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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE DIREITO A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO José Renato Gaziero Cella Dissertação apresentada no Curso de pós-graduação em Direito do Estado, do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig Curitiba 2001

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE DIREITO

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO

JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

José Renato Gaziero Cella Dissertação apresentada no Curso de pós-graduação em Direito do Estado, do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig

Curitiba 2001

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A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO

JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

por

José Renato Gaziero Cella

ORIENTADOR:___________________________________ Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig ___________________________________ Prof. Dr. Cassiano Cordi ___________________________________ Prof. Dr. João Maurício L. Adeodato

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Para meus pais JOSÉ e MARIZA

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SUMÁRIO

TERMO DE APROVAÇÃO..........................................ii

DEDICATÓRIA................................................iii

AGRADECIMENTOS..............................................vi

RESUMO.......................................................x

SUMMARY.....................................................xi

RESUMÉ.....................................................xii

INTRODUÇÃO..................................................01

1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX............................10

1.1 Razão em Crise..........................................10

1.2 Relativismo e Ceticismo.................................20

1.3. Pragmatismo e Direito..................................31

2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO.........50

2.1 Direito e Justiça.......................................50

2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX......................59

2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico................93

2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas.......103

2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin........129

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3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA

TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA......................151

3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica..................151

3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica.......................199

3.3 Teoria da Argumentação como Racionalidade Possível.....249

CONCLUSÃO..................................................258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................262

v

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AGRADECIMENTOS

Meu interesse pela temática da argumentação

jurídica, que já existia desde os tempos em que cursava a

graduação, tornava-se mais intenso sempre que em debates

jurídicos, quando surgia algum impasse, os contendores

convergiam para a cômoda, pacífica e sedutora conclusão de

que, em cada caso, o bom senso deveria ser o parâmetro para o

deslinde do impasse respectivo. Jamais me dei por satisfeito

com esse tipo de resposta, sentindo-me deveras intrigado com

essa forma de subterfúgio.

Não imaginava, porém, que esse tema pudesse ser

— e que realmente já era de longa data — objeto de pesquisas

acadêmicas na área jurídica, até que, durante o período em que

participei do programa Intercampus Brasil-Espanha junto à

Faculdade de Direito da Universidade de Deusto em Bilbao (País

Basco), o professor Lorenzo Goikoetxea Oleaga — que lá exerceu

minha tutoria — apresentou-me a um professor de filosofia

jurídica da Universidade de Alicante (Catalunha) que naquela

ocasião ministrava, na condição de professor convidado, um

curso que tinha por objeto a argumentação jurídica, que

imediatamente passei a freqüentar.

Tratava-se do professor Manuel Atienza

Rodriguez, a cuja obra recorri inúmeras vezes no decorrer

vi

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desta pesquisa e a quem agradeço efusivamente por ter sido o

responsável por meu primeiro contato com o pensamento de

autores como Robert Alexy, Neil Maccormick e Ronald Dworkin.

Obviamente também estendo minha gratidão ao professor Lorenzo.

Tempos depois, em conversa com o agora

professor desta Universidade Cesar Antonio Serbena —

companheiro desde a época em que cursamos juntos as graduações

de filosofia e direito — que na ocasião já tinha iniciado o

mestrado em direito, percebendo meu interesse na área da

argumentação jurídica, sugeriu-me que ingressasse no mestrado

e pesquisasse o pensamento tópico-retórico, franqueando-me

imediatamente a bibliografia de que dispunha. Ao professor

Cesar sou muito grato, inclusive pelo auxílio prestado na

elaboração de meu projeto para ingresso nesta pós-graduação,

agradecimento este que também deve alcançar o professor

Rodrigo Rossi Horochovski, que forneceu opiniões valiosas para

a elaboração daquele projeto inicial.

Mas a pesquisa só se tornou viável graças a

conjugação de dois fatores: a bolsa de fomento a mim concedida

pelo Programa de Demanda Social da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e a

permissão que obtive para afastamento do escritório de

advocacia Cançado Filho Advogados Associados, de que sou

membro.

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A bolsa de fomento foi de extrema valia,

sobretudo para o acesso à bibliografia pesquisada. Já a

licença concedida pelo escritório torna os meus colegas de lá

co-autores da pesquisa, eis que somente através do suprimento

de minhas tarefas, que por eles foram avocadas durante o meu

período sabático, somado ao incentivo incondicional que sempre

me foi conferido, é que se fez possível a tranqüilidade

necessária para a feitura do trabalho. Sou-lhes grato por

isso, sobretudo na pessoa dos professores Acrísio Lopes

Cançado Filho e André da Costa Ribeiro; e dos advogados Juarez

Baby Sponholz e Tania Maria Pedroso.

Agradeço também imensamente aos incansáveis

Péricles de Souza, Mariza Canário Cella e Cristiane Morais

Rizzi Cella, que me auxiliaram na digitação dos manuscritos

para o computador, o que levou dias de incessante trabalho. À

minha mulher Cristiane — além do auxílio na digitação — devo

também a paciência que teve na revisão de todas as citações,

bem como a tolerância no convívio comigo naqueles dias em que

o prazo ia se esvaindo e o meu humor não me tornava uma pessoa

de fácil convivência.

A meus fraternais amigos, professores André da

Costa Ribeiro, Cesar Antonio Serbena e Danilo Cesar Maganhoto

Doneda, agradeço pelo interesse demonstrado na leitura da

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primeira versão deste trabalho e, principalmente, pelas

valiosas críticas e sugestões que me foram transmitidas.

Agradeço também a todo o corpo docente e as

funcionárias da pós-graduação, a quem saúdo na pessoa dos

Professores Doutores José Roberto Vieira e Celso Luiz Ludwig.

Ao professor Vieira — que tem acompanhado e incentivado meus

passos desde a graduação — pela vocação para o magistério que

o torna um modelo a ser seguido e a quem tenho buscado me

espelhar neste início de carreira como professor. Ao professor

Ludwig pela abertura e disponibilidade que sempre o

distinguiram na tarefa de orientação desta pesquisa.

Uma palavra final de agradecimento a meus pais,

José Cella e Mariza Canário Cella, por terem sempre valorizado

meus estudos, bem como pelo fato de os terem financiado apesar

de todas as dificuldades, sem o que obviamente tudo teria sido

mais difícil. A eles dedico este trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho tem como escopo demonstrar que o desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica, formulada a partir do aprimoramento das teorias já existentes e da ampliação de seu objeto, pode contribuir para a mitigação da postura cética característica do positivismo jurídico contemporâneo. Para tanto, partindo da descrição dos motivos que levaram o pensamento cético-relativista a se impor no século XX, buscar-se-á demonstrar a influência que essa circunstância trouxe ao pensamento jurídico. Assim, será abordada a formação do positivismo jurídico, desde o jusnaturalismo racionalista precursor do positivismo jurídico típico do século XIX — formado pela inter-relação das escolas da exegese e do conceitualismo — até a sua roupagem adquirida no século XX, tendo como referência o pensamento de Hans Kelsen. A partir disso far-se-á a análise de algumas críticas importantes ao positivismo vintenário, quais sejam as críticas efetuadas pelo realismo jurídico norte-americano, por Habermas quanto ao problema da legitimidade e por Dworkin quanto ao problema da discricionariedade judicial. Enfim, ver-se-á que todas essas críticas apontam as limitações do positivismo jurídico, insuficiências estas que devem ser extirpadas ou atenuadas. Diante disso tentar-se-á demonstrar que a teoria da argumentação jurídica pode contribuir neste mister. Para tanto será trazido como referência o pensamento de Chaïm Perelman, que na década de 1950 propunha um alargamento da noção de razão, que não poderia ficar adstrito apenas ao pensamento formal, buscando-se romper com a postura inaugurada por René Descartes. Para tal propósito Perelman, em colaboração com Lucie Tyteca, resgata a tradição retórica da antigüidade — que foi posta no ostracismo pela modernidade — e a reformula, denominando-a de nova retórica. Enfim, o desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica, em que se admite um alargamento da noção de razão para além do pensamento formal — que não é excluído, mas complementado pela razão prática — poderá fazer frente à postura cética do positivismo jurídico contemporâneo, bem como aprimorar os mecanismos de controle das decisões jurídicas: legislativas e judiciais.

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SUMMARY

The present work aims to demonstrate that the development of a theory of juridical argument, formulated upon the improvement of the theories already existent and from the enlargement of its object, can contribute to the mitigation of the skeptical posture characteristic of the contemporary juridical positivism. To demonstrate the above, starting from the description of the reasons that led the skeptical-relativist thought to impose itself in the 20th century, it will be sought to demonstrate the influence that such circumstance brought to the juridical thought. Thus, the formation of juridical positivism will be approached, from the rationalistic jusnaturalism precursory of the juridical positivism typical of the 19th century - formed by the interrelation between the schools of exegesis and conceptualism - to its shape acquired in the 20th century, having as reference Hans Kelsen’s thoughts. Starting from this, an analysis of some important criticism to the 20th century positivism will be done, such critics being elaborated based on the North American juridical realism, by Habermas concerning the issue of legitimacy, and by Dworkin upon the problem of judicial discretion. Finally, it will be demonstrated that all those critics point to the limitations of juridical positivism, inadequacies that should be extirpated or attenuated. Considering this, it will be sought to demonstrate that the theory of juridical argument can contribute to this task. The thoughts of Chaïm Perelman will be brought as reference, having him in the decade of 1950 proposed an enlargement of the notion of reason, that could not just be restricted to the formal thought, seeking to break the posture inaugurated by René Descartes. For such purpose, Perelman, in collaboration with Lucie Tyteca, rescues the rhetorical tradition of the antiquity - that was put in ostracism by modernity - and reformulates it, denominating it new rhetoric. Finally, the development of a theory of juridical argument, where an enlargement of the notion of reason is admitted beyond the formal thought - that is not excluded, but complemented by practical reason - could confront the skeptical posture of contemporary juridical positivism, as well as improve the control mechanisms of juridical decisions: legislative and judicial.

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RESUMÉ

Ce travail a pour but de montrer que le développement d’une théorie de l’argumentation juridique, formulée à partir des théories déja existentes et du grossissement de son sujet, peut contribuer à l’adoucissement de la posture sceptique caractéristique du positivisme juridique contemporain. Pour autant, à partir de la description des motifs qui ont proportionné l’imposition de la pensée sceptique-relativiste dans le XXème siècle, on cherchera à démontrer la influence que cette circonstance a apportée à la pensée juridique. Ainsi, on approchera la formation du positivisme juridique, dés le jusnaturalisme rationaliste precurseur du positivisme juridique – formé par l’inter-rélation des écoles de l’exégèse et du conceptualisme – jusque son caractère acquis pendant le XXème siécle, avec référence à la pensée de Hans Kelsen. A partir de cela on fera l’analyse de quelques critiques importantes au positivisme du XXème siécle, comme des critiques faites par le réalisme juridique américain, des critiques d’Habermas sur le problème de la légitimité et celles de Dworkin sur le problème de la discritionnairité judiciaire. Alors, on verra que toutes ces critiques pointent des limitations du positivisme juridique, qui doivent être éliminées ou attenuées. Vis-à-vis de cela, on essayera de démontrer que la théorie de l’argumentation juridique peut contribuer dans ce but. Pour autant, on apportera comme référence la pensée de Chaïm Parelman, qui dans les années 50 proposait un élargissement de la notion de raison, qui ne pourrait pas rester limitée seulement à la pensée formelle, dans la recherche de rupture avec la posture inaugurée par René Descartes. Pour autant, Perelman, avec la collaboration de Lucie Tyteca, retrouve la tradition réthorique de l’antiquité – que la modernité a mise dans l’ostracisme – et la reformule, avec la dénomination de nouvelle rethorique. Alors, le développement d’une théorie de l’argumentation juridique, où on admet un élargissement de la notion de raison de la pensée formelle – qui n’est pas exclu, mais il est accompli par la raison pratique – pourra faire face à la posture sceptique du positivisme juridique contemporain et perfectionner aussi des mécanismes de contrôle des décisions juriques: législatives et judiciaires.

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INTRODUÇÃO

A ciência jurídica possui problemas antigos —

os quais têm sido enfrentados de diversos modos no decorrer da

história — que, de tempos em tempos, sempre ressurgem quando

alguma eventual solução antes adotada e aceita já não mais

satisfaz as necessidades humanas.

No âmbito jurídico um dos grandes problemas

existentes e que ainda persiste — o qual tem ocupado

pensadores desde a antigüidade — é a questão, já clássica, da

justiça. O que é a justiça?

Essa que já foi uma pergunta recorrente no

âmbito de atuação daqueles que, no decorrer da história,

fizeram do direito seu objeto de trabalho ou de estudo, com o

advento do positivismo jurídico e, principalmente, a forma por

ele assumida no século XX, deixou quase que completamente de

se fazer presente no cotidiano do foro, em que o advogado,

quando invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente

tranqüilo porque esta constitui ponto de partida seguro para o

seu trabalho profissional. Da mesma forma, quando o juiz

prolata a sua sentença, e a apóia cuidadosamente em textos

legais, tem a certeza de estar agindo corretamente, pois apóia

sua convicção em cânones que devem ser reconhecidos como

obrigatórios.

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O problema da justiça foi transferido para os

filósofos do direito, cabendo a estes, e não ao jurista, a

tarefa de converter aqueles pontos de partida (os cânones da

dogmática jurídica) em problemas, perguntando: por que o juiz

deve se apoiar na lei? Quais as razões lógicas e morais que

levam o juiz a não se revoltar contra a lei e a não criar

solução sua para o caso que está apreciando, uma vez

convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da

lei vigente? Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os

limites lógicos da obrigatoriedade legal?

Foi erguida uma barreira quase que

intransponível entre os campos de atuação do filósofo e do

jurista, sendo que o trabalho deste último ficou reduzido à

interpretação e aplicação da lei, não cabendo a ele, neste

âmbito de atuação, formular-se questões de ordem moral.

Ocorre que, mais uma vez, sobretudo a partir da

década de 1950, o problema da justiça volta à tona e se

insinua, inclusive, no âmbito de atuação dos juristas. A busca

da solução mais justa possível para pôr termo a conflitos

sociais, sobretudo a procura de algum critério que indique os

caminhos para que isso se torne possível, volta a estar, mais

do que nunca, na ordem do dia dos juristas, implicando mesmo a

reconciliação entre filósofos e juristas, antes divorciados.

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Com efeito, a crítica filosófica de nossas

práticas jurídicas também deve ser efetuada pelos juristas

que, afinal de contas, são aquelas pessoas que vivenciam

diariamente os problemas do mundo jurídico. Mais que isso,

talvez seja imprescindível, para a realização da crítica

filosófica sobre o direito, que aquele que critica seja também

um membro participante das práticas jurídicas, conforme

sustenta Ronald DWORKIN, que entende que a crítica só pode ser

validada se realizada por alguém que integra o universo objeto

de análise.

O presente trabalho, cujo autor, usando uma

expressão de Miguel REALE, tem vivido o direito como

experiência, terá como pano de fundo o eterno problema da

justiça, que subjaz todos os temas que serão abordados.

Para tanto, tentar-se-á percorrer o caminho que

culminou no positivismo jurídico do século XX, desde o

rompimento com o jusnaturalismo racionalista — fato que teve

lugar no século XVIII e cuja consolidação se operou no século

XIX — até os problemas enfrentados pelo positivismo jurídico

nascente diante das mais variadas posturas críticas que

surgiram.

Buscar-se-á também traçar um paralelo entre a

postura cética e relativista do positivismo jurídico do século

XX e a crise por que passou e tem passado a razão neste mesmo

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período, crise que, perturbando os alicerces do grande

edifício do pensamento ocidental que teve origem com o

surgimento da filosofia na Grécia, tem posto em cheque as

possibilidades de defesa de um agir racional nas amplas áreas

do conhecimento, inclusive no âmbito jurídico.

Espera-se que estas abordagens iniciais

permitam uma compreensão da atitude normativista que culminou

em Hans KELSEN e, a partir dele, no positivismo jurídico

atual, cujos representantes mais proeminentes — e que servirão

de guia, juntamente com KELSEN, para as análises que serão

feitas a partir deste ponto — são indubitavelmente Norberto

BOBBIO e Richard HART.

A compreensão da atual atitude positivista é

conditio sine qua non para a compreensão das críticas

contemporâneas que contra o positivismo se dirigem, críticas

estas que serão o objeto central de análise deste trabalho.

Com efeito, tendo como pano de fundo as

críticas contemporâneas ao positivismo jurídico efetuadas por

Jürgen HABERNAS, Ronald DWORKIN e, ainda, algumas questões

abertas pelo realismo jurídico norte-americano, serão

apresentadas as principais aporias experimentadas pela atitude

positivista, as quais se tornaram mais incômodas em virtude da

crise sofrida pelo cientificismo após o final da 2a guerra

mundial — a partir do que a idéia de uma ciência jurídica

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dogmática, encastelada em princípios normativos rígidos e

inflexíveis, não se impôs mais como verdade monolítica.

É neste contexto que surge o pensamento de

Chaïm PERELMAN que, ao reconhecer os limites que o saber

tradicional impõe aos homens, posto que uma série de problemas

não podem ser resolvidos por aquele tipo de conhecimento,

sobretudo no âmbito das ciências humanas (em que o direito

está incluído), propõe aos filósofos que, ao invés de terem

como guia a racionalidade das ciências matemáticas, passem a

se conduzir pela racionalidade argumentativa proveniente do

modelo jurídico.

A parte final deste trabalho demonstrará as

deficiências enfrentadas pela lógica formal quando se trata de

enfrentar questões práticas que envolvam a tomada de decisões

que implicam alguma forma de agir humano. Acredita-se que

através desta abordagem se tornarão mais claras as críticas

que PERELMAN dirige à racionalidade moderna e, ainda,

clarificados também estarão os motivos pelos quais este autor

fez reviver o pensamento tópico e retórico de ARISTÓTELES que

havia sido relegado ao ostracismo, principalmente pelos

modernos.

Acredita-se também que a demonstração das

deficiências da lógica formal permitirá justificar a

importância que o desenvolvimento de uma teoria da

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argumentação jurídica adquire na atualidade, sobretudo quanto

à contribuição que uma tal teoria pode trazer para a solução

das aporias — acima mencionadas — enfrentadas pelo positivismo

jurídico.

O trabalho vai dividido em três capítulos,

sendo que no primeiro deles é feita uma análise da crise por

que tem passado a razão a partir do século XX, o que implicará

uma breve visita a alguns temas da história da filosofia e a

situação do pensamento filosófico contemporâneo, em especial

quanto ao niilismo característico desta era. Também neste

capítulo serão vistas algumas noções de ceticismo, relativismo

e pragmatismo, as quais, somadas ao panorama que foi traçado

acerca do pensamento contemporâneo, servirão de ponte para a

passagem ao capítulo 2, em que buscar-se-á demonstrar que o

pensamento jurídico não ficou incólume à mencionada crise da

razão.

No capítulo 2, portanto, será traçado o

nascimento do positivismo jurídico moderno, em especial a sua

consolidação que se deu através das escolas da exegese e do

conceitualismo. Serão abordadas também as principais críticas

que ao positivismo jurídico foram dirigidas e a reação, já no

século XX, que o positivismo engendrou contra essas críticas.

Serão abordadas, ainda no capítulo 2, as

influências que as posturas cética e relativista trouxeram ao

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positivismo atual, bem como serão analisados os debates que o

positivismo têm mantido com HABERMAS e DWORKIN, que trazem à

discussão questões morais que até então os positivistas

relutavam em admitir no interior da discussão jurídica.

A experiência jurídica, que compreende

sobretudo a resolução de problemas práticos, não poderia

obviamente expurgar o problema da justiça. Mas o positivismo

assim o fez porque no seu entender não se pode, com

objetividade, apreciar esta questão. Mas essa conclusão cética

só é atingida se se permanecer numa visão estreita de

racionalidade: a da lógica formal. No entanto as decisões

jurídicas vão além desses limites — e isso será demonstrado na

parte inicial do capítulo 3 — tornando-se necessário,

portanto, um alargamento da noção daquilo que se deve entender

por razão.

Esta necessidade de alargamento da noção de

racionalidade foi, em grande medida, alertada por PERELMAN a

partir da segunda metade do século XX, daí a importância dada

ao seu pensamento na parte final do capítulo 3. O pensamento

de PERELMAN, com efeito, pode ser visto como um dos

precursores das teorias da argumentação jurídica atualmente em

voga, daí porque se optou por sua análise.

Por fim, será afirmado que o desenvolvimento de

uma teoria da argumentação jurídica é hoje uma tarefa

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essencial, pois ela poderá auxiliar sobremaneira na busca de

solução dos problemas que o positivismo jurídico não foi capaz

de resolver (e que por isso mesmo se rendeu ao ceticismo).

Além disso será aventada a hipótese de que deva ser ampliado o

objeto de análise de que tradicionalmente têm se servido as

teorias da argumentação jurídica existentes, alargando-se o

seu campo de observação.

Três observações de cunho metodológico. No

decorrer da pesquisa nos deparamos com temas intrigantes e

que, por vezes, fizeram com que nos sentíssemos tentados a

alterar mesmo o tema que estava sendo desenvolvido. Em três

momentos isso se tornou mais agudo: quando fomos apresentados

ao realismo jurídico norte-americano, quando nos deparamos com

o pensamento de HABERMAS (que muita coisa tem em comum com o

problema da argumentação jurídica) e, por fim, quando nos

confrontamos com as idéias de DWORKIN.

Isso talvez tenha feito com que nos

demorássemos mais na abordagem desses assuntos, que poderiam

ter sido trabalhados com maior rapidez. Sentimo-nos até mesmo

tentados a cortar muito daquilo que foi desenvolvido, mas

optamos por manter na íntegra as abordagens efetuadas em face

de sua pertinência, em nosso entender, com o tema central do

trabalho.

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Estivemos também tentados, por outro lado, a

deixar de reproduzir uma série de informações complementares,

temendo que a profusão de notas de rodapé que isso implica

pudesse ser vista com exagero. Optamos, no entanto, a correr

esse risco, pois entendemos que aqueles complementos

contribuirão muito para o enriquecimento dos temas abordados,

além do risco iminente de aquelas informações, apesar de

pesquisadas e sistematizadas, perderem-se para sempre,

desperdício que não gostaríamos que ocorresse.

Por fim, todas as citações retiradas de obras

estrangeiras foram pelo autor livremente vertidas para o

português, sempre com a preocupação rigorosa de expressar

fielmente o teor contido nos trechos traduzidos.

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1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX

“O homem, por natureza, deseja conhecer.”

Aristóteles

“Deus está morto.”

Nietzsche

“O homem é a medida de todas as coisas.”

Protágoras

1.1 Razão em Crise

Quando se fala em crise da razão logo vem à

tona, ao menos em meios acadêmicos, a idéia de um fenômeno que

teve lugar no século XX1, crise essa que tem sido associada

como uma característica típica — senão a mais importante — da

pós-modernidade, ainda que até hoje não haja um acordo acerca

do vem a ser essa pós-modernidade e se os tempos modernos

efetivamente chegaram ao fim.

Sem entrar nessa polêmica, a questão que ora se

coloca é a de saber o motivo pelo qual se tem dado tanta

importância aos ataques que a razão sofreu no século que acaba

de terminar e que parece que continuará sofrendo inclusive

1 “A situação filosófica contemporânea (...) tem sido marcada, desde os finais do século XIX, pelo estigma da crise e, muito particularmente, da crise do sujeito e da razão” (CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de Racionalidade, p. 9).

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neste novo século, uma vez que desde os primórdios do pensar

filosófico a razão convive com o incômodo da dúvida cética,

dúvida essa que em determinado momento (com o racionalismo

inaugurado por DESCARTES) — paradoxalmente — tornou-se o ponto

de partida do pensamento filosófico.

Por que então somente agora, após séculos de

ataques constantes, a razão entra em crise?

A tentativa de uma resposta a essa questão pode

ser feita a partir de uma análise do próprio surgimento da

filosofia, da sua meta e de que forma essas metas foram (se é

que foram) alcançadas ao longo da história do pensamento.

Não se pretende aqui fazer uma análise rigorosa

e exaustiva do contexto de surgimento e desenvolvimento da

filosofia, mas sim partir de algumas impressões que, em nosso

entender, podem levar a uma compreensão da crise sofrida pela

razão no século XX, em especial.

Segundo ARISTÓTELES, a filosofia nasce do

espanto causado em face dos acontecimentos do mundo, daquilo

que é imprevisível, do devir. Em um primeiro momento o homem

cria o mito para que este dê conta do caos existente, buscando

um sentido de ordem. Porém, os mitos sobrevivem de crenças que

facilmente podem ser destruídas e não possuem a radicalidade

que a filosofia, desde o início, propôs-se a buscar, ou seja,

“a idéia de um saber que seja irrefutável; e que seja

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irrefutável não porque a sociedade e os indivíduos nele tenham

fé ou vivam sem dele duvidar, mas porque ele próprio é capaz

de rebater todos os seus adversários. A idéia de um saber que

não pode ser negado nem por homens nem por deuses, nem por

mudança dos tempos ou dos costumes. Um saber absoluto,

definitivo, incontroverso, necessário, indubitável.”2

Através da episteme, prevendo e antecipando o

devir da vida, o homem liberta-se do terror, tornando

previsível o que antes era imprevisível. A episteme surge como

o grande remédio contra o terror da vida.

Esta tentativa de tornar previsível o

imprevisível vai culminar na ciência moderna e na organização

contemporânea científico-tecnológica da experiência, que

tornou-se um outro grande remédio contra o terror da vida,

mesmo não tendo a mesma pretensão da episteme, ou seja, um

conhecimento que dê conta da totalidade, que possua a

pretensão de verdade incontroversa.

Também o cristianismo apresenta-se como um

remédio contra a infelicidade e a dor, mas um remédio

ultramundano e transcendente. Daí a capacidade que o

cristianismo tem de se comunicar com as massas que a filosofia

não possui.

2 SEVERINO, Emanuele. A filosofia antiga, p. 19.

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13

Porém, tanto o cristianismo quanto a tecno-

ciência, ou ainda, toda a civilização ocidental, cresce no

seio da dimensão aberta, de uma vez por todas, pela filosofia

grega: a busca de um saber irrefutável que torne possível o

devir da vida, a episteme.

É justamente contra a idéia da filosofia como

episteme, que desde a antigüidade, passando pela Idade Média e

pela modernidade, que vão se insurgir os pensadores

contemporâneos, dentre os quais Friedrich Wilhelm NIETZSCHE

parece ser o mais radical, razão pela qual nos deteremos nas

linhas gerais de seu pensamento.

Para NIETZSCHE, o gigantesco edifício

construído pela cultura e pela civilização ocidentais para

proteger o homem do caos e da irracionalidade do devir

(edifício este que culmina e se resume no conceito de Deus)

acabou por sobrecarregar a existência do homem, dotando-a de

um peso ainda mais insuportável do que aquele que é

constituído pela própria ameaça do devir.

A origem, o sentido, a causa, o fundamento, a

lei, a realidade imutável e divina evocados pela episteme

formam o remédio contra o terror provocado pela

imprevisibilidade do devir, mas por vezes possuem uma

aparência terrível, pois prevendo e antecipando o devir,

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acabam por o anular e por anular juntamente com ele a própria

vida do homem.

O homem surge assim perante si próprio como a

mais inquietante e imprevisível das coisas, mas o remédio que

ele encontra acaba por lhe surgir como um suicídio. O remédio

destrói a vida, pois sendo o homem imprevisibilidade, ao

querer tornar-se previsível, acaba por libertar-se de si

próprio através da destruição de si mesmo.

Daí a afirmação de NIETZSCHE de que foi pior o

remédio do que o mal, de onde Jean-Paul SARTRE pôde dizer que

se Deus existe, o homem não pode viver.3 Este é o pensamento

que pode ilustrar o aspecto mais característico do niilismo

contemporâneo.

O niilismo mostra que estamos aqui, no mundo,

literalmente abandonados, porém, este niilismo está voltado

para a realização do homem, para libertá-lo das correntes que

o impediam de viver, para libertá-lo de Deus.

O niilismo é justamente a recusa de resposta

aos porquês metafísicos, pois percebe que não há um fim a ser

atingido. Esta falta de resposta é que leva à desvalorização e

à perda dos valores superiores.

3 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo, p. 22 e ss.

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Não podendo haver uma interpretação teleológica

do mundo, devemos enxergar o fim em nós mesmos, que deve ser

direcionado à nossa felicidade. Devemos ainda aceitar o

trágico, ou seja, o mundo, tal qual é, sem começo e sem fim.

Segundo NIETZSCHE, todas as grandes construções

do saber tradicional acerca dos princípios, da metafísica, da

arte, da moral, dos valores da sociedade, das normas de

conduta dos indivíduos, permitem tornar suportável a vida. São

os instrumentos fundamentais com os quais o homem tentou

atingir o prazer, fugindo à dor, instrumentos estes que

permitiram também ao homem sobreviver. Mas são uma grande

simulação, pretendem se passar por verdade, porém nada mais

são que mentiras e ilusões úteis à sobrevivência, erros vitais

disfarçados de verdade.

A busca de um fim, uma verdade que dá sentido à

existência, já é o próprio niilismo, por ser esta tarefa

impossível de ser atingida. Por isso Deus, como criador de um

sentido, também é desmascarado. Deste modo, o erro vital, o

nada que move a cultura ocidental, é o próprio Deus.

O super-homem é aquele que é consciente da

existência desses erros vitais e sabe que a verdadeira vida é

horror e dor e, nem por isso, retrai-se ou foge dela. É

exatamente em nome da força e da vontade de poder que o super-

homem, completamente desencantado no que diz respeito a todas

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as ilusões, não se afasta, não foge e não se desespera perante

o devir, identificando-se totalmente com ele.

O único mundo é este que se apresenta ameaçador

e aterrorizante, em que a certeza do homem tem como conteúdo a

ameaça e a imprevisibilidade caótica e irracional das coisas.

A história do Ocidente é a história de um

grande erro, em que a grande mentira culminou em Deus, à

medida em que houve a pretensão de afirmá-lo como causa e

finalidade do mundo. Na origem já se encontra o fim, mas o

mundo, tal qual é, não tem sentido e nem um fim a ser

alcançado:

“ O mundo subsiste; não é nada que venha ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, — conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento.”4

Vale dizer que não só o pensamento filosófico

abalou a auto-estima do homem e a sua razão, mas também

algumas teorias científicas. Com efeito desde GALILEU, quando

se revelou que não estávamos no centro do universo como

imaginávamos, nossa vaidade já ficara abalada. Mas isso foi

pouco se comparado às teorias de Sigmund FREUD e Charles

DARWIN que, respectivamente, expulsaram-nos do centro da

criação e do controle de nossas faculdades mentais.

4 NIETZSCHE, Friedrich. O eterno retorno, § 1066, p. 176.

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As filosofias da linguagem igualmente abalaram

o edifício das crenças do homem moderno ao demonstrarem a

arbitrariedade das mesmas a partir de análises lingüísticas.

A menção superficial dos pensamentos acima pode

ser útil para responder à questão posta no início, ou seja, de

um certo modo mostra o porquê de uma crise da razão no século

XX.

No entanto isso não quer dizer que foram esses

pensamentos que geraram a crise. Ao contrário do que se possa

imaginar, as teorias não surgem do acaso, mas em função de

circunstâncias historicamente situadas numa área geográfica: o

Ocidente.

O início do século XX foi também o início de

uma crise entre as potências neocolonialistas, cujas

conseqüências fizeram daquele século o “...mais assassino de

que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da

guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década

de 1920, como também pelo volume único de catástrofes humanas

que produziu, desde as maiores fomes da história até o

genocídio sistemático”.5

Certamente o pensamento contemporâneo, que

afirmava o colapso da razão — ao menos da razão como episteme

5 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 22.

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— foi condicionado pelo já nascente colapso dos sistemas

políticos vigentes e conseqüentes crises internacionais. O

fato é que material e moralmente os grandes Impérios Europeus

chegaram ao século XX em declínio:

“ ... Ao contrário do ‘longo século XIX’, que pareceu, e na verdade foi, um período de progresso material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos padrões então tidos como normais nos países desenvolvidos e nos ambientes da classe média e que todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para as regiões mais atrasadas e para as camadas menos esclarecidas da população.”6

HOBSBAWM prossegue:

“ Ainda mais óbvia que as incertezas da economia e da política mundiais era a crise social e moral, refletindo as transformações pós-década de 1950 na vida humana, que também encontraram expressão generalizada, embora confusa, nessas Décadas de Crise. Foi uma crise das crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no início do século XVIII: uma crise das teorias racionalistas e humanistas abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo e que tornaram possível a breve mas decisiva aliança dos dois contra o fascismo, que as rejeitava. (...) Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos da civilização moderna, mas também às estruturas históricas das relações humanas que a sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. Os estranhos apelos em favor de uma ‘sociedade civil’ não especificada, de uma ‘comunidade’, eram as vozes de gerações perdidas e à deriva. Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tornado frases insípidas. Não restava outra maneira de definir identidade de grupo senão definir os que nele não estavam.

6 HOBSBAWM, E. Idem, ibidem.

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Para o poeta T. S. Eliot, ‘é assim que o mundo acaba — não com uma explosão, mas com uma lamúria’. O Breve Século XX se acabou com os dois.”7

Segundo ZANNONI, a crise que se abateu sobre a

razão, por outro lado, também teve bons frutos:

“ Neste estado de coisas sobrevém (...) a angústia que vive o primeiro quarto do século XX com a primeira guerra mundial que, na ordem jurídica e filosófica, implicou uma revisão profunda das verdades que a razão havia pretendido extrair de seu próprio afã dedutivo. Contudo, esta mesma razão era impotente para conduzir a realidade, a história, a humanidade, pelos caminhos da paz, da solidariedade, da justiça. Esta angústia será frutífera para o pensamento.”8

Um dos frutos decorrentes da crise sofrida pela

razão — sobretudo em face dos acontecimentos históricos acima

narrados — foi justamente o abandono da defesa da

possibilidade de uma ciência dogmática encastelada em

princípios normativos rígidos e inflexíveis, que deveria se

impor como verdade.9

7 HOBSBAWM, E. Idem, p. 20-21. 8 ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 76. 9 Bento PRADO JR. menciona a crise por que passaram as ciências dogmáticas ao falar do neopositivismo: “Mas, nos Estados Unidos, pelo menos, que acolheu no fim da década de 30 muitos filósofos de língua alemã inspirados pelo Círculo de Viena, que fugiam do nazismo, instalou-se uma inegável hegemonia do neopositivismo na epistemologia em geral, da física às ciências sociais. Mais do que isso, a filosofia importada parecia encontrar terreno propício, como se houvesse uma harmonia preestabelecida entre o empirismo lógico, de um lado, e, de outro, o behaviorismo de origem norte-americana ou a prática de uma economia positiva limitada e quantificável. Fora dos modelos matemáticos e das evidências empíricas não haveria salvação.

Logo, todavia, o programa neopositivista começou a fazer água por todos os cantos, e a exibir suas limitações com a crise dos dogmas da imaculada concepção e da imaculada observação. Quine, por exemplo, acerta seu tiro no coração, mostrando a impossibilidade de traçar uma linha nítida entre proposições analíticas e proposições sintéticas, entre o que é

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1.2 Relativismo e Ceticismo

As tentativas dogmáticas de se fundar

conhecimentos ficaram abaladas. Os dogmáticos passaram a ser

acusados de absolutistas, fundamentacionistas, objetivistas.

Em contrapartida os céticos e seu relativismo ganham um novo

fôlego e passam a resgatar toda a sua tradição milenar.

Segundo Osvaldo PORCHAT Pereira, todas as

tentativas até hoje de se fundar um saber racional em busca da

verdade nada mais foram que esforços de combate contra o

ceticismo. Para tanto:

“ ...a filosofia dogmática inventou a teoria do conhecimento: elaborou a temática da verdade, distinguiu entre o evidente e o não-evidente e formulou uma noção de evidência, introduziu a noção de critério da realidade e verdade e distinguiu espécies de critérios, construiu uma concepção do ser humano enquanto sujeito do conhecimento e procedeu ao estudo de suas faculdades, demorou-se na análise da sensibilidade e entendimento enquanto fontes privilegiadas do nosso alegado conhecimento e apreensão do real, desenvolveu uma doutrina da representação e, particularmente, da representação ‘apreensiva’, analisou cuidadosamente os procedimentos inferenciais que alegadamente nos conduzem

puramente lógico e o que é puramente empírico. Por outro lado, os filósofos como N. R. Hanson, uma nova filosofia da ciência caminha na mesma direção, insistindo na ‘impregnação teórica’ dos dados observacionais. Na Alemanha a querela do positivismo opunha dialética e hermenêutica ao ‘pós-positivismo’ de Popper (já que sacrificara o famoso princípio da verificação, substituindo-o pelo oblíquo critério da falsificabilidade, que fornece uma idéia mais dúctil de demarcação. Nos países de língua inglesa, os filósofos da física — recuperando a epistemologia comparada de Duhem e de Alexandre Koyré — reintroduzem a história da ciência no coração da epistemologia e, com ela, a idéia da multiplicidade dos paradigmas. Em todos os casos, é o ideal da unicified science que entra em crise.

É para uma concepção mais larga da Razão e da Ciência que se voltam então os espíritos. Ou, pelo menos, para o reconhecimento do fato incontornável de um mínimo de pluralismo ou de perspectivismo metodológico, que compromete a hegemonia do ideal de toda a ciência unificada no estilo da hard science”(PRADO JR., Bento. Retórica na economia, p. 7-8). Sobre o tema, ver ainda CARRILHO, M. M. Obra citada, p. 23 e ss.

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da esfera da evidência comum ao domínio das realidades não-evidentes, por meio de signos ou de demonstrações. E construiu toda uma teoria dos signos e toda uma lógica da demonstração.”10

Diante das novas circunstâncias históricas que

caracterizaram o século XX, as filosofias dogmáticas, antes

prestigiadas, passaram a ser vistas com desconfiança,

ocorrendo o inverso com o ceticismo.

Com efeito, a partir da já mencionada crise de

auto-estima que afligiu a humanidade em face do impacto

causado pelas obras de DARWIN, FREUD, NIETZSCHE, bem como

pelas filosofias da linguagem, crise que se agravou a partir

das explosões de duas bombas atômicas no Japão em 1945, a

partir do que a própria tecno-ciência perdeu a credibilidade

de que dispunha, foi o fundamentacionismo que passou a ser

visto como uma postura insana (predicado este que

tradicionalmente era atribuído ao ceticismo), sendo que as

pretensões de “...querer tudo justificar, tornar-se-ia um

empreendimento insensato, porque completamente irrealizável,

não podendo senão levar a uma regressão ao infinito. O

exercício hiperbólico da crítica é insensato porque, na sua

ânsia de absoluto, dissocia pensamento e contexto, negligencia

as exigências da ação no pensamento, as suas interações

10 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ceticismo e argumentação. In: Vida Comum e Ceticismo, p. 224. O mesmo artigo também consta em CARRILHO, M. M. (Org.). Retórica e comunicação, p. 123-164.

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constantes e deixa, afinal, escapar a exigência de

continuidade sem a qual o exercício da razão se tornaria

incompreensível.”11

Conforme mencionado acima, a própria tecno-

ciência, antes vista como um campo dotado de uma saber

inabalável12, sofreu a interferência desse “...novo terreno

aberto pela crise do ideal da unified science ou do

‘modernismo’ (...). Os limites desse novo terreno são bem

definidos: crítica do positivismo, mas a partir de pontos de

vista diferentes. Tais pontos são o neopragmatismo de Rorty, a

teoria crítica na sua versão habermasiana, a integração

ricoeuriana dos instrumentos da filosofia analítica, da

11 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 44. 12 Sobretudo com o advento do positivismo filosófico, que se originou no século XIX com a obra de Augusto COMTE (1782-1857), a partir do que surgiram posteriormente outras vertentes, como por exemplo as de John STUART MILL (1806-1873) e Herbert SPENCER (1820-1903). Aqui se torna necessário fazer uma advertência: não se pode fazer qualquer analogia entre o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto BOBBIO, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 15). Para Miguel REALE, “diz-se Direito Positivo aquele que tem, já teve, ou está em vias de ter vigência e eficácia” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 601), o que é confirmado por Tércio Sampaio FERRAZ JR., para quem “Direito positivo (...) é aquele que vale em virtude de uma decisão e que só por força de uma nova decisão pode ser revogado” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 157).

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fenomenologia e da hermenêutica, a epistemologia kuhniana, com

suas idéias de revolução científica e de mudança de

paradigma.”13

Uma vez conhecida a extensão e a força do golpe

sofrido pela razão, não é difícil concluir que não só a tecno-

ciência foi abalada, mas também outros ramos da cultura humana

não ficaram incólumes, tais como a religião, a política, a

moral e o direito.

Vale dizer que a relevância do problema do

relativismo não se restringe aos campi universitários. Com

efeito, enquanto já na década de 1920 ORTEGA Y GASSET

costumava dizer que esse é o problema de nosso tempo, nos dias

correntes, em que os avanços nos transportes e nas

comunicações nos fazem interagir cada vez mais com pessoas de

todo o globo, não podemos ignorar que não há consenso no mundo

senão talvez, paradoxalmente, quanto ao fato de que não há

consenso. Para um, a verdade absoluta é uma; para outro,

outra; e para terceiros, cada vez mais numerosos, essa mesma

divergência indica de forma singela que não há verdade

absoluta.

Assim, a afirmação de que toda a verdade é

relativa, mesmo não sendo nem de longe consensual, é

13 PRADO JR., Bento. Obra citada, p. 8-9.

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proclamada hoje por qualquer estudante de ensino médio, com ar

de quem diz uma verdade absoluta.

Ora, se tudo é relativo, não há certo ou errado

absoluto; se tudo é relativo, não há verdade absoluta. O

“...dogmatismo não se sustenta sem argumentação conclusiva,

mas o ceticismo mostrou que nenhuma argumentação é

conclusivamente verdadeira”.14 As conseqüências do relativismo

são, do ponto de vista ético, o cinismo e, do ponto de vista

gnoseológico, o ceticismo.

Ainda segundo PORCHAT, o dogmático, cuja

argumentação se atribui uma força de persuasão absoluta,

“...deveria reconhecer o caráter eminentemente relativo de

seus argumentos, que persuadem tão-somente alguns poucos

auditórios particulares. O ideal do consenso universal dos

homens de razão, obtido por via de argumentos, se revela um

mito”.15

Não há possibilidade de consenso pela via da

argumentação? Não há verdade? De fato, a aceitação desses

pontos de vista leva à característica dominante da cultura

contemporânea: o cinismo e o ceticismo.

14 PEREIRA, O. P. Obra citada, p 226. 15 PEREIRA, O. P. Idem, ibidem.

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Talvez por isso o antropólogo Ernest GELLNER

costumasse afirmar, parodiando Karl MARX16, que “um espectro

assombra o pensamento humano: o relativismo”.17

Esse espectro é justamente a tese de que não há

verdade absoluta, isto é, de que a verdade de uma proposição é

relativa às circunstâncias em que esta é formulada.

Uma das expressões clássicas do relativismo

talvez seja a máxima de PROTÁGORAS, para quem “o homem é a

medida de todas as coisas; das coisas que são enquanto são,

das coisas que não são enquanto não são”.18

Vale dizer que essa postura relativista foi

sempre muito combatida na antigüidade — talvez a razão de ser

da filosofia platônica, que se contrapunha aos sofistas —

porém a disputa era acirrada, vez que os filósofos que punham

16 “Um espectro assombra a Europa: o espectro do Comunismo” (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista, p. 7). 17 Com essa frase GELLNER iniciou, em 17 de maio de 1994, sua palestra intitulada “O Relativismo versus Verdade Única”, que teve lugar no ciclo de Palestras “O Relativismo Enquanto Visão do Mundo”, promovido pelo Banco Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP. 18 Pré-Socráticos, in Os Pensadores, p. 32. Segundo Alf ROSS, PROTÁGORAS ensinou skepsis (σκεπσισ: percepção sensorial através da visão): “skepsis no conhecimento e na moralidade — resumida na fórmula: ‘o ser humano é a medida de todas as coisas.’ Porém, é imperioso lembrar que o conhecimento em relação ao qual Protágoras era cético era aquele que até então fora a meta dos filósofos: a percepção absoluta do imutável; e que a moral em relação à qual era cético era a lei absoluta, a validade divina. Protágoras se deu conta da inutilidade [e fatuidade] das tentativas dos filósofos de conhecer a essência absoluta da existência e das coisas, e ensinou que todo conhecimento reside na percepção de nossos sentidos e é, por conseguinte, necessariamente relativo e individual. As coisas são tal como as vemos, mas os seres humanos as vêem de maneiras diferentes. Mas o homem cuja mente esteja sã as vê da mesma maneira que outros que se acham na mesma condição” (ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 274-275).

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em suspenso a razão dada a impossibilidade de verdade, eram

muito populares na época. Há inúmeros exemplos, além de

PROTÁGORAS, de filósofos da Grécia clássica com posturas

relativistas, tais como a de XENÓFANES, de Colofão:

“ Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”19

Ou ainda a postura de GÓRGIAS20, que, segundo a

síntese elaborada por Enrico BERTI, considerava a razão

incapaz de apreender a verdade:

“ ... 1) o ser não é; 2) ainda que fosse, não seria cognoscível; 3) ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável. A conseqüência dessas três teses era que o lógos, ou seja, o discurso, não tem mais a função de tornar possível a comunicação, transmitindo de uma pessoa a outra o conhecimento e significando, por meio do conhecimento, a realidade. Ele, ao contrário, se substitui à realidade, a instaura, por assim dizer, ele mesmo, cria-a e, em vez de comunicar pensamentos, produz diretamente os efeitos, isto é, causa das paixões, dominando assim completamente a pessoa.”21

Mas nada se compara ao ceticismo que fora

professado por PIRRO22, cuja crítica é dirigida expressamente

19 XENÓFANES de Colofão. Fragmento 15, Os Pré-Socráticos, in: Os Pensadores, p. 70-71. 20 Apontado por ARISTÓTELES como o descobridor da retórica. 21 BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 167. 22 Depois abraçado por SEXTUS EMPIRICUS, cujo pensamento, denominado neo-pirronismo, ressurgiu revigorado no século XX, inclusive no âmbito jurídico. Vale dizer que, segundo PORCHAT, mesmo DESCARTES se utilizou do ceticismo pirrônico: “Inaugurando um estilo de filosofar basicamente justificacionista e fundamentacionista, que requer, como condição prévia para a constituição do saber filosófico, uma tabula rasa de nossas certezas comuns, em geral — e de nossas certezas sobre o mundo exterior, em

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contra os que pretendem ter encontrado a verdade. São eles os

filósofos a quem se convencionou denominar dogmáticos, os que

pensam ter um conhecimento exato de como as coisas são por

natureza. Os dogmáticos põem como realmente existentes as

coisas sobre as quais discorrem; seu discurso se pretende a

expressão verdadeira de uma realidade como tal conhecida. Esse

discurso assume com freqüência a forma de um sistema

doutrinário que compõe e articula dogmas uns com os outros e

com os fenômenos que se impõem a nossa aceitação comum.23

Contra essas tentativas dogmáticas é que os

céticos, a partir das mesmas premissas aceitas pelos

dogmáticos — no interior da lógica destes últimos, vão

estabelecer uma série impressionante de argumentos contrários:

“ ...que não existe a verdade, tal qual os dogmáticos a conceberam, nem há algo verdadeiro; que não há realidade evidente, que nada é evidente; que não há critério de verdade, porque nenhuma das espécies de critério propostas pelos dogmáticos nos provê de conhecimento seguro; que é inconcebível e inapreensível o sujeito humano, como o entendem os dogmáticos; que não se pode descobrir a verdade nem julgar as coisas pela sensibilidade ou pelo entendimento, ou pela operação conjunta de uma e outro, isto é, por nenhuma de nossas faculdades pretensamente cognitivas; que a representação (phantasía) dogmática é inconcebível, inapreensível, nem

particular —, o cartesianismo reservou ao ceticismo um curioso destino. Porque, ao utilizar instrumentalmente o ceticismo de que metodologicamente se alimenta, ele estranhamente o preserva, embora pretendendo superá-lo. A suspensão cética de juízo sobre o mundo exterior converteu-se em estratégia-padrão e em preliminar metodológico ao filosofar. Com isso, o cartesianismo deu um passo decisivo para a incorporação da mensagem cética ao pensamento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um modelo cético-cartesiano estabelecido no início das Meditações” (PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ceticismo e mundo exterior. In Vida Comum e Ceticismo, p. 124-125). 23 Cf. PORCHAT, O. P. Obra citada, p. 213-214, em que há a sistematização do pensamento de PIRRO a partir de SEXTUS EMPIRICUS.

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se podem julgar por ela os objetos; que o signo, tal como o dogmatismo o define, é inconcebível, irreal, não existe signo; que argumentos conclusivos são inapreensíveis, que não se podem descobrir argumentos verdadeiros, nem é possível descobrir um argumento que deduza algo ádelon (não-evidente) a partir de premissas evidentes, dada a relação mesma que conecta conclusão e premissas; que não há realmente demonstrações e as demonstrações são portanto irreais, são nada; que a demonstração é, de fato, inconcebível, é algo não-evidente...”24

Portanto, os céticos questionam:

“ ...a aceitabilidade das premissas da argumentação proposta e das premissas dessas premissas, renovadamente exigindo justificação e fundamento, acenando portanto com uma regressão ao infinito. Cuidará também de prevenir qualquer circularidade dissimulada na argumentação adversária, que eventualmente introduza nas premissas matéria decorrente da tese a ser provada. E, sobretudo, não permitirá que os oponentes se proponham a deter o processo de fundamentação, assumido algo ex hypothéseos, isto é, à maneira de um ‘princípio’ ou axioma, pretextando tratar-se de um enunciado indemonstrável e que de si mesmo se impõe à nossa apreensão, de uma verdade que por si mesma se faz aceitar pela razão e que prescinde de fundamento outro. Os dogmáticos, com efeito, pretendem que não somente a demonstração, mas toda a filosofia, procede ex hypothéseos.”25

Essa relatividade manifesta de todas as coisas

sempre foi reconhecida pelos céticos como uma das razões

determinantes que os induzem a suspender o juízo (a epokhé)

sobre a verdade e a realidade absoluta delas. A epokhé é,

24 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 224-225. 25 PEREIRA, O. P. Obra citada, p 222-223. Princípios (arkhé), na noção aristotélica, são aquelas proposições que desempenham nos argumentos o papel de premissas, sem que sua verdade se tenha estabelecido como conclusão de argumentos anteriores. A validade (pelo menos como verdade) de tais princípios é incisivamente negada pelos céticos. Adiante se verá que a importância da retórica, para ARISTÓTELES, está justamente no seu papel de justificar tais princípios.

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portanto, esse “...estado de repouso do entendimento devido ao

qual nada negamos nem assertamos, impossibilitados de escolher

algo como verdadeiro ou falso, o equilíbrio das razões

contrárias incapacitando-nos para dogmatizar”.26

A partir da descrição superficial da postura

cética acima realizada, vê-se que esse tipo de pensamento não

pode ser negligenciado. Ademais, quanto ao direito, um dos

debates mais importantes do século XX é o que tem sido travado

entre o positivismo jurídico — que tem uma postura francamente

cética nas vertentes de Hans KELSEN e Herbert HART — e as

várias posturas que não admitem o ceticismo, dentre as quais

se pode citar o ressurgimento do jusnaturalismo, mas

principalmente as posições de Ronald DWORKIN contra o

positivismo jurídico.

Para uma melhor compreensão desse debate, serão

descritas, no próximo capítulo, as principais teorias

jurídicas dos últimos tempos, da escola da exegese ao realismo

jurídico norte-americano, do conceitualismo ao positivismo

jurídico da atualidade.

É justamente em meio a essas discussões que

alguns teóricos começaram a ver na argumentação jurídica e no

papel por ela desempenhado em seu âmbito de atuação, algo que

26 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 228.

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merecia maior atenção dada a sua relevância, ocasião em que a

própria argumentação foi tomada como objeto de estudo, o que

implicou tentativas — ainda em curso — de se estabelecer uma

possível teoria geral da argumentação jurídica, que será o

tema central deste trabalho.

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1.3 Pragmatismo e Direito

Uma questão ficou em aberto no item anterior:

será que, do ponto de vista ético, o relativismo deve

necessariamente levar ao cinismo? Aqui não se está mais nos

limites da teoria do conhecimento, mas no âmbito de um

relativismo cultural que já se pode encontrar em MONTAIGNE,

quando dá suas impressões com relação às práticas

antropofágicas dos índios do Brasil:

“ ...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. É natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos.”27

Na sua forma extrema, o relativismo cultural

significa que os diversos sistemas cognitivos e critérios para

a determinação da verdade que as diferentes culturas possuem

são incomensuráveis. Uma pessoa é tanto mais relativista

quanto mais reconhece a possibilidade de verdades

incompatíveis com a sua: quanto mais relativiza a sua própria

verdade.

No entanto referida postura leva a alguns

problemas. Se é certo que o relativismo surge freqüentemente a

partir de uma atitude de tolerância, em que o relativista se

27 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, p. 195.

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nega a tomar suas próprias convicções como absolutas e dá

lugar a verdades alheias, certo é também que através dessa

postura ele acaba por minar com isso a sua própria posição.28

Sendo assim, para o relativista a verdade do

absolutista valeria tanto quanto a sua. Para o absolutista, ao

contrário, o relativista não tem verdade alguma. Trata-se,

portanto, de uma luta desigual. Daqui se pode tirar uma nova

questão: será que as posturas de tolerância devem

necessariamente implicar fraqueza diante dos absolutistas?

Outro problema que pode surgir da postura

relativista é o de que, do ponto de vista da lógica formal, o

relativismo pode ser tomado como uma variante do antigo

paradoxo do mentiroso.29

É certo que, durante muito tempo, semelhantes

problemas pareciam acadêmicos e formais. Com efeito, logo

depois de reconhecer que é irrefutável a tese de que o

ceticismo ou relativismo, à medida em que querem ser

verdadeiros, derrotam-se a si próprios30, GADAMER pergunta:

28 PLATÃO já apontava essa fraqueza na posição de PROTÁGORAS, com o célebre argumento retorsivo que amiúde é utilizado contra os céticos: ora, se todas as verdades são relativas, também essa verdade — a de que tudo é relativo — é relativa. 29 Este se dá quando alguém diz por exemplo: minto sempre (tudo o que eu digo é mentira). Se esta pessoa estiver dizendo a verdade, está mentindo; e se estiver mentindo, está dizendo a verdade. 30 “É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 510).

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“ Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral.”31

Portanto, a pretensão de verdade dogmática,

tanto quanto o relativismo, saem feridos dessa disputa. No

entanto uma postura particular do relativismo tem a pretensão

de não sofrer um arranhão: o pragmatismo anglo-saxão.

Com efeito, para um dos maiores expoentes dessa

filosofia na atualidade, o neopragmático Richard RORTY, a

discussão sobre uma proposição ser verdadeira ou aparente deve

ser abandonada em nome do que é mais ou menos útil, cujo

objetivo é a possibilidade de melhorias na vida em sociedade.

Sendo assim, não importa saber se a mente humana apreende ou

não a realidade, mas sim qual o propósito de uma ou outra

crença. Distinções metafísicas, nessa perspectiva, não fazem

sentido nenhum.32

O ponto de partida de RORTY é o pensamento de

John DEWEY, de quem se considera discípulo:

“ O filósofo que mais admiro, e de quem eu mais gostaria de ser considerado discípulo, é John Dewey.

31 GADAMER, Hans-Georg. Idem, ibidem. 32 Posicionamento firmado por RORTY em 19 de maio de 1994, por ocasião de sua palestra intitulada Relativismo: Encontrar e Fabricar, que teve lugar no ciclo de Palestras O Relativismo Enquanto Visão do Mundo, promovido pelo Banco Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP.

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Dewey foi um dos fundadores do pragmatismo americano, um pensador que passou 60 anos tentando nos libertar do jugo de Platão e de Kant. Foi muitas vezes tachado de relativista, e o mesmo ocorre comigo, mas é claro que nós, pragmatistas, jamais nos consideraríamos relativistas. Geralmente nos definimos em termos negativos: somos antiplatônicos, ou antimetafísicos ou, ainda, antifundacionistas. Do mesmo modo, nossos oponentes raramente chamam a si mesmos platônicos, metafísicos, ou fundacionistas, mas costumam intitular-se defensores do senso comum, ou da razão. ... Nós, ditos relativistas, nos recusamos, é claro, a admitir que somos inimigos da razão...”33

DEWEY, com efeito, é um dos mais notórios

representantes, ao lado de Charles S. PEIRCE e William JAMES,

da corrente denominada pragmatismo dentro da filosofia

contemporânea.

O pragmatismo quer evitar toda a forma de

absolutismo, juntamente com as conseqüências desastrosas

decorrentes desta postura dentro da história da humanidade.

Defende uma tolerância que vai contra todos os determinismos,

materialismos e idealismos já defendidos e sistematizados na

filosofia.

DEWEY sustenta que quanto mais adversa a

realidade para o ser humano, maior a tendência deste em

fantasiar situações, projetar desejos, enfim, realizar

idealizações.

33 RORTY, Richard. Relativismo: encontrar e fabricar. In: CICERO, Antonio, SALOMÃO, Waly (Org.). O relativismo enquanto visão do mundo, p. 116.

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Porém, “...tais considerações aplicam-se além

da psicologia pessoal, [pois] são verdades terminantes em um

dos traços mais marcantes da filosofia clássica: sua concepção

de uma Realidade Última, Suprema, essencialmente ideal na

natureza”.34

A realidade sempre foi encarada de uma forma

negativa, como imperfeição. Daí surgiram todos os sistemas

filosóficos desde PLATÃO e ARISTÓTELES, passando pelos

períodos Medieval e Moderno, que nos influenciam profundamente

na atualidade.

A concepção que vê na realidade uma imperfeição

deu vazão a existência do pensamento que busca a verdade, a

realidade última; estas sim dotadas de perfeição e que podem

ser atingidas através da contemplação.

Daí o motivo de, até aproximadamente três

séculos atrás, ser dominante a mentalidade da

“...superioridade do conhecimento contemplativo ao prático, o

da especulação teórica pura à experimentação e a qualquer

outro que dependa de mudanças nas coisas ou que induz mudanças

nelas”.35

34 DEWEY, John. A filosofia em reconstrução, p. 115. 35 DEWEY, J. Idem, p. 119.

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A filosofia então era vista como “...o

conhecimento puro, solitário, e capaz de continuar em completa

e auto-suficiente independência”.36

Ocorre que, com o alvorecer da ciência moderna,

nasce uma nova concepção de razão e experiência, em que a

sensação deixa de ser passiva para dar lugar a uma interação

organismo/meio. O trabalho, que antes era visto como uma

atividade destituída de qualquer nobreza, passa a ser

valorizado:

“ O que há algum tempo era tido como milagre, hoje é feito com o vapor, com o carvão, com a eletricidade e o ar, com o corpo humano. Contudo são poucas as pessoas otimistas, a ponto de proclamarem que temos conseguido semelhante domínio das forças que controlam o bem estar (...) do homem.”37

As transformações decorrentes da técno-ciência

têm demonstrado que o mundo pode, enfim, ser transformado em

um lar, sendo este um ideal (dentro desta nova concepção)

encarado como uma alavanca para aquilo que nossos desejos

planejam, modificando o mundo real. O conhecimento deixa de

preocupar-se com essências, causas, etc.; que na verdade não

solucionam nossos problemas. “O conhecimento deixa de ser

36 DEWEY, J. Idem, p. 120. 37 DEWEY, J. Idem, p. 132.

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contemplativo para se tornar prático”.38 A experimentação

científica seria o melhor exemplo disto.

DEWEY afirma que “...o mais importante papel no

filosofar histórico [são] as concepções do ideal e do real”.39

No pragmatismo “...o real deixa de ser alguma coisa com

existência antecipada e final para tornar-se aquilo que tem de

ser aceito como material de mudança”40, o mesmo ocorrendo com o

ideal e o racional. Tais concepções acima “...passam a

representar possibilidades inteligentemente engendradas do

mundo real que poderão ser usadas como métodos para modificar

e aperfeiçoar este mesmo mundo”.41

A filosofia passa a ter uma função ativa, ou

seja, “...a de racionalizar as possibilidades da experiência,

especialmente as da coletividade humana”.42 Quanto a

epistemologia e a metafísica, seriam infrutíferas, inúteis,

pois nada acrescentam na vida prática ou contribuem para o

bem-estar moral e social do homem.

Para DEWEY, há um conflito entre as posturas

contemplativa e prática. A relação entre ideal e real nunca

esteve tão distante e esta relação é “o mais sério de todos os

38 DEWEY, J. Idem, p. 125. 39 DEWEY, J. Idem, p. 130. 40 DEWEY, J. Idem, ibidem. 41 DEWEY, J. Idem, ibidem. 42 DEWEY, J. Idem, ibidem.

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[problemas] da humanidade”.43 Se, por um lado, a tecnologia nos

trouxe muitas benesses, por outro, a visão excessivamente

prática do mundo nos afastou de preocupações extremamente

pertinentes, como, por exemplo, as questões ecológica, social,

política. O que DEWEY propõe é uma “...reconciliação entre as

ciências práticas e a apreciação estética contemplativa”.44

Também em RORTY há uma recusa em admitir

problemas que envolvam fundamentos, importando apenas as

vantagens e desvantagens concretas trazidas pelas crenças.

Com efeito, o pragmatismo não está interessado

na distinção entre verdade e falsidade, pois proclama que

alguns juízos são melhores que a verdade, posto que funcionam

melhor. O problema sai do âmbito da verdade para entrar no

campo da opinião (dóxa), sendo que neste âmbito a escolha

entre duas ou mais opiniões — que deve ser pela melhor dentre

elas — é possível (admite-se mesmo a escolha de uma opinião

que não seja a mais verdadeira).

Por isso os neopragmáticos têm sido acusados de

irracionalistas, principalmente se o que está em questão são

valores maiores ou mesmo diferentes paradigmas científicos.45

43 DEWEY, J. Idem, p. 135. 44 DEWEY, J. Idem, p. 134. 45 Thomas KUHN, em especial com sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, instaurou uma perspectiva inédita sobre a atividade científica quando traçou a sua noção de paradigma. Distinguindo dois regimes nessa atividade, que designou por ciência normal e ciência extraordinária,

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Ora, uma coisa é considerar relativas opções

concernentes a preferências estéticas ou gastronômicas, o que

é aceitável. Coisa bem diferente é relativizar valores morais

ou científicos.

GELLNER, por exemplo, que admite a

possibilidade de se chegar a uma verdade única46, sustenta que,

científica e moralmente, entre as diversas verdades uma deverá

ser a mais forte.47 GELLNER não aceita, portanto, que a todo

argumento ou opinião se possa sempre opor, à moda de PIRRO,

outro argumento ou opinião, igualmente possível. Aceitar isso

implica o reconhecimento da impossibilidade de qualquer

progresso científico. Para GELLNER, ao contrário:

“ ...dos velhos sistemas que Descartes e a epistemologia moderna puseram a pique, se não resultou uma nova embarcação confiável e em boas condições de navegabilidade, restos ao menos sobraram dos quais ‘alguns pedaços são melhores que outros’ e podem, convenientemente reunidos e amarrados, compor ‘uma jangada passável’. Nas páginas finais de seu livro (pp.

caracterizando a primeira por se reger por um paradigma que orienta toda a atividade dos cientistas de cada comunidade disciplinar, e a segunda por viver num estado de crise que resulta, numa dada situação, de perda de eficiência do paradigma até então vigente, podendo por isso conduzir à eclosão de uma revolução científica, ou seja, à instauração de um novo paradigma. A ocorrência desta revolução tem como principal conseqüência cavar, entre os dois paradigmas, o que KHUN designou como uma incomensurabilidade, isto é, um estado de incompreensão ou de conflito não só sobre os problemas que devem ser considerados como das soluções que devem ser aceitas, situação que é agravada com o uso de conceitos com significação diferente pelos partidários dos dois paradigmas. 46 Verdade aqui não no sentido absoluto do termo, pois GELLNER reconhece o caráter relativo dos fundamentos, admitindo ser provavelmente impossível que a teoria do conhecimento possa desempenhar com rigor absoluto sua tarefa de fundamentação e legitimação do conhecimento sem incorrer na circularidade (petição de princípio) ou no regresso ao infinito (cf. PORCHAT, O. P. Ceticismo e saber comum. In: Vida Comum e Ceticismo, p. 114). Nesse ponto GELLNER admite o argumento cético. 47 Aqui o pensamento de GELLNER se aproxima muito ao de DWORKIN.

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206-208) [Legitimation of Belief], Gellner enumera esses elementos que, a seu ver, acabaram sendo destilados por um consenso emergente de alguns séculos de reflexão filosófica, elaborada sob o impacto da epistemologia moderna.”48

A peculiar idéia de verdade única não deve

levar, necessariamente, a uma nova espécie de etnocentrismo e

colonialismo. Segundo GELLNER são os relativismos que, sob o

manto da tolerância, chegam a admitir absurdos como a

justificação de opressões existentes em certas culturas, tais

como torturas e mutilações sistemáticas.49

48 GELLNER, Ernest. Legitimation of belief. Cambridge: Cambridge University Press, 1974. Citado por PEREIRA, O. P. Obra citada, nota 79, p. 114. 49 O biólogo Richard DAWKINS, em recente obra para divulgação da importância da ciência, aborda o absurdo a que o discurso tolerante e relativista pode levar. Para tanto, cita o seguinte caso: “Uma onda em voga vê a ciência apenas como um dentre muitos mitos culturais, nem mais verdadeiro ou válido do que os mitos de qualquer outra cultura. Nos Estados Unidos, essa atitude é alimentada pela culpa justificada do tratamento histórico conferido aos americanos nativos. Mas as conseqüências podem ser risíveis, como no caso do Homem de Kennewick.

O Homem de Kennewick é um esqueleto descoberto no estado de Washington em 1996 que, pela datação de carbono, deve ter mais de 9 mil anos. Os antropólogos ficaram intrigados com as sugestões anatômicas de que talvez não estivesse relacionado com os típicos americanos nativos, podendo representar uma outra migração anterior pelo que é agora o estreito de Bering ou até originária da Islândia. Eles estavam se preparando para realizar os importantíssimos testes de DNA, quando as autoridades legais se apoderaram do esqueleto, com a intenção de entregá-lo aos representantes das tribos indígenas locais, que propuseram enterrá-lo e proibir todo estudo posterior. Houve naturalmente uma ampla oposição da comunidade científica e arqueológica. Mesmo se o Homem de Kennewick fosse um tipo de índio americano, é altamente improvável que tivesse afinidades com qualquer tribo específica que por acaso habitasse a mesma área 9 mil anos mais tarde.

Os americanos nativos têm uma força legal impressionante, e ‘O Antigo’ poderia ter sido entregue às tribos, não fosse por um acontecimento bizarro. A Assembléia do Povo de Asatro, um grupo de adoradores dos deuses nórdicos Thor e Odin, entrou com uma ação legal independente afirmando que o Homem de Kennewick era, na verdade, um viking. Essa seita nórdica, cujas visões se encontram no número do verão de 1997 de The Runestone, teve realmente a permissão de realizar um culto religioso sobre os ossos. Isso desagradou à comunidade indígena yacama, cujo porta-voz temia que a cerimônia viking pudesse ‘impedir o espírito do Homem de Kennewick de

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encontrar o seu corpo’. A disputa entre os indígenas e os nórdicos poderia ser resolvida pela comparação do DNA, e os nórdicos estavam bem desejosos de passar pelo teste, O estudo científico dos vestígios certamente lançaria uma luz fascinante sobre a questão de saber quando os humanos chegaram pela primeira vez à América. Mas os líderes indígenas não admitem a simples idéia de estudar o assunto, porque acreditam que seus antepassados existem na América desde a criação. Como Armand Minthorn, o líder religioso da tribo umatilla, se expressou: ‘De nossas histórias orais, sabemos que o nosso povo é parte desta terra desde o começo dos tempos. Não acreditamos que o nosso povo migrou de outro continente para a América, como afirmam os cientistas’.

Talvez a melhor atitude para os arqueólogos seja declarar que pertencem a uma religião, sendo as impressões digitais do DNA o seu totem sacramental. Parece brincadeira, mas é tal o clima nos Estados Unidos no final do século XX que possivelmente esse é o único recurso que iria funcionar. Se alguém diz: ‘Olha, há evidências esmagadoras, obtidas pela datação de carbono, pelo DNA mitocondrial e pelas análises arqueológicas da cerâmica, de que x é o caso’, não vai chegar muito longe. Mas, se alguém diz: ‘É uma crença fundamental e inquestionável da minha cultura de que x é o caso’, vai imediatamente atrair a atenção de um juiz.

Vai também chamar a atenção de muitos na comunidade acadêmica, que, no final do século XX, descobriram uma nova forma de retórica anticientífica, às vezes chamada de ‘crítica pós-moderna’ da ciência.

(...) Os promotores do relativismo cultural e da ‘superstição mais elevada’

tendem a despejar desprezo na busca da verdade. Isso deriva parcialmente da convicção de que as verdades são diferentes em culturas diferentes (esse era o argumento da história do Homem de Kennewick) e parcialmente da incapacidade de os filósofos da ciência concordarem de algum modo sobre a verdade. Há certamente dificuldades filosóficas genuínas. Uma verdade é apenas uma hipótese não falsificada até o presente momento? Que status possui a verdade no estranho e incerto mundo da teoria quântica? Algo é em última análise verdadeiro? Por outro lado, nenhum filósofo encontra dificuldade em usar a linguagem da verdade quando é falsamente acusado de um crime, ou quando suspeita que sua esposa cometeu adultério. “É verdade?’ parece então uma pergunta justa, e poucos dos que a formulam nas suas vidas privadas ficariam satisfeitos em ter como resposta um sofisma argumentativo. Os experimentadores do pensamento quântico talvez não saibam em que sentido é ‘verdade’ que o gato de Schrödinger está morto. Mas todo mundo sabe o que é verdadeiro na declaração de que Jane, a gata da minha infância, está morta. E, em muitas verdades científicas, o que afirmamos é apenas que elas são verdadeiras nesse mesmo sentido comum. Se lhe digo que os humanos e os chimpanzés partilham um antepassado comum, você pode duvidar da verdade da minha afirmação e procurar (em vão) evidências de que ela é falsa. Nós dois sabemos, no entanto, o que significaria se ela fosse verdadeira, e o que significaria se ela fosse falsa. Está na mesma categoria de: ‘É verdade que você esteve em Oxford na noite do crime?’, e não na mesma categoria difícil de: ‘É verdade que um quantum tem posição?’. Sim, há dificuldades filosóficas sobre a verdade, mas podemos ir bem longe antes de ser preciso que delas nos ocupemos. A criação prematura de alegados problemas filosóficos é às vezes uma cortina de fumaça para a discórdia” (DAWKINS, Richard. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento, p 38-42).

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Daí porque a inadmissibilidade do relativismo

moral. Segundo GELLNER:

“ Num mundo como o nosso, a injunção relativista que nos diz ‘quando em Roma, aja como os romanos’ se descobre vazia de conteúdo, porquanto, simplesmente não há ‘Roma’ nem ‘Romanos’, não há mais ‘cidades’ identificáveis, isto é, unidades identificáveis, em termos dos quais a alegada relatividade possa operar.”50

Para GELLNER também o relativismo lógico é

inaceitável, pois “...o que está em jogo aqui não é a

diferença entre meras teorias rivais mas entre incomensuráveis

paradigmas rivais — o que pode ser chamado o problema de

Thomas KHUN. Aqui, dar nota não é inútil mas, ao contrário,

obrigatório. Inevitavelmente fazemos isso de qualquer modo. Há

progresso científico, não apenas mudanças insignificantes de

modas”.51

Seja como for, o ponto de partida relativista

do ceticismo é aceito, porém o que não se admite é uma postura

passiva proporcionada pela epokhé, vez que, do ponto de vista

da razão prática proposta por GELLNER, deve-se fugir do

utilitarismo irracionalista do neopragmatismo e buscar sempre

a melhor solução.52

50 GELLNER, E. Legitimation of belief, p 48-49, citado por PEREIRA, O. P. Obra citada, nota 48, p. 105. 51 GELLNER, E. Sobre as opções de crença, Folha de São Paulo, 15 de maio de 1994, p. 6 – 11. 52 Melhor não no sentido pragmático, em que a melhor solução pode ser a menos condizente com a verdade, ou seja, com critérios de racionalidade derivados da lógica formal. Uma opção que não se compatibilize com o

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Vale dizer que a busca da melhor solução vai

implicar, necessariamente, argumentação. “A filosofia

dogmática argumenta, ela essencialmente argumenta”53, sobretudo

para justificar as premissas de onde parte, em especial quanto

aos seus princípios que são tidos como argumentações que

ocupam o papel de premissas.54

Foi justamente diante dessa constatação que

ARISTÓTELES acabou por reconhecer a importância da retórica —

que era muito criticada por PLATÃO — a qual, além de poder

firmar os princípios através de argumentos honestos, foi

pensamento formal seria inaceitável para GELLNER e aqui o relativismo não pode funcionar. É claro que isso é bem diferente de uma disputa entre opções diversas, em que todas elas pudessem ser formalmente sustentáveis. 53 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 214. 54 Aqui o pragmatismo também pretende atuar, mas igualmente está sujeito a críticas, conforme aduz Tércio Sampaio FERRAZ JR.: “Embora não se possa negar, conforme é acentuado, sobretudo na literatura norte-americana sobre administração pública, que uma decisão procura alcançar, por meio de um arranjo de meios e compensações, um máximo de consenso e cooperação concreta entre os atingidos por ela, parece-nos que consenso e cooperação não constituem nem a finalidade imediata nem a condição primeira da decisão. Decidir, nesse sentido, não é, primordialmente, estabelecer uma repartição eqüitativa entre as chances de vitória reveladas pela justificação das alternativas em conflito numa discussão dada, o que pressupõe um critério exterior ao próprio discurso e que defina, a priori, o que se entende por repartição eqüitativa. Isso, aliás, exigiria do ato decisório um tipo de neutralidade e de distância que o tornariam não situacional. Colocar decisão e consenso numa relação imediata significa transformar a decisão ‘racional’ num modelo ideal, do qual nos aproximamos mais ou menos; na medida que em toda decisão concorrem variáveis nem sempre controláveis e previsíveis, toda decisão ‘racional’ seria sempre e apenas parcialmente ‘racional’. Essa concepção idealista da decisão, presente na ‘teoria da otimização’ da decisão, emerge de uma situação discursiva também ideal, em que opiniões e contra-opiniões deixam indiferençados os momentos da concorrência e da cooperação, sendo possível, então, o aparecimento de um critério que ordene as opiniões. Nesta situação, todos os dados relevantes seriam conhecidos de início, todas as alternativas poderiam ser enumeradas e avaliadas de antemão, restando apenas a escolha. Mas, tão logo a situação se complique, tão logo as teorias da decisão cresçam em riqueza de sentido e de relacionamento, uma ordem deste gênero perderia em nitidez” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 43).

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concebida como sendo a melhor maneira de se defender do mal

uso que dela faziam os sofistas. Daí decorrem as seguintes

conclusões do estagirita:

“ (1) A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e o justo mais força natural que os seus contrários, se os julgamentos não são proferidos como conviria, é necessariamente por sua única culpa que os litigantes [cuja causa é justa] são derrotados. Sua ignorância merece, portanto, censura. (2) Ainda mais: conquanto possuíssemos a ciência mais exata, há certos homens que não seria fácil persuadir fazendo nosso discurso abeberar-se apenas nessa fonte; o discurso segundo a ciência pertence ao ensino, e é impossível empregá-lo aqui, onde as provas e os discursos (logous) devem necessariamente passar pelas noções comuns, como vimos em Tópicos, a respeito das reuniões com um auditório popular. (3) Ademais, é preciso ser capaz de persuadir dos prós e dos contras, como no silogismo dialético. Não para pôr os prós e os contras em prática — pois não se deve corromper pela persuasão! —, mas para saber claramente quais são os fatos e para, caso alguém se valha de argumentos desonestos, estar em condições de refutá-lo... (4) Além disso, se é vergonhoso não poder defender-se com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse vergonha em não poder defender-se com a palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que o do corpo. (5) Objetar-se-á que a retórica pode causar sérios danos pelo uso desonesto desse poder ambíguo da palavra? Mas o mesmo se pode dizer de todos os bens, salvo da virtude... (6) Fica claro, pois, que, assim como a dialética, a retórica não pertence a um gênero definido de objetos, mas é tão universal quanto aquela. Claro também que é útil. Claro, por fim, que sua função não é [somente] persuadir, mas ver o que cada caso comporta de persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras artes, pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer tudo o que for possível para curar o doente.”55

55 ARISTÓTELES. Retórica. Livro I, cap. 2, 1355 a-b, p. 7-9. Daí a utilidade da retórica para ARISTÓTELES, assim sintetizada por Enrico BERTI: “Porém, vamos às ‘utilidades da retórica’, ou seja, aos motivos pelos quais a retórica é ‘útil’ (khrésimos), que são quatro. Em primeiro lugar, a retórica é útil porque permite evitar uma coisa reprovável, isto é, perder uma causa justa por inferioridade própria, dado que, ‘por natureza’, por si mesmas, ‘as coisas verdadeiras e justas são mais fortes que seus contrários’ (1355 a 21-24). É evidente a analogia entre esta utilidade e a primeira das quatro utilidades da dialética expostas nos Tópicos I 1, aquela relativa ao ‘exercício’ mental (pros gymnasían), que nos dá condições de argumentar mais facilmente (101 a 28-30). Em segundo lugar, a

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retórica é útil porque, para alguns, não basta recorrer à ‘ciência mais exata’, que é apropriada para o ensino, na medida que é necessário usar argumentos baseados nos lugares-comuns (diá ton Koinón). E aqui é o próprio Aristóteles que cita a segunda utilidade da dialética ilustrada nos Tópicos, aquela relativa às ‘discussões com a multidão’, nas quais convém partir das opiniões que lhes são próprias, isto é, justamente ‘comuns’ (1355 a 24-29, cf. Tópicos I 1, 101 a 30-34).

Em terceiro lugar, é útil porque está em condição de persuadir de coisas contrárias, o que serve não para que se façam ações contrárias entre si (não se deve, com efeito, persuadir para que se façam ações ruins), mas ‘para que não se desviem de como as coisas são’ (pos ékhei), e ‘para que tenhamos nós mesmos a possibilidade de refutar (lyein) se um outro faz um uso injusto dos argumentos’; apenas a retórica e a dialética, com efeito — prossegue Aristóteles —, estão em condição de argumentar os contrários, porque são (capazes) ambas do mesmo modo, ainda que as ações que correspondem a eles não sejam do mesmo modo, mas aquelas verdadeiras e melhores por natureza sempre ‘mais fáceis de argumentar e mais persuasivas’ (eusyllogistótera kai pithanótera) (1355 a 29-38). Isso corresponde perfeitamente à terceira utilidade da dialética, relativa às ‘verdadeiras ciências’ (pros tas katá philosophían epistémas), devido ao fato de que, ‘se estivermos em condição de desenvolver uma aporia em ambas as direções (pros amphótera diaporesai), distinguiremos mais facilmente em cada uma o verdadeiro e o falso’ (Tópicos I 1, 100 a 34-36). Aqui, como se vê, a retórica e a dialética não apenas ensinam, respectivamente, a persuadir e a argumentar, mas também fazem ver àquele que as usa ‘como são as coisas’, isto é, ‘o verdadeiro e o falso’, o que é, indubitavelmente, uma utilidade cognitiva, ou seja, científica. Aliás, ele mesmo diz que esta é a utilidade ‘científica’ ou ‘filosófica’ (pros tas katá philosophían epistémas) da dialética. Ainda por esse caminho, portanto, a analogia estrutural entre retórica e dialética é estendida, por meio desta última, à filosofia.

Em quarto lugar, ela é útil porque saber usar justamente ‘tal capacidade de fazer discursos’ (toiáute dynamis ton logon) pode ser extremamente proveitoso, enquanto saber usá-la injustamente pode ser extremamente danoso, o que é próprio dos bens mais úteis, como o vigor, a saúde, a riqueza e a estratégia (apenas que a virtude não admite outro uso, apenas o justo) (1355 a 38-b 7). Aqui a analogia com a quarta utilidade da dialética — conduzir os princípios de todas as ciências — é mesmo evidente, mas talvez consista no fato de que ambas, a retórica e a dialética, sabem levar ao que é máximo, o máximo do bem e do mal a primeira, o máximo do conhecimento, isto é, o dos princípios, a segunda. A ambigüidade da retórica, diga-se, é típica de todas as ‘potências racionais’, que são todas potências dos contrários, das quais fazem parte as artes e as ciências, por exemplo a medicina, que sabe curar, mas sabe também envenenar (cf. Metafísica IX 2), o que constitui uma analogia estrutural posterior entre a retórica e a ciência em geral.

Enfim, a última prova de analogia entre a retórica e filosofia, sempre mediada pela dialética, segue-se da distinção entre capacidade e escolha. A passagem a respeito é de tal interesse que merece ser traduzida integralmente.

Além disso — diz Aristóteles — [é claro] que é próprio desta [capacidade] distinguir seja o persuasivo (to pithanón), seja o persuasivo aparente (to phainómenon pithanón), como também no caso da dialética [distinguir] seja o silogismo, seja o silogismo aparente; com efeito, a sofística [consiste] não na capacidade (dynamis), mas na escolha (prohaíresis), salvo aqui um será retor pela ciência e o outro pela escolha, enquanto lá um, pela escolha, será sofista, e

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No âmbito da razão prática, a epokhé não pode

levar à inércia, as argumentações, mesmo não tendo a pretensão

de ser sustentadas por premissas verdadeiras, devem levar a

uma ação determinada, conforme aduz Oswaldo PORCHAT Pereira:

“ Ora, na vida comum, os homens todos argumentam sempre, em verdade o fazem a cada passo. A argumentação subordina-se com grande freqüência às necessidades da ação e serve aos fins práticos da vida; ela serve aos propósitos do diálogo e comunicação entre os homens; ela contribui para induzir o interlocutor à ação que dele esperamos, ou para explicar-lhe nossos pontos de vista, ou para levá-lo eventualmente a compartilhá-los. (...) ... Num mundo filosoficamente não-interpretado, onde a ameaça da Verdade não paira sobre o horizonte, a argumentação desempenha funções importantes e tem um lugar privilegiado. A argumentação, sob este prisma fenomênico, confessa tranqüilamente sua relatividade, que não é estorvo para os fins não-dogmáticos que persegue. (...) E a argumentação toda é sempre relativa a uma visão de mundo relativamente comum aos interlocutores, que fornece pano de fundo e horizonte, mas a base também

outro será dialético não pela escolha, mas pela capacidade (1355 b 1521). Isso significa que quem possui a capacidade de distinguir seja o

silogismo seja o silogismo aparente é dialético, e quem faz a escolha de usar o silogismo aparente no lugar do autêntico não é dialético, mas sofista; ao contrário, quem possui a capacidade de distinguir seja o persuasivo seja o persuasivo aparente é retor, mas o é também aquele que faz escolha de usar o persuasivo aparente no lugar do autêntico. Denomina-se retor, em suma, tanto o análogo do dialético como o análogo do sofista. Com isso, a analogia entre retórica e dialética, que consiste na capacidade de distinguir o autêntico do aparente, é confirmada, com a diferença de que, em relação à dialética, a escolha de usar o aparente toma o nome de sofística, enquanto em relação à retórica a mesma escolha toma o nome de retórica. Em outras palavras, enquanto a dialética, do ponto de vista moral, é apenas ‘boa’, a retórica pode ser tanto ‘boa’ como ‘má’. Essa distinção entre o persuasivo autêntico e o persuasivo aparente é perfeitamente paralela àquela entre o silogismo e o silogismo aparente feita no início dos Tópicos, precisamente onde Aristóteles distingue do silogismo demonstrativo, que parte de premissas verdadeiras e primeiras, e do silogismo dialético, que parte de éndoxa, o silogismo erístico ou sofístico, que parte de éndoxa aparentes ou é um silogismo aparente, isto é, um silogismo que parece concluir mas na realidade não conclui, um silogismo incorreto (100 a 25-101 4)” (BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 173-176).

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para a construção de seu diálogo: é sobre essa base que um consenso relativo sobre as premissas pode ter lugar, é contra esse pano de fundo que as divergências naturais e inevitáveis na descrição dos fenômenos da experiência comum são suscetíveis de uma eventual conciliação...”56

Nessa ótica, em que o que se busca é o

consenso, a argumentação “...deixa de procurar a verdade como

condição de consenso para procurar o consenso como condição de

‘verdade’”.57

No âmbito jurídico, sem entrar nesse momento na

questão dos limites externos à argumentação jurídica58, a

atitude passiva decorrente da epokhé não se sustenta59, uma vez

que o jurista não pode suspender o juízo de forma indefinida:

“ Ao expor diversas teorias referentes a um problema jurídico qualquer, o jurista não se limita a levantar possibilidades e, em certas circunstâncias, suspender o juízo, mas é forçado a realizar, por vezes, uma verdadeira decisão ou opção decisória. Isso porque sua intenção não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de aplicabilidade da norma enquanto modelo de comportamento obrigatório.”60

56 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Vida comum e ceticismo, p. 239-241. 57 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p.168. 58 Como por exemplo a existência de normas que devem ser tomadas como premissas verdadeiras e a possibilidade do uso da força para a garantia de aplicação, pelo poder, daquelas normas. 59 A não ser como método processual, em que se suspende provisoriamente o juízo — não indefinidamente como pretende o ceticismo no que pertine a questões meramente teóricas — a fim de que as partes em litígio possam produzir suas provas perante um terceiro (o juiz) que deverá dirimir o problema através de uma decisão. Com efeito, assim afirma Tercio Sampaio FERRAZ JR.: “...o discurso judicial não pretende conduzir as partes, incondicionalmente, a um consenso real, a uma harmonia sobre o Direito e o não-Direito, mas criar condições para que as partes possam suportar a pressão social, obrigando-as a discutir outras questões que não as ‘formais’ de Direito, especializando, assim, a sua insatisfação” (FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 84-85). 60 FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 150.

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Isso se deve, em grande medida, porque no

direito o que se pretende é resolver problemas visando uma

certa pacificação da sociedade61, que de certa forma é obtida a

partir da idéia de segurança jurídica, a qual na maioria dos

casos é preferível em relação à verdade, resultando que “...a

finalidade imediata da decisão está na absorção de

insegurança”62, muito mais que na busca da verdade.63

Posto o problema da crise enfrentada pela razão

no século XX, bem como a questão do relativismo dos céticos e

dos pragmáticos em contraposição às necessidades de escolha —

problema que, evidentemente, também se coloca no âmbito

jurídico — resta saber se há alguma possibilidade de se

utilizar a razão na tarefa de escolher, sem que para isso seja

necessário o recurso a alguma forma de fundamentacionismo, por

um lado, ou a admissão da total arbitrariedade, por outro.

Antecipando uma hipótese, talvez a formulação

de uma teoria geral da argumentação jurídica seja um grande

61 “A paz é uma condição na qual não há o uso da força. Nesse sentido da palavra, o Direito assegura paz apenas relativa, não absoluta, na medida em que priva os indivíduos do direito de empregar a força, mas reserva-o à comunidade” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 31). 62 FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 43. 63 “Essa peculiaridade, em oposição a outros meios de solução de conflitos (sociais, políticos, religiosos etc.), revela-se na sua capacidade de terminá-los e não apenas de solucioná-los. Vimos, porém, que decisões não eliminam conflitos no sentido de que a questão dúbia jamais perde esse seu caráter. Que significa, pois, a afirmação de que as normas terminam conflitos? Isso significa, simplesmente, que a norma (a lei, a norma consuetudinária, a decisão do juiz etc.) impede a continuação de um conflito: ela não o termina por meio de uma solução, mas o soluciona, pondo-lhe um fim” (FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 64-65).

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instrumento de auxílio (no âmbito jurídico, é claro) para a

resposta a esse problema. Mas antes de chegarmos a esse ponto,

passemos a uma descrição das principais teorias jurídicas

formuladas nos últimos tempos.

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2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

“Não há direito natural: esse termo é apenas uma antiga tolice bem digna do promotor público que me deu caça outro dia, e cujo avô enriqueceu com uma confiscação de Luís XIV. Não há direito senão quando há uma lei que proíbe fazer tal coisa, sob pena de punição. Antes da lei, só há de natural a força do leão, ou a necessidade da criatura que tem fome, que tem frio, a necessidade, numa palavra...”

Stendhal

“Se, por um lado, a visão científica conquistou o domínio no modo de ver a natureza, por outro nas questões sociais, morais e jurídicas permanecemos encalhados num persistente infantilismo. A filosofia do direito natural constitui um dos seus produtos.”

Alf Ross

2.1 Direito e Justiça

No capítulo anterior foi traçado um panorama

geral dos embates travados entre aqueles que julgam ser

possível encontrar a verdade a partir da razão e aqueles que

reconhecem na razão um caráter limitado e que, por isso mesmo,

criticam os fundamentacionistas a partir de um ponto de vista

cético.64

64 Como visto, a oposição profunda surgida desse embate, talvez uma das mais irredutíveis da cultura ocidental, teve seu nascedouro na antigüidade, com a oposição entre a postura do filósofo e a postura do sofista, “...em que ao primeiro é garantido um privilegiado acesso ao reino da verdade enquanto o segundo é remetido para o domínio, ontologicamente desvalorizado, da utilidade” (CARRILHO, M. M. Jogos de racionalidade, p. 11).

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Esse debate não tem sido apenas um privilégio

da filosofia e, mais recentemente, das ciências físicas,

matemáticas e naturais; pois também as questões jurídicas

podem ali ser inseridas. Mais que isso, pode-se afirmar que as

principais teorias jurídicas têm em sua base o modo pelo qual

cada teórico se posiciona naquela controvérsia.

Das várias discussões existentes quanto aos

fundamentos do direito, cremos que a maior delas segue sendo a

das possibilidades ou não de se promover, através do direito,

a justiça, ou seja, a idéia do direito como instrumento (meio)

para a realização do valor65 do justo.

Mas o que é, afinal, a justiça? Também aqui

aquele debate se coloca, sendo que talvez nenhum outro tema

tenha ocupado tanto a filosofia do direito como as relações

entre o direito e a moral, ou, num sentido mais amplo, as

relações entre o direito como é (o direito positivo) e o

direito como deveria ser segundo os postulados da moral e da

justiça (o direito natural ou racional).66

65 Não se está aqui tratando a justiça em sentido formal, mas sim como uma questão moral. 66 Veja-se por exemplo, a série de questões que Miguel REALE propõe acerca do problema da justiça: “Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas quais nós, que nos temos em conta de seres livres, somos obrigados a nos subordinar a leis que não foram postas por nossa inteligência e por nossa vontade? É lícito contrariar as leis injustas? Qual o problema que se põe para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela, de maneira impressionante, contrária aos ditames do justo? Qual o fundamento do Direito na sua universalidade? Repousa ele apenas no fundamento empírico da força? Reduz-se o Direito ao valor utilitário do êxito? Brotará a

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A disputa entre essas duas concepções

jurídicas, o positivismo e o jusnaturalismo, cobre vários

séculos da história do direito e, apesar de amiúde ser

declarada cancelada, revive em cada época sob o manto de novas

fórmulas.

Com efeito, a teoria de Hans KELSEN contra o

direito natural parecia ter interrompido o velho debate para

sempre. KELSEN, através de uma bem sucedida demonstração da

impossibilidade da existência de outras normas jurídicas

externas à correspondente ordem legal, desloca o problema da

justiça e do direito natural para a política, ou seja, essas

questões deixariam de ser um problema jurídico.67

Para tanto, após enquadrar o direito natural

como uma “...doutrina [que] sustenta que há um ordenamento das

relações humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e

absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão

humana ou da vontade de Deus”68, chegando mesmo a denunciar a

estrutura jurídica, inexoravelmente, dos processos técnicos de produção econômica, ou representa algo capaz de se contrapor, muitas vezes, às exigências cegas da técnica? Ou o Direito terá fundamento contratual?” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 308). 67 “O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural, associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia dos valores, foi a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elimina do direito qualquer referência à idéia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário” (PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91). 68 KELSEN, Hans. Teoría geral do direito e do estado, p. 12.

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relatividade69 dessa doutrina70, KELSEN acusa de dualismo

platônico a distinção entre direito positivo e direito

natural:

“ A doutrina do Direito natural é caracterizada por um dualismo fundamental entre Direito positivo e Direito natural. Acima do imperfeito Direito positivo existe um perfeito — porque absolutamente justo — Direito natural; e o Direito positivo é justificado apenas na medida em que corresponda ao Direito natural. Nesse aspecto, o dualismo entre Direito positivo e Direito natural, tão característico da doutrina do Direito natural, lembra o dualismo metafísico da realidade e a idéia platônica.”71

No entanto, ao contrário das leis da natureza

que são regidas pelo princípio da causalidade (o mundo do

ser), as normas jurídicas não têm seu cumprimento vinculado a

69 Norberto BOBBIO, por exemplo, define o direito natural como sendo a doutrina que “...considera poder estabelecer o que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido”, questionando logo em seguida as possibilidades dessa pretensão: “Mas, tem base esta pretensão? A julgar pelos desacordos entre os diferentes seguidores do direito natural sobre o que se deve considerar justo ou injusto, a julgar pelo fato de que o que era considerado natural para alguns não o era para outros, dever-se-ia responder que não” (BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 28). 70 “Declarar a propriedade como um direito natural, porque é o único que corresponde à natureza, é uma tentativa de tornar absoluto um princípio especial que, historicamente, em certo tempo e sob certas condições políticas e econômicas, tornou-se Direito positivo.

... Por esse método sempre é possível sustentar e, pelo menos em aparência, provar postulados opostos. Se os princípios do Direito natural são apresentados para aprovar ou desaprovar uma ordem jurídica positiva, em qualquer dos casos, sua validade repousa em julgamentos de valor que não possuem qualquer objetividade. Uma análise crítica sempre demonstra que eles são apenas a expressão de certos interesses de grupo ou classe. Dessa maneira, a doutrina do Direito natural é às vezes conservadora, às vezes reformista ou revolucionária em caráter. Ela ou justifica o Direito positivo proclamando sua concordância com a ordem natural, racional ou divina, uma concordância afirmada, mas não provada; ou põe em questão a validade do Direito positivo sustentando que ele se encontra em contradição com algum dos pressupostos absolutos. A doutrina revolucionária do Direito natural, assim como a conservadora, preocupa-se não com a cognição do Direito positivo, da realidade jurídica, mas com sua defesa ou ataque, com uma tarefa política, não científica” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 16-17). 71 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 17.

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determinações fatais e necessárias, vez que estas se regem

pelo princípio da imputação (o mundo do dever-ser).72

Se houvessem normas causais (necessárias) para

determinar a conduta humana, as normas de direito positivo

seriam supérfluas:

“ Caso se pudesse ter conhecimento da ordem absolutamente justa, cuja existência é postulada pela doutrina do Direito natural, o Direito positivo seria supérfluo, ou melhor, desprovido de sentido. Confrontada com a existência de uma ordenação justa da sociedade, inteligível em termos de natureza, razão ou vontade divina, a atividade dos legisladores equivaleria a uma tola tentativa de criar iluminação artificial em pleno sol.”73

A separação entre direito e moral decorrente da

relatividade desta última é um traço característico do

positivismo jurídico lapidado no século XX. Gustav RADBRUCH,

que chegou a ser um dos mais ferrenhos defensores do

positivismo jurídico durante a década de 193074, dava clara

72 Mais adiante voltaremos a tratar deste assunto. 73 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 18-19. KELSEN deu tanta importância ao problema da justiça que, além de inúmeros artigos, escreveu várias obras sobre o assunto, tais como A Ilusão da Justiça, O que é Justiça, O Problema da Justiça (na edição italiana dessa obra há um excelente ensaio de Mário LOSANO em que são descritas as principais críticas formuladas contra a Teoria Pura do Direito de KELSEN), além de um estudo que foi publicado como apêndice à 2ª edição (1960) alemã da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre) publicado em separado, na língua portuguesa, com o título A Justiça e o Direito Natural. 74 Depois da 2ª Guerra Mundial, diante das conseqüências funestas que a idéia de primazia da lei sobre a moral acarretou, RADBRUCH se converte à doutrina do direito natural, conforme salientado por Norberto BOBBIO: “Uma formulação recente e exemplar dessa doutrina é oferecida por GUSTAV RADBRUCH na seguinte passagem: ‘Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça, por exemplo, quando concede arbitrariamente ou rechaça os direitos do homem, adoece de validez (...) os juristas também devem levar em conta o valor para negar-lhe o caráter jurídico’, e em outra parte: ‘Podem dar-se leis de conteúdo tão injusto e prejudicial que se faça

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preferência ao direito em caso de conflito com a justiça,

“...pois é mais importante a existência da ordem jurídica que

a sua justiça, já que a justiça é a segunda grande missão do

direito, sendo a primeira, a segurança jurídica, a paz”.75

No entanto, a barbárie do nacional-socialismo,

feita em nome da lei, levou a um sério questionamento da tese

positivista por ocasião do restabelecimento da ordem

necessário negar-lhes seu caráter jurídico (...) posto que há princípios jurídicos fundamentais que são mais fortes que qualquer normatividade jurídica até o ponto que uma lei que os contradiga venha a carecer de validez’; e mais ainda, ‘quando a justiça não é aplicada, quando a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada pelas normas do direito positivo, a lei não somente é direito injusto mas sim, em geral, carece de juridicidade’ (Rechtsphilosophie, 4ª ed., 1950, págs. 336-353)” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 27-28). 75 RABDRUCH, Gustav. Introducción a la ciencia del derecho, p. 34. Vale dizer que nesse período RADBRUCH via no relativismo a razão mesma de ser do direito, conforme se depreende das seguintes passagens da sua obra que talvez mais influências tenha causado nos juristas, a qual, aliás, tem vários pontos convergentes com o pensamento de KELSEN: “O relativismo não é um simples e puro agnosticismo, é algo mais: uma fonte fecunda de conhecimento objetivo. Sobretudo, é o relativismo a única base possível para a força vinculante do direito positivo. Se existir um direito natural, uma verdade jurídica unívoca, reconhecível e comprovável, não seria possível ver de nenhuma maneira a razão da força vinculante do direito positivo, que apareceria em contradição com essa verdade absoluta. Deveria então desaparecer como o erro desmascarado ante à verdade desvelada. A força obrigatória do direito positivo somente pode fundar-se precisamente no fato de que o direito justo não é nem reconhecível nem demonstrável. Porque um juízo sobre a verdade ou falsidade das diferentes convicções jurídicas é impossível; posto que, de outra parte, se se requer um direito único para todos os sujeitos de direito, o legislador se vê desafiado à necessidade de cortar em um golpe o nó górdio que a ciência não consegue desatar. Posto que é impossível verificar o que é justo, deve-se estabelecer o que deve ser jurídico. Em vez de um ato de verdade, que é impossível, é necessário um ato de autoridade. O relativismo desemboca no positivismo.

...a decisão do legislador não é um ato de verdade, mas sim um ato de vontade, de autoridade. Este pode conferir a uma determinada opinião força obrigatória, porém nunca força convincente. (...) O relativismo desemboca no liberalismo.

(...) O relativismo é a tolerância geral. Somente não é tolerância frente à

intolerância” (RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho, p. 3-8).

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democrática e do Estado de Direito em face da derrotada do

fascismo.76

A idéia Kelseniana de que toda a norma legal é

direito, sem consideração de seu conteúdo77, foi duramente

combatida no pós-guerra, tendo sido atacada como responsável

pela legitimação da ditadura.

Essa circunstância trouxe novamente à tona

aquilo que a teoria de KELSEN tinha posto em estado de

76 Com relação a essa reação contra as teses positivistas, ver a seguinte obra de François RIGAUX, em que o autor trata dos mais variados problemas de interpretação e aplicação das leis típicos do século XX: RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio, São Paulo: Martins Fontes, 2000. 77 Para KELSEN a única possibilidade de se falar objetivamente em justiça seria equiparando justiça a legalidade: “Nesse sentido, a ‘justiça’ significa legalidade”, retirando-se a partir daí a regra formal da justiça, segundo a qual é “‘justo’ que uma regra geral seja aplicada em todos os casos em que, de acordo com seu conteúdo, esta regra deva ser aplicada. É ‘injusto’ que ela seja aplicada em um caso, mas não em outro caso similar. E isso parece ‘injusto’ sem levar em conta o valor da regra geral em si, sendo a aplicação desta o ponto em questão aqui. A justiça, no sentido de legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma ordem jurídica, mas com sua aplicação” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 20). Veja-se que o que se denomina igualdade na lei não significa outra coisa senão a aplicação da lei em conformidade consigo mesma, quer dizer, “...aplicação correta, qualquer que seja o conteúdo dessa lei. A igualdade na lei não é, pois, igualdade, senão conformidade à norma” (ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 57). Essa interpretação do pensamento de KELSEN também é dada por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO: ”Com efeito, Kelsen bem demonstrou que a igualdade perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. O sentido relevante do princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria lei, vale dizer, entendida como limite para a lei. Por isso averbou o que segue: ‘Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis — em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas.’ (Teoria Pura do Direito, tradução francesa da 2a edição alemã, por Ch. Einsenmann, Paris, Dalloz, 1962, p.190)” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, nota 2, p. 10).

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latência:78 as relações entre moral e direito, e o

comprometimento deste com a realização da justiça.

A saída daquele estado de latência provoca uma

efervescência no debate jurídico, dando fôlego ao

ressurgimento de algumas formas de jusnaturalismo79, exigindo a

formulação de alguns conceitos por aqueles que se mantiveram

no positivismo80, permitindo, enfim, o surgimento de novas

78 Não se pode afirmar, no entanto, que essas preocupações haviam se extinguido durante a primeira metade do século XX. No Brasil, por exemplo, mesmo na época de maior esplendor da teoria pura do direito, Miguel REALE não admitia o que chamou de divórcio entre direito e justiça: ”...não, a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro ‘Fundamentos do Direito’ eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor” (REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito, p. 118-119). 79 Como, por exemplo, a nova postura de RADBRUCH, anteriormente citada; ou a retomada do pensamento patrístico segundo o qual uma lei injusta não é lei: “non videtur esse lex quae non fuerit” — Santo AGOSTINHO I, De Libero Arbitrio, 5; Santo TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, Qual, XCX, ARTS. 2, 4, citados por HART, Herbert. O conceito de direito, nota 1, p. 12), cuja aplicação se faz sentir, por exemplo, em algumas teorias de uso alternativo do direito. Ainda quanto a esse renascimento do direito natural, vale mencionar a seguinte constatação de Alf ROSS: “...não é de se surpreender que o direito natural tenha voltado a prosperar em princípios do século XX e que tenha, desde então, se expandido em tal medida que é comum falar-se de um renascimento do direito natural. Os abalos tremendos da política e da economia que caracterizam este século [século XX] têm fomentado a ânsia de descobrir algo absoluto num mundo em dissolução e mergulhado no caos” (ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 296). 80 Norberto BOBBIO e Herbert HART são bons exemplos de autores que podem aqui ser enquadrados. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem em que BOBBIO admite ao intérprete a possibilidade de considerar o valor do justo, em alguns casos, quando da aplicação da norma: “A jurisprudência, por outro lado, enquanto coloca como objeto próprio proposições normativas já dadas (resultado elas mesmas de um estudo empírico precedente que o jurista deve respeitar até o limite do absurdo manifesto ou da injustiça escandalosa), consta exclusivamente da parte crítica própria de todo sistema científico, quer dizer, da construção de uma linguagem rigorosa com fins de plena comunicabilidade das experiências fixadas de antemão” (BOBBIO, Norberto. El

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propostas81 que têm demonstrado, mais do que nunca, a

importância do debate filosófico na atualidade, debate este

que não é e não pode ser meramente acadêmico no sentido

pejorativo do termo, mas que está comprometido a encontrar

soluções — ou pelo menos a questionar com a radicalidade

própria da filosofia os modelos jurídicos postos — para que o

direito possa se aproximar da justiça.

objeto de la jurisprudencia y la jurisprudencia como análisis del lenguaje. In Contribuición a la Teoría del Derecho, p. 181-184). 81 Como, por exemplo, o que se tem denominado por alguns como o pós-positivismo de DWORKIN; o agir comunicativo de HABERMAS; a nova retórica de PERELMAN.

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2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX

No item anterior foi mencionada a tentativa

frustrada de separação entre direito e moral. A escolha pela

apresentação da teoria de KELSEN no início deste capítulo — ao

invés de seguir uma ordem cronológica das várias teorias que

serão mencionadas — está longe de ser casual.

A opção se deve ao fato de considerarmos a

teoria de KELSEN como sendo um marco (um ponto obrigatório de

referência) no pensamento jurídico ocidental, para onde

convergem tanto os jusnaturalismos quanto os positivismos que

o precederam e de onde partem as novas propostas, pois ainda

que estas lhe sejam totalmente opostas, o mesmo não pode ser,

e nem tem sido, negligenciado.

Do ponto de vista kelseniano, direito e moral

pertencem a dois sistemas normativos distintos, separação essa

que já está presente na obra de Immanuel KANT. Com efeito,

para KANT a legalidade se constitui pela simples conformidade

da ação com a legislação externa. É dentro dessa definição de

legalidade que se fundamenta o direito. Este se refere ao

mundo dos deveres externos, impostos por uma legislação

jurídica, em que não se exige que a idéia interna do dever

(moral) seja o motivo determinante da vontade. O direito

considera as relações externas de uma pessoa no que diz

respeito aos efeitos que venham a causar no mundo exterior

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(jurídico). É o conjunto de condições nas quais a vontade de

um concorda com a de outro segundo uma lei de liberdade. Daí

extrai-se o princípio geral de direito, a saber: “Aja de tal

modo que o livre exercício do teu arbítrio possa estar em

conformidade com a liberdade de todos segundo uma lei

universal”.82 Então, toda ação que não é um obstáculo ao acordo

do arbítrio de todos com a liberdade de todos segundo uma lei

universal é considerada justa.

Assim, o direito surge como “...o conjunto das

condições através das quais o arbítrio de um pode concordar

com o arbítrio de outrem, segundo uma lei universal de

liberdade”, em que é “...considerada justa toda a ação que por

si (...) não é um obstáculo à conformidade da liberdade do

arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis

universais”.83

A coação é uma característica inseparável do

direito, devendo eliminar a resistência e o obstáculo opostos

à liberdade de todos. Por isso a coação é necessária, pois

estabelece o acordo das liberdades segundo a lei universal.

Enquanto a moral é uma coação interna ao

indivíduo (a moral é autônoma), o direito encontra-se na

legalidade exterior das ações com a força coativa da lei (o

82 KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de las costumbres, p. 72.

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direito é heterônomo). Trata-se da regulamentação coativa das

liberdades externas a fim de assegurar a ordem social, sem

qualquer intenção moral, pois o direito deve estar separado

desta (que diz respeito aos deveres internos). O direito puro

se obtém do mundo exterior, assim como a moral pura se obtém

do foro íntimo:

“ Numa acepção puramente kantiana, a heteronomia só pode ser determinada pela oposição à noção de autonomia, qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma. A vontade jurídica é heterônoma porque busca a lei que deve determiná-la num outro lugar: na vontade anônima dos costumes ou na vontade institucionalizada dos órgãos estatais. No âmbito legal obedecemos a regras que foram postas por outros ou pela sociedade, ou seja, não é pelo conteúdo que o Direito se distingue da moral, mas pela maneira de se tornar obrigatório. É pela diversidade da legislação que une um e outro impulso à lei, que determinamos se estamos no âmbito da legalidade ou da moralidade. O Direito como liberdade externa gera a responsabilidade frente aos outros, que podem exigir de nós o cumprimento das obrigações.”84

Como conseqüência dessa concepção de direito

puro teremos o positivismo jurídico, que é uma convenção de

direito fundada na força e não na consciência ética.

O direito pode ser subdividido em direito

natural e direito positivo (adquirido), donde o primeiro é

inato a cada indivíduo e o segundo provém da vontade do

legislador. Para KANT o único direito natural é a liberdade,

83 ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 32-33. 84 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha. O significado perdido da função de julgar, p. 31-32.

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que tem seus limites até o ponto de interferir na liberdade

dos outros (deve-se entender a liberdade como gênero que

engloba a igualdade, a livre expressão das idéias, etc.).

Há no pensamento de KANT uma forte relação com

o pensamento de ROUSSEAU no que diz respeito à teoria do

contrato social.

O direito é entendido como o conjunto de leis

fornecido a um povo, exigida, para tanto, uma promulgação para

que se produza um estado jurídico. Essa promulgação nasce do

seguinte postulado: Tu deves sair do estado de natureza para,

juntamente com todos os outros e dentro de relações de

coexistência necessária, entrar em um estado de direito, quer

dizer, numa justiça distributiva (com efeito erga omnes).

O homem deve sair do estado de natureza (em que

reina a violência) a fim de constituir o estado civil, ou

seja, o estado de direito em que todos os homens abdicam de

parte de suas liberdades para submeterem-se a uma imposição

exterior publicamente decretada. É nesse contexto que nasce a

sociedade civil, formalmente constituída em um Estado de

Direito.

Assim como ROUSSEAU, KANT aceita a constituição

da sociedade civil como o contrato primitivo segundo o qual

todos cedem sua liberdade exterior para recobrá-la novamente

como membros de uma república. “A simples consciência das

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vantagens que o estado acarreta estimula o ato de renúncia da

liberdade selvagem: o que se perde é logo compensado pela

aquisição da liberdade civil.”85

A partir desses pressupostos, KANT aceita a

distinção tripartida do poder elaborada por MONTESQUIEU;

porém, uma vez constituído o poder soberano em sua tríplice

forma, este deve ser irrepreensível, irresistível e sem

apelação. O povo deve obedecer sempre o poder estabelecido,

não podendo julgar ou contestar sua validade qualquer que seja

a sua origem (não revogando o seu mandato e nem resistindo

ativamente). Qualquer mudança na constituição pública, se

necessária, deve ser realizada pelo soberano e não pelo povo.

É justamente nesse ponto que KANT se afasta do

liberalismo político rousseauniano, ou seja, negando a

rebelião do povo contra o soberano e condenando as revoluções

inglesa e francesa (que processaram e executaram seus

soberanos, respectivamente). Deve existir uma obediência

incondicional às leis do Estado.

A ótica normativa que afirma que direito e

moral são sistemas distintos, a exemplo do pensamento kantiano

acima mencionado, permite o enquadramento das mais variadas

teorias jurídicas nas três seguintes posições: a) predomínio

85 GIANNOTTI, José Arthur. Kant e o espaço da história universal, p. 125.

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da moral sobre o direito86; b) prevalência do direito sobre a

moral87; e c) tentativas de buscar um suporte ao direito, por

fora do próprio ordenamento jurídico, sem ter que recorrer ao

direito natural.88

A concepção de PERELMAN divide as várias

escolas jurídicas, enquadrando-as em períodos distintos, de

forma semelhante à divisão acima:

“ Podemos distinguir, a este respeito, três grandes períodos, o da escola da exegese, que termina por volta de 1880, o segundo o da escola funcional e sociológica, que vai até 1945, e o terceiro, que, influenciado pelos excessos do regime nacional-socialista e pelo processo de Nuremberg, se caracteriza por uma concepção utópica do raciocínio judiciário.”89

O ponto de vista de PERELMAN, na síntese acima,

não enquadra o pensamento que defende o predomínio da moral

sobre o direito, em que podem ser incluídas várias doutrinas

de direito natural. No entanto cabe situar historicamente

algumas dessas doutrinas, já que foi justamente da ruptura com

elas e a conseqüente centralização do direito nas mãos de um

poder soberano, que faz do uso da força o seu monopólio, que

levou ao surgimento do positivismo jurídico contemporâneo.

86 Aqui podem ser inseridas as várias doutrinas de direito natural. 87 Aqui se enquadra o positivismo jurídico e seus desdobramentos, que acabaram por culminar no normativismo jurídico de Hans KELSEN. 88 Aqui têm sido enquadradas teorias como as de HABERMAS, DWORKIN e PERELMAN, se bem que o pensamento de DWORKIN pretende, em verdade, a busca de uma moral dentro, ou seja, imanente ao sistema, aspecto que o aproxima mais do positivismo. 89 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p.29.

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A prevalência da moral sobre o direito só é

possível em sociedades que comungam (ou pensam comungar

impondo essa comunhão) de ideais comuns sobre moral e direito,

como por exemplo a ordem da Idade Média, que era unificada

pela concepção religiosa cristã da vida. Trata-se aqui da

tradição escolástica do jusnaturalismo, que tem na tradição

patrística/escolástica desde SANTO AGOSTINHO até Santo TOMÁS

DE AQUINO seus principais formuladores.

O pensamento escolástico afirmava a existência

de uma ordem natural90 que está submetida à lei eterna que

dirige todos os seus movimentos, sendo que é a razão de Deus a

criadora dessa ordem natural. Ao homem, por ser uma criatura

racional, é dado participar da lei eterna, cujo conhecimento

lhe permite formular os princípios da lei natural.91

90 Aqui não uma ordem social deduzida da razão, mas sim uma ordem natural que a ela se impõe. 91 Alf ROSS demonstra a forma pela qual, segundo o pensamento escolástico sobretudo de Santo Tomás de AQUINO, era possível apreender as leis naturais: “Qual é, então, a lei que a razão seguirá a fim de guiar a vontade para o verdadeiro bem? Em sua perfeição é a lei eterna, idêntica à razão soberana de Deus, a sabedoria divina, que governa todos os seres criados, que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações. As leis restantes extraem sua força dessa lei. Porém, a lei eterna não pode ser captada em sua perfeição pelo ser humano. Na medida em que pode ser apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural (razão) chama-se direito natural. Mas isto não é o bastante para capacitar o ser humano a alcançar seu propósito divino. E, conseqüentemente, Deus, por revelação, concedeu ao ser humano, a título de orientação adicional, uma participação na lei eterna: tal é a lei divina (a lei mosaica e o Evangelho). Finalmente, há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles princípios básicos que estão expressos na lei divina e na lei natural” (ROSS, A. Obra citada, p. 285).

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Dada a concepção escolástica de que o homem tem

consciência da lei natural, direito natural é aquilo que é

justo. É por isso que para o jusnaturalismo escolástico

somente merece a denominação de lei aquilo que a razão

discerne como sendo o bem comum. Assim, as legislações

positivas, contanto que não contrariassem as leis naturais92,

eram tidas como perfeitamente legítimas. Portanto o direito

natural não tinha pretensões de substituir o direito positivo,

mas sim de limitar, quando fosse o caso, as conseqüências

injustas de sua aplicação.

Porém, com o advento do racionalismo nos

séculos XVII e XVIII, nasce a ambição de se elaborar um

sistema de direito justo, “...uma jurisprudência universal,

inteiramente fundada em princípios racionais, independentes em

sua formulação e em sua validade do meio, tanto social quanto

cultural, que os viu nascer e daquele que deveriam reger. Um

sistema assim é que deveria ser ensinado nas Faculdades de

Direito, na esperança de que aqueles a quem caberia elaborar e

92 Assim, admite-se a existência de uma legislação positiva fruto da vontade humana, desde que não se choque com a lei natural: lei injusta não é lei. Esta concepção é afinada com as idéias de ARISTÓTELES, para quem a “...justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente...” (ARISTÓTELES. Ética a nicômacos, p. 103). Porém os escolásticos já não admitiam que as leis postas pudessem ser indiferentes à lei natural, que neste momento passa a ter a primazia.

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promulgar as leis positivas se afastassem o menos possível do

modelo ideal que lhes era ensinado”.93

Houve, portanto, tentativas de laicizar o

direito natural, que passava a ser concebido como um sistema

de direito puramente racional:94

“ Daí resultava a pouca importância atribuída, no continente europeu, nas Faculdades de Direito do Antigo Regime, ao Direito positivo, que não passava, na melhor das hipóteses, de uma imitação imperfeita do direito ideal e que, como a sombra do Justo, na caverna de Platão, só podia ser uma pálida e imperfeita imitação da idéia da própria Justiça. A idéia de que o direito justo, da mesma forma que as leis da natureza, fosse apenas a expressão de uma razão universal, reflexo direto ou indireto (através da natureza criada) da razão divina, desenvolvera-se em duas tradições opostas, ambas de origem religiosa, a tradição racionalista e a tradição empirista. Fossem as leis naturais e aquelas que devem reger as relações entre os homens encontradas a priori ou a posteriori, graças às idéias evidentes ou graças à experiência, o papel dos homens deveria limitar-se a descobrí-las ou registrá-las, pois toda a

93 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 17. 94 Foi esse o ideal de GROTIUS, PUFENDORF, LEIBNIZ e CHRISTIAN WOLFF. Tal concepção vê a possibilidade de enunciar o direito a partir de um sistema dedutivo, sendo que em “...tal acepção diz-se que um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais (ditos ‘princípios gerais do Direito’), considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa acepção muito trabalhada do termo ‘sistema’ foi referida historicamente somente ao ordenamento do Direito natural. Uma das mais constantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, pertencentes à escola racionalista, foi a de construir o Direito natural como um sistema dedutivo. E uma vez que o exemplo clássico do sistema dedutivo era a geometria de Euclides, a pretensão dos jusnaturalistas resolvia-se na tentativa (verdadeiramente desesperada) de elaborar um sistema jurídico geometrico more demonstratum. Citemos um trecho muito significativo de Leibniz: ‘De qualquer definição podem-se tirar conseqüências seguras, empregando as incontestáveis regras da lógica. Isso é precisamente o que se faz construindo as ciências necessárias e demonstrativas, que não dependem dos fatos mas unicamente da razão, como a lógica, a metafísica, a geometria, a ciência do movimento, a Ciência do Direito, as quais não são de modo nenhum fundadas na experiência e nos fatos, mas servem para dar a razão dos fatos e regulá-los por antecipação: isso valeria para o Direito ainda que não houvesse no mundo uma só lei’. ‘A Teoria do Direito faz parte do número daquelas que não dependem de experiências, mas de definições: não do que mostram os sentidos, mas do que demonstra a razão” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 77-78).

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iniciativa humana neste terreno só pode levar ao erro e à arbitrariedade. Que a principal virtude do sábio cristão fosse a humildade, a submissão ao pensamento e à vontade divinos, essa é uma idéia sobre a qual insistem tanto Santo Agostinho quanto o chanceler Francis Bacon.”95

PERELMAN sustenta que contra esse ideal de

jurisprudência96 universal elaborada por várias gerações de

juristas se opuseram três teses, “...às quais estão ligados os

nomes de Hobbes, Montesquieu e Rousseau”97, a partir das quais

será desenvolvido o positivismo jurídico cuja característica é

o predomínio do direito sobre a moral. É justamente a partir

desses pensamentos que vão estar presentes as idéias

contratualistas e a teoria da soberania estatal, em que o

direito positivo deve sua obrigatoriedade à imposição do poder

do Estado e não à sua concordância com um direito supostamente

anterior, no caso o direito natural.

A doutrina política de Thomas HOBBES não

compactua com a idéia jusnaturalista de que pode ser derivada

da razão uma jurisprudência de caráter universal, pois para

esse autor “...o direito não é a expressão da razão mas uma

manifestação da vontade do Soberano”.98

95 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 17-18. 96 Jurisprudência entendida aqui no seu sentido primordial, ou seja, como ciência do direito. 97 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18. 98 PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem.

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Segundo BOBBIO a doutrina política de HOBBES

talvez seja a teoria mais completa e conseqüente do

positivismo jurídico.99 Para HOBBES, com efeito, não há outro

critério do justo ou do injusto senão a lei positiva, ou seja,

somente o que for ordenado pelo soberano é tido como justo,

pelo simples fato de ter sido ordenado; e só é injusto aquilo

que é proibido, só pelo fato de estar proibido.100

99 “Se quisermos encontrar uma teoria completa e conseqüente do positivismo jurídico, devemos nos remeter à doutrina política de THOMAS HOBBES, cuja característica fundamental, no meu entender, na verdade consiste em lhe ter dado um golpe fatal no jusnaturalismo clássico” (BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 31). 100 BOBBIO apresenta uma boa descrição dos passos que permitiram a HOBBES chegar a uma conclusão tão radical como a acima descrita, em que inclusive o conteúdo dos valores morais e da justiça são tidos como convencionais (portanto contingentes) e não pré-existentes ou decorrentes da razão (eternos e necessários), como sustentavam os jusnaturalistas: “Como chega HOBBES a esta conclusão tão radical? HOBBES é um dedutivo e, como todos os dedutivos, para ele o que conta é que a conclusão se desprenda rigorosamente das premissas. (...)

Ora, o direito fundamental que assiste aos homens no estado de natureza é o de decidir, cada um segundo seus próprios desejos e interesses, sobre o que é justo ou injusto, o que faz com que no estado de natureza não exista critério algum para fazer esta distinção, a não ser o arbítrio e o poder do indivíduo. Na passagem do estado de natureza para o estado civil, os indivíduos transferem todos os seus direitos naturais ao soberano, inclusive o direito de decidir o que é justo ou injusto e, portanto, desde o momento em que se constitui o estado civil, o único critério do justo e do injusto é a vontade do soberano. Esta doutrina hobbesiana está ligada à concepção da pura convencionalidade dos valores morais e portanto da justiça, segundo a qual não existe o justo por natureza, mas sim unicamente o justo de maneira convencional (também por este aspecto a doutrina hobbesiana é a antítese da doutrina jusnaturalista). No estado de natureza não existe o justo nem o injusto porque não existem convenções válidas. No estado civil o justo e o injusto residem no acordo comum dos indivíduos de atribuírem ao soberano o poder de decidir sobre o justo e o injusto. Portanto para HOBBES a validade de uma norma jurídica e de sua justiça não se diferenciam, porque a justiça e a injustiça nascem juntas com o direito positivo, ou seja, concomitantemente com a validade. Enquanto se permanece em estado de natureza não há direito válido, como tampouco há justiça; quando surge o Estado nasce a justiça, mas nasce concomitantemente com o direito positivo, por isso que onde não há direito tampouco há justiça e onde há justiça é porque há um sistema constituído de direito positivo” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 31-32).

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Essas conclusões decorrem da idéia de um estado

de natureza inicial, em que todos estariam a mercê de seus

próprios instintos, sem que houvessem leis prescrevendo os

direitos de cada um, o que implica dizer que todos teriam

direito a todas as coisas, decorrendo daí uma guerra de todos

contra todos. Do estado de natureza só se pode dizer que é

intolerável e que é preciso superá-lo:

“ Mas este estado de guerra de todos contra todos torna-se, com o passar do tempo, insuportável para seres humanos que, dispondo de forças mais ou menos equivalentes, jamais estarão seguros de que outro homem não será capaz de matá-los ou de escravizá-los. Para evitar os inconvenientes da guerra permanente, eles concordam em estabelecer um pacto, no qual decidem, ao mesmo tempo, criar um Estado e pôr suas forças reunidas à disposição do Soberano, encarregado de manter a paz entre os cidadãos e de protegê-los contra os ataques do exterior. Renunciam, conseqüentemente, a solucionar suas divergências pelas armas e aceitam conformar-se às leis que o Soberano estabelecerá e fará respeitar com todos os meios em seu poder.”101

Com efeito, a primeira lei da razão para HOBBES

é a que prescreve a busca pela paz (pax est quaerenda). Para

sair do estado de natureza de maneira definitiva e estável, os

homens pactuam entre si a renúncia recíproca dos direitos que

possuíam no estado de natureza e o cedem ao Soberano (pactum

sobiectionis), o que se dá através de:

“ ...um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de tranferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à

101 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18-19.

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multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.”102

O soberano, portanto, terá à sua disposição um

poder quase absoluto sobre os súditos, o que lhe permitirá a

elaboração das normas como melhor lhe aprouver, “...desde que

não atente sem razão válida contra a vida dos súditos, pois o

medo da morte é a própria razão do pacto social constitutivo

do Estado”.103

Outro autor já mencionado acima que atacou a

idéia de uma jurisprudência universal foi MONTESQUIEU.104

Apesar de ser contrário a idéia de jurisprudência universal,

“...não rejeita a idéia de uma justiça objetiva”105, conforme

se pode verificar da seguinte passagem contida no Livro

Primeiro de O Espírito da Leis:

“ Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não eram iguais.”106

Para MONTESQUIEU, caberia ao legislador a

tarefa de tornar positivas, promulgando-as, as relações de

justiça que cada um não poderia deixar de perceber não fossem

102 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 144. 103 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 19. 104 Charles Louis de Serondat, Barão de Bredo e de Montesquieu. 105 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 20.

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os interesses particulares suscetíveis de confundir tal

percepção.

Nessa perspectiva, nada seria mais danoso do

que a concentração de todos os poderes nas mãos de um só (como

sustenta HOBBES), “...pois haveria o risco de ele impor leis

que visassem essencialmente não a proclamar o que é justo, mas

a considerar como legal o que favorece seu próprio interesse,

o que lhe reforça o próprio poder”.107

Justamente para evitar tais abusos é que

MONTESQUIEU sustentará como ideal político a doutrina da

separação dos poderes. Mas o que interessa neste momento é o

fato de MONTESQUIEU não admitir a idéia de jurisprudência

universal.108

Outro traço característico desse pensamento — e

que muita influência causou nas escolas jurídicas futuras —

diz respeito à tarefa limitada dos aplicadores das normas,

pois quanto “...mais o governo se aproxima da república, tanto

mais rígida se torna a maneira de julgar”109, pois nos

106 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 3. 107 PEREMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21. 108 A inexistência de uma jurisprudência universal é constatada por MONTESQUIEU a partir das comparações que fez entre os sistemas normativos de vários povos, em que se revelaram imperfeições no trabalho do legislador, que deve se adaptar às sociedades em que atua. 109 MONTESQUIEU. Obra citada, p. 57.

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“...governos republicanos é da natureza da constituição que os

juízes observem literalmente a lei”110:

“ Quanto aos juízes, eles serão apenas ‘a boca que profere as palavras da lei; seres inanimados que não podem moderar-lhe nem a força nem o rigor’. Essa é a condição da segurança jurídica, pois, escreve ele [MONTESQUIEU], ‘se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que sejam sempre apenas um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente quais compromissos contraímos.”111

Essa forte sujeição dos juízes à literalidade

da lei é decorrência direta do princípio da separação dos

poderes, que impede a delegação do poder legislativo ao

executivo, “...que dele poderia aproveitar-se para contrariar

seus adversários”112, bem como tal delegação não pode ser

conferida ao judiciário, “...que, por ocasião dos litígios,

poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões

muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes”.113

O último dos três teóricos mencionados acima —

cuja doutrina também rompe com a idéia de estabelecimento de

uma jurisprudência universal — é Jean Jacques ROUSSEAU. Suas

idéias contidas no Contrato Social (1762), foram melhor

recebidas que as de HOBBES. Com efeito, embora inspirando-se

neste último autor, para quem o direito é apenas a expressão

110 MONTESQUIEU. Idem, ibidem. 111 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21-22. 112 PERELMAN, Chaïm. Idem, p. 21. 113 PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem.

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da vontade do soberano, com uma conseqüente redução da justiça

à força, ROUSSEAU assevera:

“ ... A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência. Em que sentido poderá representar um dever? Suponhamos, por um momento, esse pretenso direito. Afirmo que ele só redundará em inexplicável galimatias, pois, desde que a força faz o direito, o efeito toma lugar da causa — toda a força que sobrepujar a primeira, sucedê-la-á nesse direito. Desde que se pode desobedecer impunemente, torna-se legítimo fazê-lo e, visto que o mais forte tem sempre razão, basta somente agir de modo a ser o mais forte. Ora, que direito será esse, que perece quando cessa a força? Se se impõe obedecer pela força, não se tem necessidade de obedecer por dever, e, se não se for mais forçado a obedecer, já não se estará mais obrigado a fazê-lo.”114

Contrapondo-se à idéia de um direito

equivalente à força, ROUSSEAU não identificou o soberano com

um monarca todo-poderoso, mas com a nação, com a sociedade

política organizada, cuja vontade geral, oposta às vontades

particulares dos cidadãos, decide do justo e do injusto,

promulga leis do Estado e designa aqueles que, em conformidade

com estas leis, executarão as vontades da nação, administrarão

o Estado e distribuirão a justiça.

Portanto, quem detém o poder é a própria

sociedade civil, cujo exercício é soberano e exprime a vontade

do povo, não podendo esta ser limitada, desde que respeite uma

dupla condição: a) que não haja sociedade parcial dentro do

114 ROSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, p. 59-60.

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Estado e cada cidadão opine apenas por si próprio; e b) que

essa vontade não se reporte a interesses particulares, mas

seja movida pelo interesse geral: acordo admirável entre o

interesse e a justiça que dá às deliberações comuns um caráter

de eqüidade, que vemos desaparecer na discussão nas questões

particulares, na ausência de um interesse comum que una e

identifique a regra do juiz com a da parte115. Com essas

condições, a lei será a expressão da justiça.

Será justamente a partir da combinação das

teorias de HOBBES, MONTESQUIEU e ROUSSEAU, mencionadas acima,

que a Revolução Francesa “...chegará a identificar o direito

com o conjunto das leis, expressão da soberania nacional,

sendo reduzido ao mínimo o papel dos juízes, em virtude do

princípio da separação dos poderes. O poder de julgar será

apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares,

graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações

que poderiam deformar a vontade do legislador”.116

Cabe dizer ainda, e isso é importante, que essa

tarefa do aplicador da lei desde então tinha que ser motivada,

as decisões tomadas deveriam ser justificadas.

115 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Idem, p. 92. 116 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 23.

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É nesse contexto que vai surgir a escola da

exegese, em que “...a interpretação da lei passou a ser objeto

de estudos sistemáticos de notável finura, correspondentes a

uma atitude analítica perante os textos segundo certos

princípios e diretrizes...”117

Segundo Miguel REALE, portanto, sob “...o nome

‘Escola da Exegese’ entende-se aquele grande movimento que, no

transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de

maneira especial no Código Civil, já se encontra a

possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou

ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o

Direito. Dizia, por exemplo, Demolombe que a lei era tudo, de

tal modo que a função do jurista não consistia senão em

extrair e desenvolver o sentido pleno dos textos, para

apreender-lhes o significado, ordenar as conclusões parciais

e, afinal, atingir as grandes sistematizações.”118

Se a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão de 1789 já dava importantes indícios de que as

práticas sociais do Ancien Régime enfim chegaram ao ocaso, a

grande consagração dos princípios do liberalismo se deu mesmo

com o Código Civil Francês de 1804, que a partir da segunda

117 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 280. 118 REALE, Miguel. Idem, ibidem.

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edição (1807) passou a ser denominado Code Napoléon, em cujo

início estava estampada a célebre sentença:

“ Existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas; é a razão natural que governa a todos os homens.”119

A partir de então a atitude metodológica do

intérprete e aplicador do direito se limitava ao

estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da

lei, no caso a lei escrita a que o direito se viu reduzido,

conforme já confirmava o decano AUBRY, em 1857, “...em um

relatório oficial sobre o espírito do ensino da Faculdade de

Direito de Paris: ‘toda a lei, tanto no espírito quanto na

letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o mais

completo desenvolvimento das conseqüências que dela decorrem,

porém nada mais que a lei, tal foi a divisa dos professores do

Código de Napoleão’.”120

A lei positiva será, portanto, a fonte única e

exclusiva do direito, representando mesmo o direito natural,

eterno e imutável deduzido pela razão.

O positivismo de quase todo o século XIX tentou

fazer da ciência do direito e da interpretação uma tarefa

119 “Il existe un droit universel et inmuable, source de toutes les lois positives; il n’est que la raison naturalle en tant qu’elle gouverne tous les hommes” (citado por ROSS, A. Obra citada, p. 287). Ver também ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 27-28. 120 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 31.

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mecânica de hermenêutica exegética, já que o código não

deixaria nada ao arbítrio do intérprete, o qual não teria por

missão criar o direito, uma vez que todo o direito já estava

feito.

A lei era tida como a própria razão escrita, o

que tornou desnecessárias preocupações com o direito natural,

a justiça ou a moral, já que a lei já era o todo.

Mas logo começaram a surgir tensões entre a lei

escrita, por um lado, e a realidade em transformação, por

outro.121

As grandes transformações que se deram no

decorrer do século XIX, sobretudo nas relações entre capital e

trabalho, levaram a um desajuste entre a lei que havia sido

codificada no início daquele século e a vida com novas

tendências. Nesse contexto:

“ ... As pretensões de ‘plenitude legal’ da Escola de Exegese pareceram pretensiosas. A todo instante apareciam problemas de que os legisladores do Código Civil não haviam cogitado. Por mais que os intérpretes forcejassem em extrair dos textos uma solução para a vida, a vida sempre deixava um resto. Foi preciso, então, excogitar outras formas de adequação da lei à existência concreta.”122

121 “É preciso lembrar que, quando foi promulgado o Código de Napoleão, a França ainda era um país agrícola por excelência, e a Inglaterra apenas ensaiava os primeiros passos na mecanização indispensável ao capitalismo industrial” (REALE, Miguel. Obra citada, p. 283). 122 REALE, Miguel. Obra citada, p. 283.

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Nasce assim a denominada Escola Histórica e seu

método, que busca na consciência jurídica popular a única

verdade do direito positivo. Friedrich Carl Von SAVIGNY foi um

dos grandes teóricos dessa corrente, o qual sustentava que o

direito positivo emana do espírito geral que anima a todos os

membros de uma nação, onde cada direito é a síntese de forças,

crenças, sentimentos e atividades do seu povo: sua unidade não

é produto casual, pois responde à sua própria história.

A tese básica dessa nova corrente, que segundo

Alf ROSS é caracterizada por uma filosofia da história

romântico-conservadora, “...constitui em afirmar que o direito

não é criado conscientemente por deliberações racionais,

desenvolvendo-se, sim, de forma cega e orgânica como uma

expressão do espírito do povo e da consciência jurídica

popular. O costume, e não as leis, é, portanto, a fonte

suprema do direito”.123

Daí decorrem as propostas da Escola Histórica:

“ ...a repulsa à codificação, dada a consciência empírica de que codificar era, inevitavelmente, naufragar nas águas do racionalismo do Código de Napoleão; negação do direito natural, para evitar a submissão ao jusnaturalismo racionalista e sua pretendida universalidade e imutabilidade; exaltação do direito consuetudinário, a despeito do ideal positivista que aspirava plasmar na lei a razão escrita.”124

123 ROSS, A. Obra citada, p. 291. 124 ZANNONI, Eduardo A. Obra citada, p. 62.

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Buscava-se, portanto, construir um sistema da

razão que se realiza na história, a partir do que IHERING (que

militara na escola histórica de SAVIGNY antes de alterar seu

posicionamento), vai fundar a “...escola conhecida como a da

jurisprudência de conceitos que reduz o direito a categorias

racionais”125, a qual, a diferença do positivismo racionalista

exegético (submissão à lei escrita), constrói um sistema

conceitual (racional) a partir do direito positivo. “Para

ambos o direito positivo é um prius, mas enquanto o

positivismo explica a lei, o conceitualismo constrói os

conceitos jurídicos pretensamente universais a partir dela”.126

Para o conceitualismo a ciência jurídica é dogmática, sendo

que dogmática jurídica “...é lógica e tem por objetivo

integrar o material positivo a partir do qual opera — o

direito positivo — em conceitos jurídicos...”127 para depois

fixar os princípios gerais (dogmas) que formam as linhas

dominantes do conjunto.

Portanto, o conceitualismo pretende formular os

conceitos jurídicos universais: a propriedade, o contrato, o

vínculo obrigacional, o direito real; que são noções que se

obtêm mediante uma reflexão lógica, e por abstração, que vão

separando os elementos particulares dos gerais. Nessa

125 ZANNONI, E. A. Idem, p. 64. 126 ZANNONI, E. A. Idem, p. 65. 127 ZANNONI, E. A. Idem, ibidem.

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perspectiva, resulta que os conceitos jurídicos não estão

divorciados da realidade, vez que na verdade “...a realidade

constitui uma realização da razão: todo o real é racional e

todo o racional é real, como propunha HEGEL”.128

128 Cf. ZANNONI, E. A. Idem, p. 65-66. BOBBIO enquadra o conceitualismo — que, como visto, é fruto da escola histórica que tem em SAVIGNY um de seus maiores expoentes — num segundo significado de sistema, diverso do dedutivo anteriormente descrito: “Um segundo significado de sistema, que não tem nada a ver com o que foi ilustrado, encontramo-lo na ciência do Direito moderno, que nasce, pelo menos no Continente, da pandectista alemã, e vem de Savigny, que é o autor, não por acaso, do célebre Sistema do Direito romano atual. É muito freqüente entre os juristas a opinião de que a ciência jurídica moderna nasceu da passagem da jurisprudência exegética à jurisprudência sistemática ou, em outras palavras, que a jurisprudência se elevou ao nível de ciência tornando-se ‘sistemática’. Parece quase se querer dizer que a jurisprudência não merece o nome de ciência enquanto não chega a sistema, mas que é somente arte hermenêutica, técnica, comentário a textos legislativos. Muitos tratados de juristas são intitulados Sistema, evidentemente para indicar que se desenvolveu ali um estudo científico. O que significa nesta acepção ‘sistema’? Os juristas não pretendem certamente dizer que a jurisprudência sistemática consista na dedução de todo o Direito de alguns princípios gerais, como queria Leibniz. Aqui o termo ‘sistema’ é usado, ao contrário, para indicar um ordenamento da matéria, realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, e classificações ou divisões da matéria inteira: a conseqüência destas operações será o ordenamento do material jurídico do mesmo modo que as laboriosas classificações do zoólogo dão um ordenamento ao reino animal. Na expressão ‘jurisprudência sistemática’ usa-se a palavra ‘sistema’ não no sentido das ciências dedutivas, mas no das ciências empíricas ou naturais, isto é, como ordenamento desde baixo, do mesmo modo com que se fala de uma zoologia sistemática. O procedimento típico dessa forma de sistema não é a dedução, mas a classificação. A sua finalidade não é mais a de desenvolver analiticamente, mediante regras preestabelecidas, alguns postulados iniciais, mas a de reunir os dados fornecidos pela experiência, com base nas semelhanças, para formar conceitos sempre mais gerais até alcançar aqueles conceitos ‘generalíssimos’ que permitam unificar todo o material dado. Teremos plena consciência do significado de sistema como ordenamento desde baixo, próprio da jurisprudência sistemática, se levarmos em conta que uma das maiores conquistas de que se orgulha essa jurisprudência foi a teoria do negócio jurídico. O conceito de negócio jurídico é manifestamente o resultado de um esforço construtivo e sistemático no sentido do sistema empírico que ordena generalizando e classificando. Surgiu da reunião de fenômenos vários e talvez aparentemente distantes, mas que tinham em comum a característica de serem manifestações de vontades com conseqüências jurídicas. O conceito mais geral elaborado pela jurisprudência sistemática é muito provavelmente o do relacionamento jurídico: é um conceito que permite a redução de todos os fenômenos jurídicos a um esquema único, e favorece portanto a construção de um sistema no sentido de sistema empírico ou indutivo. O conceito de relacionamento jurídico é o conceito sistemático

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A escola da exegese e o conceitualismo, que

surgiram, respectivamente, em momentos sucessivos e que

tiveram lugar em praticamente todo o século XIX, constituem

autênticas etapas de consolidação do positivismo jurídico.129

Em ambas as correntes, é bom que se diga, “...o

intérprete sempre se situava no âmbito da lei, não se

admitindo interpretação criadora, à margem da lei ou a

despeito dela”.130

Mas então começa a surgir uma questão: o que

ocorre, porém, quando as possibilidades de integração do texto

por excelência da ciência jurídica moderna. Mas é claro que a sua função não é a de iniciar um processo de dedução, mas a de permitir um melhor ordenamento da matéria” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 78-79). 129 “O positivismo, na primeira etapa, recebeu do jusnaturalismo racionalista, radicalmente empirista, seu conteúdo filosófico. Politicamente implicou a institucionalização de uma nova ordem social que conjugou seus princípios e que pretendeu enquadrá-los, de uma vez por todas, na lei escrita. Daí a submissão à lei escrita que positivou os conteúdos racionais dessa nova ordem. O conceitualismo — a Begriffjurisprudenz, ou jurisprudência dos conceitos — é a segunda etapa construtiva e supõe a superação do racionalismo empirista. Não deprecia a lei, mas aspirou construir a autêntica superestrutura ideológico-jurídica do direito moderno. Essa superestrutura condiciona a interpretação da lei e faz do jurista um dogmático, que, conseqüentemente, apreende categorias obtidas mediante a simplificação qualitativa da construção jurídica” (ZANNONI, E. A. Obra citada, p. 67-68). Entendimento diverso é defendido por Alf ROSS, para quem essa complementaridade entre escola da exegese e conceitualismo não passa de jusnaturalismo disfarçado, já que, segundo ele, “...a idéia de que o direito natural se converteu em coisa do passado é errônea, a menos que restrinjamos esse conceito às teorias racionalistas dos séculos XVII e XVIII. Se incluirmos sob o rótulo de direito natural, como aqui fizemos, todas as teorias jurídicas metafísicas que são também político-jurídicas, quer dizer, que suprem um critério para a retidão ou justiça do direito, então o direito natural, ainda que com outro nome, sobreviveu e prosperou ao longo do século XIX; dever-se-ia chamá-lo, realmente, de direito natural disfarçado” (ROSS, A. Obra citada, p. 292). 130 REALE, M. Obra citada, p. 286.

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legal não comportam um atendimento a contento de novos fatos

emergentes?

Surgem então correntes jurídicas menos voltadas

às normas e seus sistemas, cuja atenção principal passou a ser

dada à questão dos fatos sociais, ao problema das lacunas do

direito, enfim, à questão da efetividade das normas.131

Tais correntes, de cunho predominantemente

sociológico (escolas de livre pesquisa do direito, do direito

livre, da livre indagação do direito, como passaram a ser

denominadas), passam a reduzir a dimensão do direito aos

fatos, de forma semelhante ao que a escola da exegese fizera

com o direito em relação à lei escrita.

Para os adeptos dessas correntes, “...o juiz é

como que legislador num pequenino domínio, o domínio do caso

concreto”132, porém aqui as leis não têm mais aquele caráter

perene, pois devendo se adaptar aos novos fatos sociais que

surgem, por vezes se tornam obsoletas diante da incapacidade

de atender novas demandas.

Daí a postura de KIRCHMANN, por exemplo, ao

afirmar — com um duro golpe contra o positivismo dos

131 O próprio IHERING, antes conceitualista, passou a ser um dos críticos mais ferrenhos daquela postura. 132 REALE, M. Obra citada, p. 291.

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conceitos, que “três palavras do legislador e bibliotecas

inteiras se convertem em papéis inúteis”.133

Das posturas sociológicas — em que predominam

as análises fáticas na interpretação das normas — certamente é

a crítica de Karl MARX aquela que mais gerou influências no

século XX, ainda que o objeto central da análise marxiana não

tenha sido propriamente o direito.

A postura sociológica vê no direito “...muito

mais a expressão de realidades sociais, econômicas e

políticas, do que como a expressão de uma vontade de dirigir e

orientar estas mesmas realidades”.134

Ainda segundo PERELMAN, a postura que reduz o

direito à sociologia, segundo a qual as regras de direito

decorrem de fenômenos naturais alheios à vontade dos homens,

traz como inconvenientes, dada a separação rígida entre

direito e fato, as excessivas concessões ao arbítrio do juiz,

além do desprezo da regra formal de justiça135, e, ainda, a

recusa de toda referência a juízos de valor.136

Os sociologismos não admitem, por exemplo, que

133 “Drei berichtigende Worte des Gesetzgelbers und ganze Bibliotheken werden zu Makulatur” (“três palavras corretoras do legislador e bibliotecas inteiras tornam-se maculatura”), citado por FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Obra citada, p. 151-152. 134 PERELMAN, C. Obra citada, p. 94. 135 Essa regra requer um tratamento igual para situações semelhantes. 136 Cf. PERELMAN, C. Obra citada, p. 94.

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a opção por normatizar este ou aquele comportamento está

revestido de um caráter voluntário, pois as opções são

determinadas de antemão por fatores sociais alheios à vontade

dos homens.

Assim, as valorações, inclusive aquelas

universalizadas no processo de criação de normas, estariam

dissociadas da vida cotidiana, entendida aqui como Lebenswelt

ou mundo da vida comum, de acordo com a filosofia de HUSSERL

que, conforme aduz Miguel REALE, é assim definida:

“ Por Lebenswelt, inspirando-me em Husserl, entendo o complexo das formas de ser, de pensar e de agir não categorizadas (isto é, não estadeadas em formas objetivas, como as das artes e das ciências) que condiciona, como consciência histórico-transcendental, a vida comunitária e a vigência de suas valorações, muitas delas devidas ao refluxo ou reflexo das formas objetivas no plano da vivência coletiva. Não se trata, note-se bem, de um estágio larvar ou incipiente destinado a evoluir para formas categorizadas superiores, mas sim de uma condição existencial constante, a qual varia incessantemente de conteúdo, mas nunca deixa de existir como o grande envolvente social, no qual acham-se imersos os indivíduos com suas obras e instituições.”137

Para HUSSERL, ao contrário dos sociologismos,

todo valor implica uma tomada de posição do espírito, levando

a uma nossa atitude positiva ou negativa que implicará a

“...noção de dever (...) e a razão legitimadora do ato”.138

Essa concepção Husserliana é sintetizada por Antonio PAIM da

seguinte forma:

“ A intencionalidade da consciência significa que

137 REALE, Miguel. O Direito como experiência, p. XXVII. 138 REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 543.

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conhecer é sempre conhecer algo. Não cabe, portanto, nenhum dualismo abstrato entre natureza e espírito, como se fossem duas instâncias em si conclusas, quando o estabelecimento da correlação transcendental sujeito-objeto impede se reduza a natureza ao espírito e vice-versa. Algo haverá sempre a ser convertido em objeto, alguma coisa haverá sempre além do que recebeu doação de sentido de parte do espírito. Nem se exaure em qualquer experiência particular o poder constitutivo de sínteses doadoras de sentido.”139

Para a filosofia de MARX, o ponto de vista

acima seria apenas uma construção mental que se limita a

interpretar a realidade sem no entanto ter a capacidade de

transformá-la, ou seja, o estado de dominação persistiria sem

alterações.

Neste sentido vale aqui a apropriação do mesmo

raciocínio utilizado por MARX na sua undécima crítica a

FEUERBACH: os críticos limitaram-se a interpretar o direito de

diferentes formas, mas o que interessa mesmo é dotá-lo de

instrumentos capazes de transformar a realidade.

Enquanto para FEUERBACH basta uma modificação e

correção no interior de nossa consciência para a eliminação do

erro provocado pela alienação, em que a libertação do homem

consistiria simplesmente na crítica da religião, MARX

demonstra que essa atitude se limita a interpretar o mundo de

um modo diferente, o qual continuaria a subsistir tal como é

na sua efetiva realidade.

MARX não abandona a observação empírica, ao

139 PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no brasil, p. 421-422.

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contrário, pretende exercê-la do modo mais rigoroso possível.

Daí distingue os homens dos animais, por serem aqueles

produtores dos seus meios de subsistência nos aspectos

materiais da vida e por ser esta social e não isolada.

Verifica também que as relações de produção exprimem-se de

modo mais perceptível nas relações de propriedade.

O conjunto das relações de produção constitui a

estrutura econômica de cada uma das diferentes sociedades,

sendo que a produção passa a ser considerada a essência do

homem e, exatamente por isso, a essência do homem é histórica.

A estrutura econômica da sociedade, que é

constituída pelas relações de produção, é a base real sobre a

qual é construída a superestrutura da consciência.140

O homem produz e transforma os próprios

pensamentos acerca do mundo e da história real relativamente

ao modo como, na sua atividade prática, transforma o mundo.

Daí a ideologia, que está inserida na moral, na religião, na

metafísica, na filosofia, no direito, na política e em todas

as superestruturas em geral.

O cerne da questão não está na forma,

equivocada ou não, de interpretar as coisas, mas na capacidade

de transformar a realidade.

140 Para MARX, não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência.

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Para MARX, que pretendia fazer ver que as

concepções de mundo existentes eram determinadas pelo conjunto

das relações de produção material, a crítica deveria ser

transformadora, pois a mesma “...não arranca as flores

imaginárias dos grilhões para que o homem não suporte os

grilhões sem fantasias e consolo, mas para que se livre delas

e possam brotar as flores vivas. Não podereis superar a

filosofia sem realizá-la”.141

A interpretação jurídica surgida a partir do

iluminismo teria contribuído para que a história do direito se

confundisse com a história da dominação e, por isso mesmo,

teria estado distante do ideal de justiça.142 Vale dizer que,

em virtude disso, as ideologias teriam sido bem sucedidas ao

incutirem na sociedade que a realização do direito implica a

realização da justiça. Assim a dominação se justifica. Neste

sentido, veja-se o que diz Marilena CHAUI:

“ A divisão social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia. Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento

141 MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de hegel, p. 78. 142 Aqui não se trata de justiça formal, mas material.

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do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como ‘Estado de direito’. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado — ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito — ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos.”143

Com efeito, o direito, como instrumento de

dominação que é, tem sido posto como um ente desprendido da

realidade, sagrado, o qual deveria ser respeitado cegamente e

sem a possibilidade de mudanças.

Quando uma sociedade admite como corretas as

normas vigentes, as quais são invariavelmente mantenedoras do

estado de dominação de uns poucos sobre muitos, tem-se que o

controle social exercido sobre essa sociedade é eficaz, a

ponto de as contradições existentes serem ocultadas, de modo

bem sucedido, pela ideologia que teoricamente justifica a

143 CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia, p. 90-91. Posição semelhante já era adotada pelos sofistas que, segundo noticia Alf ROSS, entendiam que as “...leis humanas são a corporificação do poder arbitrário dos governantes. Todo governante produz leis que lhe são proveitosas e chama de justo aquilo que serve aos seus próprios interesses. A doutrina da justiça imanente às leis não passa de uma capa astuciosa que encobre o predomínio da força” (ROSS, A. Obra citada, p. 275).

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dominação.

E, por controle social deve-se entender o

conjunto de meios de intervenção, quer positivos quer

negativos, acionados em cada sociedade ou grupo social a fim

de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que

a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos

contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de

conformação, também em relação a uma mudança do sistema

normativo.

Com efeito, enquanto os homens forem incapazes

de resolver as contradições existentes na prática, tenderão a

projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em

soluções puramente intelectuais que ocultam efetivamente a

existência e o caráter dessas contradições. “Não é a

consciência que determina a vida, mas a vida que determina a

consciência”144, ou melhor, não é a consciência dos homens que

determina a sua existência social, mas esta é que determina a

consciência do modo como concebem a realidade. A consciência e

o pensar são produzidos pelas interpretações dadas pelo

processo histórico. Não é o pensar que determina o processo

histórico, mas este é que determina o pensar.

Os homens são produtores dos seus meios de

subsistência nos aspectos materiais da vida, por isso não

144 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, p. 193.

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estão isolados e interagem socialmente. Em todas as sociedades

o conjunto das relações de produção constitui a sua estrutura

econômica. As condições de subsistência são determinadas pelo

modo como o homem produz seus meios de vida que, por sua vez,

condicionam a produção intelectual.

Porém, em determinado momento histórico os

meios de subsistência passaram a ser controlados por alguns,

sendo que os demais foram alienados do processo produtivo à

medida em que foram dissociados do produto de seu trabalho, o

qual passou a pertencer à classe dominante. Dessa contradição

surge a propriedade privada dos meios de produção, a qual é a

base da dominação de uma classe sobre outra.

No plano intelectual, essa contradição é

ocultada pela ideologia e sustentada pelas superestruturas,

dentre as quais o direito. Essa uma breve descrição do

pensamento de MARX, em que se vê claramente uma forma de

sociologismo, eis que os fatos sociais, e somente eles, é que

importam para a compreensão do fenômeno jurídico.

Enfim, ao positivismo jurídico que tentava se

consolidar no século XIX foram contrapostas críticas dos mais

diversos matizes. O efeito disso foi o de o século XX ter

recebido como herança as mais variadas teorias jurídicas, as

quais estavam fortemente impregnadas de ingredientes

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políticos, religiosos e morais145, fruto da incessante

tentativa de se atingir a justiça através do direito. Ademais

disso, o relativismo cético finalmente estava se sobrepondo ao

longo reinado das metafísicas, conforme visto no capítulo 1.

145 “...um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 1).

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2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico

A sobreposição do relativismo cético às

filosofias absolutistas se fez sentir sobremaneira no

positivismo jurídico que iria se formar no século XX. Tal

circunstância, no entanto, não influenciou somente os

positivistas.

Com efeito, quanto ao ceticismo gnoseológico, é

importante salientar que o mesmo também foi um dos grandes

responsáveis pelo surgimento de outra escola: a do realismo

jurídico que teve lugar nos Estados Unidos da América.

Segundo BOBBIO, o “...pai intelectual das

correntes realistas modernas é um grande jurista, por muitos

anos juiz da Suprema Corte, OLIVER WENDELL HOLMES, que foi o

primeiro, precisamente no exercício das suas funções de juiz,

a desclassificar o tradicionalismo jurídico das cortes, e a

introduzir uma interpretação evolutiva do direito, quer dizer,

mais sensível às mudanças da consciência social”.146

Em 08 de janeiro de 1897, HOLMES fez uma

conferência, intitulada The Path of the Law, junto à Escola de

Direito da Universidade de Boston, cuja repercussão provocou

uma profunda renovação dos estudos jurídicos nos Estado Unidos

da América.

146 BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 36.

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O novo enfoque acerca dos fenômenos jurídicos

proposto por HOLMES é o de adotar o ponto de vista do bad man

ao meditar sobre as conseqüências prováveis de uma determinada

conduta. Para o bad man o importante é saber se a ação

programada ocasionará a reação positiva de um órgão do Estado.

A predição dessa reação é o direito:

“ No famoso artigo ‘The Path of the Law’, ele [HOLMES] explica: ‘As pessoas querem saber sob que circunstâncias e até que ponto correrão o risco de ir contra o que é tão mais forte que elas mesmas, e, portanto, torna-se um objetivo descobrir quando esse perigo deve ser temido. O objeto de nosso estudo, então, é previsão, a previsão da incidência da força pública através do instrumento dos tribunais.’ Assim, a sua definição de Direito, que é verdadeiramente uma definição da ciência do Direito, é: ‘As profecias do que os tribunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso, são o que quero designar como Direito.’ Em conformidade com essa visão, ele define os conceitos de dever e Direito do seguinte modo: ‘Os direitos e deveres primários com os quais se ocupa a jurisprudência, novamente, nada mais são que profecias.’ ‘Um dever jurídico propriamente dito nada mais é que uma previsão do que, se um homem fizer ou se abstiver de certas coisas, ele terá de sofrer, dessa ou daquela maneira, por meio do tribunal; e um direito jurídico pode ser definido de modo semelhante.’ ‘O dever de manter um contrato no Direito comum significa uma previsão de que você terá de pagar os danos caso não o mantenha, e nada mais’.”147

Se o direito só é a predição da provável

conduta judicial frente a um determinado curso de conduta, em

que dados se apoiariam os advogados para efetuarem suas

predições?

147 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 241.

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HOLMES considera que os advogados encontram as

respostas às dúvidas do futuro nos repertórios judiciais, nos

repositórios das sentenças proferidas no passado por outros

juízes. O comportamento dos juízes no passado permite predizer

qual será seu comportamento no futuro, de modo que as coleções

jurisprudenciais seriam oráculos do direito.

Mas HOLMES não pára por aí. Acredita que as

considerações verbais efetuadas pelos juízes ao ditar suas

sentenças e dar razão às mesmas não correspondem habitualmente

às motivações reais, aos verdadeiros fatores que determinaram

seu ânimo em uma determinada direção. Tais razões

permaneceriam ocultas.

Assim se inicia a etapa da jurisprudência

sociológica e o realismo jurídico norte-americano.

A partir das considerações feitas por HOLMES,

em especial quanto as razões ocultas nas decisões judiciais, o

realismo norte-americano assume, com Jerome FRANK, a sua forma

mais radical:

“ ...a escola realista, cujo principal impulsionador foi JEROME FRANK, foi bem mais adiante dos princípios que podem ser deduzidos de HOLMES e POUND. A tese principal da escola realista é esta: não existe direito objetivo, no sentido de objetivamente dedutível de fatos reais, oferecidos pelo costume, pela lei ou pelos antecedentes judiciais; o direito é uma permanente criação do juiz no momento em que decide uma controvérsia. Assim se derruba o princípio tradicional da certeza do direito; pois qual pode ser a possibilidade de prever as conseqüências de um comportamento? — e nisto consiste a certeza — se o direito é uma permanente criação do juiz? Para FRANK,

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com efeito, a certeza, um dos pilares dos ordenamentos jurídicos continentais, é um mito derivado de uma espécie de aceitação infantil frente ao princípio de autoridade (esta tese foi sustentada em um livro escrito em 1930, Law and Modern Mind): um mito que deve acabar para levantar sobre suas ruínas o direito como criação permanente e imprevisível.”148

FRANK entende que as sentenças judiciais são

desenvolvidas retrospectivamente a partir de conclusões

previamente formuladas149; que não se pode aceitar a tese que

representa o juiz “...aplicando leis e princípios aos fatos,

isto é, tomando alguma regra ou princípio (...) como premissa

maior, empregando os fatos do caso como premissa menor e então

chegando à sua resolução mediante processos de puro

raciocínio”150; e que, definitivamente, as “decisões estão

baseadas nos impulsos do juiz”151, o qual extrai esses impulsos

fundamentalmente não das leis e dos princípios gerais de

direito, mas sobretudo de fatores individuais que todavia são

“...mais importantes do que qualquer coisa que pudesse ser

descrita como pré-juízos políticos, econômicos, ou morais”.152

Para FRANK foi:

“ ...o resultado dessas falibilidades o que induziu a Learned Hand, o mais sábio dos nossos juízes, a afirmar, depois de muitos anos de atuação como juiz de primeira instância: ‘Devo dizer que se eu fosse um litigante

148 BOBBIO, N. Obra citada, p. 36. 149 Cf. FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 109. 150 FRANK, J. Idem, p. 111. 151 FRANK, J. Idem, p. 112. 152 FRANK, J. Idem, p. 114.

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temeria a um pleito além de todas as demais coisas, salvo a enfermidade e a morte.”153

Resta abordar ainda um problema levantado pela

obra de Jerome FRANK que, apesar de sua importância, não tem

recebido a devida atenção pelos juristas.

Para FRANK os problemas de interpretação de

normas, de se saber quais delas são ou não válidas, de como se

resolvem eventuais incompatibilidades entre elas, enfim, os

problemas dogmáticos de que se ocupam os tribunais superiores

(que não se prendem às questões de fato) e a maioria dos

juristas, são os que na verdade menos importam.

153 FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 27. DWORKIN, que é um cruel opositor do realismo jurídico, inicia sua obra Law’s Empire retomando os dizeres de LEARNED HAND: “Learned Hand, que foi um dos melhores e mais famosos juízes dos Estados Unidos, dizia ter mais medo de um processo judicial que da morte ou dos impostos. Os processos criminais são os mais temidos de todos, e também os mais fascinantes para o público. Mas os processos civis, nos quais uma pessoa pede que outra a indenize ou ampare por causa de algum dano causado no passado ou ameaça de dano, têm às vezes conseqüências muito mais amplas que a maioria dos processos criminais. A diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo juiz no dia seguinte. As pessoas freqüentemente se vêem na iminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo.

Os processos judiciais são importantes em outro aspecto que não pode ser avaliado em termos de dinheiro, nem mesmo de liberdade. Há, inevitavelmente, uma dimensão moral associada a um processo judicial legal e, portanto, um risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça pública. Um juiz deve decidir não simplesmente quem vai ter o quê, mas quem agiu bem, quem cumpriu com suas responsabilidades de cidadão, e quem, de propósito, por cobiça ou insensibilidade, ignorou suas próprias responsabilidades para com os outros, ou exagerou as responsabilidades dos outros para consigo mesmo. Se esse julgamento for injusto, então a comunidade terá infligido um dano moral a um de seus membros por tê-lo estigmatizado, em certo grau ou medida, como fora-da-lei. O dano é mais grave quando se condena um inocente por um crime, mas já é bastante considerável quando um queixoso com uma alegação bem fundamentada não é ouvido pelo tribunal, ou quando um réu dele sai com um estigma imerecido” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 3-4).

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Com efeito, FRANK pouco se preocupou com as

questões normativas vinculadas com as suas interpretações, ou

com a criação de novas normas quando assim exigia a novidade

do caso ou a inexistência de adequados critérios normativos

anteriores. Estas matérias, segundo ele, só ocupam uma parte

mínima da atividade judicial. Concentram a atenção dos

tribunais superiores, dedicados a decidir questões de direito,

quer dizer, a dirimir as disputas dos advogados acerca do

alcance das normas em relação a um caso concreto. Mas a

verdade é que os litígios, em sua grande maioria, não surgem

porque as partes não estão de acordo quanto ao significado das

normas. Eles têm sua origem em divergências acerca dos fatos:

“ Habitualmente, ambas as partes concedem que, se ocorrido o fato ‘A’, deve ser aplicada a norma ‘alfa’, que imputa como devida a conseqüência ‘beta’. Elas não estão de acordo é no que se refere ao acontecimento do fato ‘A’. Uma parte o afirma. A outra o nega. A sorte do litígio gira, portanto, ao redor da prova do fato discutido. Se se acreditar naquilo que pretende o autor, resultará a aplicação da norma ‘alfa’ e ele terá direito a perceber a prestação ‘beta’. Em caso contrário, é o demandado que se verá beneficiado, pois se declarará improcedente a pretensão dos autos. Como se vê, não estava em jogo a aplicabilidade ou o alcance da norma ‘alfa’. Estava em questão, ao contrário, a realidade do fato ‘A’, de cuja prova dependia a aplicabilidade da norma ‘alfa’.”154

Daí a preocupação de FRANK com as questões de

prova. Dedicando-se ao exame dos meios judiciais de prova dos

fatos, teve particularmente em conta as modalidades dos juízos

154 FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 12.

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cíveis e criminais nos Estados Unidos. A instituição do júri

impôs um caráter oral à sustentação e recepção da prova.

Assim, os peritos são testemunhas, especialmente qualificadas,

que depõem ante o juiz e o júri. Os documentos e demais peças

probatórias, como coisas e peças materiais, devem ser exibidos

em audiência para que sejam vistas, e ainda ouvidas, conforme

o caso, tanto pelo juiz quanto pelos integrantes do júri. O

juiz e os membros do júri vêm a ser, por sua vez, testemunhas

do que acontece em audiência. Decidirão sobre os fatos em

função da atenção que prestam aos diversos testemunhos e às

exibições de objetos na sala de audiências do tribunal, e à

credibilidade que atribuem aos diversos meios probatórios

utilizados pelas partes.

Na prova dos fatos, pois, estaríamos ante a uma

dupla série de testemunhos: os trazidos pelas partes e os

testemunhos dos testemunhos, quer dizer, os juízes e os

jurados. Esta dupla série testemunhal, segundo FRANK, está

longe de garantir objetividade e previsibilidade na fixação

dos fatos do caso.

Essa falta de objetividade, para FRANK, é a

origem de grande parte dos erros judiciais:

“ Quando, faz uns vinte anos, um promotor disse, muito seguro, que os homens inocentes nunca eram condenados como criminosos, Borchard replicou, em 1932, com a publicação de seu grande livro Convicting the Innocent, em que revelou que muitos homens foram ao cárcere por delitos que não haviam cometido, devido ao fato de que os tribunais de primeira instância [trial

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courts] haviam incorrido em erros na apreciação dos fatos. Como tais erros se devem a defeitos judiciais na determinação dos fatos — defeitos presentes tanto em litígios civis quanto penais — resulta que os homens não só perdem sua liberdade como também amiúde sua propriedade, seus bens, seu trabalho ou sua reputação por causa de sentenças fundadas em presunção judicial de fatos que nunca tenham ocorrido realmente. Há aqui um problema moral de primeira magnitude. O problema existe por essas razões: a decisão de um pleito, sabe-se, requer a subsunção de uma norma jurídica aos fatos do caso. Na maioria dos juízos os litigantes disputam somente sobre fatos como, por exemplo, se em certo dia Gross fez uma promessa a Gentle, ou se Tit golpeou a Tat. Como, no momento de se produzirem as provas, estes são fatos passados, o tribunal de primeira instância — um juiz (em um caso sem júri) ou um júri — não pode observá-los. Tudo o que o juiz e o júri podem fazer é formar uma convicção sobre esses casos passados. Essa crença se forma depois de ouvidas as declarações das testemunhas que haviam observado (ou pretendem ter observado) esses acontecimentos. Na maioria dos pleitos, as testemunhas declaram em audiência pública e suas declarações são discrepantes. Os fatos, para os fins da sentença, não são necessariamente os fatos reais. Eles são, no melhor dos casos, as convicções do juiz de primeira instância ou do júri sobre esses fatos reais passados. Para os fins práticos da sentença de um tribunal não importa quais foram os fatos reais. O que importa é esta crença. Ela é, em síntese, uma conjetura fundada em uma crença — outra conjetura — sobre o maior grau de fé que merecem uns testemunhos em relação a outros. Não há segurança alguma de que essa crença do juiz ou do júri — que, repetimos, é tudo o quanto judicialmente constitui os fatos do caso — seja igual ou sequer se aproxime dos acontecimentos reais passados, devido ao seguinte: 1) o testemunho é notoriamente falível: as testemunhas mentem às vezes e, ainda, as testemunhas honestas erram com freqüência, a) ao observar os acontecimentos, b) ao recordar suas observações e c) ao transmitir estas lembranças na sala do júri; 2) os juízes e os júris são falíveis ao determinar (conjeturando) qual (se alguma) das testemunhas discrepantes relatou fielmente os fatos reais. Estas falibilidades causam os dramáticos erros descritos por Borchard, e também os que abordamos sobre os pleitos civis.”155

155 FRANK, J. Idem, p. 25-27.

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A partir de tais considerações FRANK invoca

sete grandes razões em virtude das quais a comprovação dos

fatos é problemática: a) as testemunhas não raciocinam

uniformemente ante os fatos passados objeto de seu testemunho;

b) habitualmente as testemunhas dão ao tribunal versões

contraditórias sobre esses acontecimentos; c) os fatos de um

caso são declarados tais pelos juízes de primeira instância ou

pelo júri, em função da credibilidade que concedem a alguns

testemunhos e que negam a outros; d) há pouca uniformidade na

formação dessas crenças de juízes ou júris; e) essas crenças

determinam a sorte da maioria dos litigantes porque: quando se

apela das decisões, os tribunais superiores aceitam usualmente

as crenças dos tribunais de primeira instância; f) essas

crenças são, amiúde, as crenças dos juízes e dos júris, pois

as convicções reais permanecem ocultas sob a intuição integral

e indiferenciada dos diversos testemunhos produzidos ante os

juízes e os júris; e g) por último, as sentenças não enunciam

explicitamente em seu corpo, ou seja, a ninguém é dado

conhecer, as crenças, reais ou aparentes, que determinaram a

decisão. Isso coloca o tribunal na completa tarefa de

adivinhar as razões pelas quais os juízes e os júris deram

credibilidade a alguns testemunhos e a negaram a outros. Disso

decorre sua renúncia em revisar os fatos declarados pelo

tribunal inferior, limitando-se a efetuar um exame do direito

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aplicável aos fatos do caso, declarados tais pelo juízo de

primeiro grau.

Daí FRANK conclui que o juízo verdadeiramente

importante é o dos fatos, o juízo de primeira instância e não

o de direito, o tribunal de segunda instância.

Apesar da insistência de FRANK na necessidade

de que a teoria do direito considere não só o que ocorre nos

tribunais de apelação, mas principalmente o que acontece nos

juízos de primeira instância, posto que são estes últimos que

vão determinar os fatos do caso mediante a recepção e

valoração das provas produzidas, esse problema, que não parece

ter nada de trivial, não tem sido objeto de preocupação dos

pensadores do direito, incluídos aí os representantes do

positivismo jurídico atual, tais como KELSEN, BOBBIO e HART; o

pensamento de DWORKIN156; a nova retórica de PERELMAN que

receberá uma análise especial no decorrer deste trabalho; o

próprio HABERMAS; enfim, pode-se dizer que essa é uma questão

que, apesar de ter sido levantada, permanece em aberto no

âmbito do pensamento jurídico.

156 Que inclusive é um dos maiores críticos do realismo.

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2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas

Voltando ao positivismo jurídico, que chega ao

século XX quase que desfigurado, coube a KELSEN a tarefa de

purificar o objeto da ciência do direito de tudo aquilo que a

ela fosse considerado estranho, pois uma “...das tarefas mais

importantes de uma teoria geral do Direito é determinar a

realidade específica do seu objeto”.157

Daí por que os seus esforços para a separação

de direito e moral já referida no início deste capítulo. O

positivismo de Hans KELSEN, segundo PERELMAN:

“ ...apresenta o direito como um sistema hierarquizado de normas, que difere de um sistema puramente formal pelo fato de a norma inferior não ser deduzida da norma superior mediante transformações puramente formais, como na lógica ou nas matemáticas, mas mediante a determinação das condições segundo as quais poderá ser autorizada a criação de normas inferiores, dependendo a eficácia do sistema da adesão pressuposta a uma norma fundamental, a Grundnorm, que será a Constituição original. Contrariamente a um sistema formal, que é puramente estático, o direito será concebido como um sistema dinâmico, a norma superior que determina o quadro em que aquele a quem é conferida a autoridade de exercer um poder legal, legislativo, executivo ou judiciário pode escolher livremente uma linha de conduta, desde que não saia dos limites fixados pela norma superior”.158

Quanto a este aspecto, em que se tem a norma

fundamental como “...o fundamento de validade e o princípio

unificador das normas de um ordenamento”159 atuando num sistema

157 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, prefácio, p. XXIX. 158 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91-92. 159 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. p. 62.

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dinâmico, as normas serão consideradas válidas desde que

provenientes de uma autoridade competente (indicada pelo

próprio ordenamento) e que retirem seu fundamento de validade

de uma norma superior, obedecendo aos procedimentos (também

indicados pelo sistema). A validade das normas, portanto,

independe do seu conteúdo, fato esse que, após a 2ª Guerra

Mundial, trouxe novamente à tona a questão da legitimidade160

do poder fundante de um ordenamento, que volta a ser também um

problema jurídico.

O ceticismo (relativismo) não trouxe

conseqüências apenas à referida corrente do realismo jurídico,

pois também a teoria de KELSEN sofreu suas influências. Assim,

além do relativismo moral que gerou as já descritas críticas

dirigidas ao direito natural, o ceticismo influenciou na

aceitação da tese que admite, quando há a possibilidade de

interpretações divergentes de uma mesma norma, o uso da

160 Por legitimidade adotamos a mesma noção concebida por Maria Celeste dos SANTOS, que aduz: “Na linguagem jurídica usual, as palavras legalidade e legitimidade não têm um significado claramente definido e diferenciado; fala-se indiscriminadamente de legalidade e de legitimidade para assinalar a conformidade de determinadas atividades do Estado com as normas vigentes do ordenamento jurídico. Para evitar equívocos usamos a expressão legitimidade para indicar, em termos gerais, o critério de justificação do poder, o ‘título’ em virtude do qual este dita seus comandos e exige a obediência por parte daqueles a quem se dirige e que, por sua vez, se consideram ‘obrigados’ por ele.

Nesse sentido, a legitimidade se transforma em questão de legitimação e pressupõe a legalidade, isto é, a existência de um ordenamento jurídico e de um poder que dita comandos de conformidade com suas próprias disposições. A legitimidade, portanto, justifica a legalidade, posto que confere ao poder o carisma de autoridade: é um signo que se acresce à denominação, a força que o Estado exerce em ‘nome da lei’” (SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Poder jurídico e violência simbólica, p. 111-112).

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discricionariedade para a escolha do modo pelo qual a norma

deve ser aplicada. Com efeito, estando:

“ ...qualificado para agir legalmente, e na medida em que se conforma às regras prescritas, o legislador, o administrador público ou o juiz têm liberdade de ação, o legislador tem liberdade para votar qualquer lei que não seja contrária às normas superiores, o juiz, encarregado de dizer o direito nos casos particulares, tem liberdade de escolher como melhor lhe pareça entre as interpretações admissíveis de um dado texto. A teoria pura do direito, tal como Kelsen a elaborou, deveria, para permanecer científica, eliminar de seu campo de investigação qualquer referência a juízos de valor, a idéia da justiça, ao direito natural, e a tudo o que concerne à moral, à política ou à ideologia. A ciência do direito se preocupará com condições de legalidade, de validade dos atos jurídicos, com sua conformidade às normas que os autoriza. Kelsen reconhecia, sem dúvida, que o juiz não é um mero autômato, na medida em que as leis que aplica, permitindo diversas interpretações, dão-lhe certa latitude, mas a escolha entre essas interpretações depende, não da ciência do direito nem do conhecimento, mas de uma vontade livre e arbitrária, que uma pesquisa científica, que se quer objetiva e alheia a qualquer juízo de valor, não pode guiar de modo algum.”161

Os dois problemas do positivismo jurídico

postos acima (que não se restringem à teoria de KELSEN, mas

também englobam à de BOBBIO e, principalmente, à de HART): o

da legitimidade em relação à legalidade; e o da

discricionariedade em relação à legalidade, têm gerado os mais

interessantes, e quiçá mais importantes, debates

jusfilosóficos da atualidade.162

161 PERELMAN, C. Obra citada, p. 92-93. 162 Chega-se então a um terceiro momento, qual seja a tentativa de superação do ponto de vista positivista em que o direito prevalece sobre a moral. Pretende-se encontrar um fundamento (moral) ao direito sem recorrer, no entanto, ao direito natural.

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106

Quanto ao problema da legitimidade, vamos

trazer algumas posições de HABERMAS; e quanto à questão da

discricionariedade, vamos mencionar o debate que tem sido

liderado por DWORKIN a esse respeito.163

Passemos, portanto, à análise da crítica de

HABERMAS ao conceito positivista de legalidade, com ênfase no

problema da legitimidade do direito positivo moderno.164

Para tanto, serão confrontados ao pensamento de

HABERMAS os pensamentos de Max WEBER e de KELSEN. A escolha

não é, de forma alguma, aleatória. WEBER construiu um conceito

positivista de legitimidade que permeia todas as discussões

sobre o tema até os dias de hoje. Com efeito, é com base nele

que Hans KELSEN examina a legitimidade na sua teoria pura do

direito. HABERMAS, a seu turno, buscando reafirmar as conexões

entre direito, moral e política, representa o contraponto

daqueles pensamentos, à medida em que busca abrir a cela

163 Não se pretende aqui aprofundar esses temas, esgotando-os, mas tão-somente situá-los no contexto contemporâneo de discussão. O panorama, ainda que superficial, dessas análises que agora serão efetuadas, somado aos dados histórico-filosóficos trazidos até aqui, são essenciais para a compreensão dos problemas jurídicos da atualidade, inclusive no que se refere ao papel que uma teoria da argumentação jurídica possa exercer nesse contexto, conforme será debatido no próximo capítulo. 164 A análise terá como guia a comunicação que foi apresentada em 04 de setembro de 1995 por Caio Mário da Silva PEREIRA NETO; intitulada “Alguns Apontamentos sobre a Crítica de Habermas ao Conceito Positivista de Legitimidade”, que foi seguida de intensos debates na seção reservada aos estudantes pelo V Congresso Brasileiro de Filosofia, presidido por Miguel REALE entre os dias 03 e 08 de setembro de 1995 na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo - USP). A comunicação acima referida foi posteriormente publicada nos anais do Congresso, cf. A Filosofia, Hoje: Anais do V Congresso Brasileiro de Filosofia, p. 677-692.

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107

hermética em que WEBER e KELSEN haviam trancado o sistema

jurídico ao se utilizarem de um conceito positivista de

legitimidade.

Sendo assim, a análise estará centrada nos

seguintes pontos: a) no conceito de legitimidade que Max WEBER

desenvolve na sua tipologia da dominação legítima e de sua

aplicação no que diz respeito à dominação legal-racional; b)

na utilização dada por KELSEN àquele conceito; e c) por fim,

na crítica central que HABERMAS desenvolve, ainda acerca do

conceito de legitimidade, na sua teoria da ação comunicativa.

Em sua obra Economia e Sociedade165, Max WEBER

se utiliza do conceito de legitimidade para diferenciar os

tipos puros de dominação. Para tanto, WEBER parte da premissa

de que, em função da classe de legitimidade em que se funda

uma determinada dominação, as suas características básicas,

como o seu quadro administrativo e o seu próprio modo de

exercício, alteram-se. Vê-se então que a legitimidade é tomada

como um critério chave para diferenciar os tipos puros de

dominação.

Entendendo por dominação a “...probabilidade de

obediência a um determinado mandato”166, WEBER chega ao

165 WEBER, Max. Economia y sociedad. 2. ed. Traduzido por José Medina Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 11. Reimpressão, 1997.

166 WEBER, M. Economia y sociedad, p. 171.

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seguinte conceito de legitimidade: “probabilidade [de uma

dominação] ser tratada praticamente como tal e mantida em uma

proporção importante”.167 Portanto, é pela crença na sua

legitimidade que uma dominação se mantém independentemente do

motivo específico e subjetivo de cada um dos dominados para

obedecer aos mandatos que lhes são impostos, é na crença

genérica em sua legitimidade que repousa a estabilidade de uma

dominação.

WEBER, ao desenvolver a sua tipologia,

identifica três possíveis fundamentos para a legitimidade da

dominação política: a) fundamento racional que descansa na

crença na legalidade; b) fundamento tradicional que repousa na

crença na tradição; e c) fundamento carismático que se baseia

na crença em qualidades especiais de uma pessoa.

O fundamento racional identificado por WEBER é

de especial importância, pois é nele que, para o autor, reside

a estabilidade da dominação legal característica de nosso

tempo. Seria a crença na legalidade que levaria à submissão

dos dominados a esta forma de dominação caracterizada pela

positivação do direito e por um quadro administrativo

predominantemente burocrático.

167 WEBER, M. Idem, ibidem.

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109

Com efeito, a idéia básica da dominação legal-

racional é a de que “...qualquer direito pode ser criado e

modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto

à forma”.168

Vê-se aqui que WEBER, ao fundar a legitimidade

da dominação legal na crença na legalidade e, portanto, na

possibilidade de criação e modificação do direito, está nos

remetendo a um novo problema: o que é legal? Ora, esta questão

de reconhecimento do que seja ou não legal se torna a chave

para a legitimidade de fundamento racional.

Com isso WEBER desloca o problema da

legitimidade do direito positivo para a questão do

procedimento pelo qual o direito é produzido e modificado. É o

procedimento formal concreto que vai permitir uma

identificação do que é ou não legal e, por sua vez, é a crença

naquilo identificado como legal que residirá a legitimidade

desse tipo de dominação. Portanto, em última análise, a pedra

fundamental da legitimidade do edifício jurídico moderno, no

pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado

procedimento que permita a identificação do direito.

Cabe observar que a construção descrita acima

traz a legitimidade para o interior da legalidade. Ora, à

168 WEBER, M., Idem, p. 174.

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medida em que o direito se auto-legitima por um procedimento

jurídico formal próprio, dispensa qualquer fundamentação

externa a ele próprio. É exatamente essa construção que vai

permitir a afirmação da autonomia do direito, que está

subjacente à toda discussão jusfilosófica desde HOBBES, se

quisermos tomar algum autor como referencial. De fato, é essa

autonomia que é muitas vezes invocada para diferenciar o

direito moderno do direito antigo e é ela também que pode ser

apontada como uma das diferenças primordiais entre a dominação

legal-racional e os outros dois tipos de dominação,

tradicional e carismática, ambas dependentes de fatores

externos ao direito: a tradição e o carisma, respectivamente.

Justamente essa transformação do problema da

legitimidade em um problema de procedimento e a conseqüente

absorção da legitimidade pela legalidade é que vão dar a base

teórica para que Hans KELSEN dê uma roupagem mais acabada à

teoria weberiana. Vejamos como isso ocorre.

KELSEN procura, com a teoria pura do direito,

desenvolver uma teoria jurídica “...purificada de toda a

ideologia política e de todos os elementos de ciência

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111

natural”169 e elevar a jurisprudência a uma “...genuína

ciência, de uma ciência do espírito”.170

Nesta sua busca de uma ciência pura,

circunscreve o seu objeto de estudo, qual seja o direito,

isolando-o de quaisquer influências externas. O direito que

Hans KELSEN analisa é então um direito completamente separado

da moral e da política e, portanto, clama por uma autonomia

absoluta.

Assim o conceito de legitimidade construído por

WEBER é facilmente absorvido pela teoria pura do direito,

conferindo autonomia ao seu objeto de estudo (o direito) e

possibilitando a explicação e justificação do seu dinamismo. A

teoria positivista de KELSEN leva ao extremo a proposta

weberiana, acabando por demostrar algumas distorções.

KELSEN define o princípio da legitimidade como

o “...princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida

até a sua validade terminar por um modo determinado através

desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela

validade de uma outra norma desta ordem jurídica...”171

Assim, vê-se novamente que o problema da

legitimidade de um ordenamento jurídico se coloca na questão

169 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, prefácio à 1 ed., p. XI. 170 KELSEN, H. Idem, ibidem. 171 KELSEN, H. Obra citada, p. 233.

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112

do procedimento. Mais ainda, na definição de KELSEN o

procedimento encontra-se claramente no interior da ordem

jurídica, pois ele deve necessariamente ser determinando por

ela própria. Observa-se que a legitimidade fica equiparada à

legalidade: tudo que é legal, isto é, que cumpre o

procedimento determinado pela ordem jurídica, é também

legítimo.

KELSEN percebe, contudo, que esse conceito de

legitimidade só se aplica em uma ordem jurídica estável172, o

que o leva a examinar a situação limite de uma revolução, em

que o poder instituído é subjugado e substituído pelo poder

revolucionário, podendo este modificar a constituição, ou

mesmo substituí-la.

Nesta situação, observa o autor, a norma

fundamental, que serve de fundamento de validade para todas as

outras é substituída por uma nova, modificando portanto o

fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Se a nova

constituição modifica o procedimento pelo qual se dá a

produção de normas válidas, surge então a questão das normas

que haviam sido produzidas sob a égide da antiga constituição,

172 Deve-se observar aqui uma inversão do problema inicial que WEBER se propunha a resolver ao definir a legitimidade como a probabilidade de conservação de um determinado tipo de dominação. Com o deslocamento do problema para a questão do procedimento, KELSEN acaba sendo levado a afirmar que o seu conceito de legitimidade só se aplica a uma ordem jurídica estável. Vê-se assim que o conceito weberiano começa a enfrentar problemas.

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113

mas continuam sendo válidas, pois, como acontece em geral

nessas revoluções, grande parte do edifício jurídico fica

intacto.

A resposta a essa pergunta é dada da seguinte

forma: há apenas uma mudança no fundamento de validade, as

normas antigas continuam com o mesmo conteúdo mas sob um

fundamento de validade novo, a nova constituição.

Ao constatar a possibilidade de coexistirem

normas produzidas sob procedimentos diferentes (sob

fundamentos de validade distintos) e a possibilidade de

extinção de normas pelo modo determinado por uma ordem

jurídica diversa da que havia instituído as mesmas normas,

torna-se impossível sustentar que a legitimidade está

exclusivamente ligada ao procedimento.

KELSEN acaba então se vendo obrigado a

introduzir um elemento novo, limitativo do princípio da

legitimidade acima descrito: a efetividade do governo. Daí a

afirmação de que “...o governo efetivo, que, com base numa

Constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais

eficazes, é o governo legítimo do Estado”.173

173 KELSEN, H. Obra citada, p. 234. Este é um dos pontos da teoria de KELSEN que sofreram as críticas mais contundentes, as quais foram denominadas por LOSANO como críticas imanentes (cf. LOSANO, Mario G. In prefácio à edição italiana de KELSEN, Hans. O problema da justiça, p. VII-XXXIII).

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114

A dominação legítima, nesta concepção, passa

então a ser aquela efetiva e, conseqüentemente, o procedimento

só vai exercer o seu papel legitimador da ordem jurídica a

partir do momento em que estiver fundado em um poder efetivo

(legítimo e eficaz).

O que se pode constatar da construção

Kelseniana do conceito de legitimidade é uma inversão do

problema proposto por WEBER. Este propunha uma tipologia da

dominação que utilizava como critério básico as diferentes

classes de legitimidade, sendo esta a probabilidade de

manutenção de um determinado tipo de dominação.

No caso da dominação legal, o fundamento da

legitimidade é apontado como sendo de ordem racional e

identificado como a crença na legalidade. Para que exista essa

crença é necessário, por sua vez, um procedimento que

identifique o que é e o que não é legal. A partir de então o

problema do que é legítimo é deslocado para a questão do

procedimento que permite fazer esta identificação.

KELSEN parte dessa noção para poder afirmar a

legitimidade de um sistema jurídico autônomo. Contudo, quando

leva este raciocínio a uma situação limite (uma revolução), o

procedimento não serve mais como fator de legitimação.

Neste exato momento o fator de legitimação

passa a ser a efetividade do poder fundante e é desta

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115

efetividade que decorre a legitimidade do novo poder e a

posterior restauração da legalidade174. É importante notar que

a legitimidade, no sentido procedimental formal que lhe dá

WEBER, deixa de ser o fator gerador de estabilidade da

dominação para ser uma conseqüência dessa estabilidade que, em

última instância, é fruto da efetividade do poder político.

Com essa distorção o conceito de legitimidade

concebido por WEBER e reafirmado por KELSEN torna-se por

demais estreito para compreender o fenômeno jurídico que

caracteriza a modernidade.

É preciso buscar um conceito mais largo que

seja capaz de realizar essa tarefa. É exatamente isso que

busca HABERMAS, conforme se depreende da sua crítica ao

conceito weberiano, cujos contornos podem ser localizados na

Teoria da Ação Comunicativa.175

HABERMAS, em sua Teoria da Ação Comunicativa,

faz uma análise do pensamento weberiano, abordando a obra de

WEBER como um todo e tendo como fio condutor a teoria da

174 Tercio Sampaio FERRAZ JR. assume, na sua teoria pragmática da validade, uma mudança do padrão de validade descrevendo uma oscilação entre o padrão-legalidade e o padrão-efetividade: “... O padrão-efetividade está em uso no momento em que aparece uma nova norma-origem. Daí para a frente, volta o padrão-legalidade” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 192). Esta mudança de padrão é análoga à questão levantada por KELSEN, acima mencionada. Contudo, KELSEN não admite uma mudança de padrão, apenas uma limitação do princípio de legitimidade. 175 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus,

1987.

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116

racionalização social. Mais que uma análise, o capítulo

dedicado ao pensamento de Max WEBER é um diálogo em que

HABERMAS identifica no seu interlocutor certas deficiências e

incongruências. Dentro desse diálogo HABERMAS faz uma crítica

veemente ao conceito de legitimidade que WEBER atribui à

dominação legal.

Este conceito que, conforme abordado acima, é

fundamental para a crença na legalidade, acaba dando origem à

concepção de que a legitimação do direito moderno se dá

mediante o procedimento. HABERMAS aponta um paradoxo nessa

concepção: “A fé na legalidade só pode criar legitimidade se

se supõe de antemão a legitimidade da ordem jurídica que

determina o que é legal”.176

Ao apontar esta contradição, HABERMAS está

questionando a legitimidade do próprio procedimento, pois a

“...fé na legalidade de um procedimento não pode engendrar

legitimidade per se, isto é, pela simples virtude da correção

procedimental do próprio ordenamento positivo”.177

Ora, assentar a legitimidade do direito no

procedimento não resolve o problema, apenas desloca-o para o

próprio procedimento. Persiste então a indagação do que

176 HABERMAS, J. Obra citada, p. 343. 177 HABERMAS, J. Idem, p. 344.

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117

confere a legitimidade ao procedimento legitimador178. Eis aí a

questão com que se depara HABERMAS ao pretender analisar a

questão da legitimidade do direito moderno.

Tentando identificar o que leva WEBER a cometer

este equívoco, HABERMAS só encontra uma possibilidade: WEBER

apela para uma tradicionalização secundária do procedimento,

desconsiderando os pressupostos racionais materializados nas

instituições. Apesar de ter consciência de que existam

fundamentos racionais na instituição do procedimento, WEBER

põe esses fundamentos em suspensão, acreditando que, uma vez

existente o procedimento, as pessoas não mais se preocupam com

o seu fundamento racional e ele se transforma então numa

espécie de tradição.

Para HABERMAS, mesmo nestes casos em que o

procedimento sofre um efeito de tradicionalização, o que dá o

caráter legítimo a uma decisão legal é a confiança nos

fundamentos racionais subjacentes ao ordenamento jurídico como

um todo. Assim, permanece a questão da fundamentação racional

que, para o teórico da ação comunicativa, permeia todo o

direito moderno.

178 Na realidade este é o problema enfrentado por KELSEN na situação limite exposta acima. Numa revolução, o que se coloca em cheque é o próprio procedimento. A questão aí é a mesma: o que legitima o procedimento? Ou, se se formular de outra forma: qual procedimento pode ser considerado legítimo? KELSEN não responde a esta pergunta. Ao invés disso ele introduz o princípio da efetividade como limitante do princípio da legitimidade. Assim, o problema continua sem resposta.

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118

É justamente repensando a questão da

fundamentação racional que HABERMAS vai tentar construir um

novo conceito de legitimidade. Um conceito mais largo, capaz

de compreender a totalidade do fenômeno, deixando de lado os

vícios e preconceitos positivistas que acabaram levando,

segundo ele, a interpretações equivocadas que os

justificassem.

HABERMAS esboça o seu conceito de legitimidade,

ainda que de forma inacabada, num trabalho intitulado ¿Como es

Posible la Legitimidad por Via de la Legalidad?179, em que

defende a tese de que o direito moderno não se encontra

desconectado da moral e da política. Ao revés, é na relação

com a moral, limitada pela sua relação com a política, que

reside a legitimidade do direito positivo característico da

nossa sociedade.

Para construir esse complexo de relações,

HABERMAS parte de uma análise do direito pré-moderno, em que

identifica a coexistência de um direito sacro com um direito

profano. O direito sacro é o fator que legitima as decisões.

Portanto, o príncipe só pode agir dentro do âmbito em que está

legitimado pelo direito sacro. Este, por sua vez, era

incondicionado e baseado na crença em imagens religiosas do

179 HABERMAS, Jürgen. ¿Como es posible la legitimidad por via de la legalidad? In: Revista Doxa nº 5, 1988.

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119

mundo, as quais dominavam as estruturas de consciência pré-

modernas.

Esta coexistência do direito profano com o

direito sagrado demostra uma tensão interna ao direito: aquela

entre o seu caráter instrumental e o seu caráter não

instrumental. O caráter instrumental do direito dizia respeito

ao direito profano, burocrático e utilizado como meio para

atingir objetivos políticos. Já o caráter não instrumental era

encontrado na incondicionalidade do direito sacro, pressuposto

na regulação judicial dos conflitos pelo direito burocrático.

Contudo, no momento em que ocorre o fenômeno da

positivação do direito, as imagens religiosas do mundo já

estão reduzidas a convicções de ordem subjetiva. Isso faz com

que o direito sacro não mais sirva como suporte de um direito

profano, cada vez mais complexo e, a partir de então, em

constante mutação. O direito fica desprovido daquele caráter

de incondicionalidade que conferia legitimidade ao poder

político responsável por instituí-lo.

Nesta situação, para que o direito não fique

reduzido à imposição de mandatos de um soberano (redução

defendida por todos os seguidores de HOBBES), o que levaria a

sua absorção pela política e a conseqüente decomposição do

próprio conceito de política, cumpre buscar um outro

fundamento de legitimidade que seja capaz de assegurar aquele

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120

momento de incondicionalidade antes existente. Essa é a busca

que HABERMAS se propõe a fazer. Só assim o direito pode manter

o caráter de obrigação que antes lhe era conferido pela

autoridade do direito sacro.

HABERMAS começa a sua busca de um fundamento

para o direito moderno observando que, só no momento em que

surge uma moral convencional (em que as normas jurídicas são

prévias, independentes da situação e vinculantes para todos),

torna-se possível o surgimento de um poder político organizado

por meio de um direito coercitivo. Isso porque, sustenta

HABERMAS, só no momento em que o poder de fato recebe uma

autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que

tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que

passa a ser legítimo) pode impor politicamente normas

jurídicas.

Essa constatação leva HABERMAS a concluir que o

fundamento do direito moderno só pode estar na sua relação com

a moral: “...aquele momento de incondicionalidade que

inclusive no direito moderno constitui um contrapeso à

instrumentalização política do meio que é o direito, deve-se

ao entrelaçamento da política e do direito com a moral”.180 Não

se trata aqui de uma moral tradicional, fundada em uma

180 HABERMAS, J. Idem, p. 25.

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121

interpretação mítica do mundo, mas de uma moral convencional,

autônoma, que apresenta uma racionalidade própria.

Nesse sentido, o direito natural racional,

superado no século XIX devido à tamanha complexidade que a

sociedade moderna atingiu, foi a primeira tentativa de

construir este entrelaçamento entre uma moral pós-

tradicional181 e o direito, ligando este a princípios daquela e

colocando-o sobre o pano de fundo de uma racionalidade

procedimental (o contrato social nada mais é que um

procedimento hipotético que justifica moralmente o poder

exercido através do direito positivo).

Aí reside a chave do conceito de legitimidade

habermasiano na racionalidade procedimental de uma razão

prático-moral: “Esta exige que distingamos entre normas e

princípios e procedimentos justificatórios, procedimentos

conforme os quais possamos examinar se as normas, à luz dos

princípios válidos, podem contar com o assentimento de

todos”.182

181 O que HABERMAS considera como moral pós-tradicional é a moral autônoma, regida por um critério de racionalidade próprio e fruto do desencantamento das imagens do mundo descrito na teoria da racionalização social de WEBER. Segundo este autor a evolução das imagens religiosas do mundo leva à autonomização de três esferas de racionalidade regidas por critérios independentes: a esfera cognitivo-instrumental, a esfera prático-moral e a esfera estético-expressiva. Sobre isso ver a análise que HABERMAS faz acerca do pensamento de WEBER na teoria da ação comunicativa. 182 HABERMAS, J. Obra citada, p. 29.

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122

Esta razão prática tem como núcleo a idéia de

imparcialidade. Desta forma, a legitimidade do direito só pode

ser obtida por meio de procedimentos que assegurem a

imparcialidade dos juízos (no caso da aplicação das normas) e

da vontade (no caso da sua produção) por via de uma

argumentação que justifique e fundamente as normas.183 Esses

procedimentos devem ser institucionalizados dentro do direito

positivo, permitindo que este comporte discursos morais.

Cabe nesse ponto a seguinte questão: supondo a

aplicação dessa justiça procedimental para que haja a produção

de normas segundo o critério da imparcialidade, por que então

estas normas precisam ser institucionalizadas na forma de

normas jurídicas? Não bastaria que elas fossem apenas normas

morais? HABERMAS responde a esta pergunta com a afirmação de

que a moral pós-tradicional possui um déficit motivacional, ou

seja, a moral autônoma carece daquela conexão com a eticidade

concreta característica da moral tradicional.

Assim, os agentes de uma dada sociedade podem

identificar racionalmente (sempre segundo uma razão prática)

as normas que seguem o procedimento, mas estas não têm aquela

183 Cf. HABERMAS, J. Idem, p. 39, em que são abordadas as teorias da justiça de John RAWLS, de KOHLBER e de K. O. APEL — denominadas teorias procedimentais da justiça — as quais, ao tratarem o tema da elaboração do procedimento como fundamento de imparcialidade das normas, representam, segundo HABERMAS, propostas sérias que permitem analisar questões práticas de um ponto de vista moral.

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123

força motivacional de outrora que os impelia a realizar na

prática os seus juízos morais. As normas passam a ser

exigíveis somente à medida em que aqueles que as cumpram

possam esperar que todos os outros também ajam na sua

conformidade.

Aí reside a necessidade da institucionalização

jurídica. Para garantir a aplicação geral e num prazo fixo das

normas relativas a problemas funcionais importantes, resolução

de conflitos e matérias de maior importância social, faz-se

necessária a positivação desta norma por um poder político

capaz de assegurá-la coercitivamente. Só por essa via pode-se

evitar os problemas de insegurança gerados num complexo de

normas puramente morais. Neste sentido, o direito complementa

a moral, corrigindo a sua debilidade motivacional por meio da

coerção.

Exigindo um poder político que o institua, o

direito mostra a sua outra face: o seu caráter instrumental. O

poder político se utiliza de normas jurídicas, justificadas e

fundamentadas por meio de um discurso que mescla argumentos

morais e políticos, para atingir objetivos políticos. Por

isso, HABERMAS afirma que “...o direito se situa entre a

política e a moral”.184

184 HABERMAS, J. Idem, p. 42.

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124

Como já ficou esboçado, mais que uma mera

complementação da moral com o direito, HABERMAS defende um

entrelaçamento entre os dois. Este se verifica pela observação

de que existe uma abertura do direito positivo para

argumentações morais que o justifique e fundamente. Há aí a

migração de uma moral puramente procedimental (despida de

conteúdo normativo) para o interior do direito.

Nesse contexto, ambos (direito e moral) se

limitam por meio de procedimentos mútuos. Os procedimentos

jurídicos deixam um certo espaço para que seja realizado o

discurso moral (efetuado à luz de princípios válidos que

justificam e fundamentam as normas), fundamental para a sua

legitimação. Contudo, este espaço é modelado pela política.

São as lutas políticas que determinam quanto deste espaço é

ocupado por um discurso moral e quanto é ocupado por

imperativos funcionais que põem em suspenso os princípios

morais. Enfim, a relação legitimadora entre direito e moral é

regulada pela política, que, por sua vez, acaba também

dependendo dessa relação, pois é dela que o poder político

extrai a sua legitimidade.

Com essa intrincada relação entre moral,

direito e política, HABERMAS chega à “...idéia de um Estado de

Direito, com divisão de poderes, que extrai sua legitimidade

de uma racionalidade que garanta a imparcialidade dos

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125

procedimentos legislativos e judiciais”.185 Esta idéia funciona

como um standard crítico que permite avaliar a realidade

constitucional, já que ela “...não se limita a se opor

abstratamente (em um impotente dever-ser) a uma realidade que

tampouco lhe corresponda. Antes de tudo a racionalidade

procedimental (...) constitui (...) a única dimensão que resta

em que se pode assegurar ao direito positivo um momento de

incondicionalidade e uma estrutura imune de ataques

contingentes.”186

Ao encarar o direito como um sistema aberto a

questões procedimentais de cunho moral e influenciado

profundamente pela política, HABERMAS traz para o centro da

problemática jurídica questões que os juristas positivistas

acreditavam não ser da sua alçada. E ainda vai além, recoloca

questões que os positivistas pensavam ter resolvido. HABERMAS

traz à tona, portanto: a questão da justiça, a questão da

democracia e a questão da autonomia do direito.

A questão da justiça, desde o advento do

positivismo jurídico, foi relegada à filosofia moral, mas com

HABERMAS é trazida para o seio da questão da legitimidade. É

por meio de uma justiça procedimental de caráter moral, com o

seu núcleo fundado na idéia de imparcialidade, que HABERMAS

185 HABERMAS, J. Idem, p. 37. 186 HABERMAS, J. Idem, ibidem.

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126

acredita ser possível garantir ao direito moderno a sua

autoridade e, conseqüentemente, o seu caráter de obrigação.

Assim sendo, o jurista moderno, ao estar

envolvido com a aplicação e produção de normas deverá, sob

pena de tornar o direito suscetível a ataques contingentes,

estar sempre preocupado com a realização deste procedimento de

tomada imparcial de decisões coletivas. Tendo em vista as

dificuldades, num primeiro plano, de conceber teoricamente um

procedimento que assegure essa imparcialidade nas sociedades

complexas atuais e, num segundo plano, de aplicá-lo nessas

mesmas sociedades, está aí um grande desafio para o jurista de

hoje: estar sempre questionando o procedimento racional pelo

qual se dá a fundamentação e justificação das normas. Este

procedimento permanece sempre aberto a uma crítica racional

por meio do discurso e, portanto, ele está continuamente sendo

reconstruído pelos participantes do discurso.

Aqui se apresenta uma segunda questão para a

qual HABERMAS chama a atenção: quem são os participantes do

discurso? Essa é a questão da democracia. Quando o teórico da

ação comunicativa coloca numa moral procedimental o fundamento

da legitimidade moderna, exige conseqüentemente a

participação, de alguma forma a ser definida pelo

procedimento, daqueles que serão atingidos pelas normas

criadas ou aplicadas. Mas não há critérios prévios, de modo

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127

que só com a participação de todos no discurso poderá ser

garantida a imparcialidade que a razão prática exige.187

Sob esse enfoque cabe então a seguinte questão:

até que ponto o procedimento democrático moderno, fundado em

pilares como a regra da maioria e a representação política,

consegue cumprir o pressuposto de legitimidade apresentado por

WEBER? Isso faz repensar a forma de participação dos

indivíduos em uma democracia. Como garantir essa formação

discursiva da vontade coletiva?

Estas duas primeiras questões representam bem

uma gama de problemas muito complexos que surgem ao se

estabelecer uma conexão entre direito, política e moral. Além

disso, elas recolocam o problema da autonomia do direito em

outros termos. Se não se pode mais caracterizar o direito como

um sistema fechado, fica abalado o conceito de autonomia do

sistema jurídico defendido pelos positivistas, que estipula

uma independência do direito a qualquer fator que lhe for

externo. Onde está então a autonomia do direito? Ou deixaria

ele de ser autônomo?

187 “A fundamentação do sistema de direitos (direitos fundamentais e direitos positivos), com o auxílio do princípio do discurso, pode ser esclarecida a partir do princípio da democracia, forma que assume a intersubjetividade argumentativa, no discurso de legitimação de direitos, assim expresso: ‘D: são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (LUDWIG, Celso Luiz. Razão comunicativa e direito em habermas, p. 10-11, grifos no original).

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128

A proposta de HABERMAS é a de que a autonomia

do direito está justamente no seu entrelaçamento com a moral e

a política. É essa relação entre os três campos que confere ao

direito a possibilidade de ser autônomo. É ela que impede que

o fenômeno jurídico se dissolva ou em puras considerações

morais, ou em pura imposição política. Por isso, diz HABERMAS,

“...autônomo é um sistema jurídico, só à medida em que os

procedimentos institucionalizados para a legislação e a

administração da justiça garantam uma formação imparcial da

vontade e do juízo e por essa via permitam que se introduza,

tanto no direito quanto na moral, uma racionalidade

instrumental de tipo ético. Não pode haver direito autônomo

sem democracia realizada”.188

Com essas considerações acerca do pensamento de

HABERMAS sobre o fenômeno da legitimidade, vê-se pois que o

problema da moral está longe de ser algo que não mereça a

preocupação dos juristas, como pretende — ou pretendia — o

positivismo jurídico.

188 HABERMAS, J. Obra citada. p. 45.

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129

2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin

Cabe agora fixar o olhar sobre o outro problema

mencionado anteriormente: o da discricionariedade do

intérprete. Para tanto será analisado o debate travado entre

HART e DWORKIN, que talvez seja a melhor forma de situar o

problema.

A consolidação do positivismo jurídico que teve

lugar no século XIX mediante a junção dos métodos da exegese e

do conceitualismo dava ao intérprete — em especial ao juiz —

uma tarefa neutra em relação à lei.

Com efeito, a atitude do intérprete seria

apenas a de subsumir fatos às normas, como num silogismo189, o

que tornava mecânica (ou lógico-mecânica) a função do

aplicador das normas.

Cedo surgiram os problemas daquela ambição

racionalista — pois a teoria não acompanhava as novas demandas

impostas por uma realidade social em constante mutação — e

também cedo surgiram teorias que se contrapunham ao ideal

racional-legalista do positivismo de então, que entrou em

crise.

189 Em que a lei funcionaria como premissa maior, o fato ficaria na posição da premissa menor e a inevitável conclusão seria a norma a ser aplicada ao caso particular.

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130

Das várias correntes jurídicas surgidas desde

então, ainda que opostas entre si — como por exemplo as

escolas sociológicas e o normativismo — num ponto ao menos,

segundo ALEXY, estão de acordo:

“ ...um dos poucos pontos em que existe acordo na discussão metodológica-jurídica contemporânea é o de que a decisão jurídica (...) exprimível em um enunciado normativo singular não se segue logicamente, em muitos casos, das formulações das normas que deve pressupor como vigentes.”190

Desse ponto comum surgiram duas grandes

tendências teóricas que vão se desenvolver no século XX: a)

uma primeira, aparentemente mais fiel à tradição positivista

que, tendo verificado as possibilidades da lógica no

raciocínio jurídico, chega à conclusão de que, naqueles casos

em que a lógica não fosse apta para fundamentar uma decisão

jurídica, o intérprete estaria autorizado a se valer de

discricionariedade, tornando-se então um sujeito político

criador de direito; e b) uma segunda, pelo contrário, tentando

evitar aquela conclusão — que afinal de contas atingia os

alicerces do Estado liberal forjado pelo iluminismo — tentou

construir uma nova lógica que pudesse compensar o déficit de

racionalidade que caracterizava a argumentação jurídica, ou

seja, um método jurídico alternativo que conduzisse o processo

190 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica, p. 23.

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de decisão quando o direito escrito e a lógica se mostrassem

insuficientes ou conduzissem de qualquer modo a resultados

insatisfatórios.

Na primeira das tendências acima referida podem

ser enquadrados KELSEN, BOBBIO e HART; e é justamente a tese

cética que admite a discricionariedade do intérprete em

algumas situações que se tornou o principal objeto de crítica

no pensamento de DWORKIN, conforme se verá ainda neste

capítulo.

Na segunda das tendências em questão enquadram-

se VIEHWEG e PERELMAN que, respectivamente, trouxeram ao

debate contemporâneo, a partir da segunda metade do século XX,

a possibilidade de se utilizar, como forma de raciocínio

jurídico, as velhas formulações de ARISTÓTELES sobre a tópica

e a retórica, temas esses que serão objeto de análise do

capítulo subseqüente, através da descrição do pensamento

específico de PERELMAN.191

191 Cada uma dessas duas tendências, à primeira vista contraditórias e que de fato entraram várias vezes em aberta polêmica, certamente ofereceram perspectivas originais e valiosas. Assim, o positivismo de KELSEN, BOBBIO ou HART talvez tenha sido um dos grandes responsáveis pelo estímulo a uma análise mais rigorosa da linguagem jurídica e do alcance da lógica no direito, mas, sobretudo, permitiu o desenvolvimento de uma redefinição das atribuições do juiz e de seus modelos de conduta, vez que se o intérprete já não era mais hermeticamente circunscrito às disposições literais da lei — como queria MONTESQUIEU — mas sim um ativo criador de direito, tornaram-se prementes reflexões quanto à sua legitimidade e quanto às melhores formas de fiscalização dessa atividade de criação judicial (o debate iniciado por DWORKIN, como veremos, tem sido um bom exemplo disso). De outro lado, os expoentes da tópica, da hermenêutica ou da retórica

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132

A separação radical entre direito e moral

promovida pelo positivismo jurídico é rechaçada por DWORKIN,

que procura restabelecer essa relação a partir de uma teoria

que vê nos princípios192 jurídicos um status lógico distinto

daquele que se refere às regras. Quanto a estas, ou se aplicam

no todo ou não se aplicam, enquanto os princípios fornecem

razões para que se tomem decisões em um determinado sentido,

mas seus enunciados, ao contrário das regras — não determinam

as condições de sua aplicação:

“ A diferença entre regras e princípios não é simplesmente uma diferença de grau, mas sim de tipo qualitativo ou conceitual. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem somente ser cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fática e juridicamente. A forma característica de aplicação das regras é, por isso, a subsunção. Os princípios, no entanto, são normas que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte,

permitiram o rompimento daquilo que para KELSEN, a teor do que costuma dizer VERNENGO em suas conferências e obras, era uma caixa preta (Cf. VERNENGO, Roberto José. Curso de teoría general del derecho; e, ainda, La interpretación literal de la ley, entre outros escritos), ou seja, os complexos processos que conduzem desde a norma (também os fatos) até à decisão judicial; em suma, a busca de regras e técnicas de argumentação para guiar o raciocínio jurídico é em boa medida tributária dessa segunda tendência de pensamento. 192 A discussão acerca dos princípios jurídicos toma fôlego, na teoria do direito dos últimos anos, a partir de um famoso artigo de Ronald DWORKIN publicado em 1967 com o título “É o Direito um Sistema de Regras?” (que foi incorporado ao capítulo 2 da obra Taking Rights Seriously). A pretensão fundamental de dito artigo era a de impugnar o que o próprio DWORKIN denominava “...a versão mais poderosa do positivismo jurídico, isto é, a teoria do Direito de H. L. A. Hart. Entre os defeitos capitais de dita teoria estaria, segundo Dworkin, sua incapacidade para dar conta da presença no Direito de normas distintas das regras — isto é, de princípios — o que privaria também a construção de Hart da possibilidade de compreender aspectos essenciais do raciocínio judicial nos denominados casos difíceis” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza, MANERO, Juan Ruiz. Las piezas del derecho: teoría de los enunciados jurídicos, p. 1).

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mandatos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus.”193

Os princípios, que são normas a ser avaliadas

em cada caso particular, são medidos a partir dos seus

conteúdos, fazendo “...referência à justiça e à eqüidade

(fairness)”194, sendo que com isso se procura demonstrar que a

moral não pode ser negligenciada.195 Daí decorre uma das

193 RODRIGUEZ. Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 204. Esta obra, que será muitas vezes citada no decorrer deste trabalho, foi recentemente traduzida para o português (cf. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino, São Paulo: Landy, 2000). É a partir dessa distinção entre norma-regra/norma-princípio que, por exemplo, Robert ALEXY vai elaborar a noção de ponderação como característica da aplicação de princípios, critério que mais tarde será utilizado na formulação de sua célebre teoria dos direitos fundamentais (cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Traduzido por Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1. Reimpressão, 1997). Quanto a esse tópico, vê-se ainda que: “Para ALEXY, os princípios são obrigações de otimização, enquanto as regras têm um caráter de obrigação definitiva. Assim, para os princípios a ponderação é a forma característica da aplicação do direito, ao passo que, para as normas, é aplicada a subsunção” (MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo dos paradoxos do direito: a aplicação dos princípios gerais do direito pela corte de justiça européia, p. 102). 194 CALSAMIGLIA, A. Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio, prólogo, p. 9. 195 Com efeito, será o conteúdo material do princípio — seu peso específico — que determinará como e de que forma deverá o mesmo ser aplicado em um caso concreto. Veja-se o que diz DWORKIN acerca da distinção entre regras e princípios e a forma de se aplicar estes últimos: “... Ambos os conjuntos de pautas [standards] apontam a determinadas decisões sobre a obrigação jurídica em circunstâncias determinadas, mas uns e outros diferem no caráter da orientação que fornecem. As regras são aplicadas sob a forma do tudo ou nada. Se ocorrem os fatos que estipula uma regra, então ou a regra é válida, em cujo caso a resposta que fornece deve ser aceita, ou então ela não é, em cujo caso não contribui em nada à decisão.

(...) Mas não é desta maneira que operam os princípios (...) Nem sequer

aqueles que mais se parecem com as regras estabelecem conseqüências jurídicas que decorrem automaticamente quando as condições previstas estiverem satisfeitas.

(...) Os princípios têm uma dimensão que as regras não têm: a dimensão de

peso ou importância. Quando há uma tensão entre princípios (...) aquele que

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principais debilidades do positivismo, pois a distinção entre

direito e moral não é tão clara; e se os positivistas caíram

nesse equívoco é porque seu âmbito de análise é estritamente

normativo, pois não leva em consideração a distinção entre

regras e princípios196 acima aduzida:

“ Esta imagem do direito, como sendo parcialmente indeterminado ou incompleto, e a do juiz, enquanto preenche as lacunas através do exercício de um poder discricionário limitadamente criador de direito, são rejeitadas por Dworkin, com fundamento em que se trata de uma concepção enganadora, não só do direito, como também do raciocínio judicial. Ele pretende, com efeito, que o que é incompleto não é o direito, mas antes a imagem dele aceite pelo positivista, e que a circunstância, de isto assim ser emergirá da sua própria concepção ‘interpretativa’ do direito, enquanto inclui, além do direito estabelecido explícito, identificado por referência às suas fontes sociais, princípios jurídicos implícitos, que são aqueles princípios que melhor se ajustam ao direito explícito ou com ele mantêm coerência, e também conferem a melhor justificação moral dele. Neste ponto de vista interpretativo, o direito nunca é incompleto ou indeterminado, e, por isso, o juiz nunca tem oportunidade de sair do direito e de exercer um poder de criação do direito, para proferir uma decisão. É, por isso, para esses princípios implícitos, com as suas dimensões morais, que os tribunais se deviam voltar nesses ‘casos difíceis’, em que as fontes sociais do direito não conseguem determinar a decisão sobre certo ponto de direito.”197

deve resolver o conflito deve ter em conta o peso relativo de cada um. (...) As regras não têm essa dimensão” (DWORKIN, Ronald. Los derechos en

serio, p. 75-78). 196 Na terminologia adotada aqui regras e princípios são espécies que estão contidas no gênero norma: “A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz). Abandonar-se-á aqui essa distinção para, em sua substituição, se sugerir: (1) as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1.034). 197 HART, Herbert L.A. O conceito de direito, p. 335-336.

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135

Com efeito, DWORKIN pensa que a reduzida

perspectiva positivista que se situa apenas no âmbito das

normas-regra é que levará os positivistas, em determinados

casos, a aceitarem a discricionariedade do intérprete. Se

acaso levassem também em consideração os princípios que

informam as normas jurídicas concretas (regras), seria

possível que a sua literalidade fosse desatendida pelo juiz

quando em desconformidade com algum princípio que se revelasse

relevante no respectivo caso concreto. Não haveria

discricionariedade e nem criação de Direito ex post facto.

Segundo HART é exatamente no que tange à

discricionariedade ou não do intérprete que reside o maior

conflito entre ele e DWORKIN:

“ O conflito direto mais agudo entre a teoria jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado pela minha afirmação de que, em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito estabelecido pré-existente. Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe, os seus poderes de criação do direito.”198

198 HART, H. L. A. Idem, p. 335.

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O uso da discricionariedade nas decisões

judiciais teria lugar sobretudo nos denominados casos

difíceis199, isto é, aqueles casos em que há incertezas, seja

porque existem várias normas que determinariam sentenças

distintas — no caso de normas contraditórias (incompatíveis) —

seja porque não existe nenhuma norma exatamente aplicável.

Neste sentido, segundo Vera KARAM Chueiri:

“ O positivismo de HART cria artifícios – em face da sua estreita concepção do direito – dentre os quais destaca-se a idéia da discricionariedade. Sua ocorrência diz respeito à imprecisão que determinadas regras apresentam, de forma que as mesmas não são suficientes à descrição dos fatos, ou ainda, diz respeito à inexistência de regras próprias a esta descrição. Essa textura aberta da regra permite entenda-se o sistema como aberto, apesar da sua autoregulamentação. Há, aqui,

199 Vale dizer que HART admite mesmo que a interpretação de todas as regras, dada a textura aberta característica das mesmas, demandam um certo grau de discricionariedade; e que nos casos mais importantes o seu uso é inevitável: “... Não restam dúvidas de que os tribunais proferem os seus julgamentos de forma a dar a impressão de que as suas decisões são a conseqüência necessária de regras predeterminadas cujo sentido é fixo e claro. Em casos muitos simples, tal pode ser assim; mas na larga maioria dos casos que preocupam os tribunais, nem as leis, nem os precedentes em que as regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado. Nos casos mais importantes, há sempre uma escolha. O juiz tem de escolher entre sentidos alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações conflitantes do que um precedente ‘significa’. É só a tradição de que os juízes ‘descobrem’ o direito e não o ‘fazem’ que esconde isto e apresenta as suas decisões como se fossem deduções feitas com toda a facilidade de regras claras preexistentes, sem intromissão da escolha do juiz. As regras jurídicas podem ter um núcleo central de sentido indiscutível, e em alguns casos pode parecer difícil imaginar que surja uma discussão acerca do sentido de uma regra. A previsão do art. 9o da Lei dos Testamentos de 1837, que estabelece que deve haver duas testemunhas em cada testamento, pode razoavelmente parecer que não dará origem a problemas de interpretação. Contudo, todas as regras têm uma penumbra de incerteza em que o juiz tem de escolher entre alternativas. Mesmo o sentido da previsão aparentemente inocente da Lei dos Testamentos de que o testador deve assinar o testamento pode revelar-se duvidosa em certas circunstâncias. E se o testador usou um pseudônimo? Ou se alguém pegou na mão dele para fazer a assinatura? Ou se ele escreveu apenas as suas iniciais? Ou se ele pôs o seu nome completo, correto e sem auxílio, mas no princípio da primeira página, em vez de no fim da última? Poderiam ser todos estes casos considerados como ‘assinar’, no sentido da regra jurídica?” (HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito, p. 16-17).

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duas questões insurgentes: a primeira, relativamente às lacunas existentes no direito e à inexistência de uma resposta (certa) a pretensão de um direito. A segunda, relativamente ao poder discricionário do juiz de criar o direito.”200

Para o positivismo de HART, portanto, nas

ocasiões em que não exista uma norma exatamente aplicável o

juiz deve decidir com discricionariedade pois, considerando

que o direito não pode oferecer respostas a todos os casos que

aparecem, não se pode falar na existência prévia de uma

solução correta. DWORKIN, ao contrário, sustentará que os

casos difíceis têm sim uma resposta correta.

E é na tentativa de demonstrar essa

possibilidade que estará centrada toda a sua obra até então

existente. Uma vez ciente da diferença entre regras e

princípios e o papel que estas duas classes de norma

desempenham, o intérprete (para essa função DWORKIN propõe um

modelo de juiz ideal: Hércules) deverá encontrar a melhor

perspectiva de interpretação do objeto analisado dadas

determinadas circunstâncias201, sendo que a cada caso novo os

princípios invocados poderão receber diferentes medidas.

Para DWORKIN a atitude interpretativa de

Hércules — que conduz a uma busca incessante de critérios

200 CHUEIRI, Vera Karam. Filosofia do direito e modernidade: dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos, p. 93. 201 Não se trata aqui, portanto, de descobrir os motivos e intenções do autor (do legislador).

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decisórios — deve se desenvolver em três etapas202, cuja base

teórica é retirada sobretudo, conforme aduz ATIENZA, a partir

do pensamento de GADAMER:

“ ... A primeira, que Dworkin denomina pré-interpretativa, consiste na identificação dessa prática e tem basicamente, mas não exclusivamente, caráter descritivo. A segunda — a fase interpretativa — centra-se no estabelecimento de um valor a esta prática: consiste, pois, em apresentar uma justificação geral dos princípios que se ajustem à prática em questão de maneira que seja uma interpretação e não uma invenção. E a terceira é a fase pós-interpretativa ou reformadora, na qual se trata de modificar ou reformular a prática para que satisfaça melhor seu sentido, isto é, para que se ajuste melhor à justificação geral estabelecida na etapa anterior.”203

Vale dizer que a análise e avaliação dos

princípios se dará através de uma argumentação racional em que

critérios morais também atuarão, assim como são morais os

argumentos de repúdio à tese da discricionariedade, cuja

admissão resultaria em conseqüências inaceitáveis e odiosas.

Com efeito, a sua admissão levaria à subversão do princípio da

tripartição dos poderes204; na aplicação de lei com efeitos

202 Essas etapas estão descritas no capítulo II da obra Law’s Empire (DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo: Martins Fontes, 1999) e, mais detalhadamente, na Parte Dois da obra A Matter of Principle (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2000). 203 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Derecho y argumentación, p. 121. 204 “O modelo de Dworkin evita vários problemas importantes: o primeiro, que o juiz não se constitua em legislador, o que significa que o poder judiciário tem como função garantir direitos pré-estabelecidos.

Em segundo lugar: a tese de Dworkin é compatível com o postulado da separação dos poderes, posto que o juiz está subordinado à lei e ao direito. O poder judiciário é ‘nulo’ — como afirmava Montesquieu — porque sua função é garantir direitos.

Em terceiro lugar: o modelo da resposta correta rechaça a teoria do silogismo, mas aceita seu princípio político básico: o juiz não tem e nem

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retroativos205; e no reconhecimento, ao menos em alguns casos

(logo os mais importantes), da incapacidade da razão (o

positivismo aqui é acusado de irracionalismo).206

A partir dessas críticas se seguiu um grande

debate entre DWORKIN e HART que, por sua vez, estendeu-se à

comunidade jurídica internacional, sendo este também um dos

debates mais em voga na atualidade.

Limitemo-nos a apresentar as objeções feitas

por HART contra as principais críticas que lhe foram dirigidas

por DWORKIN.207

pode ter poder político. A função do juiz é garantir os direitos individuais e não indicar objetivos sociais. A função judicial é distinta da legislativa e da executiva.

Em quarto lugar: nos casos difíceis os juízes não baseiam suas decisões em objetivos sociais ou diretrizes políticas. Os casos difíceis se resolvem com base em princípios que fundamentam direitos.” (CALSAMIGLIA, A. Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio, prólogo, p. 21). 205 Já que o direito novo criado pelo juiz estaria sendo aplicado a fatos pretéritos. 206 “O positivismo jurídico, conforme já foi mencionado, parte do pressuposto de que pode haver uma zona de imprecisão no direito, relativamente à vagueza que uma determinada regra positiva apresenta e por isso deve o juiz lançar mão da sua discricionariedade, resolvendo acerca dos direitos das partes como bem lhe aprouver” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra citada, p. 94). Quanto à defesa de uma postura irracionalista nas ocasiões em que surgem essas zonas de imprecisão, de penumbra, enfim, os chamados casos limítrofes em que geralmente estão contidos os casos difíceis que justificariam o uso da discricionariedade pelos juízes, DWORKIN faz surpreendentes acusações dirigidas ao positivismo: “Além do mais, a tese do caso limítrofe é pior que um insulto (...) ...se trata de uma piada grotesca” (DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 50-54). 207 Essas objeções foram publicadas em forma de pós-escrito na 2ª edição da obra The Concept of Law”, constante da edição portuguesa de 1994 (HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 1994).

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Para DWORKIN, como visto, a discrição judicial

que tem lugar na interpretação de casos difíceis, em que o

juiz atuaria como quase-legislador, é insustentável. Veja-se

que DWORKIN usa o termo discrição em seu sentido mais forte,

ou seja, entendendo que nos casos difíceis o juiz teria total

liberdade para criar direito. HART repudia essa interpretação,

vez que nunca advogou, segundo ele, essa tal liberdade sem

freios. Deixemos HART falar:

“ É importante que os poderes de criação que eu atribuo aos juízes, para resolverem os casos parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam diferentes dos de um órgão legislativo: não só os poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos que estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que os poderes do juiz são exercidos apenas para ele se libertar de casos concretos que urge resolver, ele não pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou novos códigos. Por isso, os seus poderes são intersticiais, e também estão sujeitos a muitos constrangimentos substantivos. Apesar disso, haverá pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer decisão que seja correta e, para decidir os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso de forma arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e valores. Mas se ele satisfizer estas condições, tem o direito de observar padrões e razões para a decisão, que não são ditadas pelo direito e podem diferir dos seguidos por outros juízes confrontados com casos difíceis semelhantes.”208

208 HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 336.

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Portanto, frente aos casos difíceis os juízes

não gozam, definitivamente, de discrição em sentido forte, nem

suas decisões podem ser arbitrárias, pois deverão sempre

justificar suas razões e observar certos padrões dogmáticos,

bem como estar alinhados com postulados de racionalidade

prática, tais como os princípios de universalidade,

consistência, coerência e aceitabilidade das conseqüências.209

Ademais, outro aspecto que parece ter sido

omitido pela crítica de DWORKIN é o fato de que, em muitos

casos, os juízes fazem uso da analogia:210

“ Uma consideração principal ajuda a explicar a resistência à pretensão de que os juízes, por vezes, não só criam, como aplicam direito, elucida também os principais aspectos que distinguem a criação do direito judicial da criação pelo órgão legislativo. Trata-se da importância caracteristicamente ligada pelos tribunais, quando decidem casos não regulados, ao procedimento por analogia, de forma a assegurarem que o novo direito que criam, embora seja direito novo, está em conformidade com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidos como tendo já uma base no direito existente.”211

209 Manuel ATIENZA assim descreve alguns desses princípios de racionalidade prática: “...o princípio de universalidade ou de justiça formal que estabelece que os casos iguais devem ser tratados da mesma maneira; o princípio de consistência, segundo o qual as decisões devem se basear em premissas normativas e fáticas que não entrem em contradição com normas validamente estabelecidas ou com a informação fática disponível; e o princípio de coerência, segundo o qual as normas devem poder ser subsumidas sob princípios gerais ou valores que resultem aceitáveis, no sentido de que configurem uma forma de vida satisfatória (coerência normativa), enquanto os fatos não comprovados mediante prova direta devem resultar compatíveis com os demais fatos tidos como provados, e devem poder ser explicados em conformidade com os princípios e leis que regem o mundo fenomênico (coerência narrativa)” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Tras la justicia: una introducción al derecho y al razonamiento jurídico, p. 137). 210 Parece que neste ponto até mesmo aquela idéia de que as regras ou se aplicam totalmente ou não se aplicam, fica comprometida, vez que o juízo por analogia é um caso típico de utilização/invocação da norma geral inclusiva, conforme aduz BOBBIO em seus ensinamentos (ver BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, capítulo 4). 211 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337.

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Tentando demonstrar que talvez o positivismo

jurídico não seja — e talvez nunca tenha sido — incompatível

com a teoria de DWORKIN — e que as críticas formuladas por

este último são até mesmo despropositadas — HART afirma que a

atitude interpretativa propugnada por aquele autor nunca

deixou de ser observada pelos positivistas:

“ ... É verdade que, quando certas leis ou precedentes concretos se revelam indeterminados, ou quando o direito explícito é omisso, os juízes não repudiam os seus livros de direito e desatam a legislar, sem a subseqüente orientação do direito. Muito freqüentemente, ao decidirem tais casos, os juízes citam qualquer princípio geral, ou qualquer objetivo ou propósito geral, que se pode considerar que determinada área relevante do direito exemplifica ou preconiza, e que aponta para determinada resposta ao caso difícil que urge resolver. Isto, na verdade, constitui o próprio núcleo da ‘interpretação construtiva’ que assume uma afeição tão proeminente na teoria do julgamento de Dworkin.”212

Porém HART, que não admite que em todos os

casos se possa chegar com certeza a uma decisão correta (ou

afirmar qual das decisões possíveis é a mais correta), mantém

sua posição de que, nestes casos, o juiz é e pode ser criador

de direito:

“ ... Mas embora este último processo, seguramente, o retarde, a verdade é que não elimina o momento de criação judicial de direito, uma vez que, em qualquer caso difícil, podem apresentar-se diferentes princípios que apóiam analogias concorrentes, e um juiz terá freqüentemente de escolher entre eles, confiando, como um legislador consciencioso, no seu sentido sobre aquilo que é melhor, e não em qualquer ordem de prioridades já

212 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337-338.

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estabelecida e prescrita pelo direito relativamente a ele, juiz. Só se, para tais casos, houvesse sempre de se encontrar no direito existente um determinado conjunto de princípios de ordem superior atribuindo ponderações ou prioridades relativas a tais princípios concorrentes de ordem inferior, é que o momento de criação judicial de direito não seria meramente diferido, mas eliminado.”213

Ora, há a possibilidade de que dois princípios

contraditórios se revelem de igual envergadura na apreciação

de uma caso concreto, o que demandará uma opção. Tal opção,

apesar do dever de justificação, implicará discricionariedade,

pois não existe um critério seguro que possa medir o peso dos

princípios em cada caso.

A existência de um critério tal só poderia ser

viável se supuséssemos a crença em uma homogeneidade de

princípios e valores (tanto sociais quanto jurídicos). Mas a

defesa de um objetivismo moral, segundo ABELLÁN, parece

inaceitável, vez que:

“ ...todos os sistemas jurídicos contemporâneos, sem exceção, são o resultado de uma produção normativa muito dilatada no tempo, são fruto não de uma, mas de muitas políticas jurídicas contrastantes entre si; tendo incorporado, por isso, uma grande quantidade de princípios e regras incompatíveis. É sustentável que uma, e só uma, doutrina política (que se supõe internamente coerente), seja idônea para justificar todo princípio e toda regra do sistema?”214

213 HART, H. L. A. Obra citada, p. 338. 214 ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 25.

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Dada a heterogeneidade dos valores, poder-se-ia

mesmo imaginar a existência de dois juízes Hércules,

igualmente racionais e que certamente chegariam à conclusão —

diante de certas decisões não convergentes tomadas por eles em

algumas situações — de que “...muitos casos podiam ser

decididos num sentido ou noutro”.215

Quanto à acusação de que o ato criativo do juiz

implica efeitos retroativos à norma, também parece

desarrazoada:

“ Dworkin formula uma outra acusação de que a criação judicial do direito é injusta e condena-a como uma forma de legislação retroativa ou de criação de direito ex post facto, a qual é, com certeza, considerada, de forma geral, como injusta. Mas a razão para considerar injusta a criação de direito reside em que desaponta as expectativas justificadas dos que, ao agirem, confiaram no princípio de que as conseqüências jurídicas dos seus atos seriam determinadas pelo estado conhecido do direito estabelecido, ao tempo dos seus atos. Esta objeção, todavia, mesmo que valha contra uma alteração retroativa do direito por um tribunal, ou contra um afastamento do direito estabelecido, parece bastante irrelevante nos casos difíceis, uma vez que se trata de casos que o direito deixou regulados de forma incompleta e em que não há um estado conhecido do direito, claramente estabelecido, que justifique expectativas.”216

Ademais, a resolução de um conflito entre

princípios não supõe a criação de um novo direito nem a

aplicação de uma norma retroativa, pois aqui se trata

simplesmente de uma eleição entre direitos.

215 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337. 216 HART, H. L. A. Idem, p. 339.

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Quanto à crítica de que a discricionariedade do

juiz subverte os princípios democráticos originários de

“...uma longa tradição européia e uma doutrina de divisão de

poderes que dramatizam a distinção entre o Legislador e o Juiz

e insistem em que o Juiz deve aparecer, em qualquer caso, como

sendo aquilo que é, quando o direito existente é claro, ou

seja, um mero ‘porta-voz’ do direito, que ele não cria ou

molda”217, HART a rebate com uma mescla entre os denominados

argumento pelo sacrifício218 e argumento pragmático:219

“ As outras críticas de Dworkin à minha concepção de poder discricionário judicial condenam esta última, não por ser descritivamente falsa, mas por dar apoio a uma forma de criação de direito que é antidemocrática e injusta. Os juízes não são, em regra, eleitos e, numa democracia, segundo se alega, só os representantes eleitos do povo deveriam ter poderes de criação do direito. Existem muitas respostas a esta crítica. Que aos juízes devem ser confiados poderes de criação do

217 HART, H. L. A. Idem, p. 337. 218 Sobre o argumento pelo sacrifício, afirma PERELMAN: “Um dos argumentos de comparação utilizados com mais freqüência é o que alega o sacrifício a que se está disposto a sujeitar-se para obter certo resultado. (...)

Na argumentação pelo sacrifício, este deve medir o valor atribuído àquilo por que se faz o sacrifício” (PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 281-282). 219 Ainda segundo os autores do Tratado: “Denominamos argumento pragmático aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. (...)

Para os utilitaristas, como Bentham, não há outra forma satisfatória de argumentar:

Que é dar uma boa razão em matéria de lei? É alegar bens ou males que essa lei tende a produzir... Que é dar uma falsa razão? É alegar, pró ou contra uma lei, qualquer outra coisa que não seus efeitos, seja em bem, seja em mal. O argumento pragmático parece desenvolver-se sem grande dificuldade,

pois a transferência para a causa, do valor das conseqüências, ocorre mesmo sem ser pretendido. Entretanto, quem é acusado de ter cometido uma má ação pode esforçar-se por romper o vínculo causal e por lançar a culpabilidade em outra pessoa ou nas circunstâncias. Se conseguir inocentar-se terá, por esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que parecerá, nesse momento, a causa da ação” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 303).

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direito para resolver litígios que o direito não consegue regular, pode ser encarado como o preço necessário que se tem de pagar para evitar o inconveniente de métodos alternativos de regulamentação desses litígios, tal como o reenvio da questão ao órgão legislativo, e o preço pode parecer baixo se os juízes forem limitados no exercício destes poderes e não puderem modelar códigos ou amplas reformas, mas apenas regras para resolver as questões específicas suscitadas por casos concretos. Em segundo lugar, a delegação de poderes legislativos limitados ao Executivo constitui um traço familiar das democracias modernas e tal delegação ao Poder Judiciário não parece constituir uma ameaça mais séria à democracia. Em ambas as formas de delegação, um órgão legislativo eleito terá normalmente um controle residual e poderá revogar ou alterar quaisquer leis autorizadas que considere inaceitáveis. É verdade que quando, como nos E.U.A., os poderes do órgão legislativo são limitados por uma constituição escrita e os tribunais dispõem de amplos poderes de fiscalização da constitucionalidade das leis, um órgão legislativo democraticamente eleito pode encontrar-se na situação de não poder modificar um ato de legislação judicial. Então, o controle democrático em última instância só pode ser assegurado através do dispositivo complexo da revisão constitucional. Isso é o preço que tem de pagar-se pela consagração de limites jurídicos ao poder político.”220

220 HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 338-339. Como o próprio PERELMAN diz, “...em geral, o argumento pragmático só pode desenvolver-se a partir do acordo sobre o valor das conseqüências” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 304). No caso específico de que se trata acima, dada a constatação, que já vem de longe, de que “...as tentativas da Escola da Exegese na França e da Jurisprudência conceitual na Alemanha para manter a idolatria da lei não obtiveram êxito [vez que] o pensamento formal, manifestado por cláusulas gerais e métodos silogísticos, foi insuficiente para vincular o juiz à lei, no sentido estreito formulado pelos teóricos” (BOITEUX, Elza Antônia Pereira Cunha. O significado perdido da função de julgar, p. 23), muitos estudos têm sido realizados, com grande aceitação, propugnando pela revisão da noção ortodoxa do princípio da legalidade, como demonstra Clèmerson Merlin CLÈVE ao afirmar que “...a missão dos juristas, hoje, é de adaptar a idéia de Montesquieu à realidade constitucional de nosso tempo. Nesse sentido, cumpre aparelhar o Executivo, sim, para que ele possa, afinal, responder às crescentes e exigentes demandas sociais. Mas cumpre, por outro lado, aprimorar os mecanismos de controle de sua ação, para o fim de torná-los (os tais mecanismos) mais seguros e eficazes” (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na constituição de 1988, p. 42). Há fortes razões que indicam, portanto, que a argumentação de HART acima transcrita tem consistência e que, por isso mesmo, não pode ser negligenciada.

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De todas as considerações feitas até aqui sobre

o pensamento de DWORKIN, uma coisa não se pode negar: as

justificações nos casos difíceis têm sempre um forte

componente moral; e que talvez por isso DWORKIN esteja certo

ao dizer que o divórcio entre direito e moral não seja mesmo

tão claro como sustentam os positivistas. Seja como for, sob a

ótica interna221 ao sistema — e fora dos casos difíceis — não

há razões para que o positivismo jurídico abandone a tese da

separação entre direito e moral, pois os princípios jurídicos

não precisam coincidir necessariamente com enunciados morais

ou políticos. A moral certamente entrará em cena quando o

problema em questão envolva a opção entre dois ou mais

princípios jurídicos.

Mas ao menos sob outro aspecto — que não nos

casos difíceis — razões morais, ainda que implicitamente, são

aplicadas pelo juiz. Para HART o ponto de vista interno é

suficiente para dar conta das normas, mas aqui o autor só

presta atenção ao aspecto cognoscitivo e não ao aspecto

volitivo, conforme aduz ATIENZA:

221 Aproveitando a noção de HART quanto ao ponto de vista do observador: “... À primeira destas formas de expressão chamaremos uma afirmação interna, porque manifesta o ponto de vista interno e é naturalmente usada por quem, aceitando a regra de reconhecimento e sem declarar o fato de que é aceite, aplica a regra, ao reconhecer uma qualquer regra concreta do sistema como válida. À segunda forma de expressão chamaremos afirmação externa, porque é a linguagem natural de um observador externo ao sistema que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento desse sistema, enuncia o fato de que outros a aceitam” (HART, Herbert L.A. Obra citada, p. 114).

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“ ... O componente cognoscitivo do ponto de vista interno consiste em valorar e compreender a conduta em termos de standards que devem ser usados pelo agente como guia de sua conduta. Mas, também, existe um componente volitivo que consiste no fato de o agente, em algum grau, e por razões que a ele parecem boas, admitir um compromisso de se submeter a um modelo de conduta dado como um standard para ele, para outra pessoa ou para ambos. Este último aspecto é de grande importância na relação de aceitação da regra de conhecimento que, efetivamente, leva consigo um compromisso consciente com os princípios políticos subjacentes ao ordenamento jurídico. Para os juízes, definitivamente, a aceitação da regra de reconhecimento e da obrigação de aplicar o Direito válido se baseia em razões desse segundo tipo [volitivas], que não podem ser outra coisa senão razões morais.”222

Portanto, o simples fato de o intérprete tomar

uma norma do sistema, após submetê-la ao teste do seu pedigree

ou de sua origem frente à regra de reconhecimento223, aceitar a

sua autoridade e aplicá-la, já representa em si mesmo a

interferência de uma regra moral, conforme aduz L. S. SOUZA:

“ A primeira regra do jogo dogmático é a aceitação acrítica do ordenamento vigente. Mas qual seria o pressuposto teórico desta aceitação? Sem dúvida, a crença num princípio de autoridade. Isto nos conduz a

222 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 154. 223 As doutrinas positivistas mais desenvolvidas utilizam como critério de identificação do sistema jurídico uma norma chave. Tal é o caso da norma fundamental de KELSEN ou a regra de reconhecimento de HART. A regra de reconhecimento de HART consiste em uma prática social que estabelece que as normas que satisfazem certa condição são válidas. Cada sistema normativo tem sua própria regra de reconhecimento e seu conteúdo varia e é uma questão empírica. Há sistemas normativos que reconhecem como fonte do direito um livro sagrado, ou a lei, ou os costumes, ou várias fontes ao mesmo tempo. A regra de reconhecimento é o critério utilizado por HART para identificar um sistema jurídico e fundamentar a validade de todas as regras dela derivadas. O teste de pedigree consiste exatamente em verificar se uma regra existe, se ela é válida perante a regra de reconhecimento, pois, repita-se, é dela que todas as regras devem retirar seu fundamento de validade. Ainda sobre o teste de pedigree, segundo DWORKIN as normas/princípio não estariam sujeitas a este exame, já que elas não se sujeitariam ao tudo ou nada e nem poderiam ser identificadas por sua origem, mas sim por seu conteúdo ou força argumentativa.

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uma segunda regra, da qual advém importantes conseqüências, qual seja, a crença na racionalidade do legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do direito abandona uma posição de simples descrição do ordenamento, a fim de justificar o ponto de partida dogmático.”224

Neste ponto chega-se ao problema, já explanado

anteriormente, da legitimidade.

Em suas críticas ao positivismo, DWORKIN tem o

mérito de recolocar o problema da moral — ou de desvelar o que

se tentou ocultar — em dois momentos importantes da aplicação

da norma: a) com sua teoria que distingue as normas entre

regras e princípios, pode-se perceber mais claramente que, nos

casos difíceis, em que geralmente estarão em conflito

princípios jurídicos aceitos no sistema, a justificação da

escolha implicará, ainda que não isoladamente, a invocação de

critérios morais (justiça, eqüidade, etc); e b) a aceitação

(numa perspectiva volitiva) da regra de reconhecimento, do

ponto de vista interno ao sistema, também implica questões

morais, que neste ponto estão diretamente ligadas ao problema

da legitimidade.

A exceção da insistência de DWORKIN de que se

pode chegar sempre a uma solução correta em todos os casos225,

224 SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito, p. 56. 225 O que ensejou o surgimento de alguns autores que interpretaram a sua obra como uma nova versão do jusnaturalismo (cf. CALSAMIGLIA, A. Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio, prólogo, p. 11).

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a sua teoria em nenhum outro aspecto é incompatível com o

positivismo jurídico. Talvez se dê exatamente o contrário.

Considerando os seus preciosos estudos sobre o tema da

interpretação e suas etapas; a sua elaboração do critério que

distingue as normas entre regras e princípios; e o seu

reconhecimento de que as questões de integridade e coerência

(o que implica a submissão ao sistema normativo reconhecido)

devem ter um peso decisivo226 arriscamos mesmo a dizer que a

teoria de DWORKIN seja um aperfeiçoamento do próprio

positivismo jurídico que, paradoxalmente, ele próprio tentou

fulminar.

Com DWORKIN o positivismo ressurge das cinzas

que ele (DWORKIN) mesmo ajudara a produzir; tal qual Fênix o

positivismo reaparece mais vivo do que nunca, revigorado por

um refinamento sem precedentes, tributário da obra de DWORKIN.

“Significa alguma coisa afirmar que os juízes devem aplicar a lei, ao invés de ignorá-la, que o cidadão deve obedecer à lei, a não ser em casos muito raros, e que os funcionários públicos são regidos por suas normas. Parece estúpido negar tudo isso simplesmente porque às vezes divergimos sobre o verdadeiro conteúdo do direito” (DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 54). Ver, ainda, os capítulos VI e VII da mesma obra. Enfim, como diz Vera KARAM: “Dworkin é um moderno; sua desobediência sempre civil!” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra citada, p. 65).

226

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3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA

TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

“Por isso poderá ser vantajoso dissimular algumas de nossas armas. Pois o adversário as reclama com insistência e amiúde faz com que delas dependa o desfecho da causa, crendo que não as temos; reclamando nossas provas, confere-lhes autorida-de.”

Quintiliano

“A conciliação do irreconciliável, a mescla das antíteses, a síntese das oposições, eis os grandes problemas do direito.”

Benjamin N. Cardozo

“A filosofia constitui o domínio, não da verdade, mas da tolerância. Nada há mais intolerante do que a verdade.”

Perelman

3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica

A análise histórico-crítica contida nos dois

primeiros capítulos deste trabalho poderá eventualmente ser

acusada de não ter acrescido muito — ou quase nada — àquilo

que se conhece e que até mesmo já se tornou senso comum em

Teoria Geral do Direito.

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Mas ao menos dois motivos, em nosso entender,

justificam a presença de ambos nessa empreitada: o primeiro,

de caráter formal, é que o tema a ser tratado neste capítulo

estará melhor situado e seu ponto de partida justificado,

evitando-se assim a proliferação de notas de rodapé para

infindáveis contextualizações e, o que seria mais grave,

eventuais acusações de petitio principii; o segundo, de

caráter material, e que para nós é mais importante, é o fato

de que, ao menos, uma premissa pode ser estabelecida: o velho

tema das relações entre a moral e o direito permanece estando

no fundo de todo grande debate sobre a teoria do direito.

Isso não significa dizer, contudo, que o

positivismo jurídico, na sua forma atual, saiu derrotado de

seus esforços de estabelecer a divisão do direito e da moral,

que se tenha que retroceder, voltando ao realismo jurídico, a

alguma postura sociológica ou econômica (os sociologismos),e

até mesmo, o que seria pior, a alguma forma de jusnaturalismo.

Na verdade, ainda que a metodologia jurídica

não possa se valer de elementos externos ao sistema (inclusive

morais) para fundar decisões, permanecendo aqui a divisão, não

se pode negar que a admissão mesma da autoridade de um sistema

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normativo já implica uma valoração moral, que neste aspecto é

imanente ao próprio sistema.227

Também na valoração dos princípios jurídicos

que servirão de apoio a uma decisão — e aqui isso é evidente —

não se pode negar o forte componente moral subjacente. Até

mesmo nos problemas jurídicos mais banais, em que não há

dúvidas quanto aos fatos e nem quanto à qualificação da norma

aplicável, não estará ausente algum critério, ainda que

mínimo, moral. Para Karl LARENZ “...a isso subjaz a

constatação de que na apreciação jurídica — v.g., considerar

determinado comportamento como ‘negligente’ — se insinuam

sempre e permanentemente valorações”228, pois “...nenhum

procedimento dedutivo logicamente correto garante resultados

intrinsecamente adequados, quando na cadeia dedutiva se

introduzem premissas assentes em valorações”.229

A dedução judicial se dá no âmbito de uma

racionalidade prática, informal, já que “...o discurso

jurídico é um ‘caso particular do discurso prático geral’”.230

227 Não se afirma, contudo, um retorno daquelas teorias partidárias de que as obrigações jurídicas devem necessariamente se conformar com a moral, como, por exemplo, a teoria do mínimo ético descrita por REALE, “...a ‘teoria do mínimo ético’ pode ser reproduzida através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que ‘tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico’” (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito 42). , p.228 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 2. 229 LARENZ, K. Idem, ibidem. 230 LARENZ, K. Idem, p. 212-213.

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Indo adiante, numa comparação entre discurso moral — que

também faz parte do discurso prático geral — e discurso

jurídico, alguns já inferem que “...o raciocínio moral não é

um caso empobrecido do raciocínio jurídico, posto que este

último [o raciocínio jurídico] é ‘um caso especial, altamente

institucionalizado e formalizado, de raciocínio moral’”.231

Diga-se desde de logo que o raciocínio jurídico

não é só governado pela razão prática geral, já que sofre

limitações internas:

“ ...‘pois que a argumentação jurídica tem lugar sob uma série de condições limitativas’. Estas condições seriam: ‘a vinculação à lei, a consideração que se exige pelos precedentes, a chancela da dogmática resultante da ciência jurídica institucionalmente cultivada’, bem como, excetuando o discurso juscientífico, ‘as restrições decorrentes das regras dos códigos de processo’. E sendo assim, também é mais restrita a pretensão de justeza que suscitam as asserções jurídicas face às do ‘discurso prático geral’. ‘Não se pretende dizer, de modo puro e simples, que o enunciado normativo que se afirma, que se propõe ou que se expressa num ato de julgar é racional, mas que só pode ser racionalmente fundamentado nos quadros da ordem jurídica vigente’.”232

As limitações internas da racionalidade prática

jurídica não se restringem apenas a isso, já que a

racionalidade jurídica, ainda que naturalmente comprometida

com a otimização dos procedimentos destinados à resolução

231 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 157. Tal pensamento, que é inspirado em HABERMAS, tem sido adotado por ALEXY e MACCORMICK em suas respectivas teorias da argumentação jurídica. 232 LARENZ, K. Obra citada. p. 213.

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prática dos conflitos sociais, não deixa de se valer do uso da

força.

Com efeito, “...o Direito não é só razão, ou

argumentação: é também burocracia e, sobretudo, violência

institucionalizada, em doses variáveis, porém nunca

desprezíveis”.233

Além do mais, “...a racionalidade jurídica —

inclusive a do direito do estado democrático — não é só uma

racionalidade em si mesma limitada — posto que o Direito não

pode deixar de fazer uso da força — mas também está

condicionado, desde fora, pelos pressupostos econômicos,

culturais, políticos, ideológicos, etc. que tornam possível

esse tipo de Direito”.234

Não se pretende afirmar, no entanto, que essas

limitações — externas ou internas — escapam totalmente à

crítica, que os modelos jurídicos existentes não possam se

questionados no âmbito de uma discussão racional, em que os

próprios fins perseguidos e a utilização de determinados meios

sejam colocados em cheque (pelos participantes do discurso).

233 RODRIGUEZ, M. A. Derecho y argumentación, p. 15. 234 RODRIGUEZ, M. A. Idem, p. 16-17.

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Mas que âmbito é este em que se opera uma

discussão racional, ou melhor, em que sentido se pode falar em

racionalidade jurídica e qual o seu alcance?235

Uma resposta a essa pergunta não pode

prescindir, antes de tudo, de uma análise das práticas

jurídicas existentes, da forma como têm sido efetivamente

solucionados seus problemas, enfim, quais os modelos básicos

do pensar jurídico na atualidade. A análise estará centrada,

portanto, no positivismo jurídico atual e os problemas que tem

enfrentado.

A prática jurídica consiste, fundamentalmente,

em argumentar. O trabalho dos órgãos jurisdicionais e, em

geral, dos aplicadores do direito, como o dos doutrinadores,

consiste principalmente em produzir argumentos para a

resolução de casos, sejam eles concretos (individuais) ou

genéricos, reais ou fictícios:

“ ... Argumentar constitui, definitivamente, a atividade central dos juristas e se pode dizer inclusive que há muito poucas profissões — se é que há alguma — em

235 Não se pode olvidar da já abordada crise por que tem passado a razão no século XX, cujos reflexos, evidentemente, estão se fazendo sentir também no âmbito jurídico. Com efeito, a admissão por si só da pergunta acima como algo que se deva levar a sério já é um forte indício da existência de uma crise. São vários os autores que tomam essa crise como ponto de partida em seus trabalhos. Por exemplo LARENZ, que já no início de uma de suas principais obras admite: “Fala-se de ‘perdas de certeza no pensamento jurídico’, considera-se a opção metódica como arbitrária, propende-se a aceitar como satisfatórias não já as soluções reconhecidamente adequadas mas apenas ‘plausíveis’ ou ‘suscetíveis de consenso’, ou remetem-se os juristas para as ciências sociais como as únicas donde poderiam esperar conhecimentos relevantes” (LARENZ, Karl. Obra citada, p. 1-2).

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157

que a argumentação tenha um papel mais importante que no Direito.”236

Em princípio, podem ser apontadas três áreas

distintas em que se efetuam argumentações jurídicas: a) na

produção de normas jurídicas; b) na aplicação das normas

jurídicas; e c) na dogmática jurídica.237

O campo da argumentação na produção das normas

jurídicas pode ser subdividido em dois momentos: as

argumentações que têm lugar numa fase pré-legislativa e as que

são produzidas numa fase propriamente legislativa. As

primeiras delas se efetuam como conseqüência do surgimento de

um problema social cuja solução — no todo ou em parte — possa

ser a adoção de uma medida legislativa.

Por exemplo, frente ao problema das drogas ou

da responsabilidade política se pode reagir, respectivamente,

endurecendo as penas para os narcotraficantes (ou, o que dá no

mesmo, exigindo-se que eles cumpram integralmente suas

condenações) e introduzindo novos tipos penais, como ocorrido

recentemente com a introdução de sanções criminais àqueles

236 RODRIGUEZ, M. A. Tras la justicia: una introducción al derecho y al razonamiento jurídico, p. 120. 237 Segundo ATIENZA, “... A dogmática é, desde logo, uma atividade complexa, cabendo distinguir essencialmente estas três funções: 1) desenvolver critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias em que isso se fizer necessário; 2) desenvolver critérios para a aplicação do Direito; 3) ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 20-21).

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administradores públicos que, nos temos da lei, são

considerados irresponsáveis.238

Essas propostas de solução não são, contudo,

indiscutíveis: a melhor forma de combater o tráfico de drogas

poderia consistir em liberar o comércio das denominadas drogas

brandas. Exigir o cumprimento íntegro das penas para

narcotraficantes pode gerar inconstitucionalidade frente ao

princípio da igualdade, ou mesmo atentar contra a finalidade

de ressocialização que deve guiar a execução das penas

mediante, por exemplo, a adoção do regime de progressividade.

E a melhor forma — a mais eficaz — de combater a

irresponsabilidade administrativa poderia não ser a

criminalização, mas uma introdução de melhores mecanismos de

controle.

Seja como for, o que se quer mostrar é que

quaisquer das soluções que foram contrapostas são plausíveis e

que, portanto, são perfeitamente sustentáveis através de

argumentações. O que não seria admissível, pelo contrário, é

que uma decisão fosse tomada sem razão.

238 Ver Lei Federal nº 10.028, de 19.out.2000, em que se demonstra o esforço que tem sido feito atualmente no Brasil para o estabelecimento de uma legislação que atribui maior responsabilidade aos administradores no que tange à fixação de despesas públicas, que não podem exceder as receitas, sob pena de prisão.

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Veja-se como Miguel REALE descreve os processos

de discussão que podem se dar na fase pré-legislativa:

“ É evidente que (...) o ponto de vista de um comunista não coincide com o de um liberal clássico, ou de um socialista, mas, no nível das composições fáticas, podem comunistas, socialistas ou democratas cristãos convir numa solução de compromisso, dando força de modelo jurídico a uma dentre as várias soluções normativas logicamente viáveis. Escolhida, aliás, uma linha mestra comum, não faltarão divergências de outra ordem, consubstanciadas em substitutivos ao projeto de lei, por motivos formais, ou representadas por emendas, subemendas, etc., espelhando-se nessa gama de proposições parlamentares a multiplicidade de variantes de uma estrutura jurídica in fieri. É só o ato decisório, final, por conseguinte, que põe termo ao flutuar das tensões fático-axiológicas, permitindo que a norma de direito se aperfeiçoe como modelo vigente.”239

A partir do momento em que se decide qual a

norma que deverá ser produzida (aqui os argumentos têm mais um

caráter moral e político que propriamente jurídico), entra-se

na fase legislativa, ocasião em que questões de tipo técnico-

jurídico entram em primeiro plano. Aqui não será suficiente a

justificação, por si só, da necessidade de se regular uma

matéria de uma determinada forma, vez que se deve saber se a

autoridade respectiva tem competência para regular aquele

conteúdo, se o conteúdo é compatível com a ordem jurídica,

enfim, deve-se submeter a norma que se pretende estabelecer a

um teste prévio de pedigree.

239 REALE, Miguel. O direito como experiência, p. 195.

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O segundo campo em que se efetuam argumentos

jurídicos é o da aplicação de normas jurídicas na resolução de

casos, seja através da atividade dos juízes em sentido

estrito, seja por órgãos administrativos no mais amplo sentido

da expressão, seja por particulares.

Aqui podem surgir argumentações em relação a

problemas decorrentes por um lado, de fatos; e por outro, de

direito (sua interpretação).

Finalmente há o campo da dogmática, cujos

argumentos produzidos neste âmbito não chegam a ser muito

diferentes daqueles produzidos pelos órgãos aplicadores, uma

vez que aqui a tarefa é a de fornecer àqueles órgãos critérios

(argumentos) que visam facilitar a tomada de uma decisão

jurídica consistente na aplicação de uma norma a um caso

concreto:

“ ... A diferença que, não obstante, existe entre ambos os processos de argumentação podia sintetizar-se assim: enquanto os órgãos aplicadores têm que resolver casos concretos, (...) o dogmático do Direito se ocupa de casos abstratos.”240

O direito, portanto, faz parte de um âmbito

muito complexo de decisões vinculadas com a resolução de

certos problemas práticos.241 Na base dessas decisões podem

240 RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 21. 241 Não se deve confundir decisão com argumentação, pois os raciocínios, os argumentos, não são as decisões, mas sim as razões que as sustentam.

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geralmente ser encontrados dois tipos de razões: explicativas

e justificativas:

“ As razões explicativas se identificam com os motivos. Elas estão constituídas por estados mentais que são antecedentes causais de certas ações. O caso central de razão explicativa ou motivo é dado por uma combinação de crenças e desejos. (...) As razões justificativas ou objetivas não servem para entender o porquê se realizou uma ação ou eventualmente para predizer a execução de uma ação, mas sim para valorá-la, para determinar se foi boa ou má a partir de distintos pontos de vista.”242

Razões explicativas, portanto, são aquelas que

tentam dar conta dos motivos pelos quais uma decisão foi

tomada, qual foi sua causa, para quê, qual era a finalidade

perseguida, cuja resposta pode ser procurada em motivos

psicológicos, contexto social, circunstâncias ideológicas,

entre outros. Já as razões justificativas estão relacionadas à

aceitabilidade ou correção da decisão:

242 NINO, Carlos Santiago. La validez del derecho, p. 126. Segundo Manuel ATIENZA a distinção entre argumentos explicativos e justificativos tem sua origem na filosofia da ciência, onde primeiramente se fez uma diferenciação entre “...o contexto de descobrimento e o contexto de justificação das teorias científicas. Assim, por um lado, está a atividade consistente em descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a opinião generalizada, não é suscetível de uma análise de tipo lógico; a única coisa que cabe aqui é mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento científico, o que constitui uma tarefa que compete ao sociólogo e ao historiador da ciência. Porém, por outro lado, está o procedimento que consiste em justificar e validar a teoria, isto é, confrontá-la com os fatos a fim de demonstrar a sua validade; esta última tarefa requer uma análise de tipo lógico (ainda que não só lógico) e está regida pelas regras do método científico (que portanto não são de aplicação no contexto de descobrimento). A distinção pode ser transportada também ao campo da argumentação em geral, e ao da argumentação jurídica em particular. (...) Assim, uma coisa é o procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou conclusão, e outra coisa é o procedimento consistente em justificar dita premissa ou conclusão” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Obra citada, p. 22).

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“ Saliente-se que, em geral, os órgãos jurisdicionais não têm que explicar os motivos pelos quais decidiram dessa ou daquela forma, devendo apenas justificar suas decisões. (...) Dizer que o juiz tomou sua decisão devido a fortes crenças religiosas ou por razões políticas e ideológicas significa enunciar uma razão explicativa, ao passo que dizer que o juiz se baseou em determinada interpretação de um dispositivo legal significa enunciar uma razão justificativa.”243

A tarefa de enunciar razões justificativas

implica a de estabelecer como alguém deve se comportar, tem

uma função eminentemente prescritiva. Nesse aspecto o

raciocínio justificativo está contido na racionalidade

prática, que é aquela que não se limita a uma tarefa meramente

descritiva (como a das ciências naturais), donde se pode

inferir que a argumentação nas decisões jurídicas não se

limita a deduções meramente formais, mas abrange

principalmente um uso prático da razão, conforme atesta

PERELMAN:

“ ...admitir a possibilidade de uma justificação racional significa admitir ao mesmo tempo um uso prático da razão, não limitando esta à faculdade de discernir relações necessárias, nem sequer relações referentes ao verdadeiro ou ao falso. Isso porque toda justificação racional supõe que raciocinar não é somente demonstrar e calcular, é também deliberar, criar e refutar, é apresentar razões pró e contra, é, numa palavra, argumentar. A idéia de justificação racional e, de fato, inseparável da idéia de argumentação racional.”244

243 SERBENA, Cesar Antonio, CELLA, José Renato Gaziero. A lógica deôntica paraconsistente e os problemas jurídicos complexos, p. 123. 244 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito, p. 344. Ver também PERELMAN, C. Idem, p. 186.

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Segundo PERELMAN, a “ ...argumentação é uma

ação que tende sempre a modificar um estado de coisas pré-

existente”245 e que, por isso mesmo, toda a argumentação não é

concebível senão em função da ação que prepara ou determina,

sendo impossível considerá-la como um exercício inteiramente

desligado de toda a preocupação prática246, da mesma forma

“...o problema da justificação só surge na área prática quando

se trata de decisão, de ação, de escolha, fora da experiência,

que suprime toda possibilidade de decisão e de escolha”.247

Considerando, além do mais, que “...o objeto da justificação é

de ordem prática: justifica-se um ato, um comportamento, uma

disposição a agir, uma pretensão, uma escolha, uma decisão”248,

há que referir que “...apenas a argumentação (...) permite

compreender nossas decisões.”249

Foi dito que as decisões proferidas pelos

órgãos jurisdicionais (em sentido amplo) só precisam conter

razões justificativas. Mas isso não quer dizer, contudo, que

uma análise do discurso jurídico deva excluir do seu campo de

observação o contexto de descobrimento, uma vez que também a

245 PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 61. 246 Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 60 e 66. 247 PERELMAN, C. Ética e direito, p. 186-187. 248 PERELMAN, C. Idem, p. 185. 249 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 53.

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partir de razões explicativas se pode adotar uma atitude

prescritiva:

“ A distinção entre contexto de descobrimento e contexto de justificação não coincide com a distinção entre discurso descritivo e prescritivo, posto que tanto em relação a um quanto ao outro contexto se pode adotar uma atitude descritiva ou prescritiva. Por exemplo, pode-se decidir quais são os motivos que levaram o juiz a ditar uma resolução no sentido indicado (o que significaria explicar sua conduta), porém também se pode prescrever ou recomendar determinadas mudanças processuais para evitar que as ideologias dos juízes (ou dos júris) tenham um peso excessivo nas decisões a tomar (por exemplo, fazendo que tenham mais relevância outros elementos que moldam parte da decisão, ou propondo ampliar as causas de recusa de juízes ou júris). E, por outro lado, pode-se descrever como de fato o juiz em questão fundamentou a sua decisão (se baseou-se no argumento de que — de acordo com a Constituição — o valor da vida humana deve prevalecer sobre o valor da liberdade pessoal); ou se pode prescrever ou sugerir — o que exige por sua vez uma justificação — como o juiz deveria ter fundamentado sua decisão (a sua fundamentação deveria ter se baseado noutra interpretação da Constituição que subordina o valor da vida humana ao valor da liberdade pessoal).”250

Trata-se, portanto, de analisar não unicamente

como se justificam de fato as decisões jurídicas (caráter

descritivo), mas também de como elas deveriam ser justificadas

(caráter prescritivo). Resta saber se é possível sempre

justificar racionalmente uma decisão jurídica, retornando à

pergunta formulada no início deste capítulo.

250 RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 23.

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Contra essa possibilidade se opõem tanto o

determinismo metodológico251 quanto o decisionismo

metodológico.252

O determinismo metodológico não se sustenta

mais no contexto do direito moderno, em que as decisões devem

ser motivadas. Além do mais, conforme se pode inferir dos

resultados trazidos pelo debate entre HART e DWORKIN,

justificar uma decisão, em um caso difícil, significa algo

mais do que efetuar uma operação dedutiva consistente em

extrair uma conclusão a partir de premissas normativas e

fáticas.

Quanto ao decisionismo metodológico, nele pode

ser enquadrado o realismo norte-americano descrito no capítulo

anterior, em especial o pensamento de Jerome FRANK, para quem:

“ O juiz não parte de alguma regra ou princípio como sua premissa maior, toma logo os fatos do caso como premissa menor e chega a sua resolução mediante um puro processo de raciocínio. O juiz — ou o júri — toma suas decisões de forma irracional — ou, pelo menos, arracional — e posteriormente as submetem a um processo de racionalização. A decisão, portanto, não se baseia na lógica, mas nos impulsos do juiz que estão determinados por fatores políticos, econômicos, sociais e, sobretudo, por sua própria idiossincrasia.”253

251 Para essa postura as decisões jurídicas não necessitam ser justificadas porque procedem de uma autoridade legítima e/ou são o resultado de simples aplicações de normas gerais. 252 Segundo essa postura as decisões jurídicas não podem ser justificadas porque são puros atos de vontade. 253 FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 23.

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O pensamento realista, ao banalizar o contexto

da justificação, comete um grande erro, que consiste,

precisamente, em haver “...confundido o contexto de

descobrimento e o contexto de justificação. É muito possível

que, de fato, as decisões se tomem precisamente como eles [os

críticos] sugerem, isto é, que o processo mental do juiz vá da

conclusão às premissas e não ao revés, e inclusive cabe pensar

que a decisão (ao menos em alguns casos) é, sobretudo, fruto

de juízos prévios; mas isso não anula a necessidade de

justificar a decisão, nem tampouco converte essa tarefa em

algo impossível”.254

Este mesmo entendimento é confirmado por Chaïm

PERELMAN, para quem, mesmo que as decisões decorram de

processos mentais não dedutivos que, posteriormente, são

reduzidos à forma de dedução, a justificação sempre se fará

presente:

“ ... Acontece, muito amiúde aliás, não sendo isso necessariamente deplorável, que mesmo um magistrado conhecedor do direito formule seu julgamento em dois tempos, sendo as conclusões a princípio inspiradas pelo que lhe parece ser mais conforme a seu senso de eqüidade, vindo a motivação técnica apenas como acréscimo. Há que se concluir, nesse caso, que a decisão foi tomada sem nenhuma deliberação prévia? De modo algum, pois os prós e os contras poderiam ter sido pesados com o maior cuidado, mas fora de considerações de técnica jurídica. (...) ...o valor retórico de um enunciado não poderia ser anulado pelo fato de que se trataria de uma argumentação

254 SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, nota 7, p. 132.

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que se julga construída a posteriori, depois que a decisão íntima estava tomada...”255

O nível mais básico de justificação de uma

decisão é o da racionalidade lógico-formal, a qual se predica,

essencialmente, neste âmbito, de proposições (enunciados), ou

melhor, da passagem de alguma proposição a outra, isto é,

através da inferência.

O que interessa aqui é a correção formal dos

argumentos.256 Mas como se pode verificar esse tipo de

correção? Para responder a esta questão, partiremos de um

exemplo retirado do gênero literário policial257 e que é assim

narrada por Manuel ATIENZA (trata-se do conto A Carta Roubada,

de Edgard Allan POE):

“ Auguste Dupin (...) recebe um dia a visita do comissário de polícia de Paris que lhe consulta sobre o seguinte problema. Um documento da maior importância havia sido roubado nos palácios reais. Sabe-se que o autor do roubo é o ministro D., que usa a carta como um instrumento de chantagem contra uma dama da realeza. O ministro deve ter a carta escondida em algum lugar de sua casa, porém o comissário de polícia, apesar de ter efetuado uma minuciosa e sistemática busca, não conseguiu encontrá-la. Dupin consegue encontrar a carta

255 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 48-49. 256 Mesmo sob o ponto de vista psicológico do realismo jurídico, em que o juiz parte primeiro da conclusão e só então, mediante um mecanismo de racionalização a posteriori, formula as premissas, não fica prejudicada a questão de a inferência estar ou não justificada logicamente, já que a justificação lógica, que é de caráter puramente formal, deve estar presente em qualquer decisão. 257 Há outras obras ilustradas com numerosos exemplos de argumentos dedutivos, a exemplo de WESTON, em especial a análise que é feita, passo a passo, das “deduções”, encontradas na obra de Sir Arthur Conan DOYLE, protagonizadas por Sherlock Holmes (Cf. WESTON, Anthony. La claves de la argumentación, p. 92-96).

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através de um processo de raciocínio que, grosso modo, é o seguinte: Se a carta estivesse ao alcance dos trabalhos de busca, os agentes a teriam descoberto, e como a carta deve estar no domicílio do ministro, isso quer dizer que a polícia agiu mal na busca. Dupin sabe que o ministro é uma pessoa audaz e inteligente e que ademais possui não somente uma inteligência matemática, como também — se se pode chamar assim — uma inteligência poética. O ministro pôde prever, portanto, que a sua casa seria revistada pela polícia e que os homens do comissário buscariam em todos aqueles lugares em que se poderia supor que alguém pudesse deixar um objeto que se deseja ocultar. Dupin infere daí que o ministro teve que deixar a carta em um lugar muito visível mas, precisamente por isso, inesperado. Com efeito, Dupin encontra a carta em um porta-cartões fixado em uma fita azul sobre a chaminé, amarrotada e manchada (como se tratasse de algo sem importância) e exibindo um tipo de letra e um selo de características opostas às da cata roubada (...) Dupin explica assim o fracasso do comissário: a causa remota de seu fracasso é a suposição de que o ministro é um imbecil porque obteve fama de poeta. Todos os imbecis são poetas; assim entende o prefeito e, por isso, incorre em uma non distributiu medii ao inferir que todos os poetas são imbecis.”258

De acordo com essa narrativa, vê-se pois que o

erro do comissário consistiu em ter inferido da proposição

todos os imbecis são poetas, a conclusão de que todos os

poetas são imbecis.

Do relato se pode verificar que o comissário

efetuou um argumento logicamente válido, mas partindo de uma

premissa falsa:

Todos os poetas são imbecis.

O ministro é um poeta.

Logo, o ministro é um imbecil.

258 RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 26-27.

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Vertendo o silogismo para a forma simbólica:

∆x Px → Qx Pa ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ Qa

O argumento em questão é logicamente válido

porque a conclusão se infere necessariamente das premissas.259

Num silogismo a conclusão já é incluída nas

premissas, pois a passagem destas àquela é necessária, ou

seja, não é possível que as premissas sejam verdadeiras e não

o seja a conclusão.

Portanto, no exemplo acima temos um argumento

válido logicamente, mas com uma premissa falsa. Prosseguindo a

análise a partir da narrativa de ATIENZA sobre a obra de POE,

imaginemos um caso quase que oposto ao do primeiro exemplo,

mas que parte de premissas verdadeiras (em relação,

evidentemente, à narrativa), só que se vale de um argumento

logicamente inválido:

Todos os imbecis são poetas.

O ministro é um poeta.

259 Olivier REBOUL traz alguns exemplos nos quais o silogismo é valido, mas em que a conclusão resulta absurda em face da falsidade das premissas: “’Tudo o que é raro é caro; ora, um bom cavalo barato é raro; logo, um bom cavalo barato é caro.’ [Trata-se de] um verdadeiro silogismo, perfeitamente válido. Donde vem então o absurdo de conclusão? Do fato de que as premissas são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo absurdo. Prova que o que é raro nem sempre é caro; ou ainda que um bom cavalo barato nem sempre é raro (em caso de má venda, por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido estrito, mas um erro que consiste em transformar o provável em certo” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 100).

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Logo, o ministro é um imbecil.260

Em notação simbólica:

∆x Px → Qx Qa ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ Pa

No caso, a classe dos imbecis está contida na

classe dos poetas, mas disso não decorre que, necessariamente,

sendo o ministro um poeta, tenha que estar também contido na

classe dos imbecis. Ele poderia muito bem ser um poeta que não

é imbecil. Assim, no exemplo as premissas são verdadeiras, mas

a conclusão é falsa.

Os dois exemplos acima, conforme dito, são

quase opostos. Não são totalmente opostos porque em ambos a

conclusão, que é a mesma, é falsa. No próximo exemplo, tanto

as premissas quanto a conclusão são verdadeiras, só que no

entanto não se trata de um argumento logicamente válido:

Todos os imbecis são poetas.

O ministro é um poeta.

Logo, o ministro não é um imbecil.

260 Este silogismo pode ser enquadrado na falácia denominada afirmação do conseqüente, que pode ser ilustrada com o seguinte exemplo trazido por WESTON: Afirmar o conseqüente. Uma falácia dedutiva da forma: Se p então q; q; logo, p. Por exemplo: Se as ruas estão geladas, o correio se demora; o correio se demora; logo, as ruas estão geladas. Ambas as premissas podem ser verdadeiras, e a conclusão ser todavia falsa. Ainda que o correio chegue tarde quando as ruas estão geladas, pode chegar tarde também por outras razões” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 128).

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Em notação simbólica:

∆x Px → Qx Qa ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ —Pa

No caso, a classe dos imbecis, tal qual no

exemplo anterior, está contida na classe dos poetas, mas disso

não decorre que, necessariamente, o ministro seja um poeta que

não é imbecil. Ele poderia muito bem ser um poeta enquadrado

na categoria dos imbecis, resultado que invalidaria a

conclusão do caso acima.

Vejamos agora um exemplo de argumento válido

logicamente e cujas premissas são verdadeiras (e, portanto,

também sua conclusão):

Os ministros que são poetas não são imbecis.

O ministro é um poeta.

Logo, o ministro não é um imbecil.

Em linguagem simbólica:

∆x Px ∧ Qx → —Rx

Pa ∧ Qa ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ —Ra

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Neste caso, qualquer possível representação das

premissas conteria também a conclusão.

Esta primeira abordagem acerca do raciocínio

lógico-dedutivo já permite a verificação de que, quando

passamos para o campo das argumentações, muitas insatisfações

podem surgir. Após definir o que vem a ser um argumento

lógico, ATIENZA faz algumas considerações:

“ ... Temos uma implicação ou uma inferência lógica ou uma argumentação válida (dedutivamente), quando a conclusão necessariamente é verdadeira se as premissas são verdadeiras. A lógica, a lógica dedutiva, pode se apresentar em forma axiomática ou como um sistema de regras de inferência, mas esta segunda forma de apresentação é a que melhor se ajusta à maneira natural de raciocinar. Isso é assim porque enquanto no modo axiomático de deduzir se parte de enunciados formalmente verdadeiros (tautologias) e se chega, ao término da dedução, a enunciados também formalmente verdadeiros, no modo natural de fazer inferências dedutivas se pode partir — e isso é o mais freqüente — de enunciados indeterminados em seu valor de verdade ou inclusive declaradamente falsos e se chegar a enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos. A única coisa que determina uma regra de inferência é que se as premissas são verdadeiras, então necessariamente a conclusão também será verdadeira.”261

A lógica dedutiva só fornece critérios de

correção formais, mas passa ao largo das questões materiais ou

de conteúdo que, naturalmente, são relevantes quando se

argumenta em contextos que não sejam os das ciências formais

(lógica e matemática).

261 RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 31.

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A incapacidade que a lógica formal possui de

fornecer critérios que determinem a correção material dos

argumentos pode levar a algumas situações peculiares: a partir

de premissas falsas se pode argumentar corretamente do ponto

de vista lógico e, por outro lado, é possível que um argumento

seja incorreto do ponto de vista lógico, ainda que a conclusão

e as premissas sejam verdadeiras ou altamente plausíveis.

Em alguns casos, portanto, a lógica surge como

um instrumento necessário mas insuficiente para o controle dos

argumentos.262 Há casos, no entanto, em que é possível que a

lógica (a lógica dedutiva) não permita sequer o

estabelecimento de requisitos necessários em relação ao que

deve ser um bom argumento.

Todas essas observações fazem ver que o

problema da correção ou não dos argumentos implica o problema

de como distinguir os argumentos corretos dos incorretos, os

válidos dos inválidos.

Quanto à validade ou não dos argumentos, a

questão mais importante é a de distinguir os argumentos

manifestamente inválidos de outros que, embora pareçam

válidos, não o são: as falácias.

262 “...um bom argumento deve sê-lo tanto do ponto de vista formal quanto do material” (RODRIGUEZ, M. A., Obra citada, p. 32).

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Com efeito, os argumentos que são

manifestamente inválidos não geram maiores problemas, posto

que não podem levar a confusões. Já quanto às falácias o

raciocínio lógico apresenta deficiências. Com efeito, pode-se

encontrar dois tipos de falácias: as formais263 e as não

formais. Estas últimas podem, ainda, ser subdivididas em

falácias de atinência e de ambigüidade.

Nas falácias de atinência as premissas carecem

de referibilidade em relação às suas conclusões, sendo

portanto incapazes de estabelecer sua verdade. Aqui podem ser

enquadradas as falácias que se baseiam em argumentos ad

ignorantiam264, em argumentos ad personam265, ou com a petição

de princípio.266

263 Em que estaria enquadrada a afirmação do conseqüente, anteriormente exemplificada. 264 “Ad ignorantiam (apelar à ignorância). Argüir que uma afirmação é verdadeira somente porque não foi demonstrado que é falsa. Um exemplo clássico é constituído pela seguinte declaração do Senador Joseph McCarty quando interrogado da prova que sustentava sua acusação de que certa pessoa era comunista: ‘Não tenho muita informação sobre isto, exceto a declaração geral da Comissão de que nada existe para refutar suas conexões comunistas’” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 127). 265 A lógica clássica denomina esses argumentos como sendo ad hominem, consistentes em atacar a pessoa do orador ao invés de atacar suas qualificações. Optou-se por usar o temo ad persona para evitar confusões com o pensamento de PERELMAN, para quem as “...possibilidades de argumentação dependem do que cada qual está disposto a conceder, dos valores que reconhece, dos fatos sobre os quais expressa seu acordo; por isso, toda argumentação é uma argumentação ad hominem ou ex concessis.

(...) Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad

personam, ou seja, com um ataque contra a pessoa do adversário, que visa, essencialmente, a desqualificá-lo. A confusão pode estabelecer-se porque as duas espécies de argumentação costumam interagir. Aquele cuja tese foi refutada graças a uma argumentação ad hominem vê seu prestígio diminuído, mas não esqueçamos que esta é uma conseqüência de qualquer refutação, seja qual for a técnica utilizada: ‘um erro fatual’ (...) ‘lança um homem sábio

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Já as falácias de ambigüidade surgem em

raciocínios cuja formulação contém palavras ambíguas, cujos

significados são alterados de maneira mais ou menos sutil no

curso da argumentação.267

Vale dizer que a lógica formal só fornece

critérios para desmascarar as denominadas falácias formais.

Outro aspecto que gera insatisfação é o de que

a definição de argumento válido dedutivamente se refere a

proposições que se submetem ao critério de verdade e

falsidade.

Ocorre que, sob um determinado ponto de vista

não faz sentido argüir a verdade ou falsidade de uma norma,

seja ela jurídica ou moral. KELSEN, por exemplo, afirma que a

inferência silogística não se aplica às normas:

“ O pressuposto fundamental dos princípios da Lógica tradicional aplicados à verdade de enunciados é que

no ridículo’” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica, p. 125-126). 266 A petitio principii consiste no fato de se postular o que se quer provar, “...supõe que o interlocutor já aderiu a uma tese que o orador justamente se esforça por fazê-lo admitir” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 127), como por exemplo quando se afirma que Deus existe porque é isso que diz a bíblia; sendo a bíblia verdadeira exatamente pelo fato de ter sido escrita por Deus: “a bíblia é verdade porque Deus a escreveu; a bíblia diz que Deus existe; logo, Deus existe” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 132). 267 Veja-se o exemplo dado por Anthony WESTON: “A: Todo estudo é uma tortura; B: Mas e estudar para argumentar? Tu gostas tanto!; A: Bem, isso não é realmente estudar. Aqui ‘estudar’ é a palavra equívoca. A resposta de A à objeção de B altera de fato o significado de estudar para o de estudar que é uma tortura. Desse modo, a primeira afirmação de A permanece verdadeira, mas só ao custo de torná-la trivial” (WESTON, A. Obra citada, p. 132).

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existem enunciados verdadeiros e falsos, quer dizer: há enunciados que têm a qualidade de ser verdadeiros ou falsos. Enunciados que são verdadeiros ou falsos são o sentido de atos de pensamento. Normas são, porém, o sentido de atos da vontade dirigidos à conduta de outrem e, como tais, nem são verdadeiras nem falsas e, por conseguinte, não subordinadas aos princípios da Lógica tradicional, contanto que estes sejam relacionados com verdade ou falsidade. A expressão lingüística de uma norma é um imperativo ou uma proposição de dever-ser; e se a aplicabilidade dos princípios lógicos de não-contradição e da conclusão é adotada para normas, então isto, via de regra, acontece com relação a proposições de dever-ser. Diz-se, porventura: entre ambas as proposições de dever-ser: ’um médico deve dizer a verdade a seu paciente, à pergunta deste se sua doença, que o médico considera incurável, é incurável’, e ‘o médico não deve dizer a verdade a seu paciente, à pergunta deste se sua doença, que o médico considera incurável, é curável’, existe uma contradição lógica. E da proposição: ‘Todas as pessoas devem cumprir sua promessa feita a uma outra pessoa’ segue-se logicamente a proposição: ‘o homem Meier deve cumprir a promessa feita à senhora Schulze de com ela casar’. Mas, não se toma em consideração que estas proposições de dever-ser 1) são normas válidas de uma Moral positiva, ou seja, de um Direito positivo ou 2) são enunciados sobre a validade de tais normas, ou se em geral são proposições de dever-ser, nas quais o dever-ser é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, ou proposições de dever-ser que são enunciados sobre um tal sentido de atos de vontade. Quer dizer, opera-se 3) com proposições de dever-ser, as quais nem são uma nem são outra. (...) Se se acredita poder aplicar os princípios lógicos de não-contradição e da conclusão a normas, embora estas nem sejam verdadeiras nem falsas, então não pode haver a relação com a verdade que serve de base a essa aplicação; tem de haver a relação com uma outra qualidade da norma. Precisa haver normas que tenham esta específica qualidade, e normas que não tenham esta qualidade. E esta qualidade das normas precisaria ser análoga à verdade dos enunciados. Os princípios da Lógica do Enunciado, a saber: o princípio de não-contradição e a regra da conclusão dizem respeito a relações entre enunciados. O problema de uma Lógica das Normas é, portanto, o problema da aplicação de princípios (os quais são análogos aos princípios da Lógica do Enunciado) à relação entre normas. Assim como na hipótese de uma contradição lógica entre dois enunciados somente um pode ser verdadeiro, e o outro tem de ser falso, então precisaria haver uma relação entre duas normas, na qual, se uma tem qualidade análoga à verdade, a outra não pode ter esta qualidade. Assim como da verdade de um enunciado pode ser logicamente resultada a verdade de um outro enunciado,

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então da qualidade de uma norma análoga à verdade teria de resultar esta qualidade de uma outra norma. Nas diferentes tentativas para provar a aplicabilidade de princípios lógicos a normas — como anteriormente mostrado — foram seguidos dois caminhos para colocar em analogia com a verdade do enunciado: um é a validade da norma; o outro o cumprimento da norma. Com relação ao que diz respeito ao primeiro caminho, já foi aqui afirmado que não existe uma analogia entre verdade de um enunciado e validade de uma norma, porque validade ou não-validade de uma norma não é qualidade de uma norma, assim como verdade ou falsidade é qualidade de um enunciado. A validade de uma norma é sua específica existência ideal, e uma norma não-válida, uma norma nula, é uma norma não existente; enquanto um enunciado falso é um enunciado existente.”268

Neste sentido a lógica não se aplica às

relações entre normas, pois as suas regras (da lógica) se

aplicam ao silogismo teórico que se baseia em um ato de

pensamento, mas não ao silogismo prático ou normativo (o

silogismo em que ao menos uma das premissas e a conclusão são

normas) que se baseia em um ato de vontade (em uma norma).269

A idéia de que a inferência lógico-dedutiva não

se aplica às normas pode levar a resultados estranhos. Veja-

se, por exemplo, o seguinte silogismo (que pode ser retirado

de um dos exemplos trazidos por KELSEN no texto acima

transcrito):

Deves manter suas promessas.

Esta é uma de suas promessas.

Logo, deve manter esta promessa.

268 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 263-266. 269 Segundo KELSEN: “A palavra ‘norma’ procede do latim: norma, e na língua alemã tomou o caráter de uma palavra de origem estrangeira — se bem que não em caráter exclusivo, todavia primacial. Com o termo se designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem” (KELSEN, H. Obra citada, p. 1).

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Dizer que esta inferência carece de validade

lógica efetivamente não é algo de fácil assimilação, pois na

vida cotidiana geralmente atribuímos às inferências práticas a

mesma validade que teriam as inferência teóricas.

Com efeito, se a partir do exemplo acima, A

aceita como moralmente obrigatória a regra de que se devem

manter as promessas (todas as promessas e em qualquer

circunstância) e aceita como verdadeiro o fato de que prometeu

a B que iria levá-lo ao cinema na tarde de domingo, e no

entanto sustenta também que, apesar disso, não considera que

deva levar a B ao cinema no dia prometido, estaríamos forçados

a concluir que seu comportamento seria tão irracional quanto o

de quem considera como enunciados verdadeiros o seguinte: os

ministros que são poetas não são imbecis; X é um ministro que

é poeta; mas que no entanto não está disposto a aceitar que X

não é imbecil. Naturalmente, é possível que estas duas

situações (inclusive a segunda) se dêem de fato, mas isso não

parece ter nenhuma relação com a lógica que, como na

gramática, é uma disciplina prescritiva: não diz como os

homens pensam ou raciocinam de fato, mas sim como deveriam

fazê-lo.270

270 Vale dizer que desde ARISTÓTELES até RUSSEL e o primeiro WITTGENSTEIN, a lógica tinha um sentido eminentemente prescritivo, o que deixou de ser regra a partir do desenvolvimento do infindável número de sistemas lógicos ou diversas lógicas existentes atualmente.

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De fato, os enunciados prescritivos referem-se

ao âmbito do dever-ser; não tendo, portanto, nenhum

compromisso com a realidade. É precisamente neste aspecto em

que se diferenciam o princípio da causalidade (em que pode

atuar a lógica dedutiva) e o princípio da imputação

(causalidade jurídica) de que fala KELSEN em suas obras:

“ ... A lei da natureza estabelece que, se A é, B é (ou será). A regra de Direito diz: se A é, B deve ser. A regra de Direito é uma norma (no sentido descritivo do termo). O significado da conexão estabelecida pela lei da natureza entre dois elementos é o ‘é’, ao passo que o significado da conexão estabelecida entre dois elementos pela regra do Direito é o ‘deve ser’. O princípio segundo o qual a ciência natural descreve seus objetos é o da causalidade; o princípio segundo o qual a ciência jurídica descreve seu objetivo é o da imputação. ... A regra normativa ‘se alguém roubar, deve ser punido’ permanece válida mesmo se, num dado caso, um ladrão não for punido.(...) Como a norma não é um enunciado de realidade, nenhum enunciado de um fato real pode estar em contradição com a norma.”271

No entanto, os autores que sustentam a tese de

que a lógica não se aplica às normas não levam em conta que

há, na verdade, dois aspectos em torno dessa questão.

Por um lado está a questão de se a relação que

as normas válidas (aquelas que passaram pelo teste de

pedigree) guardam entre si são de tipo lógico. É claro que

neste ponto têm razão aqueles autores, pois obviamente é

possível que hajam, num sistema, normas contraditórias

(incompatíveis) entre si:

271 KELSEN, Hans Teoria geral do direito e do estado, p. 64-65.

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“ ... Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica a exclusão da incompatibilidade. Note-se porém que dizer que as normas devam ser compatíveis não quer dizer que se encaixem umas nas outras, isto é, que constituam um sistema dedutivo perfeito. Nesse terceiro sentido de sistema, o sistema jurídico não é um sentido dedutivo, como no primeiro sentido: é um sistema num sentido menos incisivo, se se quiser, num sentido negativo, isto é, uma ordem que exclui a incompatibilidade das suas partes simples. Duas proposições como: ‘O quadro negro é negro’ e ‘O café é amargo’ são compatíveis, mas não se encaixam uma na outra. Portanto, não é exato falar, como se faz freqüentemente, de coerência do ordenamento jurídico, no seu conjunto; pode-se falar de exigência de coerência somente entre suas partes simples. Num sistema dedutivo, se aparecer uma contradição, todo o sistema ruirá. Num sistema jurídico, a admissão do princípio que exclui a incompatibilidade tem por conseqüência, em caso de incompatibilidade de duas normas, não mais a queda de todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou no máximo das duas.”272

Com efeito, ainda que não seja desejável,

normas incompatíveis entre si podem coexistir num mesmo

sistema normativo sem que isso implique o colapso do sistema.

Assim, tanto a norma que afirma que se devam cumprir todas as

promessas quanto a norma que diz que não há porque cumprir a

promessa efetuada a B são absorvíveis no sistema.

Portanto, no que tange à relação entre normas,

não há dúvidas de que a lógica formal não se aplica.

272 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 80.

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Mas existe ainda uma outra questão: é possível

inferir validamente uma norma de outra? A resposta a esta

pergunta independe da anterior e aqui a resposta pode ser

afirmativa, desde que se faça uma pequena correção na noção do

que vem a ser um argumento dedutivo válido.273

Ora, o problema em que nos deparamos residia na

definição de argumento dedutivo antes adotada, a qual se

chocava com a opinião generalizada — ainda que não unânime —

de que as normas jurídicas não podem ser submetidas a

critérios de verdade ou falsidade.

Sendo assim, cabe fazer uma correção no

conceito de argumento dedutivo, que poderá ser enunciado pela

forma que segue: teremos uma implicação ou uma inferência

lógica ou uma argumentação válida (dedutivamente) quando a

conclusão necessariamente é verdadeira274 se as premissas são

verdadeiras.275

Mas ainda com esta nova definição os problemas

não são todos resolvidos. Já foi mencionado que a lógica está

limitada ao seu caráter formal.276 Há ainda um outro aspecto, o

273 Que, segundo a definição exposta acima, seriam os argumentos referentes a proposições (premissas e conclusões) que podem ser verdadeiras ou falsas. 274 Se se quiser correta, justa, válida, etc. 275 Se se quiser corretas, justas, válidas, etc. 276 Não dá conta, por exemplo, das falácias materiais; e pode haver um raciocínio logicamente válido, ainda que suas premissas sejam falsas.

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qual está vinculado ao caráter dedutivo da lógica277, ou seja,

o caráter de necessidade inerente à passagem das premissas à

conclusão.

Voltando ao exemplo do documento roubado,

poderíamos sintetizar assim os argumentos que permitiram ao

Sr. Dupin solucionar o mistério:

O ministro é um homem audaz e inteligente.

O ministro sabia que sua casa seria revistada.

O ministro sabia que a polícia daria busca em todos os lugares em que a carta pudesse ter sido ocultada.

Logo, o ministro deve ter deixado a carta em um lugar tão visível que, precisamente por isso, a mesma passou despercebida aos homens do comissário.

Ora, este último não é, obviamente, um

argumento dedutivo, já que a passagem das premissas à

conclusão não é necessária, mas tão-somente provável ou

plausível.

Podia ser que o ministro deixasse, por exemplo,

a carta com um de seus amigos ou, ainda, que ela tivesse sido

mesmo bem escondida a ponto de a polícia não ter a capacidade

de encontrá-la, e por aí afora. A este tipo de argumentos, em

que a passagem das premissas à conclusão não se produz

necessariamente, são comumente denominados argumentos

277 A dedução não é uma característica necessária da lógica, pois além dela existem ainda as lógicas indutivas, que têm a mesma importância que as lógicas dedutivas.

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indutivos e não dedutivos. Porém, neste caso específico não se

está diante da passagem do particular para o geral, mas sim de

uma indução em que se dá a passagem de um particular a outro.

Nem por isso o argumento deixa de ser bom, pois há muitas

ocasiões em que surge a necessidade de argumentar (inclusive

na esfera do direito), sem que no entanto se possa recorrer a

argumentos de tipo dedutivo.

Imagine-se o seguinte exemplo:278 A e B são

acusados pela prática de tráfico de entorpecentes, tipificado

no artigo x do Código Penal, tendo sido condenados à pena de

oito anos de reclusão. Vejamos os fatos: A droga que foi

localizada pela polícia estava escondida no colchão de uma

cama de casal. A e B (um homem e uma mulher, respectivamente),

estavam presentes na casa por ocasião da diligência de busca

que fora efetuada pela polícia. Os indiciados A e B sustentam

que, embora vivam juntos na mesma residência, só têm entre si

uma relação de amizade e, além do mais, utilizam-se de quartos

distintos, de modo que B não tinha conhecimento da existência

da droga que fora encontrada. Como conseqüência, o advogado de

defesa pede a absolvição da mulher. A sentença, no entanto,

durante a sua fundamentação, considera como fato provado que A

278 O exemplo é colhido, ainda que não de forma literal, da sentença número 477/89 proferida pela Audiência Provincial de Alicante (Catalunha, Espanha), citada por RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 37-42.

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e B compartilhavam do mesmo quarto e que, em conseqüência, B

tinha conhecimento e participara sim da atividade de tráfico

de drogas que estava sendo imputada a ambos. A justificativa

da sentença é esta: os acusados (A e B) compartilhavam o

quarto referido, como demonstra — e apesar das alegações em

contrário dos acusados durante o inquérito, em que alegaram

que não passavam de simples amigos — o testemunho dos

policiais que efetuaram a busca, os quais declararam que havia

uma única cama desfeita (diga-se que a busca teve lugar às

seis horas da manhã) e em cujo quarto estavam todos os objetos

pessoais dos acusados; além do que, quando A estava sob regime

de prisão preventiva, em um escrito dirigido ao promotor e

juntado aos autos, referia-se a B como sendo sua mulher. O

caso pode ser assim esquematizado:

Só havia uma cama desfeita na casa.

Eram seis horas da manhã quando ocorreu a busca.

Toda a roupa e objetos pessoais de A e B estavam no mesmo quarto em que se encontrava a cama.

Meses depois A se refere a B como minha mulher.

Logo, na época em que se efetuou a busca, A e B mantinham relações íntimas (e, em conseqüência, B conhecia a existência da droga).

Da mesma forma que no argumento do Sr. Dupin, o

argumento acima não tem caráter dedutivo, pois a passagem das

premissas à conclusão não é necessária, ainda que altamente

provável. Se se aceita a verdade das premissas, então há uma

forte razão para aceitar também a conclusão, apesar de não se

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poder afirmá-la com certeza absoluta: teoricamente, é possível

que B tivesse acabado de chegar em cada às seis horas da

manhã, que seus objetos pessoais estivessem no quarto de A

porque se preparava para limpar seus armários e que, somente

após a detenção de ambos é que sua amizade se transformara

numa relação mais íntima.

Certamente, o argumento guarda uma grande

semelhança com aquele efetuado por Dupin. Mas não são de todo

semelhantes, se pensarmos no seguinte: É certo que tanto Dupin

quanto o juiz da sentença se guiam, em sua argumentação, a

partir do que se pode denominar como regras de experiência (as

quais têm um papel semelhante às regras de inferência dos

argumentos dedutivos). No entanto, os magistrados não podem se

servir, para estes casos, unicamente das regras de

experiência, pois eles estão também vinculadas (à diferença do

detetive Dupin) pelas regras processuais de valoração da

prova. Por exemplo, um juiz pode estar pessoalmente convencido

de que também B conhecia a existência da droga (da mesma forma

que Dupin estava convencido de onde deveria estar a carta

roubada) e, no entanto, não considerar isto como um fato

provado, pois o princípio de presunção de inocência (tal e

qual ele o interpreta) exige que a certeza sobre os fatos seja

absoluta, não se admitindo que sejam apenas altamente

prováveis. E mesmo que hajam razões para não interpretar assim

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o princípio de presunção de inocência (pois, em outro caso,

seriam realmente muito poucos os atos delituosos que pudessem

ser considerado provados), o que interessa aqui é mostrar uma

peculiaridade do raciocínio jurídico, que é o seu caráter

altamente institucionalizado.

Se agora quiséssemos demonstrar

esquematicamente o tipo de raciocínio utilizado na sentença

acima exemplificada, poderíamos propor a seguinte formulação:

Aqueles que realizarem atos de tráfico de drogas deverão ser punidos, de acordo com a lei penal, com a pena de reclusão

A e B efetuaram este tipo de ação.

Logo, A e B devem ser punidos com a pena de reclusão.

Em linguagem simbólica:

∆x Px ∧ Qx → ORx Pa ∧ Qa ∧ Pb ∧ Qb ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯

Ora ∧ ORb

Pode-se simplificá-la ainda:

∆x Px → OQx Pa ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ OQa

A este tipo de esquema lógico se denomina

usualmente de silogismo judicial ou silogismo jurídico. Ele

serve como esquema, também, para os chamados silogismos

práticos ou normativos.

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A primeira premissa enuncia uma norma geral e

abstrata em que uma hipótese de fato (x é uma variável de

indivíduo e P uma letra predicativa) aparece como condição

para uma conseqüência jurídica; o símbolo O indica que a

conseqüência (R) deve em geral (pode tratar-se de uma

obrigação, de uma proibição ou de uma permissão) se seguir

quando se realiza a hipótese de fato, ainda que seja possível

que na realidade isso não se dê.

A segunda premissa representa a situação em que

se produziu um determinado fato (a é um indivíduo concreto

donde se predica a propriedade P), que se subsume à hipótese

da norma. E a conclusão estabelece que a a se deve aplicar a

conseqüência jurídica prevista pela norma.

O esquema em questão traz alguns

inconvenientes. O primeiro deles é que há hipóteses (como no

exemplo acima) em que a conclusão do silogismo não representa

a conclusão ou a parte dispositiva da sentença, mas sim uma

etapa prévia para que se chegue à decisão.

Na sentença do caso hipotético tomado como

exemplo, a parte dispositiva não estabelece simplesmente que A

e B devem ser condenados à pena de reclusão, mas também

especifica a pena concreta: oito anos de reclusão. Assim, o

argumento anterior pode ser completado com o seguinte:

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A e B devem ser condenados à pena de reclusão.

Na prática de referido delito, não ocorreram circunstâncias modificativas da responsabilidade criminal.

Quando não concorrem circunstâncias modificativas da responsabilidade criminal, os tribunais impõem (em conformidade com a lei) a pena em grau mínimo ou médio, dada a gravidade do fato e a personalidade do delinqüente.

Logo, A e B devem ser condenados à pena de oito anos de reclusão (que seria o mínimo da pena permitido por lei).

Este tipo de raciocínio não é dedutivo, pois a

passagem das premissas à conclusão não tem caráter necessário

(o tribunal poderia ter imposto uma pena de até doze anos, por

exemplo, sem infringir a lei, isto é, sem contradizer as

premissas; no caso de a pena máxima para este tipo de crime

ser de doze anos).279

Poderia se considerar, entretanto, como

dedutivo (todo argumento indutivo pode se converter em

279 Trata-se portanto de uma racionalidade prática — que afinal se dá tanto nas decisões judiciais quanto naqueles casos em que se discute a implantação de uma lei, entre outros — conforme aduz PERELMAN: “Se procurarmos um exemplo patente de raciocínio prático, nós o encontraremos na sentença ou no aresto de um tribunal, que indica, além do decisório (o dispositivo), os motivos que justificam o dispositivo adotado pelo juiz, os considerandos, que indicam as razões pelas quais o julgado não é ilegal nem arbitrário, devendo também descartar as objeções apresentadas contra esta ou aquela premissa do raciocínio... Outro exemplo de raciocínio prático é fornecido por um projeto de lei precedido de um preâmbulo, pois este não fornece as premissas a partir das quais ele teria sido inferido, mas sim as razões que militam em favor de sua adoção. Vê-se que o raciocínio prático pode redundar, quer numa decisão referente a uma única situação concreta (o caso do juiz), quer numa decisão de princípio, que regulamenta grande número de situações (caso do legislador)” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 279).

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dedutivo se invocar as premissas adequadas) se se tomar como

incorporada, na argumentação anterior, a seguinte premissa:

A escassa gravidade do fato e a personalidade não especialmente perigosa do delinqüente impõem a necessidade de aplicação da pena mínima permitida por lei.

Esta última premissa não enuncia mais uma norma

do direito vigente, não supõe tampouco a constatação de que se

tenha produzido um determinado fato, mas sim que o fundamento

da mesma é na verdade derivado de juízos de valor, pois

gravidade do fato e personalidade do delinqüente não são

termos que se referem a fatos objetivos ou verificáveis de

alguma maneira. No estabelecimento desta premissa poder-se-ia

dizer que o arbítrio do juiz tem um papel fundamental.

Isso demonstra que o silogismo judicial não

permite a reconstrução satisfatória da argumentação jurídica,

pois a) as premissas de que se parte — como neste caso — podem

necessitar, por sua vez, de justificação; e b) porque a

argumentação jurídica parte normalmente de entimemas.280 Um

280 Segundo ARISTÓTELES, há duas estruturas argumentativas: o exemplo, que vai do particular ao geral, do fato à regra, sendo, portanto uma indução; e o entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma dedução. Os entimemas são silogismos que partem, no entanto, de opiniões geralmente aceitas, os éndoxa: “O raciocínio é uma ‘demonstração’ quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado, o raciocínio é ‘dialético’ quando parte de opiniões geralmente aceitas (éndoxa). São ‘verdadeiras’ e ‘primeiras’ aquelas coisas nas quais acreditamos (pistin) em virtude de nenhuma outra coisa que não

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argumento entimemático pode ser posto sempre em forma

dedutiva, mas isso supõe a introdução de novas premissas às

explicitamente formuladas, o que significa reconstruir, não

reproduzir, um processo argumentativo.

Outro aspecto a ser considerado é que, enquanto

a conclusão do silogismo judicial se dá pela expressão de um

enunciado normativo que estabelece, por exemplo, que A e B

seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São, por outro lado, opiniões ‘geralmente aceitas’ (éndoxa) aquelas que todo mundo admite (ta dokoúnta), ou a maioria das pessoas, ou os filósofos — em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes (éndoxoi)” (ARISTÓTELES. Tópicos, citado por BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 24). Vejam-se ainda os seguintes exemplos trazidos por REBOUL: “... As premissas prováveis dos entimemas são: ou verossimilhanças (eikota), como por exemplo que um filho ama o pai, ou indícios seguros, como por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indícios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica que houve fogo” (REBOUL, Olivier. Obra citada, p. 49). Vale dizer, a esse respeito, que não é em todos os casos de entimemas, na filosofia de ARISTÓTELES, que das premissas seguem necessariamente a conclusão, conforme salientado por BERTI: “Entre as premissas dos entimemas há, pois, algumas, poucas na verdade, das quais a conclusão se segue necessariamente, e outras, a maior parte, das quais a conclusão se segue apenas geralmente. As primeiras são os ‘signos’ (seméia), as segundas são os ‘prováveis’ (eikóta); mas, a rigor, a conclusão não se segue de todos os signos, mas apenas de alguns, que tomam o nome de ‘provas’ (tekméria): por exemplo, o fato de que alguém tenha febre é um signo do qual se segue necessariamente que está doente, ou o fato de que uma mulher tenha leite é um signo do qual se segue necessariamente que ela deu à luz. Ao contrário, os signos dos quais a conclusão não se segue necessariamente não têm um nome particular, mas dividem-se naqueles que vão do particular ao universal (por exemplo, o fato de que Sócrates era sábio e também justo é um signo do qual não se segue necessariamente que todos os sábios são justos). As provas são irrefutáveis (ályta), enquanto os outros signos são refutáveis (lytá), inclusive no caso de a conclusão que se extrai delas ser verdadeira” (BERTI, Enrico. Obra citada, p. 182). Enfim, segundo WARAT, “o pensamento argumentativo organiza-se a partir de entimemas e, portanto, não permite o controle lógico das evidências que postula. Para os aristotélicos, o entimema é um silogismo fundamentado a partir da verossimilhança, ou seja, uma afirmação das verdades desenvolvida à margem das demonstrações lógicas e apoiada unicamente ao nível do pensamento popular, das crenças socialmente estereotipadas” (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem, p. 87).

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191

devem ser condenados, a parte dispositiva da sentença não só

chega a essa conclusão, mas daí passa à ação, condenando

efetivamente A e B.

Esta distinção entre o enunciado normativo e o

enunciado performático (o ato lingüístico da condenação em que

consiste propriamente a decisão), implica a passagem do plano

do discurso para o plano da ação, ou seja, é dado um salto que

extrapola a competência da lógica.

Passemos agora a outras características da

argumentação jurídica. Conforme visto anteriormente, o

estabelecimento da premissa menor do silogismo judicial, a

premissa fática, pode ser o resultado de um raciocínio de tipo

não dedutivo. O mesmo pode ocorrer em relação ao

estabelecimento da premissa maior, a premissa normativa. Um

bom exemplo disto é a utilização do raciocínio por analogia,

cuja utilização pode ser retratada a partir do caso concreto

que será narrado na seqüência.

Em um Acórdão de 21 de junho de 2000281, o

Supremo Tribunal Federal - STF, entendeu que o princípio

281 No Recurso Extraordinário - RE 251.445-GO, julgado em 21.jun.2000, relatado pelo Ministro Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça da União de 3.ago.2000, o Supremo Tribunal Federal - STF proferiu acórdão com a seguinte ementa: “PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA PELO AUTOR DO FURTO, FORAM UTILIZADAS CONTRA O ACUSADO, PARA INCRIMINÁ-LO. INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º, LVI).”

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192

constitucional de inviolabilidade de domicílio se estende

também ao consultório profissional de cirurgião-dentista.

O consultório de um profissional liberal é

inviolável da mesma forma que o é a residência de uma pessoa

física. Em conseqüência, o acusado foi absolvido do crime a

ele imputado sob o fundamento de que as provas obtidas

ilicitamente não poderiam ter sido utilizadas para incriminá-

lo.

No caso em questão, as provas que incriminavam

o dentista haviam sido obtidas a partir do arrombamento de um

cofre situado no interior de seu consultório, violando assim o

preceito constitucional que garante a inviolabilidade do

domicílio, pois, segundo o STF, “para os fins da proteção

constitucional a que se refere o art. 5o, XI, da Carta

Política, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente

e, por estender-se a qualquer compartimento privado onde

alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4o, III),

compreende os consultórios profissionais dos cirurgiões-

dentistas”. Vejamos a esquema do argumento por analogia

contido no Acórdão:

A residência de uma pessoa física é inviolável.

O consultório profissional de um cirurgião-dentista (ou estabelecimentos de profissionais liberais) é semelhante à residência de uma pessoa física.

Logo, o consultório profissional de um cirurgião-dentista é inviolável.

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Em linguagem simbólica:

∆x Px → OQx ∆x Rx → P’x ¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ ∆x Rx → OQx

A conclusão não se segue dedutivamente das

premissas (P’= semelhante a P), mas o argumento pode se fazer

dedutivo se se introduz uma nova premissa que estabeleça que

tanto a residência de uma pessoa física quanto os locais a ela

semelhantes são invioláveis (∆x Px ∨ P’x → OQx), isto é, dá-se

um passo no sentido de generalizar ou de estender uma norma

legalmente estabelecida a casos não expressamente previstos.282

Outro dos argumentos que se utiliza com certa

freqüência para estabelecer a premissa normativa — nos casos

em que não se pode partir simplesmente das normas legalmente

fixadas — é a redução ao absurdo.

Este argumento tem, em princípio, uma forma

dedutiva, mas a redução ao absurdo, tal qual é comumente

utilizada pelos juristas, vai além de uma simples dedução, por

duas razões: em primeiro lugar porque, com freqüência, deve-se

entender que determinadas premissas estão implícitas (e sem

282 Outro exemplo de raciocínio por analogia, com a correspondente análise lógico-simbólica, pode ser encontrado em RODRIGUEZ, Atienza. Obra citada, p. 43-44.

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elas não teríamos a forma dedutiva do argumento)283; e, em

segundo lugar, porque a noção de absurdo utilizada pelos

juristas não coincide exatamente com a de contradição lógica,

mas sim com a idéia de conseqüência inaceitável.

Pois bem, nas páginas antecedentes foram vistos

alguns exemplos de raciocínios jurídicos que trazem consigo

esquemas de justificação (argumentos dedutivos e indutivos,

silogismo judicial, raciocínio por analogia, etc.), além de

ter sido analisado como se dá uma inferência lógica num

silogismo prático, ou seja, como se justifica dedutivamente a

passagem que vai de uma premissa normativa e uma premissa

fática a uma conclusão normativa (com a correção do conceito

formal de argumento dedutivo).

Todos esses esquemas mostram como o nível de

racionalidade lógico-formal, que é o mais básico no âmbito da

argumentação (conforme dito anteriormente), é operado no

contexto de aplicação do direito. A esse nível básico de

racionalidade devem convergir todas as decisões judiciais,

pois uma sentença não estará justificada — posto que

irracional — se não tiver uma forma dedutiva.

283 Para provar p; assume-se ~p (ou seja, que p é falso, sendo essa a premissa que estaria implícita); daí se deriva uma implicação q; demonstra-se então que q é falso (contraditório, estúpido, absurdo); e se conclui: p. Segundo WESTON: “Os argumentos mediante reductio (...) estabelecem, pois, suas conclusões mostrando que a negação da conclusão conduz ao absurdo. Não se pode fazer outra coisa senão aceitar a conclusão, sugere o argumento” (WESTON, A. Obra citada, p. 90).

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195

Nos casos rotineiros, considerados fáceis284, o

trabalho argumentativo do juiz se reduz a efetuar uma

inferência de tipo dedutivo.285 Porém há também casos difíceis,

cuja solução não depende só da justificação de tipo dedutivo,

que nestes casos se revela insuficiente.

Ora, quem tiver a pretensão de se valer apenas

da lógica dedutiva para raciocinar juridicamente, ou que veja

nela o único mecanismo de controle racional, ficará

vulnerável, pelo menos, aos seguintes problemas:286 a lógica

dedutiva a) não diz nada sobre como devem ser estabelecidas as

premissas, isto é, parte-se delas como algo já dado; b) também

não diz nada sobre o modo através do qual se deve passar das

premissas à conclusão, sendo que se limita unicamente a dar

critérios que digam se uma determinada passagem está ou não

autorizada287; c) é duvidoso — ou ao menos, muitas vezes se

duvidou288 — que haja uma inferência normativa, isto é, uma

284 Recordemos o debate entre HART e DWORKIN, em que há a distinção entre casos fáceis e difíceis, sendo que sobre estes últimos é que as preocupações deveriam se voltar: há aí discricionariedade do juiz ou é sempre possível chegar a uma solução correta? 285 Não que nestes casos a tarefa seja simples, pois na realidade podem ocorrer mais complicações que o esquema sugere. Segundo ALEXY: “... Enquanto no silogismo a passagem das premissas à conclusão é necessária, o mesmo não ocorre quando se trata de passar de um argumento a uma decisão. Esta passagem não pode ser de modo algum necessária, pois, se o fosse, não nos encontraríamos de modo algum frente a uma decisão, que supõe sempre a possibilidade de decidir de outra maneira ou de não tomar nenhuma decisão” (ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos, p. 26). 286 Na verdade os limites não estão na lógica, mas no uso que se quer fazer dela (ou nos objetivos ou alcance que se espera que ela atinja). 287 Portanto, sem valor heurístico, senão de prova, de modo que não opera no contexto do descobrimento, limitando-se ao de justificação. 288 Segundo KELSEN: “Na literatura jurídica, de vez em quando defende-se a

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inferência em que ao menos uma das premissas e a conclusão

sejam normas, como ocorre com o silogismo judicial (ou, em

geral, com o silogismo prático-normativo); d) só fornece

critérios formais de correção: um juiz que utilize como

premissas, por um lado, uma norma manifestamente inválida e,

por outro, um relato de fatos que contradiz frontalmente a

realidade, não estaria atentando contra a lógica; e) não

permite considerar como válidos os argumentos fundados em

hipóteses em que a passagem das premissas à conclusão não

tenha caráter necessário, ainda que seja altamente plausível;

f) não dá conta de uma das formas mais típicas de argumentar

em direito (e fora dele também): a analogia289; e g) não

determina, na melhor das hipóteses, a decisão enquanto tal290,

mas tão somente o enunciado normativo que é a conclusão do

opinião de que a Lógica usada na Ciência do Direito — especialmente para as normas jurídicas — não é a Lógica Formal Geral, mas uma desta diferente, especificamente uma Lógica ‘Jurídica’. A opinião é contestada. O logicista polonês, Kalinowski, recusa-a decididamente. O filósofo belga, Ch. Perelman intervém, resoluto, em favor dela. Para a existência de uma lógica especificamente jurídica argumenta-se, sobretudo, com a chamada conclusão analógica, usada por juristas, e o por eles repetidamente empregado argumentum a maiore ad minus.

(...) ...não se pode falar, especificamente, de uma Lógica ‘Jurídica’. É a

Lógica Geral que tem aplicação tanto às proposições descritivas da Ciência do Direito — até onde a Lógica Geral é aqui aplicável — quanto às prescribentes normas do Direito. (...) ‘Lógica Jurídica, como eu a entendo, é Lógica Formal empregada no raciocínio jurídico. — Não constitui um ramo especial, mas é uma das aplicações especiais da Lógica Formal” (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 344 e 349). 289 Cf. o uso da lógica formal nos raciocínios por analogia em ALCHOURRON, Carlos E., BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. 290 Por exemplo, condeno x a uma pena y.

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silogismo judicial:291 a hipótese de um enunciado em que se

infere que “devo condenar x a uma pena y, mas não o condeno”,

não traduz nenhuma contradição lógica, mas somente pragmática

(performática).

Essas limitações do método dedutivo não

passaram despercebidas por Karl ENGISH, que no entanto

reconhece, citando Ülrich KLUG, a sua importância necessária e

insubstituível:

“ ... Relativamente a este silogismo vale aquilo que KLUG diz com inteira razão da tarefa da lógica formal relativamente ao conhecimento jurídico: que ela tem ‘uma importância necessária e, portanto, insubstituível, no entanto não tem ao mesmo tempo uma importância bastante’. Em particular deve insistente e expressamente acentuar-se que a ‘trivial’ dedução a partir da premissa maior e da premissa menor não diz absolutamente nada sobre a dificuldade e a sutileza da elaboração daquelas mesmas premissas.”292

Conhecidas, portanto, as insuficiências da

justificação de tipo dedutivo, conclui-se que “...nos casos

difíceis o estabelecimento da premissa normativa e/ou da

premissa fática implica uma questão problemática, fazendo-se

necessários argumentos adicionais em favor das premissas que

se pretenda utilizar, argumentos estes que provavelmente não

serão puramente dedutivos”.293 A fim de diferenciar as

justificações de primeiro tipo (inferências dedutivas) destas

291 Por exemplo, devo condenar x a uma pena y. 292 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 383. 293 SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, p. 124.

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últimas (que necessitam de razões adicionais que vão além da

lógica em sentido estrito), Jerzy WRÓBLEWSKI as separou em

justificação interna e justificação externa, respectivamente.

Segundo WRÓBLEWSKI:

“ A justificação em forma silogística é uma justificação interna porque nela a fortaleza das premissas não é submetida à prova. O papel da justificação externa é, naturalmente, enorme, mas este não pode se realizar com instrumentos lógico-formais. O papel da lógica informal ou da argumentação não está limitado ao uso da justificação silogística. Ao contrário, esta justificação poderá servir como argumento a favor do papel decisivo das valorações e das eleições na determinação das premissas da decisão judicial.”294

A justificação interna, portanto, está

relacionada a questões como a de se uma decisão foi

corretamente inferida das premissas (parte, portanto, de

premissas já dadas ou aceitas. Nenhuma decisão, depois de

fixadas as suas premissas, pode prescindir desse tipo de

justificação), e a justificação externa diz respeito à correta

adoção das premissas (a justificação de seu estabelecimento ou

de sua escolha).

294 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Il sillogismo giuridico e la razionalità della decisione giudiziale, citado por COMANDUCCI, Paolo Comanducci. Razonamiento jurídico: elementos para um modelo, nota 21, p. 84.

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199

3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica

Volta-se agora àqueles questionamentos postos

no início deste capítulo: em que sentido se pode falar em

racionalidade jurídica e qual o seu alcance?

Para a análise de tais questões usaremos como

pano de fundo o pensamento de Chaïm PERELMAN, a partir do qual

esperamos revelar a importância que representa a teoria da

argumentação jurídica para o auxílio na resolução de problemas

que continuam a deixar perplexos todos aqueles que ainda vêem

no direito um bom instrumento para o aprimoramento de nossas

relações sociais.

Considerando aquelas duas perguntas iniciais,

pode-se ainda delas derivar os seguintes questionamentos: o

que significa argumentar juridicamente? Até que ponto a

argumentação jurídica se diferencia da argumentação ética, da

argumentação política ou, inclusive, das argumentações que têm

lugar na vida cotidiana e até mesmo na ciência? Como se

justificam racionalmente as decisões jurídicas? Qual é o

critério de correção dos argumentos jurídicos? O direito

fornece uma única resposta correta para cada caso? Quais são,

definitivamente, as razões do direito: não a razão de ser do

direito, mas sim as razões jurídicas que servem de

justificação para uma determinada decisão?

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200

Levando-se em conta que as teorias da

argumentação jurídica têm fixado suas preocupações na forma

pela qual os casos difíceis podem ser justificados, o que não

significa dizer que seu objeto deva ficar restrito a estes

casos.

As reflexões serão iniciadas a partir da

indagação de se é mesmo possível a justificação externa de

decisões jurídicas, ou seja, se a tarefa de escolha das

premissas — ou mesmo o seu estabelecimento (criação) — que

orientarão aquelas decisões pode ou não ser submetida a algum

critério de racionalidade, o que permitiria enfim o controle

dos processos decisórios e, por conseqüência, a exclusão das

arbitrariedades ainda existentes. Façamos, então, uma

delimitação do problema.

A tradição racionalista da modernidade foi,

durante muito tempo, o modelo dominante da atividade

argumentativa, que no domínio lógico tem a pretensão de

estabelecer a verdade a partir de seus operadores, que têm

natureza dedutiva e cujo critério de avaliação é fornecido

pela validade formal.

Essa tradição se fez sentir também no âmbito

jurídico, até porque, como visto, a racionalidade lógica é o

nível mais básico do pensar jurídico: nenhuma decisão jurídica

pode relevar da justificação interna.

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No entanto, as limitações inerentes à

racionalidade formal — que já se fizeram sentir desde a origem

do positivismo jurídico moderno295 — mostram que há casos

difíceis em que a justificação interna, por si só, não é

suficiente, fazendo-se necessária a justificação externa que

escapa do rigor lógico-formal.

O positivismo jurídico atual, que não conseguiu

ainda se desvencilhar por completo do peso da tradição, diante

dos casos difíceis assume a impossibilidade lógica e remete a

tarefa da decisão para a discricionariedade do intérprete. Por

isso o positivismo tem sido acusado de irracionalista, sendo

precisamente neste ponto que se desenrola um dos maiores

debates jusfilosóficos da atualidade.

Parece, no entanto, que o problema todo reside

na circunstância de se ter sobrevalorizado o raciocínio

formal, de se ter pedido mais do que ele pode oferecer.

Com efeito, as várias limitações da lógica

dedutiva que foram apontadas acima não constituem, por si só,

nenhum defeito. O problema não é da lógica, mas do ideal — que

295 O que provocou, como visto, o surgimento de uma série de posturas críticas em relação ao positivismo.

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perpassa o pensamento ocidental — que faz dela o centro de

toda a racionalidade.296

Nessas condições, qualquer teoria que estivesse

comprometida com o resgate da razão — ou, se se preferir, com

a defesa da possibilidade do uso da razão — para além dos

limites estreitos da lógica, o primeiro passo deveria ser, de

um certo modo, o rompimento com a tradição.

Não é de surpreender, portanto, que as

tentativas de recuperação do domínio argumentativo viessem

acompanhadas de uma crítica do pensamento que levou ao

pedestal o raciocínio lógico-formal. Foi isso que ocorreu, na

década de 1950, quando despontou o pensamento original de

Chaïm PERELMAN, que ao mesmo tempo em que era recuperada a

tradição tópica e retórica da antigüidade, declarava o seu

rompimento com a tradição racionalista moderna que, desde

DESCARTES, conduziu precisamente à entronização da lógica e à

uniformização da argumentação. Destarte, no início do

Tratado297, PERELMAN afirma que:

296 GALILEU afirmava, por exemplo, que “...não existe caminho do meio [meio termo] entre a verdade e o falso, assim nas demonstrações necessárias ou aceitamos conclusões indubitáveis ou silogiza-se sem desculpa, sem ter a possibilidade, mesmo limitadamente, com distinções distorcendo as palavras ou com outros recursos, sustentar-se em pé, mas é necessário, com palavras breves, e na primeira vez, permanecer César ou nada” (GALILEU. O ensaiador, p. 73). Ver nota de rodapé número 286, supra. 297 La nouvelle rhetorique. Traite de L’argumentation, escrito em colaboração com Lucie OLBRECHTS-TYTECA, cuja primeira edição foi publicada em 1958.

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“ ... A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo.”298

Ao delimitar o campo da argumentação ao

verossímil, ao plausível e ao provável, é para um fenômeno

particular que se está a apontar, sendo que daí PERELMAN

identificará o essencial da teoria da argumentação: a adesão.

Assim, “...o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas

discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos

espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”.299

É por isso que esta teoria se caracteriza como

uma nova retórica.300 Ao incidir sobre o fenômeno da adesão a

sua atenção recai não sobre o valor formal dos argumentos mas

sobre as suas características operatórias e sobre o espaço da

sua recepção, isto é, sobre os esquemas argumentativos

utilizados e o auditório visado numa dada argumentação, uma

298 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 1. Entra-se no domínio daquilo que, já para ARISTÓTELES, era tido como o âmbito da racionalidade prática, onde “...deliberar e calcular são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas invariáveis [que não podem ser diferentemente]” (ARISTÓTELES, Ética a nicômacos, p. 114). Ver também BERTI, Enrico. Obra citada, p. 143-145. 299 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 4. 300 “... Com efeito, a área cujo estudo teórico queríamos fazer reviver é a das provas que Aristóteles chamava dialéticas e que, por causa do sentido específico que é associado à palavra ‘dialética’ no pensamento contemporâneo, preferimos qualificar de retóricas” (PERELMAN, C. Retóricas, p. 268).

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vez que “...é em função de um auditório que qualquer

argumentação se desenvolve”.301

Em PERELMAN é conferida uma primazia às

questões da razão prática e ao raciocínio prático302 — que

implica valores — o que o conduz à elaboração de uma teoria da

argumentação que, conforme visto, somente será possível pela

crítica e abandono da noção de evidência como marca distintiva

da razão, culminando numa proposta de alargamento da própria

noção da razão, conforme aduz GRÁCIO:

“ ... Nasce então a teoria da argumentação, empreendida para fazer estourar a tradicional conexão do racional e do necessário, do não-necessário e do irracional, e encaminhar-se para uma concepção alargada da razão, integrando a argumentação ao lado da demonstração. A razão não serve apenas para descobrir a verdade e o erro, mas também para justificar e argumentar, para organizar o jogo movente das preferências: não apenas para decretar e para constranger, mas, também, para operar e para generalizar inversões de hierarquias, para ordenar estruturas que, longe de pretenderem ser eternas e absolutas, são solidárias de todo o sistema das significações práticas existentes.”303

301 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 6. 302 PERELMAN define o raciocínio prático como sendo aquele “...que justifica uma decisão. Falaremos de raciocínio prático toda vez que a decisão depende de quem a toma, sem que ela decorra de premissas consoantes a regras de inferência incontestes, independentemente da intervenção de qualquer vontade humana.

(...) “... O raciocínio prático, em contrapartida, por recorrer a técnicas

da argumentação (...) implica um poder de decisão (...), a liberdade de quem julga. Sua meta é mostrar, conforme o caso, que a decisão não é arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, mas é motivada pelas razões indicadas” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 278 e 280). 303 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 33-34.

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205

A teoria da argumentação de PERELMAN, segundo

MENDONÇA, “...coloca em xeque todo um paradigma de estudo das

ciências humanas e sociais, fundado em uma lógica matemática

de fundo demonstrativo”304, constituindo, segundo José Américo

Motta PESSANHA, “...uma das mais importantes contribuições, em

nosso século, à revisão do conceito de Razão, incidindo

particularmente sobre a questão da cientificidade no campo das

ciências humanas ou sociais”.305

Com efeito, conceber a racionalidade a partir

das exigências da ação faz com que a razão seja vista não mais

sob uma ótica de contemplação da verdade, mas da

justificação306 das nossas convicções e opiniões:

“ Apenas a existência de uma argumentação, que não seja nem coerciva nem arbitrária, confere um sentido à liberdade humana, condição de exercício de uma escolha racional. Se a liberdade fosse apenas adesão necessária a uma ordem natural previamente dada, excluiria qualquer

304 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais, p. 86. 305 PESSANHA, José Américo Motta. A teoria da argumentação ou nova retórica, p. 221. 306 Segundo Tércio Sampaio FERRAZ JR., “... É nessa situação que o discurso se dá como discussão fundamentante, onde aparece a finalidade do entendimento e, eventualmente, da persuasão e convencimento, o que significa que nem todo discurso implica uma justificação argumentada efetivamente realizada, significando, porém, que uma tal justificação pode sempre ser exigida, desde que aquele que fala pretenda aparecer com autoridade, e aquele que ouve a ponha em dúvida. Nesses termos, todo discurso, toda ação lingüística envolve uma regra fundamental, que denominamos dever de prova. Esse dever, que se manifesta na reflexividade da discussão, é sua regra básica, constituindo o centro ético e lógico da discussão, a partir do qual é possível conceber a discussão, tendo em vista os seus diferentes componentes, como uma unidade estruturada. Não há discussão sem onus probandi; se há um dever de dizer, há também um dever de provar o que se diz. Centro ético da discussão, esse dever estabelece, também, uma relação entre os componentes da discussão, permitindo-lhe, assim, uma estrutura” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 7-8).

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possibilidade de escolha; se o exercício da liberdade não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária atuando num vazio intelectual. Graças à possibilidade de uma argumentação que forneça razões, mas razões não-coercivas, é que é possível escapar ao dilema: adesão a uma verdade objetiva e universalmente válida, ou recurso à sugestão e à violência para fazer que se admitam suas opiniões e decisões.”307

A possibilidade de se tomar decisões nos traz a

noção de liberdade que, segundo PERELMAN, só pode se dar num

ambiente pluralista, posto que apenas o pluralismo confere

“...o sentido da responsabilidade e da liberdade nas relações

humanas. Quando não há nem possibilidade de escolha nem

alternativa, não exercemos a nossa liberdade. A deliberação é

que distingue o homem do autômato”.308 A liberdade implica a

possibilidade de inventar e a possibilidade de aderir,

capacidades estas que não têm lugar nem numa filosofia

puramente analítica e nem numa filosofia apenas preocupada com

a verdade, já que, no primeiro caso, “...a invenção vale

apenas como descoberta”309 e, no segundo, “...a adesão

desaparece ante a verdade”.310

Nesse sentido, com o rompimento das barreiras

impostas pelo dogmatismo, a razão não obriga à unidade e ao

307 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 581. 308 PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 90. 309 PERELMAN. C. Idem, p. 250. 310 PERELMAN. C. Idem, ibidem.

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consenso; nem a falta de acordo deve ser encarada como

sinônimo de irracionalidade.311

Feitas estas considerações iniciais, cabe agora

mencionar os pontos de partida da nova retórica de PERELMAN,

que, segundo GRÁCIO, são os seguintes:

“ ... 1) os homens têm que organizar-se entre si; 2) esta organização, para evitar soluções de pura violência, implica a capacidade para se estabelecerem acordos e partilharem convicções; 3) é na adesão coletiva, explícita ou implícita, a valores que se funda a vida social; 4) a razão intervém quando a ordem estabelecida necessita de renovação ou se verificam transformações que há que justificar. Destes pontos decorre, naturalmente, uma conclusão: aquilo a que se possa chamar razão e aquilo que se possa considerar racional deve ser procurado a partir de uma análise do modo como, na prática, se procuram estabelecer soluções de continuidade relativamente a mudanças — numa palavra, justificar — que, segundo as exigências da própria ação, se têm que operar nos quadros de referência a partir dos quais os homens, aderindo a valores, convicções e normas, se organizam em sociedade.”312

311 “... O que é essencial é que, sejam quais forem os motivos do início da reflexão filosófica, ela não se concebe, a meu ver, sem uma ruptura da comunhão do homem com o seu meio, sem os primeiros questionamentos daquilo que, até então, era óbvio, tanto na visão do mundo como naquela do lugar que nele ocupamos; primeiros questionamentos tanto de nossas crenças como de nossas modalidades de ação. Ora, do questionamento ao desacordo, e do desacordo ao uso da força para restabelecer a unanimidade, a passagem é tão normal que quase não necessita de comentários. O que é excepcional, em contrapartida, e constituiu uma data na história da humanidade, é que se tenha permitido que, em matérias fundamentais, reservadas à tradição religiosa e aos seus porta-vozes, o uso da força possa ser substituído pelo da persuasão, que se possam formular questões e receber explicações, avançar opiniões e submetê-las à crítica alheia. O recurso ao logos, cuja força convincente dispensaria o recurso à força física e permitiria trocar a submissão pelo acordo, constitui o ideal secular da filosofia desde Sócrates. Esse ideal de racionalidade foi associado, desde então, à busca individual da sabedoria e à comunhão das mentes fundamentada no saber. Como, graças à razão, dominar as paixões e evitar a violência? Quais são as verdades e os valores sobre os quais seria possível esperar o acordo de todos os seres dotados de razão? Eis o ideal confesso de todos os pensadores da grande tradição filosófica do Ocidente”(PERELMAN, C. Ética e direito, p. 96). 312 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 24.

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A nova retórica, ao contrário da razão prática

(moral) de KANT, não parte portanto de idéias que caracterizam

e configuram a priori a razão, em que, por um lado, o homem é

um fim em si mesmo, e de que, por outro, todos os fins e

projetos individuais podem concordar, que a moralidade pode

coincidir com o fim natural, podendo as suas regras ser

universalizadas sem contradizerem.313

Vale dizer que o modelo da filosofia

cartesiana, segundo PERELMAN, é que foi o grande responsável

pela depreciação de uma tradição secular aberta ao diálogo: a

tradição da retórica. Com efeito, o modelo cartesiano que

busca conceber:

“ ...todo progresso do conhecimento unicamente como uma extensão do campo aberto por esses elementos claros e distintos, chegar mesmo a imaginar que, no limite, num pensamento perfeito, que imita o pensamento divino, poderíamos eliminar do conhecimento tudo o que não se conformasse com esse ideal de clareza e de distinção, seria querer reduzir progressivamente o recurso à argumentação até o momento em que seu uso se tornaria completamente supérfluo. Provisoriamente, sua utilização estigmatizaria os ramos do saber que dela se servem, como áreas imperfeitamente constituídas, ainda em busca de seu método e não merecedoras do nome de ciência. Não é de espantar que esse estado de espírito tenha desviado os lógicos e os filósofos do estudo da argumentação, considerada indigna de suas preocupações, deixando-o por conta dos especialistas da publicidade e da propaganda, que caracterizavam sua falta de escrúpulos e sua oposição constante a qualquer busca sincera da verdade.”314

313 Neste aspecto a moral Kantiana seria utópica à medida em que, apresentando uma hierarquização de deveres, nega a possibilidade de um conflito de deveres, ou seja, o imperativo categórico descrito no capítulo anterior não poderia ser estabelecido a priori. 314 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumantação: a nova retórica, p. 577.

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Essa depreciação da retórica promovida,

sobretudo pelo racionalismo315, será combatida por PERELMAN

através da elaboração de uma teoria da argumentação que faça

“...reviver uma tradição gloriosa e secular”.316

Esse resgate da tradição retórica estará

centrado precisamente na forma de racionalidade que

ARISTÓTELES317 chamava de dialética, cuja “...primeira

315 Note-se que, para que PERELMAN, é a perda das ilusões do racionalismo clássico e a necessidade de romper definitivamente com o positivismo que torna oportuna a reabilitação da tradição retórica. Reabilitar a retórica significa libertá-la de todo um conjunto de conotações pejorativas que se associaram ao próprio termo retórica e que conduziram à sua desvalorização e depreciação. As idéias segundo as quais a retórica é um conjunto de procedimentos para enganar ignorantes, que o seu domínio de estudo é o das figuras de estilo ou dos ornamentos do discurso, que nela o que interessa é a forma e não o conteúdo, de que nela o que conta é fazer prevalecer os interesses pessoais e não dar realmente resposta aos verdadeiros problemas, procedem, no fundo, do triunfo do dogmatismo que elege, para a resolução dos problemas, instâncias últimas de soberania — sejam elas a razão, a experiência ou a revelação — que asseguram, contra o vago e o confuso, contra o ambíguo e o incerto, numa palavra, contra o problemático e o controverso, um espaço de aproblematicidade em que o plano das hipóteses e da plausibilidade é descartado em detrimento de um plano an-hipotético em que a solução se impõe como única solução; é que o dogmatismo é solidário do monismo axiológico, que transforma os problemas de valor em problemas de verdade. Reabilitar a retórica é, por isso, mostrar a fecundidade do que, de um ponto de vista dogmático, sempre se considerou como defeito: mostrar a importância das noções confusas e dos juízos de valor; mostrar como a controvérsia e o debate não são desprovidos de razão; mostrar como, aí, a razão se exerce; mostrar que a redução dos meios de provas às provas formais ou experimentais deixa de fora todo um campo que diretamente diz respeitos às coisas humanas e ao real humano (Cf. PERELMAN. C. Retóricas, p. 180-184). 316 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 5. 317 BERTI assim justifica o por quê da escolha de ARISTÓTELES e não de outros pensadores clássicos que também trataram da retórica: “O que mais interessa na polêmica de Aristóteles contra Isócrates e, portanto, contra a retórica de tipo gorgiano é a nova concepção de retórica como arte da comunicação, não mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva: por esse motivo a retórica de Aristóteles atraiu o interesse dos filósofos contemporâneos, seja como possível lógica do discurso político ou judiciário, seja como ocasião de recuperação da dimensão comunicativa da linguagem, para além daquela dimensão puramente instrumental própria da ciência e da técnica modernas” (BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 170).

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caracterização, extremamente densa de significado, que

Aristóteles nos oferece da dialética é exatamente o exórdio

dos Tópicos: ‘nosso tratado se propõe encontrar um método

(méthodos) de investigação graças ao qual possamos raciocinar,

partindo de opiniões geralmente aceitas (éndoxa), sobre

qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também

capazes, quando replicamos a algum argumento, de evitar dizer

alguma coisa que nos causa embaraços (I 1, 100 a 18-21)’.”318

Neste sentido, “...dialética significa discurso

ou intercâmbio entre dois ou mais oradores que expressam

opiniões diversas, tendo, assim, a conotação de um pensar

baseado na oposição interpessoal”319, sendo, portanto, “...a

arte das contradições”320, noção esta que se confirma a partir

do que BERTI fala a esse respeito:

318 BERTI, Enrico. Obra citada, p. 19. Segundo REBOUL: “A dialética é, pois, um jogo cujo objetivo consiste em provar ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio. O papel do inquiridor ‘é concluir a discussão de modo que o defensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como conseqüências necessárias de sua tese’ (...). Ao outro, em contrapartida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial é que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos os argumentos a seu alcance. E esse ‘mostrar’ já não é simples aparência; é o sofista que raciocina na aparência, exatamente como o trapaceiro, que faz de conta que está jogando. Quanto à dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência, mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que reforça ainda mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles: quando um dos dois adversários raciocina mal, a discussão vira chicana, e o faltoso ‘impede o bom cumprimento da obra comum’ (...); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum, que é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas ambos querem levar a bom termo ‘a obra comum’” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 32). 319 PRADO, Lidia Reis de Almeida. A lógica do razoável na teoria da interpretação do direito. p. 36. 320 ASSIS, Olney Queiroz. Interpretação do direito sob o enfoque tópico-retórico: uma contraposição ao método sistemático, p. 20.

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“ A discussão dialética supõe, portanto, que os dois interlocutores discutam na presença de um público (de ouvintes, mas hoje dir-se-ia leitores), o qual, em certo sentido, faz as vezes de árbitro, e decide qual dos dois teve sucesso, isto é, conseguiu refutar o outro ou não fazer-se refutar pelo outro. As premissas ‘conhecidas’, que de agora em diante denominaremos, por brevidade, pelo nome grego éndoxa, são partilhadas por todos os ouvintes, por isso servem como ponto de referência comum para a discussão. Do mesmo modo é partilhada pelos ouvintes a regra segundo a qual a contradição é signo da falsidade de uma tese, e, portanto, aquele que nela incorre deve ser considerado perdedor. Aquele que pergunta, por conseguinte, caso queira obter de seu interlocutor certa resposta, que lhe permita refutá-lo, deverá formular sua pergunta de modo que o outro seja quase obrigado a dar-lhe certa resposta, e isso acontecerá se a resposta for conforme a alguma coisa ‘conhecida’, isto é, éndoxon. A habilidade de cada um consistirá em chegar ao resultado por ele desejado, e temido pelo outro, mesmo atendo-se aos éndoxa, isto é, não se pondo em contradição com o público, que é o árbitro. Para o público, com efeito, o que é éndoxon deve ser aceito, enquanto o que é contraditório deve ser refutado.”321

Quanto à noção de dialética322, cumpre alertar

para um aspecto importante que, segundo BERTI, tem sido a

origem de muitos equívocos na interpretação do pensamento

aristotélico. É que o termo éndoxa (opiniões geralmente

aceitas) tem sido traduzido por premissas prováveis ou, ainda,

por premissas verossímeis. No entanto, para BERTI, a diferença

entre premissas verdadeiras (que operam nos raciocínios por

demonstração) e premissas éndoxa não é de grau:

“ ...como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa por ‘premissas prováveis’, dando a impressão de que se

321 BERTI, E. Obra citada, p. 23. 322 Como visto, PERELMAN preferiu denominá-la de retórica em face da polissemia que o termo dialética foi acumulando através dos tempos. Com efeito, segundo BERTI: “O que Perelman denomina ‘retórica’, portanto, não é senão o que Aristóteles denominava dialética” (BERTI, Enrico. Aristóteles no século xx, p. 287).

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trata de uma aproximação à verdade de tipo estatístico (isto é, de premissas com um grau de verdade superior a 50%), nem se trata da diferença entre realidade e aparência, como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa por ‘premissas verossímeis’, dando a impressão de que não são verdadeiras.”323

Com efeito, segundo BERTI, quem “...conhece a

dialética de Aristóteles sabe que isso não é verdade, e que as

premissas das argumentações dialéticas, isto é, os éndoxa,

distinguem-se das premissas da argumentação científica, isto

é, das definições e dos axiomas, não porque sejam somente

verossímeis, mas exatamente porque devem receber a adesão de

todos os interlocutores, sendo professados por todos ou pelos

sophói, isto é, pelos ‘especialistas’, pelos ‘competentes’.”324

Portanto, o que se pretende esclarecer é que,

para ARISTÓTELES, a dialética (retórica, para PERELMAN) não

renuncia à verdade e nem se contenta com um grau de verdade

inferior ao da ciência, “...porque a dialética simplesmente

não se preocupa com a verdade, mas apenas com a discussão,

isto é, com a refutação e, portanto, com o consenso que a esta

é indispensável”.325

Mas, na transposição do pensamento de

ARISTÓTELES para a teoria da argumentação de PERELMAN os

éndoxa poderão, em alguns casos, fugir à noção ortodoxa do

323 BERTI, E. As razões de aristóteles, p. 24-25. 324 BERTI, E. Aristóteles no século xx, p. 286-287. 325 BERTI, E. As razões de aristóteles, p. 25.

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conceito, que é ampliado também para abrigar as noções de

probabilidade e verossimilhança326, pois a busca de critérios

racionais de escolha (valoração) para a justificação de

decisões jurídicas pode sim admitir aquelas noções.

Mas é possível formular um critério racional

que estabeleça a melhor escolha? Ou, em outras palavras, é

possível estabelecer uma lógica do preferível? Para GRÁCIO, no

pensamento de PERELMAN a problemática dos valores é concebida:

“ ...‘em função da argumentação face a outrem’ e que aos valores, definidos como objetos de crença ou de adesão relativos, não ao real, mas ao preferível, corresponderá, definitivamente, o papel de justificar escolhas. Se nas perspectivas que defendem o monismo axiológico vigora a idéia de que ‘em todo o conflito de valores, há um meio de reduzir todas as divergências de opinião, reconduzindo todos os valores, na sua infinita diversidade, a um só, concebido em termos de perfeição, de utilidade ou de verdade’, já na perspectiva pluralista e dialógica de Perelman se torna impossível assimilar a noção de demonstração à de justificação na medida em que esta, ao invés daquela, implica sempre polêmica, confronto, possibilidade de crítica, perspectivas suscetíveis de revisão, provisoriedade, multiplicidade de pontos de vista.”327

326 É claro que a busca do consenso que não tem preocupação de verdade é perfeitamente assimilável ao direito, pois, de acordo com ATIENZA, o mesmo “...não está só interessado na verdade, mas também em resolver conflitos sociais” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las Razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 165). Ou, segundo PERELMAN: “... Uma decisão razoável não é, portanto, simplesmente uma decisão conforme à verdade, mas aquela que pode ser justificada pelas melhores razões, pelo menos na medida em que ela necessita de justificação” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 384). Mas inevitavelmente a noção aristotélica de éndoxa deve ser ampliada, pois há casos, como nos silogismos judiciais, em que procurar critérios racionais para fixar aquilo que pode ser aceito como provável (no estabelecimento de uma premissa fática, por exemplo) é fundamental. 327 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p.39.

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O caráter provisório das escolhas levará

PERELMAN a falar numa lógica do preferível, a qual não tem

características de necessidade e nem é constringente, enfim,

uma lógica associada à retórica.

A partir daí PERELMAN se diz partidário de uma

filosofia regressiva, a qual se contrapõe às filosofias

primeiras ou metafísicas, que absolutizam a razão. Já para a

filosofia regressiva, o fundamental é sempre relativo aos

fatos e aos acordos sobre fatos. PERELMAN assim distingue as

duas posturas:

“ Os partidários de uma filosofia primeira fundamentam sua argumentação na existência de certos princípios aceitos tanto por eles próprios quanto por seus interlocutores (e, na falta de outra coisa, vão procurar esses princípios na própria teoria dos adversários): sua meta será transformar esse acordo de fato em acordo de direito, fazer dele um acordo necessário, de validade universal, do qual possam inferir uma criteriologia das verdades primeiras. Os partidários da filosofia regressiva baseiam sua argumentação no fato da existência de princípios em desuso que, após terem sido universalmente aceitos, tiveram de ser abandonados ou cujo alcance teve de ser restringido; também extrapolam quando afirmam que a experiência da evolução do pensamento científico nos veda cristalizar, em algum ponto, os princípios que formam a base atual de nosso saber. Os adeptos de uma filosofia primeira transformam princípios atuais em princípios eternos, os da filosofia regressiva situam o atual num devir histórico, do qual não crêem poder privilegiar nenhum momento, subtraindo-o, a priori, a toda evolução; recusam o princípio de Aristóteles que requer um termo absolutamente primeiro a qualquer série regressiva. As duas atitudes levam em conta a experiência do passado, mas dela tiram conclusões diferentes para o futuro. A filosofia primeira afirma que uma nova experiência já não pode trazer a modificação de certos princípios, que resistiram a todos os ataques anteriores; a filosofia regressiva crê que tantos princípios tiveram de ser abandonados que não se pode afirmar de nenhum que é tão firme que uma nova experiência (no sentido mais lato da palavra) nunca possa questioná-lo. Aquela busca um conhecimento perfeito, necessário ou absoluto, seu ideal consiste em

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encontrar alguma verdade evidente diante da qual os homens teriam de inclinar-se, à qual teriam de aderir — seu ideal de liberdade se define como o consentimento ao ser ou à ordem absoluta —, esta só admite um conhecimento imperfeito e sempre perfectível, compraz-se, não num ideal de perfeição, mas num ideal de progresso, entendendo com isso não o fato de aproximar-se de alguma perfeição utópica, mas o fato de solucionar as dificuldades que se apresentam por meio de uma arbitragem constante, efetuada por uma sociedade de mentes livres, em interação umas com as outras, das vantagens e dos inconvenientes de qualquer tomada de posição ante o conjunto dos elementos da experiência.”328

Não se pretende mais buscar razões últimas e

fundamentos eternos, pois com a filosofia regressiva o

fundamento reside no acordo, ou melhor, nos acordos que os

homens estabelecem e convencionam e não em algum acordo de

direito anterior ao próprio acordo de fato e com validade

independente dos acordos de fato. É recusada a admissão de que

os princípios de uma filosofia sejam fundamentos definitivos,

válidos para toda a filosofia. A questão das divergências de

opinião deixa de ser perspectivada do ponto de vista formal da

contradição lógica e passa a ser encarada sob a ótica da

incompatibilidade.

Assim, a noção de contradição deve ser

substituída pela de incompatibilidade: a oposição e a

divergência deixam de ser sinônimo de contradição e de

irracionalidade para passarem a ser consideradas a partir da

idéia de que há incompatibilidades, que não são formais, mas,

328 PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 148-149.

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sempre, relativas a circunstâncias contingentes e apenas

existentes em certas situações.329

Começa a ser estabelecida uma afinidade entre

razão330 e justificação. A tarefa de justificar liga-se ao

princípio racional da inércia, que por sua vez é decorrente de

uma tendência natural do nosso espírito para considerar como

normal e racional e, portanto, como não exigindo nenhuma

justificação suplementar, um comportamento conforme aos

precedentes; dito de outra maneira, o princípio de inércia,

que transforma em norma toda a maneira habitual de proceder,

está nas bases das regras que se desenvolvem espontaneamente

em toda a sociedade. O princípio de inércia desempenha, assim,

um papel estabilizador indispensável na vida social. Isto não

quer dizer que tudo o que está deva permanecer imutável, mas

que não há lugar para o mudar sem razão: só a mudança deve ser

justificada.331

A tarefa de justificação, portanto, é exigida

quando o que se pretende é a contraposição de algo já

estabelecido, posto que só a mudança deve ser justificada.

Ressalte-se que, no âmbito da filosofia

regressiva de PERELMAN, fundamentar é justificar as

329 Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 221-223. 330 Mas, uma nova idéia de razão, sem pretensões exorbitantes. 331 Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito, 366-371.

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transformações que se operaram relativamente a um quadro de

referências anteriores e não estabelecer, de uma vez por todas

e a partir do zero, o critério a partir do qual nada mais

necessitaria de justificação.

Já não se tem mais a pretensão de querer tudo

justificar (no sentido dado a este termo pelas filosofias

primeiras), pois esta tarefa só é exigida na mudança, pois

“...não se deve mudar nada sem razão”.332

Neste momento PERELMAN se propõe uma hipótese

original de trabalho, que parte de uma correção no olhar

filosófico: depois de se ter, durante séculos, procurado o

modelo de pensamento filosófico nas matemáticas e nas ciências

exatas, não seria melhor inspiração compará-lo com o modelo

dos juristas, que tanto devem elaborar um direito novo como

aplicar o direito existente a situações concretas?

Duas serão as bases para a formulação da teoria

da argumentação de PERELMAN: por um lado, pensar, a partir do

modelo jurídico, a razão no seu uso prático; por outro, tentar

332 PERELMAN. C. Idem, p. 367 e 381. “O direito nos ensina (...) a não abandonar regras existentes, a não ser que boas razões justifiquem-lhes a substituição: apenas a mudança necessita de uma justificação, pois a presunção joga em favor do que existe, do mesmo modo que o ônus da prova incumbe àquele que quer mudar um estado de coisas estabelecido. E se advém que a novidade prevalece racionalmente (e não pela violência), é graças ao fato de ela satisfazer melhor a critérios ou a exigências preexistentes” (PERELMAN, C. Idem, p. 382).

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encontrar, a partir da idéia de justiça, a regra mestra da

razão prática (lógica do preferível).

A tomada do raciocínio jurídico como modelo

implica, em primeiro lugar, o abandono de um preconceito que

vê o direito como uma espécie de mal menor, uma espécie de

gestão de problemas humanos através de um conjunto de regras e

de agentes que permitem estabelecer ordem mas não trazem,

contudo, a ordem, que embora permitam soluções para os

conflitos não trazem, contudo, a solução que acabaria de vez

com todos os conflitos.

De acordo com PERELMAN, é preciso não ver no

direito uma espécie de remendo, lado infeliz de uma

racionalidade plena cuja realização teima em não se consumar,

recurso que atenua as imperfeições, mas não satisfaz. Esta

posição que subalterniza, secundariza ou mesmo desvaloriza o

direito é própria dos filósofos que sonham com a utopia de uma

sociedade paradisíaca ou perfeita — e para que serviria, com

efeito, o direito no país da utopia?333

Para PERELMAN, a questão é a de saber se o

ideal de racionalidade filosófica deve apresentar aos homens

333 Cf. PERELMAN, C. Idem, p. 372-389. “Almeja-se que, na sociedade ideal, as leis estejam inscritas no coração, na consciência e na razão de cada qual, que cada qual paute espontaneamente por elas a sua conduta e que não se tenha necessidade nem de juízes nem de advogados. Alguém imagina tribunais no seio do paraíso?” (PERELMAN, C. Idem, p. 373-374).

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unicamente a visão de um paraíso terrestre, no qual todos os

homens, tornados sábios, conduzem-se como santos, ou se ele

deve visar também a organização de uma sociedade com um mínimo

de violência, uma sociedade que admite reconhecer seus

defeitos e suas falhas.

Segundo PERELMAN, uma vez constatado que o

direito tem exatamente esta última preocupação, torna-se

compreensível que continue a ser desdenhado por aqueles cujas

pretensões são absolutistas, que vêem no direito nada mais que

um conjunto de expedientes indignos do filósofo. Porém, ao

contrário do que pensam os absolutistas, o direito deve ser

posto como um digno objeto de estudo para os filósofos que

encontram alguma racionalidade na organização de um saber e de

uma ação que são essencialmente falíveis.

Assim, contra a posição absolutista que

desdenha o estudo do direito e ignora a sua dimensão racional,

PERELMAN questiona:

“ ... Cumprirá condenar o direito e os juristas em nome de uma concepção da razão e da justiça inspirada pelas ciências matemáticas ou naturais, ou não cumpriria, contando com o fato de que os juristas mais eminentes são tão razoáveis e tão honestos como os homens de ciência, reconhecer, de uma vez por todas, que as divergências de todo tipo que se constatam em direito se devem à sua própria natureza, à sua especificidade em comparação com as ciências?”334

334 PERELMAN, C. Idem, p. 375.

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Na mesma obra, referindo-se à divergência de

opiniões e de interpretações que geralmente se geram em torno

da lei e à ausência de unanimidade que, por exemplo, numa

assembléia legislativa ou mesmo nos tribunais, freqüentemente

e usualmente se verifica335, PERELMAN continua a questionar:

“ Mas, já que a prática jurídica de todos os povos reconhece esse estado de coisas, cumprirá condenar o direito em nome de critérios que lhe são alheios, ou não se poderá, ao contrário, tirar proveito de uma análise da especificidade do direito, para compreender melhor outras situações em que se manifestam divergências irredutíveis, como em moral, em política e em filosofia?”336

Com essas observações acerca do pensamento

jurídico, PERELMAN irá então concluir que o direito está

essencialmente ligado ao problema da decisão, sendo que esta

não pode ser nem puramente necessária, nem puramente

arbitrária; mas sim como algo decorrente de um processo que

exige razões ou motivos que a justifiquem, tornem-na razoável,

ou lhe confiram, ao menos, uma certa razoabilidade.

Também neste domínio o princípio da

incompatibilidade se sobrepõe ao da contradição. Segundo a

335 “De fato, admitimos perfeitamente que dois homens razoáveis e honestos possam não estar de acordo sobre uma determinada questão e julgar diferentemente. A situação é mesmo considerada tão normal, tanto nas assembléias legislativas como nos tribunais que comportam vários juízes, que são consideradas excepcionais as decisões tomadas por unanimidade, e é normal prever procedimentos que permitem chegar a uma decisão quando pareceres opostos permanecem irredutíveis quando confrontados” (PERELMAN, C. Idem, ibidem). 336 PERELMAN, C. Idem, p. 376.

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lógica daquele, o fato de duas decisões serem incompatíveis

não significa que ambas, ou pelo menos uma delas, sejam

irracionais. Segundo PERELMAN, nada impede que duas decisões,

apesar de incompatíveis, sejam ambas razoáveis.

Contudo, esta afirmação só pode ser

teoricamente sustentável se, ao invés de associarmos a idéia

de razão à idéia de verdade337, caminharmos para uma

perspectiva que sublinha o papel que a razão pode desempenhar

no plano da ação e dos valores e, a partir daí, concebermos um

outro tipo de racionalidade, sustentada na solidariedade

existente entre argumentação, crítica e justificação. Ora, uma

justificação pode ser mais ou menos pertinente, mais ou menos

plausível, mais ou menos convincente, mas não justifica,

nunca, a única pespectiva possível.338

337 “... Se um sistema formal é coerente, a negação de uma tese demonstrada é necessariamente falsa; não se pode pensar, num sistema formal, em demonstrar a tese e a antítese. Pode-se, muito pelo contrário, pleitear o pró e o contra, e duas decisões incompatíveis podem ser igualmente razoáveis. Mas, para que essa afirmação seja teoricamente defensável, não se deve vincular a idéia de razão à idéia de verdade. A dissociação dessas duas noções é, aliás, indispensável para que a idéia de uma decisão razoável tenha um sentido. Pois, quando se trata de decisão, não se pode tratar de verdade. Diante da verdade, temos de inclinar-nos, não temos de decidir. Não decido que dois mais dois são quatro nem que Paris é a capital da França. Uma decisão razoável não é, portanto, simplesmente uma decisão conforme à verdade, mas aquela que pode ser justificada pelas melhores razões, pelo menos na medida em que ela necessita de justificação” (PERELMAN, C. Idem, p. 384). 338 Com efeito, assumir que só há uma justificação possível equivaleria a equiparar justificação e demonstração, pois, segundo PERELMAN, em primeiro lugar, “...toda justificação pressupõe a existência, ou a eventualidade, de uma apreciação desfavorável referente ao que cabe justificar” (PERELMAN, C. Idem, p. 343), daí por que a justificação liga-se intimamente à idéia de valorização ou desvalorização. Em segundo lugar, a “...justificação só diz respeito ao que é, a um só tempo, discutível e discutido” (PERELMAN, C.

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Sintetizando o pensamento de PERELMAN acerca do

olhar jurídico como modelo, afirma GRÁCIO:

“ ...a necessidade de justificação racional não implica uma tarefa de fundamentação última nem o estabelecimento de, ou o recurso a, critérios indubitáveis e infalíveis que garantissem, definitivamente, a sua validade. A racionalidade do empreendimento justificativo refere-se à forma como se articula, sem rupturas absolutas com o pré-existente, o tradicional e o novo, à maneira pela qual se consegue assegurar uma continuidade entre o pretérito ou atualmente estabelecido e aquilo que pretende estabelecer-se. O começo radical a partir do zero, fazendo tábula rasa do passado e purgando, pelo exercício da dúvida, todos os preconceitos, supõe que seja possível um despojamento total das nossas crenças e das nossas opiniões; ora, a idéia de um tal despojamento só é viável num pensamento que se alimenta da ficção de uma épokhé, visando preparar o terreno para uma certeza absoluta, permitiria consumar, num registro a-temporal, um fechamento do pensamento sobre si próprio, isolando-o desta forma de toda e qualquer referência à prática, desligando-o da premência da ação e purgando-o de contaminações provenientes de adesões a crenças ou da sua ligação a interesses e valores. Mas, a idéia de que por um gesto de voluntária suspensão o pensamento se pode dissociar do assentimento de um auditório, é uma idéia que se nutre da utopia da pureza. Na verdade, esta oscilação entre uma dúvida absoluta e uma certeza absoluta, característica das metafísicas absolutistas, oculta a transitividade a que o pensamento não pode escapar e mascara o fato de nos encontrarmos sempre num entre, no meio de, pertencentes a um processo cujo controle jamais é integralmente nosso. Por isso, a perspectiva perelmaniana duma racionalidade que rejeita a seriedade de uma dúvida universal, a oposição da razão e da vontade ou a nítida separação destas duas faculdades, tende a sublinhar que se o dado constitui um elemento do qual é impossível prescindir, isso não é, contudo, impeditivo — é, pelo contrário, solidário — de uma atitude pluralista que permite, dentro do razoável, configurações interpretativas e contextualizações de sentido diversas.”339

Idem, p. 343-344). Resulta daqui que tudo aquilo que é absolutamente válido não deve ser submetido a um processo de justificação e, inversamente, aquilo que procuramos justificar não pode ser considerado incondicional e absolutamente válido. Em terceiro lugar, deve ser justificado, para o espírito tomado de racionalidade, aquilo que não é evidente nem arbitrário (Cf. PERELMAN, C. Idem, p. 343). 339 GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 52-53.

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Disso decorre o já abordado princípio da

inércia, segundo o qual só a mudança necessita justificação,

donde a racionalidade vai situar-se precisamente ao nível da

justificação dessa passagem para novo, pois a ruptura com o

que se aceita só é racional se se apresentarem as razões pelas

quais se mostra a insuficiência do que se rejeita e os motivos

que justificam uma nova tomada de posição.

É assim, escreve PERELMAN, “...que a

racionalidade, tal como se apresenta em direito, é sempre uma

forma de continuidade: conformidade a regras anteriores ou

justificação do novo por meio de valores antigos. O que não

tem nenhuma amarra com o passado só pode impor-se pela força,

não pela razão”.340 Dito de outra forma, para os juristas toda

a racionalidade é continuidade: a racionalidade apresenta-se,

no quadro da jurisprudência, como adaptação àquilo que já é

admitido — como conformidade aos precedentes — e se constrói,

não eliminando, mas se apoiando no passado.

A fidelidade a regras desempenha um papel

importante no modelo jurídico; e é a partir daí que PERELMAN

começa a analisar a regra de justiça, que exige o mesmo

tratamento para seres e situações essencialmente semelhantes,

340 PERELMAN, C. Obra citada, p. 381.

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donde a instauração de uma razão analógica que deve conciliar,

ao invés de excluir, identidade e diferença.

Segundo PERELMAN, a “...regra de justiça requer

a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações

que são integrados numa mesma categoria. A racionalidade dessa

regra e a validade que lhe reconhecem se reportam ao princípio

de inércia, do qual resulta, notadamente, a importância

conferida ao precedente”.341

No entanto, continua PERELMAN, para “...que a

regra de justiça constitua o fundamento de uma demonstração

rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica deveriam ser

idênticos, ou seja, completamente intercambiáveis. Mas, na

verdade, isso nunca acontece. Os objetos sempre diferem em

algum aspecto, e o grande problema, o que suscita a maioria

das controvérsias, é decidir se as diferenças constatadas são

ou não irrelevantes ou, em outros termos, se os objetos não

diferem pelas características que se consideram essenciais,

isto é, os únicos a serem levados em conta na administração da

justiça”.342

Portanto, a regra é abstrata e formal, já que

ela não indica quando dois seres são essencialmente

341 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 248. 342 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, ibidem.

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semelhantes nem como é preciso tratá-los para se ser justo, ou

seja, a regra de justiça nada nos diz sobre os critérios

segundo os quais os seres devem ser classificados, nem sobre a

maneira como eles devem ser tratados depois de serem

classificados.

Ocorre que a aplicação de tal regra a casos

concretos necessita da especificação destas duas noções.

Conclui-se daí que a margem de maleabilidade e de

indeterminação, ao mesmo tempo em que permite que a regra seja

aplicável, impede, no entanto, que a sua aplicação possa ser

mecânica ou aproblemática.

Não há, portanto, a indicação de nenhum

critério material para a justiça, mas isso não quer dizer que

se devam subscrever as teses do positivismo acerca de valores.

Se os valores que fundamentam um sistema jurídico nem resultam

da experiência, nem podem ser deduzidos de princípios

incontroversos, diz LARENZ ao comentar o pensamento de

PERELMAN, nem por isso seria necessário concluir “...‘que os

valores e normas fundamentais que guiam a nossa atuação são

alheios a qualquer racionalidade, que não podem ser criticados

nem justificados, que toda a reflexão a eles atinente é apenas

a expressão dos nossos interesses e desejos’. Esta conclusão

será decerto óbvia ‘para aqueles para quem toda a prova é

baseada no cálculo ou na experiência e todo o pensamento a

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fundamentar racionalmente de um modo convincente é uma forma

de dedução ou de indução’.”343

Portanto, independentemente das dificuldades

que a formulação abstrata e formal que a regra de justiça

suscita, a sua importância se manifesta pelo fato de, por um

lado, exigir que se seja, na ação, fiel a uma linha de conduta

regular344, ou seja, enunciar um princípio de continuidade e de

coerência, “...um princípio diretor de nosso pensamento”345;

por outro, ao apresentar “...a parte comum, e puramente

formal, da atividade racional”346, ela se torna a regra a

partir da qual se manifesta a racionalidade do pensamento e da

ação; ela delimita o problema da justiça no domínio da ação.

Em outras palavras, para que a regra de justiça

seja aplicada a casos concretos, os seus aspectos

indeterminados têm que ser especificados e esta especificação

não pode ser feita pela via da demonstração, mas apenas pelo

recurso a técnicas de raciocínio que implicam valorações347, o

que demanda o desenvolvimento de uma teoria da argumentação. A

regra de justiça é, assim, um princípio diretor do pensamento,

343 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 245. 344 Cf. PERELMAN, C. Ética e direito, p. 187. 345 PERELMAN, C. Idem, p. 89. 346 PERELMAN, C. Retóricas, p. 367. 347 Cf. PERELMAN, C. Ética e direito, p. 472.

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pois dita o quadro a partir do qual uma argumentação pode ser

reconhecida como razoável.348

GRÁCIO faz ainda outra abordagem sobre a

importância assinalada por PERELMAN acerca do modelo jurídico:

“ ... 1) a especificidade do raciocínio jurídico e da racionalidade presente na prática do direito implicam continuidade, atenção aos precedentes, justificação do novo a partir de uma referência ao pré-existente; 2) trata-se de uma racionalidade dialética em que razão e vontade não estão separadas, mas articuladas numa conjugação de exigências que são as do razoável; 3) esta racionalidade encontra-se ligada, não à idéia de verdade, mas à idéia de justificação, não às idéias extremas de necessidade ou de arbitrariedade, mas à idéia de razão em situação, exigindo esta situação que a ordem da razão seja antes de mais uma ordem adaptativa; 4) neste quadro, é possível conceber uma racionalidade que a) rejeita as oposições pensamento/ação, teo-

348 Vale mencionar, ainda, que a regra de justiça também pode ser apresentada como critério de valor de um argumento. Segundo PERELMAN, “...um argumento forte, numa área determinada, é um argumento que pode prevalecer de precedentes” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 109). A aplicação da regra de justiça supõe a existência de precedentes que nos dão instrução sobre a maneira como foram resolvidas, no passado, situações semelhantes às que no presente se apresentam e sobre o valor das argumentações utilizadas a seu respeito, pois, segundo PERELMAN: “Invocar um precedente significa assimilar o caso novo a um caso antigo, significa insistir nas similitudes e desprezar as diferenças. Se a assimilação não é imediatamente aceita, uma argumentação pode mostrar-se indispensável. Ora, para determinar quais argumentos são, no assunto, relevantes, para determinar quando um argumento será considerado forte ou fraco, a regra de justiça intervém de novo; é graças à sua intervenção que o próprio valor dos argumentos — que contrariamente às provas demonstrativas nunca são coercivos — depende de seus usos anteriores, da admissibilidade e da eficácia que, em contextos semelhantes do passado, lhes foram reconhecidos” (PERELMAN, C. Retóricas, p. 307). Marina Gascón ABELLÁN desenvolve um estudo em que defende a técnica do precedente como a melhor forma de controle da racionalidade judicial. Para aquela autora, o imperativo categórico de KANT e seu critério de universalização deveria sempre ser atendido pelo juiz da seguinte forma: “...na presença de um mesmo fato, resolve-se sempre de igual forma, ou melhor ainda, deve-se tomar a decisão que no futuro se estaria disposto a respaldar ante as mesmas circunstâncias” (ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 31). Ressalte-se que aqui também não se admite o caráter a priori da moral Kantiana, pois o critério de racionalidade é historicamente situado e o precedente poderá ser alterado depois, desde que justificado (aplicação do princípio da inércia), pois, ainda segundo ABELLÁN: “Quem quiser se distanciar de um precedente deve assumir a carga da argumentação” (ABELLÁN, M. G. Idem, nota 20, p. 39).

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ria/prática, formalismo/pragmatismo, racional/irracio-nal; b) associando-se à noção de preferível e trazendo a primeiro plano a idéia de preferência justificada, dá expressão ao dinamismo interativo das nossas faculdades e torna inseparáveis e dificilmente isoláveis o plano do conhecimento e o plano do interesse, o plano do ser e o plano da crença e das opções credíveis; c) não é apenas, nem sobretudo, calculadora, mas avaliadora e ajuizadora; d) aliada aos problemas da escolha e da decisão permite conferir um sentido à liberdade humana.”349

Assim, a partir dessas conclusões derivadas da

proposta de se ter um olhar jurídico como modelo do pensar é

que PERELMAN irá propor um alargamento das noções de razão

(que haviam sido reduzidas à lógica formal) através de uma

teoria da argumentação.

Conforme se vê no início do Tratado, a redução

do racional à lógica formal provocou conseqüências desastrosas

no plano das ciências humanas. Isso porque havia, por parte

dos lógicos e dos teóricos do conhecimento, nos últimos três

séculos e sob a inspiração do ideal cartesiano, a tendência

para privilegiar sobretudo o estudo dos meios de demonstração

utilizados nas ciências matemáticas e para reduzir a lógica à

lógica formal.

No que diz respeito ao exame dos meios de prova

utilizados nas ciências humanas, PERELMAN faz notar que, nesse

domínio, os lógicos raramente se aventuraram.350 Desta

349 GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 63. 350 Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 2.

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tendência resultou “...uma limitação indevida e perfeitamente

injustificada do campo onde intervém nossa faculdade de

raciocinar e de provar”.351 A distinção que encontraremos no

pensamento de PERELMAN, entre argumentação lógica e

argumentação retórica ou, ainda, de uma forma mais abreviada,

entre demonstração e argumentação, deve justamente ser

compreendida a partir do esforço para repensar esta tendência

num sentido de um alargamento do domínio da investigações

lógicas: “... Os lógicos devem completar a teoria da

demonstração assim obtida com uma teoria da argumentação.”352

Para tanto, PERELMAN encontrará no resgate da

retórica uma possível solução para a seguinte ordem de

inquietações: a) que a lógica moderna, enquanto lógica

matemática, seja uma lógica formal, equivale isso a dizer que

toda a argumentação utilizada fora das ciências matemáticas

não é lógica? b) estas argumentações externas à lógica formal

seriam então fundadas somente na sugestão? c) o que dizer da

filosofia do direito, da política, de todas as ciências

humanas? d) por que somente as provas consideradas

convincentes, necessárias e constringentes podem receber o

estatuto de lógicas? e) por que negligenciar outros meios de

provas que, não obstante não serem necessariamente admitidos,

351 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 3. 352 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 11.

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nem as suas conclusões constringentes, não deixam de possuir

uma dimensão lógica e possibilitar uma fundamentação aos

juízos de valor? f) e por que não proceder a um estudo

sistemáticos desses meios de prova?

A estas questões PERELMAN não conseguia dar uma

resposta satisfatória até que, depois de muitos anos e

casualmente, lendo um livro sobre retórica literária353,

encontrou-se com a obra de ARISTÓTELES e, em particular, com o

tipo de raciocínios a que este denominava dialéticos (que são

encontrados na Tópica, na Retórica e nas Refutações

Sofísticas) e que o estagirita havia distinguido dos

raciocínios analíticos ou dedutivos (encontrados nos Primeiros

e Segundos Analíticos).354

PERELMAN logo constatou a proximidade entre os

propósitos da sua investigação e as preocupações daqueles que

se ocuparam no passado com os problemas da retórica. Ambos

353 O livro era Les Fleurs des Tarbes ou la terreur dans les lettres, de Jean PAULHAN, que remetia, em apêndice, para alguns extratos da obra de Brunnetto LATINI, autor preocupado com os argumentos dos discursos e que tinha sido mestre de DANTE Alighieri. A partir daí foi fácil remontar a toda a tradição greco-latina da retórica e dos Tópicos. 354 Diga-se ainda que, segundo PERELMAN, este encontro com a retórica foi uma surpresa e uma revelação: a) surpresa, pois o termo retórica caíra no desuso da tradição filosófica e, mais ainda, assumira conotações pejorativas. As obras que foram publicadas nesta matéria (e não faltaram tratados de retórica nos últimos cem anos) vinham sempre acompanhadas de uma certa reserva; e b) revelação, pois este encontro deixava antever possibilidades fecundas, conforme se depreende da seguinte constatação de PERELMAN: “Não temos o direito de esperar que, ao utilizar, para o estudo da retórica o mesmo método que foi bem-sucedido em lógica, o método experimental, também conseguiremos reconstruir a retórica e torná-la interessante?” (PERELMAN, C. Retóricas, p. 65).

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partilhavam de um ponto de partida empírico, entre ambos havia

uma atenção às categorias do senso comum, em ambos se

registrava um interesse por questões relativas à ação segundo

a razão. E, mais do que a dialética dos antigos, limitada à

especulação, a retórica, trazendo ao primeiro plano a ação

exercida pelo discurso, levava a que a argumentação e o

pensamento argumentativo fossem concebidos em função da ação

que preparam ou determinam.

Na transposição da retórica antiga para a

atualidade, PERELMAN reconhecerá as suas vantagens no que

tange às noções de auditório355, de adesão e de acordo.

O auditório situa os raciocínios, impedindo a

teoria da argumentação de se desprender prematuramente do

mundo concreto, isto é, permite que se conceba a atividade da

razão e a racionalidade fora de dogmatismos ou de pretensões

absolutistas, ou seja, ajusta-nas ao nível da discussão entre

os homens, relativamente aos quais o acordo não é um dado, nem

definitivo, nem pacífico.

A retórica chama a atenção para o excesso que a

tradicional e tentadora manobra da fuga para a transcendência,

ato fundador das filosofias metafísicas absolutistas,

355 “O que conservamos da retórica tradicional é a idéia mesma de auditório, que é imediatamente evocada assim que se pensa num discurso. Todo discurso se dirige a um auditório...” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 7).

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comporta. Com efeito se é tentado, a partir do momento em que

se está na presença de um acordo, a transformá-lo em acordo

universal e absoluto e, em conseqüência, procurar-lhe um

fundamento ontológico.

A retórica, pela revisão constante do caminho

percorrido para a obtenção deste acordo, da sua precariedade,

impede de ver nele algo de fixo, de eterno, de dado de uma vez

por todas. Ela situa o acordo relativamente a um desacordo

cujos inconvenientes eram tais que se foi obrigado a procurar

um meio de o superar, fato que constitui mais uma pausa do que

uma realização definitiva. Ela dá também o seu valor aos

acordos limitados.

Por outro lado, é a noção de auditório que

permite falar de razão como razão histórica e situada.356 É

que, como mostram as teorias antigas da retórica, nas quais a

idéia de direção do discurso (o discurso se dirige a um

conjunto de espíritos) e a idéia de adesão são essenciais,

pois, repita-se, “... é em função de um auditório que qualquer

argumentação se desenvolve”.357 Esta tese se torna essencial e

permite precisar, a partir da definição de auditório, o

domínio a que uma teoria da argumentação diz respeito. Se o

auditório é entendido como “...o conjunto daqueles que o

356 Neste caso a noção de auditório universal, que será abordado adiante. 357 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 6.

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orador quer influenciar com sua argumentação”358, então o

objeto da teoria da argumentação será “...o estudo dos meios

de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que

permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se

lhe propõem ao seu assentimento”359 ou, dito de outra maneira,

o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou

aumentar a adesão.

Os antigos classificavam a oratória em três

gêneros: o deliberativo (que diz respeito ao útil e aos meios

para obter a adesão das assembléias políticas), o judiciário

(que diz respeito ao justo e à argumentação perante os juízes)

e o epidítico (que é o discurso apologético, exortativo, de

elogio, de censura, sobre o belo ou o disforme).

O gênero oratório que mais intrigava os gregos

era o epidítico que, “...tal como é representado pelo

panegírico dos gregos, e pela laudatio funebris dos latinos,

se refere ao elogio ou à censura, ao belo e ao feio; mas ao

que visará? É aqui que os antigos se viram em grande

embaraço?”360

Com efeito, “...para a Antigüidade — se

isentarmos a tradição dos grandes sofistas — nada era mais

358 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 22. 359 PERELMAN, C. Retóricas, p. 57. 360 PERELMAN, C. Idem, p. 66.

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seguro do que a apreciação moral. Enquanto os gêneros

deliberativos e judiciários supunham um adversário, portanto

um combate, visavam a obter uma decisão sobre uma questão

controvertida, e neles o uso da retórica se justificava pela

incerteza e pela ignorância, como compreender o gênero

epidítico, referente a coisas certas, incontestáveis, e que

adversário nenhum contesta?”361

Não achando qualquer finalidade no discurso

epidítico, os antigos se inclinaram a considerá-lo apenas como

uma espécie de espetáculo, visando a satisfação dos

espectadores e a glória do orador pelo exercício de suas

sutilezas técnicas. A técnica se tornou um fim em si mesmo. É

dessa forma que o próprio ARISTÓTELES vê o gênero epidítico,

pois ele não “...percebe que as premissas nas quais se apóiam

os discursos deliberativos e judiciários, cujo objeto lhe

parece tão importante, são juízos de valor. Ora, essas

premissas, é preciso que o discurso epidítico as sustente, as

confirme.”362 Por isso PERELMAN conclui que o gênero epidítico

em nada difere dos gêneros deliberativo e judiciário, pois

“...seu objeto é idêntico em todos os graus”.363

361 PERELMAN, C. Idem, p 67. 362 PERELMAN, C. Idem, ibidem. 363 PERELMAN, C. Idem, ibidem.

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Com esta tese, PERELMAN valoriza a dimensão

edificante do discurso epidítico e a importância de uma

comunhão sobre os valores admitidos (que determina escolhas

virtuais, previne contra objeções futuras, mantém certas

hierarquias de valores e exorta à sua defesa). Se é certo que

o discurso epidítico se presta ao brilho do orador, tal não

quer dizer que seja esta a sua finalidade.364

Foi esta incompreensão do papel e da natureza

do discurso epidítico que fez com que a retórica se

desenvolvesse no campo literário e fosse cindida entre duas

tendências: a) uma filosófica, que visava a sua integração na

lógica das discussões sobre assuntos controversos, incertos e

em que cada um dos adversários procura mostrar que a verdade

ou a verosimilhança estão do seu lado e; b) a outra,

literária, visando o desenvolvimento do aspecto artístico do

discurso e preocupada sobretudo com problemas de expressão:

“Nessa cisão da retórica encontramos, de certa maneira, um

aspecto das invasões da lógica e da sugestão na área da

argumentação que nos interessa”.365

364 Um dos problemas centrais no domínio da argumentação é o da distinção entre finalidade e conseqüência. 365 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 69.

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Como visto, ambas as tendências acabam por ser

redutoras e conduzem à desvalorização da retórica.

Com a retomada do pensamento de ARISTÓTELES,

PERELMAN delimita o sentido em que passará a empregar o termo

retórica: “...utilizaremos daqui para a frente o termo

‘retórica’ para designar o que se poderia ter chamado também a

lógica do preferível”366, que é o âmbito em que estará

circunscrita a teoria da argumentação inspirada pela

retórica.367

Note-se que não se trata de uma transposição

fiel, para o presente, da obra de ARISTÓTELES, pois há algumas

diferenças importantes na nova proposta. Uma diferença

fundamental, por exemplo, entre a retórica dos antigos e nova

retórica diz respeito à noção de auditório.

Enquanto naquela a argumentação retórica diz

respeito à arte de bem falar em público, ao uso da palavra e

ao discurso oral perante um grupo de pessoas pouco capazes de

366 PERELMAN, C. Idem, ibidem. 367 A nova retórica tem como finalidade a adesão obtida por intermédio da argumentação, estando excluídos, portanto, o uso persuasivo da arma, o uso persuasivo do dinheiro, enfim, todo a forma persuasiva que escapa ao âmbito lingüístico, valendo dizer que a ameaça, nos casos em que ocorre pelo uso da palavra — chantagens, por exemplo — é incluída por PERELMAN no âmbito de sua teoria.

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um raciocínio minucioso ou pouco dadas ao trabalho de

proceder, com seriedade, a uma investigação prévia,

destinando-se, por isso, a um público de ignorantes; já na

perspectiva da nova retórica não há motivos, nem para limitar

o campo da argumentação ao discurso falado, nem para

restringir o auditório a um grupo de incompetentes.

Com efeito, diz PERELMAN, “...por que não

admitir que algumas argumentações possam ser dirigidas a toda

espécie de auditórios?”368

Neste sentido torna-se possível afirmar, no

contexto alargado em que a nova retórica concebe a noção de

auditório, que além dos auditórios a que se referiam os

antigos, também a discussão com um único interlocutor e, até

mesmo, a deliberação íntima, são parte integrante de uma

teoria geral da argumentação, cujo objeto de estudo, ressalte-

se, ultrapassa largamente os limites da retórica clássica.

Além do alargamento dos limites da retórica

clássica, a nova retórica também pressupõe uma ampliação do

conceito de prova, que nas ciências dedutivas ou experimentais

368 Ver PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 8.

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tem um sentido restrito, ligado à demonstração369 daquilo que

se quer provar.

PERELMAN diferencia provas lógicas de provas

retóricas, distinção esta que poderá ser melhor compreendida

se antes fizermos um apanhado geral das noções perelmanianas

de lógica e retórica, por um lado; e demonstração e

argumentação, por outro: a) o termo retórica é usado por

PERELMAN para designar o que se poderia, também, chamar de uma

lógica do preferível ou, ainda, uma lógica informal. Ao

contrário da lógica tradicional, esta última não se preocupa

com a verdade abstrata, categórica ou hipotética, mas com a

adesão. Assim, a lógica opõe-se à retórica, pois naquela a

idéia ou a opinião que o auditório tem do orador não é

importante para a avaliação das conclusões que este apresenta,

o mesmo não acontecendo com a retórica, em que se verifica uma

369 A lógica formal seria a lógica da demonstração; e a lógica informal seria a lógica da argumentação. Note-se que apesar de distinguir demonstração e argumentação, PERELMAN sustenta que deve haver uma relação de complementaridade entre a teoria da argumentação e a teoria da demonstração, sendo que ao invés de serem tidas como opostas, deveriam ser consideradas como formas complementares de raciocínio, enquadrando-se na idéia de racionalidade também o razoável: “... A lógica formal moderna constituiu-se como o estudo dos meios de demonstração utilizados nas ciências matemáticas. Mas o resultado foi a limitação de seu campo, pois tudo quanto é ignorado pelos matemáticos é alheio à lógica formal. Os lógicos devem completar a teoria da demonstração assim obtida com uma teoria da argumentação. Procuraremos construí-la analisando os meios de prova usados pelas ciências humanas, o direito e a filosofia; examinaremos argumentações apresentadas pelos publicitários em seus jornais, pelos políticos em seus discursos, pelos advogados em seus arrazoados, pelos juízes em suas sentenças, pelos filósofos em seus tratados. Nosso campo de estudos, que é imenso, ficou inculto durante séculos. Esperamos que nossos primeiros resultados incentivem outros pesquisadores a completá-los e a aperfeiçoá-los” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 11).

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interação constante entre a pessoa do orador e o auditório

para o qual discorre; b) um outro traço distintivo da lógica

relativamente à retórica é que, enquanto na primeira se

raciocina sempre no interior de um sistema dado, supostamente

admitido, numa argumentação retórica tudo pode ser sempre

recolocado em questão, pode-se sempre retirar a adesão: aquilo

a que se dá assentimento é um fato e não um direito, ou seja,

enquanto a argumentação lógica é constringente, forçosa ou

necessária, a argumentação retórica é maleável, já que esta

pode ter mais ou menos força, ser mais ou menos plausível; c)

em terceiro lugar está a questão da amplitude da argumentação:

enquanto na lógica a prova de uma proposição dispensa e torna

supérfluas outras provas, na argumentação retórica nunca se

sabe, antecipadamente e ao certo, qual o limite para a

acumulação útil de argumentos; d) em quarto lugar, enquanto na

demonstração a ordem pela qual são apresentados os axiomas e a

sucessão de etapas não é importante (desde que cada um dos

encadeamentos possa ser percorrido com a aplicação das regras

de inferência adotadas), já na argumentação a ordem pela qual

os argumentos se apresentam e se dispõem é de máxima

importância para os efeitos por ela produzidos; e) Em quinto

lugar, enquanto na lógica é exigida uma definição precisa dos

termos com os quais se opera, as noções empregadas na

argumentação retórica são sempre ambíguas e confusas; e f)

finalmente, pode-se dizer que o que constitui a diferença

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essencial entre demonstração e argumentação é que o tempo não

desempenha qualquer papel naquela, enquanto na argumentação

ele é essencial.

A partir deste panorama, pode-se concluir que a

chamada lógica do preferível deve abranger um espaço mais

amplo que o da lógica tradicional. Para esta última, a prova é

a operação que deve levar todo o espírito normalmente

constituído, seja a reconhecer a verdade de uma proposição

(ponto de vista racionalista), seja a conformar a sua crença

ao fato (ponto de vista empirista). Quer numa quer noutra

destas concepções toda a prova supõe a existência de um

elemento objetivo e de uma faculdade — a razão ou a

sensibilidade — comum a todos os homens e que lhes permitiria

reconhecer de forma indubitável as verdade e os fatos. Assim,

segundo as concepções clássicas, a prova deve ser necessária e

possuir uma validade universal. Dito de outra forma, toda

prova é redução à evidência e o que é evidente não teria

necessidade de prova.

No caso da lógica retórica, ao contrário, a

“...própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe

à necessidade e à evidência, pois [repita-se] não se delibera

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quando a solução é necessária e não se argumenta contra a

evidência”.370

Assim, a lógica tradicional deve ser

complementada pelos argumentos retóricos (dialéticos), que são

necessários quando a discussão remonta a questões de

princípios e se trata de discutir esses princípios. Isso

porque, conforme já ensinava ARISTÓTELES nos Segundos

Analíticos, os princípios não são passíveis de ser

demonstrados, conforme notícia BERTI:

“ ... Aristóteles observa que não é possível dar demonstração dos princípios, porque demonstrar significa mostrar a necessidade de uma conclusão a partir de alguns princípios, e se também estes fossem demonstráveis então já não seriam princípios, mas em seguida exigiriam outros princípios a partir dos quais pudessem ser demonstrados, produzindo, desse modo, um processo ao infinito que jamais levaria aos princípios autênticos e, por isso, destruiria toda demonstração possível. Portanto, deve-se admitir que, se a ciência existe, isto é, se existem as demonstrações, deve haver um saber dos princípios, que não é de tipo demonstrativo mas — como Aristóteles diz explicitamente — uma ‘ciência an-apodítica’, mas propriamente ‘princípio da ciência’ e que tem por objeto os princípios indemonstráveis, em particular as definições (1 3, 72b 18-25).”371

Deve-se recorrer, portanto, à provas dialéticas

ou retóricas quando os princípios deixam de ser considerados

como evidentes e é necessário proceder o restabelecimento de

critérios cuja validade se tornou discutível.

370 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 1. 371 BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 11-12.

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Essas provas dialéticas, aduz GRÁCIO, operam da

seguinte forma:

“ Os meios de prova utilizados na argumentação retórica não são demonstrações, mas justificações. Eles não visam a imposição de uma certeza indubitável, mas a obtenção de adesão. A prova é, assim, organizada por um conjunto de processos que tendem a enfatizar a plausibilidade de uma tese que se defende, mas que nem por isso exclui, antes pressupõe, a possibilidade de outras teses eventuais. A prova exerce o seu poder pela força do melhor argumento (e do ponto de vista da argumentação retórica os argumentos não são qualificados como corretos ou incorretos, mas como fortes ou fracos, mais ou menos pertinentes, mais ou menos convincentes), pela motivação racional que acompanha a apresentação da tese que se defende e que é vinculadora e comprometedora do agente que, escolhendo e decidindo, se justifica, apresentando razões. A prova não é então, apenas, o exercício de uma razão pura e calculadora que, com a sua operacionalidade imutável e na sua funcionalidade impessoal e an-histórica, opera. O ato da prova é, antes, indissociável de uma dimensão referencial que remete para as condições concretas do emprego da linguagem natural, que é moldada por elas e que se joga no espaço de ambigüidade das expressões, na dimensão confusa e vaga das noções utilizadas e na possibilidade permanente de interpretações múltiplas — é que, nota Perelman, ‘a necessidade de interpretar apresenta-se, pois, como a regra, constituindo a eliminação de toda a interpretação uma situação excepcional e artificial’. Trata-se, portanto, de uma prova a realizar nas e para as situações concretas a partir das quais se elabora e relativamente às quais se apresenta como a justificação razoável de uma opção. Como escreve o filósofo de Bruxelas, ‘a possibilidade de se conferir a uma mesma expressão sentidos múltiplos, por vezes inteiramente novos, de recorrer a metáforas, a interpretações controversas, está ligada às condições de emprego da linguagem natural. O fato desta recorrer freqüentemente a noções confusas, que dão lugar a interpretações múltiplas, a definições variadas, obriga-nos muito freqüente a realizar escolhas, decisões, não ne-cessariamente coincidentes. Donde a obrigação, bem freqüente, de justificar esta escolha, de motivar estas decisões’.”372

372 GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 78-79.

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A concepção perelmaniana de argumentação e

prova retórica admite que o pensamento possa ser exercido de

uma forma não necessária sem deixar de ser racional; uma

racionalidade que tem como característica a continuidade, a

atenção aos precedentes, a justificação do novo a partir de

uma referência ao pré-existente, daí porque o alargamento da

noção de razão implica a necessidade de alargamento da noção

de prova; e disso tudo decorrem as seguintes palavras de

PERELMAN e TYTECA já no final do Tratado:

“ ... Esperamos que nosso tratado provocará uma salutar reação e que sua simples presença impedirá, futuramente, que se reduzam todas as técnicas da prova à lógica formal e que se veja na razão apenas uma faculdade calculadora.”373

É contra essa noção de razão reduzida à lógica

formal que deve se situar o ponto de vista retórico em

filosofia, introduzindo a dimensão contextual do auditório e o

grau de adesão que uma tese filosófica suscita ou não. Este

fato conduz, no entanto, a outras dificuldades, dada a

diversidade cultural ou disciplinar dos auditórios, os seus

níveis de especialidade ou a sua composição psicológica e

sociológica. Encontramos aqui um primeiro impasse que, segundo

Manuel Maria CARRILHO, foi reconhecido por PERELMAN:

“ ...‘como sair do impasse que surge, para o discurso filosófico, com a infinita variedade dos auditores a que este discurso é suposto dirigir-se?’ A resposta de

373 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 576.

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Perelman passa por uma outra concepção da razão, pensada não à imagem das faculdades mas do auditório, de um auditório que, todavia, só pode evitar o impasse assinalado qualificando-se através de um recurso afinal semelhante ao das filosofias clássicas: surge assim o auditório universal, que se considera ‘englobar todos os homens razoáveis e competentes nas questões em debate. Qualquer discurso filosófico deve esforçar-se por convencer um tal auditório’.”374

A noção de auditório universal, conforme

noticia GRÁCIO, surgiu da seguinte maneira no pensamento de

PERELMAN:

“ ...lecionava, então, um curso de história da filosofia e ao chegar ao período medieval constatou que as duas principais obras de S. Tomás de Aquino, a Summa Theologica e a Summa Contra Gentiles, expressavam, essencialmente, as mesmas idéias e, todavia, eram profundamente diferentes no que diz respeito ao auditório a que se dirigiam. A primeira das obras era escrita para teólogos; a segunda, contra aqueles que não acreditavam na Igreja. E verificou que este último era um livro de filosofia porque se dirigia a pessoas cujos compromissos ou crenças específicas não eram tomados como pressupostos necessários para a aceitação da argumentação desenvolvida. A argumentação de S. Tomás fazia exclusivamente apelo à razão. A quem se dirigia, então, a obra? Escreve Perelman: ‘Havia um apelo a qualquer ser racional que lesse o seu livro. Portanto, chamei-lhe auditório universal, não porque toda a gente o fosse ler’ mas porque ‘não havia crenças e valores particulares aos quais ele pudesse apelar. Ele fazia apenas apelo àquilo que poderia ou seria admitido por todos’.”375

O auditório universal é, portanto, uma

construção ideal elaborada em função de um discurso que aspira

ao consenso de todas os homens racionais acerca do que é dito

neste discurso, porém não se trata de um conceito puramente

374 CARRILHO, Manoel Maria. Jogos de racionalidade, p. 66-67. 375 GRÁCIO, R. A. Obra citada. p. 90.

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abstrato e atemporal, posto que a construção imaginária que o

orador faz de um tal auditório deve levar em conta um acordo

prévio que parte de um senso comum historicamente situado:

“ ... Ainda que a argumentação racional vise o auditório universal, é preciso notar, contudo, que este auditório não é imutável. Os lugares a partir dos quais se raciocina variam no tempo. Por isso escreveu Perelman que: ‘toda a argumentação, qualquer que ela seja, propõe-se influenciar um auditório — no sentido lato deste termo, que engloba não apenas os auditores mas também os leitores — e este auditório não é uma tábula rasa, mas admite já certos fatos, certas presunções, certos valores e certas técnicas argumentativas. Isto vale para todo o auditório e, portanto, igualmente para aquele que deve, aos nossos olhos, incarnar a razão.”376

O auditório universal tem, portanto, as

seguintes características: a) é um conceito limite, no sentido

de que a argumentação ante o auditório universal é a norma da

argumentação objetiva; b) dirigir-se ao auditório universal é

o que caracteriza a argumentação filosófica; c) o auditório

universal não é um conceito empírico, pois o acordo de um

auditório universal não é uma questão de fato, mas sim de

direito377; d) o auditório universal é ideal no sentido de que

376 GRÁCIO, R. A. Idem, p. 92-93. 377 Segundo PERELMAN, os filósofos, ao buscarem o acordo do auditório universal, sempre se dirigem a ele, “...não por esperarem obter o consentimento efetivo de todos os homens — sabem muito bem que somente uma pequena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seus escritos —, mas por crerem que todos os que compreenderem suas razões terão de aderir às suas conclusões. O acordo de um auditório universal não é, portanto, uma questão de fato, mas de direito. É por se afirmar o que é conforme a um fato objetivo, o que constitui uma asserção verdadeira e mesmo necessária, que se conta com a adesão daqueles que se submetem aos dados da experiência ou às luzes da razão” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 35). O acordo de um auditório universal, portanto, não é uma questão de fato, pois, ainda segundo PERELMAN: “Um fato é aquilo que se impõe a todos; nenhuma autoridade pode nada contra ele.

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está formado por todos os seres de razão, mas por outro lado é

uma construção do orador (ou seja, não é uma entidade

objetiva), isso significa dizer que não só diversos oradores

constroem diversos auditórios universais, como também que o

auditório universal de um mesmo orador pode ser alterado.

Uma das funções que o auditório universal

possui é a de tornar possível a distinção entre persuadir e

convencer. Uma argumentação persuasiva, segundo PERELMAN, é

aquela que vale somente para um auditório particular, enquanto

uma argumentação convincente é a que se pretende válida para

todo o ser de razão.378

Portanto, tornar algo, que deveria ser independente da pessoa, dependente da qualidade de quem o afirma, é abalar esse estatuto de fato. Lembremos (...) a célebre anedota do mágico, favorito de um rei, a quem presenteou vestimentas que, dizia ele, só eram vistas por homens moralmente irrepreensíveis. Nem o rei nem os cortesãos ousam confessar que nada vêem, até o momento em que um menino, em sua inocência, exclama: ‘Por que o rei está correndo inteiramente nu?’ Estava quebrado o encanto. O prestígio do mágico era suficiente para atribuir à percepção o valor de um critério de moralidade, até o momento em que a inocência incontestável do menino destruiu o crédito do mágico.

Se é inegável que os fatos e as verdades escapam, enquanto são reconhecidos como tais, ao domínio da argumentação (...), quando se poderá dizer que se está diante de um fato ou de uma verdade? É isso que acontece [está-se diante de um fato ou verdade] (...) enquanto o enunciado é considerado válido para um auditório universal” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, 356).

Sendo assim, ainda de acordo com PERELMAN, fatos e verdades estão próximos, pois: “Aplicamos, ao que se chamam verdades, tudo o que acabamos de dizer dos fatos. Fala-se geralmente de fatos para designar objetos de acordo precisos, limitados; em contrapartida, designar-se-ão de preferência com o nome de verdades sistemas mais complexos, relativos a ligações entre fatos, que se trate de teorias científicas ou de concepções filosóficas ou religiosas que transcendem a experiência” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 77). Portanto, tanto os fatos quanto as verdades não são independentes do auditório a que estão submetidos, dependem de critérios relacionados com o auditório. 378 Diz PERELMAN: “Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela

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247

Enfim, a argumentação, diferentemente da

demonstração, está bastante ligada à ação. A argumentação é,

na realidade, uma ação — ou um processo — com a qual se

pretende obter um resultado, que é o de alcançar a adesão do

auditório, mas desde que seja através da linguagem,

prescindindo portanto do uso da violência física ou

psicológica.

Por outro lado, a proximidade com a prática de

que goza a argumentação não faz com que a mesma tenha que ser

dotada de objetividade, mas sim de imparcialidade.379

Seja como for, é bom repetir que o auditório

universal não é um ente inteiramente abstrato, independente de

critérios temporais. O auditório universal, assim como os

demais auditórios particulares, é também um auditório

que deveria obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 31). PERELMAN exemplifica um argumento que teria valor (seria rapidamente eficaz, persuasivo) apenas no âmbito de um auditório particular, mas que de nada prestaria para o convencimento, ou seja, para o caso de o argumento ser dirigido ao auditório universal: “Eis um exemplo muito simples. Seremos onze ao almoço. A empregada exclama: ‘Oh! Isso dá azar!’ Apressada, a patroa responde: ‘Não, Marie, você está enganada: treze é que dá azar.’ O argumento não tem réplica e termina imediatamente o diálogo. Essa resposta (...) não questiona nenhum interesse pessoal da empregada, mas baseia-se no que esta admite. Mais rapidamente eficaz do que seria uma dissertação sobre o ridículo das superstições, ela permite argumentar no âmbito do preconceito, ao invés de combatê-lo” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 125). 379 Ser imparcial não é o mesmo que ser objetivo, é se incluir no mesmo grupo daqueles a quem se julga, sem que se tome partido de antemão em favor de nenhum deles. A noção de imparcialidade, portanto, está bem próxima à regra de justiça (ser imparcial também significa que, diante de circunstâncias análogas, deva-se agir da mesma forma) e mesmo com a noção de auditório universal (os critérios seguidos teriam que ser válidos para os seres de razão.

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concreto, que se modifica no tempo a partir da idéia que dele

faz o orador. É por isso que PERELMAN afirma que:

“ ...para o filósofo, a racionalidade é vinculada a valores que ele quereria não só comuns, mas também universalizáveis, almejando que pudessem obter a adesão do auditório universal, ou seja, composto de todos os homens a um só tempo razoáveis e competentes. Mas, jamais estando seguro da universalidade de suas normas e de seus valores, o filósofo deve estar sempre pronto para ouvir as objeções, que se lhe poderiam opor, e para levá-las em conta, se não tem condições de refutá-las. O diálogo deve ser aberto, pois as teses que ele avança nunca pode considerá-las definitivas. Se, em direito, a necessidade de estabelecer uma ordem exige que certas autoridades tenham o poder de decisão [caráter institucionalizado da argumentação em direito], o mesmo não se dá em filosofia. Não existe, em filosofia, autoridade que possa conceder a certas teses o estatuto da coisa julgada.”380

A partir de todas essas noções é que PERELMAN

descreverá uma série de técnicas argumentativas que devem

interagir para que uma argumentação não seja apenas

persuasiva, mas seja sobretudo convincente. Neste sentido o

auditório universal se torna uma idéia reguladora da

racionalidade argumentativa, o ponto de referência para as

justificações que se fizerem necessárias.

380 PERELMAN, C. Ética e direito, p. 385-386.

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3.3 Teoria da Argumentação como Racionalidade Possível

Não cabe neste momento analisar todas aquelas

técnicas argumentativas descritas por PERELMAN no Tratado,

pois já se pode enfrentar o problema formulado no início deste

capítulo, assim sintetizado: é possível justificar

racionalmente as decisões a ser tomadas em casos difíceis,

isto é, não admitir a irracionalidade que dá azo à

arbitrariedade? Se a resposta for afirmativa, de que forma

isso ocorre?

Como visto, a resposta à primeira questão só

pode ser afirmativa se ampliarmos (ou se se quiser,

debilitarmos) o conceito da lógica dedutiva clássica.381 Essa

idéia de que existe uma racionalidade possível entre a lógica

formal, por um lado; e a arbitrariedade total, por outro,

talvez seja a grande contribuição de PERELMAN ao debate atual,

posto que o seu pensamento382 ajudou sobremaneira na

reabilitação da razão prática — a aceitação de algum tipo de

racionalidade nas discussões relativas à moral, ao direito, à

política, entre outras — e tem sido considerado como o

381 Argumentar racionalmente, isto é, passar com fundamentos de umas proposições a outras, não é o mesmo que — ou não é só — deduzir. 382 Juntamente com o pensamento a partir de problemas, inaugurado por Theodor VIEHWEG também na década de 1950.

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precursor das atuais tentativas de se formular uma teoria da

argumentação jurídica.383

Com efeito, a importância conferida por

PERELMAN ao âmbito pragmático da linguagem (o objetivo da

argumentação é persuadir), ao contexto social e cultural em

que se desenvolve a argumentação, ao princípio da

universalidade (regra de justiça) e às noções de acordo e de

auditório (em especial a de auditório universal) antecipam

elementos essenciais de outras teorias da argumentação que

hoje centram o debate concernente à razão prática.384

Portanto, o grande mérito da teoria de PERELMAN

foi o de ter respondido sim à indagação sobre se é possível

uma racionalidade intermediária à razão teórica e a

irracionalidade, sendo que a partir dessa resposta afirmativa

iniciou-se a tarefa desde então incessante de se buscar um

método de como justificar racionalmente as decisões, ou seja,

a tentativa de se estabelecer uma teoria da argumentação

jurídica.

383 Especialmente as teorias de Neil MACCORMICK e Robert ALEXY. 384 A propósito disso basta mencionar as semelhanças existentes entre a noção de auditório universal e a de comunidade ideal de diálogo habermasiana, ainda que este não seja o único ponto de coincidência entre PERELMAN e HABERMAS (cf. ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica, p. 156 e ss.).

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251

Neste ponto a teoria de PERELMAN, embora tenha

fornecido várias noções que têm sido utilizadas por aqueles

que lhe sucederam, trouxe alguns critérios que têm sido

considerados confusos ou insuficientes, como, por exemplo, a

própria idéia de auditório universal como idéia reguladora da

racionalidade argumentativa, em que o intérprete não poderá

decidir inspirado na sua visão subjetiva (discricionariedade),

mas sim buscando uma solução que seria aceitável tanto pelos

membros esclarecidos da sociedade em que vive quanto pelas

opiniões e tradições dominantes em seu meio profissional

(princípio da inércia).

Porém diante dos casos difíceis em que, por

definição, a opinião pública (esclarecida ou não) está

dividida a tal ponto que não se possa encontrar uma solução

que seria convincente para o ideal de auditório universal,

qual seria, então, a decisão razoável?385

Vale dizer que mesmo nas teorias da

argumentação que vieram depois (algumas até muito

sofisticadas) esta continua a ser uma questão aberta. Ademais

quase todos os teóricos têm recorrido, para a solução do

385 CANARIS é mais agudo na crítica, pois segundo ele “...torna-se, com isso, claro que a tópica desconhece, no fundamental, a essência da Ciência do Direito. Pois não se determina qual seja o Direito vigente ou qual o ponto de vista vinculativo, em regra, através do ‘common sense’ ou da ‘opinião de todos ou da maioria ou dos mais sábios’, mas antes através do Direito objetivo” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 260).

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252

problema, não a instâncias reais, mas sim a instâncias ideais,

como por exemplo “...o espectador imparcial de Adam Smith a

quem apela MacCormick, o juiz Hércules de Dworkin, o auditório

universal de Perelman ou a comunidade ideal de diálogo de

Habermas”386, que, respectivamente, entendem que a resposta

correta seria aquela a que chegaria um ser racional, ou o

conjunto de todos os seres racionais, ou os seres humanos à

medida em que respeitassem as regras do discurso racional.

Tais constatações, no entanto, não podem levar

à conclusão de que a formulação de uma teoria da argumentação

é uma tarefa impossível ou até mesmo inútil. O que essas

constatações demonstram é que também a racionalidade prática

sofre limitações, as quais no entanto nunca foram omitidas.

Com efeito já se vê no pensamento de PERELMAN

que deve haver uma complementaridade entre as razões teórica e

prática387, que aquilo que já está estabelecido só pode ser

alterado através de justificações racionais (que não podem

386 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Tras la justicia: una introducción al derecho y al razonamiento jurídico, p. 136. 387 “... A teoria da argumentação se move (...) no terreno do discurso, mas a racionalidade é uma capacidade — ou um método — que deve nos permitir resolver ou enfrentar problemas que vão além do discurso. Se necessitamos da racionalidade, basicamente é para que possamos enfrentar os problemas relativos à compreensão do mundo (problemas de conhecimento) e também como atuar diante deles (problemas práticos). Ora, em todo o problema cognoscitivo ou prático subjaz uma dimensão lógica — uma dimensão argumentativa — pelo que se pode afirmar que a racionalidade lógica é o nível mais básico de racionalidade e que tem um caráter instrumental em relação à racionalidade teórica e à racionalidade prática” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Contribución a una teoría de la legislación, p. 85-86).

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253

violar, por exemplo, a lógica formal388} que se dão através da

argumentação. Com efeito, aduz GRÁCIO:

“ ... Argumentar representa sempre uma ruptura com a inércia em que se estabiliza o senso comum e que determina o racional como normalidade. Mas esta ruptura não é radical, nem se apresenta com tendências solipsistas. Representa, pelo contrário, um desafio que se lança e se repercute na emergência da necessidade de justificação do que permanecia não justificado porque até então não discutido.”389

A submissão ao princípio de inércia (que de uma

maneira ou de outra também é admitida pelas demais teorias da

argumentação) tem sido acusada de ser uma postura

conservadora, dado que os “...mais significativos avanços no

pensamento intelectual se caracterizam pela (...) crítica

sobre fatos e questões que antes eram considerados sem

importância, desonestos ou evidentes por si mesmos”.390

No entanto essas críticas se esquecem que as

teorias da argumentação nunca absolutizaram os valores

estabelecidos, apenas exigem uma justificação para a mudança,

o que só pode ocorrer, se se quiser repudiar a arbitrariedade

e a força, através da argumentação. É justamente a

argumentação que permite a crítica daquilo que está

388 “...uma decisão jurídica tem (...) que estar justificada internamente, [sendo que] a justificação interna é independente da justificação externa, no sentido de que a primeira é condição necessária, mas não suficiente, para a segunda” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 137). 389 GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 94. 390 FRANK, Jerome. Derecho y incertidumbre, p. 24.

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estabelecido, donde a ruptura com o passado ocorre numa

situação de consenso.

Por outro lado, as mudanças operadas por

imposição — muitas vezes porque aqueles que as impõem se

julgam possuir o conhecimento da verdade — é que levam à

arbitrariedade e que são, portanto, irracionais.

Neste ponto chega-se a outra limitação, que na

verdade é uma condição de existência, da proposta defendida

pelas teorias da argumentação: é que só é possível falar em

argumentação no quadro de um regime democrático, ou seja, num

ambiente em que a maioria dita o compromisso com um consenso,

compromisso este que só encontra firmeza e confiabilidade se

for fundado numa comunhão de valores, começando pelo próprio

reconhecimento universal do valor de democracia; ou, conforme

salienta HOBSBAWM:

“ ... O sistema democrático não funciona se não há um consenso básico entre a maioria dos cidadãos sobre a aceitabilidade de seu Estado e sistema social, ou pelo menos uma disposição de negociar acordos consensuais.”391

Há ainda outras limitações, posto que na

prática a adoção de decisões jurídicas mediante instrumentos

argumentativos não esgota o fundamento do direito, que

391 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 139. Segundo HOBSBAWM, ainda, consensos tais são muito facilitados pela prosperidade, sendo mais difíceis, portanto, em épocas de carestia.

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consiste também na utilização de instrumentos burocráticos e

coercitivos.392

A tentativa de se formular uma teoria da

argumentação jurídica, como visto, é algo bem recente, de modo

que, a exemplo do que foi exposto acima, há ainda várias

aporias por ser enfrentadas e quem sabe superadas, ou seja,

existe um grande trabalho pela frente, principalmente se

concebermos a teoria da argumentação não apenas como um campo

do saber que descreve os modos pelos quais as argumentações se

desenrolam, mas que tenha também um caráter prescritivo, que

diga o que é ou não correto, o que pode e o que não pode,

enfim, que auxilie na tarefa de controle das decisões

jurídicas, cuja discricionariedade, se não pode ser suprimida

em alguns casos, pode e deve ser reduzida.

Para tanto será necessária a ampliação do

próprio objeto de que têm se ocupado as teorias da

argumentação existentes, que se prendem a questões de

aplicação do direito aos casos difíceis e, em decorrência, na

392 Há quem sustente, como Hannah ARENDT, que onde se admite o uso da força não há espaço para a argumentação, “...visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível como a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão, ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica” (ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 129).

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análise dos argumentos que se produzem na interpretação e

aplicação do direito e na elaboração da dogmática jurídica.

Com efeito, as teorias existentes têm se

ocupado, quase que exclusivamente, com questões do tipo

normativo, deixando de fora a maior parte das argumentações

produzidas fora dos tribunais superiores393, além de excluírem

da análise, também, as argumentações que têm lugar no âmbito

da produção das leis. Ora, se a teoria da argumentação

jurídica pretende introduzir algum tipo de pauta que permita

controlar o uso dos instrumentos jurídicos, parece claro que

esse controle também deva ser estendido aos momentos de

produção das provas e das normas.

Todas estas observações confirmam que há ainda

um longo caminho a ser trilhado pela teoria da argumentação.

Até agora seus esforços tinham sido direcionados quase que por

completo na tarefa de mostrar que existe sim uma racionalidade

prática complementar à racionalidade teórica. Cabe agora

encontrar a forma através da qual se poderá aplicar essa

racionalidade satisfatoriamente, o que implicará, inclusive, a

ampliação do próprio âmbito de análise de que tradicionalmente

as teorias da argumentação têm se ocupado. O desenvolvimento

de uma teoria da argumentação é, talvez, um dos maiores

393 Que envolvem argumentações sobre fatos, cuja importância, como visto, foi aventada por FRANK, porém, de certa forma, até agora negligenciada.

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desafios que o pensamento jurídico deverá enfrentar, como

tarefa a desempenhar, neste século que se inicia.

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CONCLUSÃO

A teoria não pode estar desacompanhada da

prática, sob pena de se limitar a problematizações improfícuas

e sem qualquer alcance da realidade. Da mesma forma, a prática

não tem vitalidade sem fundamentação teórica.

Através da evolução das sociedades, quanto mais

complexas suas organizações, tanto mais se faz premente o

estudo e o debate da teoria do direito, que fundamenta e

auxilia na regulamentação da vida destas sociedades interna e

externamente.

A filosofia política, a partir de MAQUIAVEL,

mostra que na prática política as prioridades e até mesmo os

princípios podem ser negociados. Porém, há uma conquista da

atualidade que, enquanto nada melhor for concebido para

substituí-la, de modo algum pode ser negociada: a democracia.

Nas sociedades contemporâneas a democracia é

praticada e vem sendo aperfeiçoada na construção histórica que

formou os Estados Democráticos de Direito.

Não é possível se falar em Estado democrático

sem a presença do direito. É o Estado de direito o garantidor

da democracia e fora dele a proximidade com a barbárie é

gritante.

As possibilidades de se falar na construção de

uma teoria da argumentação só têm lugar em ambientes

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democráticos, em que haja espaço para o convencimento, a

mudança de rumos ditada por acordos e não pela violência ou

imposições injustificadas.

Dentro do âmbito democrático — que é vulnerável

em qualquer sociedade — uma teoria da argumentação jurídica

pode ser desenvolvida para fazer frente à perplexidade causada

pelo ceticismo do positivismo jurídico.

Ora, será que a razão é deficiente justamente

quando se trata de encontrar uma solução aos problemas

jurídicos em que mais se necessita de seu auxílio? Ora, os

casos difíceis invariavelmente requerem, para que sejam

solucionados, a opção dentre dois ou mais valores caros à

sociedade, os quais são em geral especialmente tutelados pelos

ordenamentos jurídicos existentes.

Por exemplo, quando direitos fundamentais

entram em conflito, com a exigência da aplicação de uns em

detrimento de outros, está-se diante de um caso difícil que

certamente exigirá uma justificação externa pelo órgão que tem

o dever de resolver o problema. E, na linha das observações

acima, justamente nesses casos, que são os mais importantes e

polêmicos em face dos interesses em jogo, a razão se torna

insuficiente?

O desenvolvimento de uma teoria da

argumentação, cujas bases pioneiras foram propostas por

PERELMAN, em que se aceita a ampliação dos horizontes do

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raciocínio para além da lógica clássica, pode contribuir muito

na tarefa de se reduzir aquela perplexidade trazida pelo

ceticismo.

Não se pode, em direito, simplesmente suspender

o juízo e acatar pacificamente que nada pode ser solucionado,

ou melhor, que a tarefa de se buscar uma solução correta é

totalmente inglória. É necessário dar solução aos conflitos

existentes.

Ora, se isso é necessário, devemo-nos esforçar

para eliminar, o máximo possível, as possibilidades de

arbítrio daqueles que têm por missão decidir. Para tanto, uma

teoria da argumentação poderá fixar regras de caráter

negativo: quando uma decisão deve ser tida por não justificada

e, por isso mesmo, inaceitável. Na base de tudo deve estar a

sua conformidade com as regras clássicas de raciocínio, que

não podem ser descartadas. Mas quando essas regras são

insuficientes, quando se exige uma justificação externa em que

haverá um forte componente moral na decisão, como se encontrar

um critério de racionalidade? Aqui igualmente uma teoria da

argumentação poderá fornecer alguns caminhos, que também

envolvem regras de caráter negativo: uma decisão deve ser

coerente, atender aos precedentes ou dar boas razões no caso

de não aplicá-los, entre outras.

Todas essas regras podem ser aplicadas, no caso

de controle das decisões judiciais, por algum órgão criado

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exatamente para coibir decisões manifestamente injustificadas:

se a decisão dada pelo juiz ou o tribunal não atender às

regras básicas a ser estipuladas deve ser possível a

determinação de tomada de uma nova decisão. No Brasil é

urgente a necessidade de se criar um órgão de controle, seja

ele interno ao próprio judiciário (um conselho geral como há

em outros países) ou externo.

Para este mister a teoria da argumentação

jurídica também pode ser útil, pois, dada a sua importância,

não pode e não deve se ocupar — como tem ocorrido — apenas de

casos difíceis no âmbito de conflitos que se desenvolvem nas

lides judiciais. Ora, uma tal teoria pode dar boas

contribuições na hora de se criar leis, sejam aquelas de ordem

processual que venham a estabelecer, a par das já existentes,

novas regras que se preocupam com o grau de racionalidade das

decisões, sejam elas de ordem geral, ou seja, que controlem a

racionalidade das opções legislativas. Neste âmbito devem

também se aventurar as teorias da argumentação.

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