência. Outrossim, não há como conciliar o perdão tácito com a possibilidade de ação judicial reparatória, como pretendeu o Eg. Regional.

De modo semelhante também ocorre quanto ao dito princípio da continuidade da relação de emprego, que consiste de construção doutrinária em favor do empregado, não podendo por isso ser invocado contra ele. Ao empregado é quem cabe exclusivamente decidir sobre se a ruptura pela rescisão indireta lhe acarreta algum malefício.

................................ Recurso a que se dá provimento para declarar a rescisão indireta do contrato de trabalho,

condenando a Reclamada a pagar ao Reclamante os títulos rescisórios pertinentes à dispensa sem justa causa.

435

Outro caso de claríssima aplicação da figura da suppressio, ainda

na jurisprudência dos tribunais trabalhistas, foi a recentíssima decisão do

Tribunal Superior do Trabalho372, em sessão realizada no mês de fevereiro de

2006. Tratou-se de hipótese onde um empregado teve alterado o seu turno de

trabalho, ou seja, trabalhava durante a noite, das 20:00 horas até 01:30h, e foi

subitamente avisado que, a partir do mês seguinte, deveria trabalhar durante o

dia. A alteração do turno de trabalho do empregado, ainda que sendo assim tão

brusca, da noite para o dia, em geral é entendida como parte do poder diretivo

do empregador (jus variandi), para que este possa adequar a força de trabalho

dos seus empregados às necessidades da empresa.

No entanto, no caso concreto, o que se verificou foi que essa

situação do trabalho noturno perdurou durante treze anos consecutivos, sendo

que, ao longo de todo esse tempo, o empregado estruturou toda a sua vida em

função desse seu horário noturno, e durante o dia o mesmo era professor

adjunto de uma instituição de ensino superior, com jornada de quarenta horas,

e ainda cursava o doutorado em Psicologia Social, e por tais razões, a toda

evidência seria severamente prejudicado, caso viesse a ser concretizada a

alteração pretendida pelo empregador.

TST, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Juiz convocado Samuel Corrêa Leite, RR n° 1126-2002-906-06-00, j.

10.12.03, p. DJ 13.02.04.

RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO. PERDÃO TÁ CITO. INCOMPATIBILIDADE. A lógica do denominado "perdão tácito" não funciona da mesma forma nas hipóteses de justa causa obreira e de justa causa empresarial. No primeiro caso, o decurso do tempo, aliado à inércia do empregador, leva à presunção de que a falta porventura praticada tenha sido perdoada, concretizando-se o princípio protetor que permeia todo o Direito do Trabalho. Já no caso da rescisão indireta, é inviável pensar que a ausência de insurgência imediata do empregado contra a falta cometida pelo empregador implique em perdão pelos atos praticados, pois o que prevalece, neste caso, é o direito ao emprego, com permanência do vínculo que traz o sustento do obreiro e cuja ruptura acarreta, em geral, mais desvantagens do que a "submissão" aos eventuais desmandos do empregador. Contribui, ainda, para a inércia do empregado, submissão ao poder de mando do empregador. TRT 3ª Região, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Juiz Milton Vasques Thibau de Almeida, RO n° 01148-2004-021-03-00-8, j. 07.06.05, p. DJ 15.06.05, pág. 09.

372 Tribunal Superior do Trabalho, 2ª T., Ac. unânime, RR 24147/2002-900-04-00.7, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, j. 14.02.2006.

436

No caso concreto, portanto, concluiu o Tribunal Superior do

Trabalho, ao nosso ver acertadamente, no sentido de que, tendo havido uma

duração tão longa do trabalho exclusivamente noturno, e tendo o empregado,

claramente, organizado toda a sua vida em função desse mesmo horário, o

direito de permanecer no horário noturno já havia se incorporado ao contrato

de trabalho, não podendo ser agora unilateralmente alterado pelo empregador.

Veja-se que, na situação relatada, o empregador deixou de

exercer seu poder diretivo, em relação à mudança de horário do empregado,

durante treze longos anos. No entanto, a simples falta de exercício do poder

diretivo, por si só, não seria capaz de justificar a supressão do direito do

empregador, sendo necessária, além disso, como já vimos retro, a presença de

algumas circunstâncias especiais, capazes de fazer surgir no empregado a

confiança de que aquela situação estava consolidada, ou seja, de que não mais

seria exercido pelo empregador o direito de alterar o seu turno do trabalho.

Veja-se que o longo tempo decorrido (13 anos), por si só já se

constitui em importante elemento a ser considerado, eis que já analisamos,

linhas atrás (veja-se o item 2.3.1), que uma das circunstâncias que sempre

devem ser consideradas, para se aferir se chegou ou não a se formar a

confiança no espírito do outro sujeito, é precisamente o tempo decorrido entre

os dois comportamentos contraditórios, sendo certo que, quanto maior tiver

sido esse tempo, mais plausível se torna que tal confiança tenha efetivamente

surgido. Veja-se, ainda, o que escrevemos no item 1.9.a.1, acerca de situação

semelhante à do caso ora relatado, e que dizia respeito ao empregador que

pretendia se valer de cláusula contratual para transferir o empregado, depois

de longo tempo trabalhando em uma mesma cidade, onde construíra todas as

suas relações familiares e econômicas.

437

No caso concreto ora enfocado, no entanto, além do longo tempo,

que estando sozinho poderia gerar alguma dúvida, houve ainda a peculiaridade

do empregado ter construído toda uma vida acadêmica e profissional em

paralelo, de modo a compatibilizá-la com o horário noturno no qual prestava o

seu trabalho para aquele empregador. E foi esse conjunto de fatores que, sem

qualquer dúvida, se constituíram na “circunstância especial”, capaz de fazer

surgir no empregado a confiança na permanência daquela situação, ou seja, a

confiança, como já dissemos acima, em que o empregador não iria alterar o

seu horário noturno de trabalho. E foi essa confiança que, em última análise,

veio a ser protegida pela decisão do Tribunal Superior do Trabalho.

Para que possamos prosseguir no exame da suppressio,

necessário é que se nos permita fazer breve observação, a ser logo adiante

mais bem explicitada. É que no caso acima relatado, o que se nota claramente

é que o Tribunal Superior do Trabalho, ao garantir ao empregado a

permanência no horário noturno, cuidou de, para proteger a confiança do

trabalhador, atribuir-lhe um novo direito, ou seja, o de exigir sua permanência

no trabalho noturno. Eis aí a figura da surrectio. Como decorrência lógica

desse direito atribuído ao trabalhador, no entanto, houve o desaparecimento de

um direito do empregador, qual seja, foi suprimido o direito de alterar o

horário de trabalho, após ter passado um longo período sem fazê-lo. Eis,

agora, a figura da suppressio, que surge como uma conseqüência da surrectio.

E é nessa linha de abordagem que daremos seqüência ao nosso estudo.

Prosseguindo, importante observação que deve ser feita, é a que

se refere ao objetivo primordial da suppressio. A questão que se coloca é a de

se saber se a finalidade da suppressio é a de reprimir o comportamento do

titular do direito, que deixou de exercê-lo e, posteriormente, pretendeu

exercer, ou se, ao contrário, o objetivo principal da figura da suppressio é a

438

proteção à boa-fé do outro sujeito. Não temos qualquer dúvida em afirmar que

esta segunda posição é a que se mostra mais adequada, ou seja, a atuação da

suppressio não depende de ter havido dolo ou má-fé do titular do direito, pois

a idéia básica não é a punição desse sujeito, mas sim a proteção do outro, em

virtude da boa-fé objetiva, concretizada no fato de ter surgido a confiança

desse que recebe a proteção.

Na realidade, facilmente se pode demonstrar que o que se tem na

suppressio nada mais é do que a particularização do que acontece com o

venire contra factum proprium em geral, ou seja, não se trata de punir a

atuação dolosa, fraudulenta ou de má-fé de um sujeito, mas sim de proteger a

confiança, ou seja, a legítima expectativa que se formou no outro, e que em

última análise nada mais significa do que a proteção à boa-fé. Ora, basta que

se observe que a repressão ou punição à atuação (ou à falta dela, rectius, à

omissão) já está embutida nas figuras da prescrição e da decadência.

Em outras e mais claras palavras, se o titular do direito deixar de

exercê-lo pelo lapso de tempo previsto na lei, a conseqüência dessa sua inércia

já se encontra prevista expressamente no próprio texto legal, e consistirá,

conforme o caso, na prescrição da pretensão ou na caducidade do direito em si

mesmo. Se a suppressio também tivesse essa mesma finalidade de servir como

punição à omissão, vale dizer, ao comportamento omisso do sujeito que se

apresenta como o titular, neste caso, nada mais seria do que uma prescrição ou

decadência que se apresentaria com um prazo mais reduzido, o que não faria o

menor sentido. Daí, o que remanesce, como objeto da suppressio, é a proteção

à boa-fé da contraparte, ou seja, protege-se a confiança desta em que não

haverá mais o exercício do direito373.

373 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 801-802.

439

Parece-nos que essa idéia de proteção à confiança, em vez de

repressão a um certo comportamento, já ficou muito clara nas situações

hipotéticas que acima apresentamos. Assim, por exemplo, no caso do

empregado ou do empregador que, podendo romper o contrato em virtude da

justa causa dada pela contraparte, prefere aguardar por longo tempo, sem

tomar qualquer providência, não se pode falar em má-fé ou intenção dolosa

desse sujeito, eis que não se mostra possível apontar que alguém estaria de

má-fé pelo simples fato de ter optado por não exercer um direito seu ao longo

de um certo lapso temporal. Logo, se não se está tratando de puniçao à má-fé,

é porque o que se está buscando é a proteçao à boa-fé.

É evidente que, em determinadas situaçoes concretas, poderão

coincidir a boa-fé da contraparte, a ser protegida como objetivo primário do

instituto da suppressio, e a má-fé ou deslealdade do sujeito que é o titular do

direito e que por longo tempo se absteve de exercê-lo. Foi o que aconteceu,

por exemplo, nos casos narrados acima, na Alemanha do pós-primeira guerra

mundial, onde a inflação em patamares estratosféricos fazia com que o retardo

no exercício do direito, pelo credor, elevasse a quantia devida a valores

astronômicos, no mais das vezes simplesmente impossíveis de serem pagos

pelo devedor. Logo, o credor poderia se valer, de má-fé, desse retardo, como

meio de aumentar o valor que lhe era devido.

No entanto, essa presença da má-fé se mostra eventual, ou seja, se

por um lado é possível que ocorra, por outro, sua presença não se mostra como

requisito indispensável para a caracterização da figura da suppressio, que

mesmo sem ela poderá restar caracterizada, no caso concreto.

Aferido, pois, que o aspecto principal da suppressio não é a

repressão à inércia do titular do direito, mas sim a proteção à boa-fé do outro

sujeito, pode-se então passar a falar da surrectio, ou seja, do surgimento de

440

direitos para a contraparte, essa cuja proteção se constitui no objetivo da

suppressio. Já havíamos comentado (veja-se, retro, o item 2.2, em nota de

rodapé), que quando se colocam limites ao exercício do direito subjetivo de

uma pessoa (e esse limite, em seu estágio mais radical, pode ser a própria

inadmissibilidade do exercício), ao mesmo tempo se faz nascer um novo

direito para a contraparte374.

Assim, e utilizando um dos exemplos vistos acima, quando se

veda ao empregador o exercício do direito de romper o contrato por justa

causa, face ao longo tempo em que demorou em fazê-lo, essa supressão de

direito corresponderá, em relação à contraparte (o empregado), ao surgimento

do direito de se manter trabalhando ou, pelo menos, caso não seja estável e

venha a ser dispensado, o direito de receber todas as verbas trabalhistas

decorrentes da dispensa sem justa causa.

Na hipótese da anulação do casamento, se houve a coabitação

entre os cônjuges, quando ao cônjuge “enganado” se nega o direito de pleitear

a anulação do matrimônio, isso significa que, ao outro, concomitantemente,

foi deferido o direito de manter intacto o casamento (pelo menos em relação à

figura do erro sobre qualidade essencial da pessoa).

Esse fenômeno do surgimento de direitos para a contraparte, ou

seja, para o que está sendo protegido pela figura da suppressio, é que se

denomina de surrectio. Pode-se dizer, portanto, que a surrectio corresponde

ao exame da suppressio sob a ótica da parte cuja confiança está sendo

protegida.

Ocorre que o principal objetivo da suppressio, como vimos, é

precisamente a proteção da boa-fé da contraparte, ou seja, o que está em

374 Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 408, n° 1426.

441

questão não é apenas a extinção do direito de uma das partes, mas sim a

vantagem conferida à outra, e, por essa razão, torna-se possível apresentar o

fenômeno de modo invertido, ou seja, em vez da supressão do direito

(suppressio) ser seguida pelo surgimento de um outro (surrectio), a equação

seria invertida, apontando-se, pois, que à surrectio segue-se a suppressio, vale

dizer, toda vez que tiver surgido para a contraparte um direito, como meio de

proteção à sua confiança, à sua legítima expectativa, esse surgimento será

seguido pela supressão do direito da contraparte que se mostre incompatível

com a nova situação jurídica criada para o beneficiário.

Dessa forma, o que se deve pesquisar, sempre, é a posição do

beneficiário, ou seja, deve-se perquirir se as circunstâncias objetivas do caso

concreto conduziram a que no mesmo se formasse a confiança no seu próprio

direito ou no não exercício, pela outra parte, do direito desta. Nesse sentido é a

precisa lição de Menezes Cordeiro375, para quem

O fenômeno da suppressio, traduzido no desaparecimento de posições jurídicas que, não sendo exercidas, em certas condições, durante determinado lapso de tempo, não mais podem sê-lo, sob pena de contrariar a boa-fé, corresponde a uma forma invertida de apresentar a realidade. A suppressio é, apenas, o subproduto da formação, na esfera do beneficiário, seja de um espaço de liberdade onde antes havia adstrição, seja de um direito incompatível com o do titular preterido, seja, finalmente, de um direito que vai adstringir outra pessoa por, a esse mesmo beneficiário, se ter permitido actuar desse modo, em circunstâncias tais que a cessação superveniente da vantagem atentaria contra a boa-fé. O verdadeiro fenômeno em jogo é o da surrectio, entendida em sentido amplo. É nesta que devem ser procurados requisitos... Assim, o beneficiário tem de integrar uma previsão de confiança, ou seja, deve encontrar-se numa conjuntura tal que, objetivamente, um sujeito normal acreditaria quer no não exercício superveniente do direito da contraparte, quer na excelência do seu próprio direito.

375 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 824.

442

Pode-se apontar, portanto, que a suppressio e a surrectio, de

modo genérico, encontram fundamento legal no artigo 187, do Código Civil

brasileiro, que ao tratar da figura mais ampla do abuso do direito, permite a

limitação parcial ou mesmo total (neste caso, a extinção) de um direito e,

como já vimos, ao admitir a limitação do direito de um, simultânea e

necessariamente estará admitindo a criação de direito para o outro, e não

necessariamente nessa ordem.

Tomemos, como exemplo, apenas para facilitar o

acompanhamento do raciocínio, uma situação do direito de vizinhança,

embora desde logo lembrando que, em se tratando de situação expressamente

prevista na lei, em rigor não haveria necessidade de se recorrer às figuras do

abuso do direito e nem da suppressio ou da surrectio.

Imagine-se que o proprietário de um terreno, ao pretender edificar

no seu prédio, manda fazer todos os estudos geológicos necessários, de modo

a não causar prejuízo às construções vizinhas. Apesar desse cuidado, quando

começam a ser fixados os tubulões que servirão como fundações, surgem

sérias rachaduras em uma casa da vizinhança. Nesse caso, o proprietário

prejudicado tem o direito de exigir que cessem os danos que estão sendo

causados ao seu próprio imóvel, e que decorrem da construção no prédio

vizinho. Em conseqüência, o proprietário que está construindo sofrerá

limitações no seu direito, ou seja, deverá tomar maiores precauções, para

evitar os referidos danos, além de ter que indenizar os prejuízos que foram ou

vierem a ser sofridos pelo outro.

Nessa hipótese, e é isso o que realmente pretendíamos destacar,

em primeiro lugar se manifesta o direito da contraparte, ou seja, o direito do

proprietário vizinho de não ser prejudicado pela utilização do outro prédio,

vale dizer, pela construção que está em andamento. Uma vez surgido esse

443

direito (surrectio), em seguida deve-se examinar se o direito do outro

proprietário se mostra incompatível com o mesmo e, caso venha a ser revelada

a incompatibilidade, esse direito será suprimido total ou parcialmente (no caso

apresentado, parcialmente), na medida exata em que isso se mostrar necessário

para afastar a incompatibilidade, ou seja, de modo a respeitar o direito surgido

para a contraparte. A seqüência, portanto, como no caso fica muito claro, é a

manifestação primeira da surrectio, para em seguida manifestar-se a

suppressio.

E veja-se que essas colocações servem de confirmação para

afirmação que havíamos feito linhas atrás, neste mesmo item, no sentido de a

extinção do direito, ou seja, a suppressio, não será necessariamente total,

podendo se tratar apenas de uma supressão parcial do mesmo. Com efeito, se

em primeiro lugar ocorre o fenômeno do surgimento do direito da contraparte

(surrectio), e só em seguida é que se verifica a incompatibilidade do direito do

titular que retardou o seu exercício, para fins de eliminá-la pela supressão do

direito, parece evidente que se pode afirmar que a supressão do direito não

ocorre de modo gratuito e desnecessário, mas tão-somente na medida exata em

que isso se fizer necessário para a eliminação da incompatibilidade, ou seja,

para que possa ser preservado o direito recém-criado para o outro sujeito.

Portanto, casos haverá em que a compatibilização só poderá ser

feita pela eliminação total (extinção) do direito que até então não havia sido

exercido, como foi a situação da justa causa do empregado ou a do

empregador, situações por nós examinadas. No entanto, haverá situações onde

poderão ser compatibilizados o direito recém-surgido da contraparte com o

direito até então não exercido, sem que seja necessária a eliminação total

deste, sendo sufieicnete a sua redução, como foi o caso, por exemplo, da

situação de direito de vizinhança, acima descrita.

444

Essa eliminação parcial, também, poderia ser verificada no caso

da empregada gestante que, ao ser dispensada em momento em que nem ela

mesma (e, portanto, muito menos o empregador) sabia de seu estado

gravídico, retarda o pedido de reintegração ao trabalho até o momento em que

essa reintegração não se mostra mais possível, por já ter expirado o prazo de

garantia de emprego previsto na Constituição Federal.

Assim, e lembrando que a Constituição Federal garante à gestante

o direito ao emprego desde a confirmação da gravidez e até cinco meses após

o parto (Constituição Federal, Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, art. 10, II, b), o que se vê, na prática dos tribunais trabalhistas, é

que a empregada, muitas vezes, ao ser dispensada antes mesmo que qualquer

exame tivesse apontado a sua gravidez (embora efetivamente já estivesse

grávida), nada comunica ao empregador, e simplesmente deixa passar os

quatorze meses (nove meses de gestação e mais cinco meses após o parto) de

garantia de emprego.

Depois de escoado esse prazo (embora ainda dentro do lapso

prescricional de dois anos), quando a reintegração ao serviço já se mostra

inviável, por não haver mais a garantia de emprego, a empregada ajuíza

reclamação trabalhista na qual pretende receber os salários desses quatorze

meses que não trabalhou, durante os quais teria a garantia de emprego. Parece-

nos que se trata de hipótese clara de manifestação do binômio surrectio X

suppressio, pois como já transcorreu o período no qual o direito de

permanecer no serviço estava assegurado, surgiu para o empregador a legítima

expectativa de que a empregada, mesmo que estivesse gestante (coisa que o

empregador, em muitos casos concretos, desconhecia até o momento em que

tomou ciência da ação), não mais exerceria o seu direito de retornar ao

trabalho.

445

Tem-se aí, no nosso entender, a supressão total do direito da

empregada, eis que tal direito se mostra integralmente incompatível com a

proteção à legítima expectativa do empregador376.

376 Observando, contudo, como já fizemos em item anterior (item 2.3.2.1.d, em nota de rodapé), que não é essa a posição dominante no Tribunal Superior do Trabalho, entendendo aquela Corte Superior Trabalhista que o retardo no exercício do direito de ação, se ainda dentro do prazo prescricional, não pode ser entendido como equivalente à perda do direito pela empregada, apenas implicando na conversão do direito de reintegração em direito de indenização equivalente. Pensamos, como já ficou claro no texto acima, que está equivocada a posição adotada por aquela Corte Trabalhista, mas neste estudo deixamos de enfrentar a polêmica, por não se constituir a mesma no foco do mesmo, onde apenas se pretendeu apontar um possível exemplo de suppressio parcial do direito. No entanto, por questão de lealdade ao leitor, optou-se por noticiar que a posição contrária é a que predomina no Tribunal Superior do Trabalho, como se vê, por exemplo, no Recurso de Revista RR - 75656/2003-900-02-00, publicado no DJ - 05/08/2005, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, cuja ementa ficou assim redigida:

FGTS. VERBA INDENIZATÓRIA. O empregador não pode se eximir de cumprir a obrigação de pagar o FGTS e multa, se único responsável pela dispensa indevida da Reclamante, pois detentora de estabilidade gestante, e devidos no caso de cumprimento do contrato de trabalho regularmente. Recurso não conhecido. ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS. A demora no ajuizamento da ação não importa renúncia de direito, pois devida a indenização no caso de o período estabilitário já ter se exaurido (Súmula 244, II, do TST). Recurso de Revista conhecido e não provido.

E no voto desse mesmo Acórdão ficou anotado que:

.................... 2 - ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS a) Conhecimento O Tribunal Regional analisou a questão no julgamento dos Embargos Declaratórios da Reclamada. Concluiu: “A reclamante propôs a ação dentro do biênio constitucional, em que é pleno o seu direito de ação. A alegação de que a propositura tardia da ação afastaria o direito à estabilidade é impertinente” (fl. 329). A Reclamada defende a tese de que o ajuizamento tardio da presente reclamação afasta a pretensão da Reclamante. Transcreve arestos para o cotejo de teses. Os arestos de fl. 337 autorizam o conhecimento do Recurso, pois trazem tese no sentido de que a demora no ajuizamento da ação importaria na renúncia da garantia do emprego. Conheço, por divergência jurisprudencial. b) Mérito O artigo 10, II, “b”, do ADCT assegura à gestante, estabilidade no emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A dispensa realizada em confronto com a referida norma, é nula, sendo necessária a reintegração da empregada no emprego ou, no caso de exaurido o período estabilitário, o pagamento dos salários correspondentes ao período. Esse o entendimento pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho, conforme dispõe a Súmula 244, II: “Gestante. Estabilidade provisória. (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 88 e 196 da SDI-1) - Res. 129/2005 - DJ 20.04.05 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (art. 10, II, "b" do ADCT). (ex-OJ nº 88 - DJ 16.04.2004) II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. (ex-Súmula nº 244 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) III - Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo, não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 - Inserida em 08.11.2000)” Assim, o fato da reclamação ter sido ajuizada após o período estabilitário, não prejudica a Autora, pois devidos os salários e demais direitos relativos ao período estabilitário.

446

No entanto, suponha-se que essa mesma empregada do exemplo

acima tivesse apresentado a sua reclamação trabalhista quando tivessem sido

decorridos três meses após o parto, e, portanto, ainda restariam dois meses de

garantia do emprego. Nesse caso, parece bastante claro que o atendimento à

legítima expectativa do empregador não passaria pela eliminação total do

direito da empregada, sendo suficiente a supressão parcial de tal direito, vale

dizer, a supressão apenas dos meses que, com sua inércia, a mesma deixou

transcorrer in albis, abstendo-se de exercer seu direito, mas reconhecendo-se a

possibilidade de tal exercício de modo parcial, em relação aos dois meses de

garantia de emprego que ainda lhe restam.

De resto, valem para esse contraponto entre suppressio e

surrectio as observações que já foram feitas, retro (item 2.3), acerca do venire

contra factum proprium em geral, haja vista que este, como já demonstramos,

se apresenta como um gênero do qual fazem parte aquelas.

447

Conclusão

A primeira e, possivelmente a mais importante, conclusão a que

se chegou, no presente trabalho, foi a que se refere à natureza principiológica

e ao assento constitucional da boa-fé. Com efeito, vimos no primeiro capítulo

do trabalho, especificamente no item 1.6, que a boa-fé se apresenta como uma

norma de cunho amplo e geral, e por isso pode ser apontada como sendo um

princípio geral do nosso ordenamento.

Além disso, como também examinamos em detalhes, o assento da

boa-fé pode ser encontrado diretamente na Constituição Federal, mais

precisamente no princípio da solidariedade social, que impõe a todos os

integrantes de uma comunidade o dever de cooperação em relação aos demais,

sendo que esse dever se torna mais acentuado e mais perceptível na medida

em que é reduzido o tamanho desse grupamento social, sendo por isso fácil de

se perceber que será muito forte esse dever de cooperação (rectius : dever de

agir de boa-fé) em um grupo pequeno, como é o caso de uma relação

contratual.

Ora, a partir da constatação e da junção desses dois fatos (a boa-

fé é um princípio; esse princípio tem assento constitucional), várias

conseqüências podem ser daí extraídas, e de fato foram exploradas ao longo

do presente trabalho. Tais conseqüências dizem respeito, principalmente, ao

caráter multifuncional da boa-fé, ou seja, ao seu papel múltiplo (interpretação,

integração, limitação, etc).

Veja-se que, sendo um princípio geral, a boa-fé se espalha por

todo o nosso ordenamento, o que por si só já é suficiente para que se conclua

que seu campo de atuação ultrapassa o das relações obriga cionais. Esse

princípio atua, é evidente, como fonte secundária do direito, ou seja,

448

possibilitando a integração nos casos em que não existe norma legal ou

contratual acerca de uma determinada situação surgida ao longo da relação.

No entanto, por sua natureza constitucional, o princípio da boa-fé

não se limita a esse papel integrador, pois na hipótese de haver norma legal ou

contratual, mas a mesma se revelar em choque com o princípio, é este que

deverá prevalecer, ou seja, deverá o operador do direito, sem maiores

delongas, simplesmente afastar a norma legal ou convencional, sobre qualquer

delas dando prevalência ao princípio da boa-fé.

E seria até desnecessário dizer que esse aspecto se revela

importantíssimo, como já realçamos acima, pois a partir daí pode-se concluir

que o princípio da boa-fé serve como instrumento para que o juiz possa

interferir diretamente no conteúdo contratual, não apenas para completá-lo,

mas também alterando uma determinada cláusula, excluindo-a, inserindo uma

outra, etc, mas sempre de modo a garantir o atendimento da proteção à boa-fé.

Pode-se mesmo dizer que a boa-fé, mais do que uma norma, se apresenta

como uma fonte de normas, sendo que estas prevalecem sobre as normas

contratuais e legais, em caso de conflito.

Ainda dentro das conclusões que decorrem dessas duas

constatações acima apontadas, acerca do princípio da boa-fé, e que englobam

o caráter expansionista da mesma, pode-se apontar também o importantíssimo

aspecto de sua aplicação aos campos que se situam além do direito privado,

notadamente o direito processual e o direito público. Com efeito, o que

pudemos observar, notadamente no item 1.7 do presente estudo, é que

inclusive à administração pública se proíbe que “volte sobre os seus próprios

passos”, vale dizer, que possa agir de modo incoerente e contraditório, nos

casos em que tal agir venha a violar o dever de boa-fé.

449

No entanto, como parte dessa mesma conclusão, convém realçar

que, em relação à administração pública, o tratamento ao tema deve ser dado

sob a ótica de parâmetros distintos, próprios das peculiaridades que cercam a

atuação do administrador público.

Com efeito, embora não se discuta que também à administração

pública se impõe a conduta pautada pelas normas comportamentais

decorrentes do princípio da boa-fé, a toda evidência não se pode tratar essa

relação, que de um dos lados apresenta o interesse público, da mesma forma

que se trata uma relação desenvolvida apenas entre particulares, e que por isso

está bipolarizada apenas em função de interesses particulares.

Assim, por exemplo, suponha-se que um segundo comportamento

se mostra contraditório com o primeiro, quebrando a confiança do outro

sujeito, em hipótese de venire contra factum proprium. Suponha-se, ainda, que

em termos materiais esse segundo comportamento poderia ser facilmente

desfeito. Ora, em se tratando de particulares, a solução preferida será

exatamente aquela que determine o desfazimento ou a alteração do segundo

comportamento, preservando a boa-fé (a confiança) do outro sujeito. No

entanto, em se tratando da administração pública, muitas vezes ocorrerá desse

segundo comportamento, ainda que violador da confiança do administrado, e

portanto contrário à boa-fé, ser o que melhor atende às conveniências

públicas, e por essa razão não faria sentido desfazê-lo apenas para que pudesse

ser atendido o interesse particular. A solução preferencial, portanto, em tais

casos, se dará mediante a indenização dos prejuízos sofridos, e não pelo

desfazimento do ato do administrador.

Por outro lado, levando-se em conta que a atuação da

administração pública se dá de modo impessoal e genérico, vale dizer, trata-se

de atuação que, em regra, não se destina a uma pessoa específica, mas ao

450

estabelecimento de regras e condições que vão atender a generalidade (ou pelo

menos um grande número) de jurisdicionados, pode-se concluir que a quebra

da boa-fé, por parte da administração pública, em virtude da adoção de

comportamentos contraditórios, não depende de ter havido uma relação

jurídica específica com um determinado sujeito, podendo decorrer da adoção

de uma postura política ou econômica anterior. Assim, a partir do momento

em que a administração pública adotou uma determinada posição econômica,

com o intuito de incentivar uma certa atividade da produção, por exemplo,

qualquer administrado, embora tal política não se dirigisse a ele,

especificamente, mas sim a toda coletividade, poderá exigir que seja mantida a

coerência, por parte do administrador.

Dessarte, se esse administrado, em função da postura adotada

pelo governo federal, efetuou elevados investimentos em uma determinada

atividade, e, abruptamente, houve uma mudança completa na política

governamental, passando a ser execrada aquela mesma atividade que até então

era incentivada, poderá esse particular insurgir-se contra esse comportamento

contraditório, exigindo, por exemplo, o pagamento de uma indenização, a ser

paga pela administração pública que voltou sobre seus próprios passos.

Da mesma forma, também se mostra importante a conclusão,

ainda referente às duas características da boa-fé acima examinadas, acerca da

sua expansão, também, para o campo do direito processual. E, ainda mais,

essa boa-fé não atinge apenas as partes do processo, mas também diz respeito

a toda e qualquer pessoa que, de uma forma ou de outra, possa ter influência

sobre o correto atendimento dos provimentos judiciais. No caso, contudo, essa

boa-fé processual já se encontra explícita no texto legal, mais precisamente

nos artigos 14 e seguintes, do CPC, e por essa razão em geral não se mostrará

451

necessário o recurso à figura da boa-fé, cujos contornos nem sempre são

precisos ou de fácil identificação.

Aliás, a parte final do parágrafo anterior diz respeito a outra

relevante conclusão que pode ser apontada, que é a que se refere à

desnecessidade de se recorrer à boa-fé nos casos em que existe norma legal

expressa disciplinando de modo adequado o tema, uma vez que não faria

qualquer sentido abandonar-se a norma legal, de contornos mais precisos, para

se buscar o mesmo resultado através do princípio da boa-fé, que sempre se

apresenta com os contornos mais imprecisos, o que poderia acabar por se

constituir em um foco de insegurança jurídica.

Não quer isso dizer, é evidente, que a segurança jurídica se

constitua em um valor absoluto ou que se confunda com a obediência literal

do texto da lei, e tanto assim que acabamos de apontar conclusão no sentido

de que o juiz, para preservar o princípio da boa-fé, poderá afastar a aplicação

de norma legal expressa. No entanto, é evidente que essa adoção de uma

solução de contornos imprecisos, que possa afetar a segurança jurídica, só

deverá ser adotada quando se mostrar indispensável fazê-lo, o que não seria o

caso nas hipóteses em que houvesse norma legal expressa a respeito do tema

(a não ser, como já dissemos acima, que tal norma não se mostrasse adequada

aos ditames da boa-fé).

O desatendimento à boa-fé, por outro lado, nem sempre apresenta

a mesma conseqüência jurídica, ou seja, nem sempre deverá receber a mesma

solução, variando sempre em função das circunstâncias do caso concreto. Tal

conclusão pode ser facilmente obtida quando se observa que a própria boa-fé

se concretiza de maneiras variadas, conforme as circunstâncias de cada

situação concreta. Ora, se a própria boa-fé se apresenta de diversos modos,

parece evidente que se pode concluir que a violação da boa-fé também poderá

452

ocorrer de diversas formas, e, ainda, que as soluções poderão ocorrer de

diversos modos distintos, em função das circunstâncias de cada hipótese onde

a violação da boa-fé vem a se concretizar. Tal afirmação nos permite apontar

que o item 1.9, no primeiro capítulo do presente estudo, apenas apresenta uma

relação meramente exemplificativa, acerca das possíveis conseqüências da

concretização da proteção à boa-fé, limitando-se a apontar as hipóteses de

maior relevância, mas sem qualquer pretensão de esgotar o inesgotável tema.

No que se refere ao capítulo dois, que trata das violações típicas

da boa-fé, convém desde logo realçar o enquadramento da figura do venire

contra factum proprium dentro do campo mais amplo do abuso do direito,

com a óbvia ressalva de que se trata de um caso particular de abuso, vale

dizer, com características próprias, que permitem um exame em separado,

distinto das demais figuras que também se enquadram como casos específicos

de abuso. Além disso, também é importante destacar que, embora nosso

Código Civil não se refira diretamente ao venire, na verdade podemos

encontrar aplicações práticas do mesmo ao longo de todos os seus livros,

inclusive em relação ao direito de família, o que serve para ratificar o caráter

genérico do campo de atuação da boa-fé, nas diversas modalidades em que a

mesma surge nas relações jurídicas.

Vimos que todos os casos de venire contra factum proprium

podem ser decompostos em dois comportamentos e uma contradição. Os dois

comportamentos são os adotados pelo mesmo sujeito, em momentos distintos,

e que se mostram contraditórios entre si, de modo tal que após o (e em virtude

do) primeiro deles já havia se formado, no espírito do outro sujeito, a legítima

expectativa, a confiança de que não seria adotada conduta idêntica àquela do

segundo comportamento. E a contradição é precisamente aquela que se mostra

capaz de frustrar essa confiança que se havia formado no outro sujeito. Com

453

base na identificação desses elementos, pode-se então apontar que o venire, de

um modo geral, estará caracterizado quando, cumulativamente:

a) cada um dos comportamentos, quando individualmente

considerado, seja válido, ou seja, que não se trate de ato intrinsecamente

ilícito; em algumas situações, o primeiro dos comportamentos poderá

ter sido nulo, mas desde que tenha aparência de validade, capaz de fazer

surgir a confiança na contraparte;

b) cada comportamento se constitua em uma atuação jurídica, ou

seja, que se mostre capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, do

outro sujeito envolvido no negócio;

c) que o primeiro comportamento não tenha gerado, para o

sujeito, uma vinculação, ou seja, que não haja uma obrigação a ser

cumprida como decorrência do primeiro comportamento, pois caso

contrário se tratará de inadimplemento de obrigação, e não de venire;

d) qualquer dos comportamentos pode consistir tanto em uma

ação quanto em uma omissão;

e) o segundo comportamento, ao se mostrar incoerente com o

primeiro, deve piorar a situação do outro sujeito, em relação ao que este

esperava para a segunda atuação. Em outras palavras, se o segundo

comportamento, apesar de mostrar contradição em relação ao primeiro,

vem a se mostrar mais benéfico para o outro sujeito, não existirá

qualquer razão para que se faça incidir o princípio da boa-fé, pois seria

ilógico que se negasse o benefício ao sujeito sob o argumento de

protegê-lo;

f) por último, a contradição não pode ser justificada, porque, se o

for, não se poderá mais falar em ocorrência de venire.

454

Além disso, importante que se recorde que a finalidade da

vedação dos comportamentos contraditórios, ou seja, a finalidade do venire, é

a proteção da boa-fé do sujeito confiante, e por essa razão acaba por se

mostrar irrelevante perquirir se o que agiu de modo contraditório estava de

má-fé, uma vez que o que se estará buscando não é a punição dessa má-fé de

um, mas sim a proteção à boa-fé do outro. Essa característica se revelou

importante por permitir a distinção precisa entre os casos de venire e o tu

quoque, uma vez que neste último, ao contrário, o objetivo principal é a

repressão à má-fé de um dos sujeitos, e não a proteção à boa-fé do outro. Isso

nos permite concluir que se poderá lançar mão da figura do venire contra

factum proprium, para a proteção da boa-fé de um dos sujeitos, ainda mesmo

nos casos em que o outro não esteja de má-fé, pois a presença desta se mostra

irrelevante, para fins de proteção daquela.

Finalmente, em relação ao binômio suppressio X surrectio,

pudemos concluir que se trata de um caso particular de venire contra factum

proprium. Falamos em binômio porque as duas situações sempre aparecerão

juntas, ou seja, ao surgimento de um direito para um dos sujeitos

corresponderá a supressão do direito de um outro, e que se mostraria capaz de

afetar o direito recém-surgido. E o surgimento de tais conseqüências se dá

precisamente nessa ordem, ou seja, primeiramente surge o direito de um, para

em seguida, como conseqüência, desaparecer o direito do outro de exercer

uma determinada situação jurídica que se mostraria em choque com tal direito.

Dito em outras palavras, no binômio suppressio X surrectio o que

se verifica, em primeiro lugar, é que um dos sujeitos, por ter surgido no seu

espírito a legítima expectativa (a confiança) de que o outro não mais exerceria

um determinado direito, recebe a proteção da boa-fé, no sentido de que o

outro, efetivamente, não mais poderá exercer o direito em relação ao qual, até

455

então, havia se omitido. E como conseqüência dessa proteção à confiança,

desaparece o direito que o outro poderia exercer, mas que até então havia se

omitido. Fácil de se perceber, portanto, que o enfoque se deu na proteção à

boa-fé de um dos sujeitos, e não à repressão à má-fé do outro (mesmo porque

nem ao menos se pode falar em má-fé, por não ter sido exercido um direito), e

daí o enquadramento como um caso peculiar de venire, como já havíamos

inicialmente apontado.

456

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