A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

9
8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 1/9 A Tentação do Realismo.  Gianni Vattimo* “Não existem fatos somente interpretações”. Esta frase de Friedrich Nietzsche, que, mesmo com alguma cautela (já que poderia soar ainda como uma outra afirmação metafísica ), pode ser assumida como a divisa da ontologia hermenêutica, é também aquela sobre a qual versam as polêmicas daqueles que, sempre mais frequentemente nos últimos tempos, cedem àquela que proponho de chamar “tentação do realismo “. Mas é necessário recordar que no contexto no qual escreve (uma nota de 1886 – 1887 ) Nietzsche acrescenta também que “isto já é interpretação (Ausfegun )”. É tão obvio que, também e sobretudo com esta reserva, a frase de Nietzsche equivalha a uma afirmação metafísica da irrealidade do mundo, a uma espécie de idealismo empírico de tipo berkeleyriano? Existe quem atribui um idealismo como este também a Richard Rorty, que fala explicitamente de filosofias (e obras de arte, e Weltanschauungen individuais, e também paradigmas científicos) como de “redescrições” do mundo – portanto supondo que, de qualquer modo, alguma coisa como um mundo, o mundo, se dê, mesmo se acessível somente sempre do ponto de  vista aberto por uma redescrição. No caso de Nietzsche, nem a realidade do mundo se reduz à percepção do sujeito, nem o sujeito que percebe tem, por sua vez, um estatuto ontológico mais sólido do que aquele das suas pretensas “ilusões”. Do que se trata em Nietzsche como em Rorty e na ontologia hermenêutica contemporânea, não é uma opção metafísica a favor do subjetivismo contra o objetivismo, ou a favor do irrealismo (idealismo) contra o realismo. O “jogo das interpretações” não é absolutamente um conjunto de movimentos arbitrários no qual o sujeito, conscientemente ou até abandonando-se surrealisticamente ao próprio inconsciente criativo, cria imagens de “realidade” a opor (mas porque, depois?) àquelas dos outros. O jogo também é sempre de fato um conflito: provavelmente, usar um termo menos duro significa somente, indicar um telos, um ideal regulativo na direção do qual se mover, que é justamente o que ocorre também com a noção nietzschiana de vontade de poder, a qual não se refere só e definitivamente a um embate de forças físicas para a prepotência dos outros, mas justamente no seu movimento de ultrapassagem supera também as várias concretizações do poder, os “interesses” dos particulares centros de  vontade (sobre cuja “realidade” e “ultimidade” Nietzsche nutre justamente muitas dúvidas). Logo: pensar o jogo das interpretações, também e antes de tudo como conflito, ou as redescrições como algo que se mede com descrições já dadas, ou os paradigmas kuhnianos como abertura que se assemelham à instituição não sempre pacífica de novas tábuas de valores, ou o evento da verdade heideggeriano justamente como evento, como cesura e descontinuidade, também como desadaptação e angústia – tudo isto seria na verdade reconduzível a uma ontologia ilusionista, ao esteticismo de uma concepção da realidade totalmente “virtual”, que não deveria nem mesmo acertar as contas com o peso concreto dos meios técnicos que a tornam possível? (Dito de passagem: a violência das proibições que hoje se exercem contra as drogas além de responder notoriamente aos interesses das narco-máfias, não seria também inspirada em profundas resistências contra qualquer “aliviamento” do “real” – uma resistência contra a virtualização sentida como culpa, abandono esteticista ao arbítrio das paixões?

Transcript of A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

Page 1: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 1/9

A Tentação do Realismo. Gianni Vattimo*

“Não existem fatos somente interpretações”. Esta frase de Friedrich Nietzsche, que,mesmo com alguma cautela (já que poderia soar ainda como uma outra afirmaçãometafísica ), pode ser assumida como a divisa da ontologia hermenêutica, é tambémaquela sobre a qual versam as polêmicas daqueles que, sempre mais frequentementenos últimos tempos, cedem àquela que proponho de chamar “tentação do realismo “.

Mas é necessário recordar que no contexto no qual escreve (uma nota de 1886 – 1887 )Nietzsche acrescenta também que “isto já é interpretação (Ausfegun )”.É tão obvio que, também e sobretudo com esta reserva, a frase de Nietzsche equivalha auma afirmação metafísica da irrealidade do mundo, a uma espécie de idealismoempírico de tipo berkeleyriano? Existe quem atribui um idealismo como este também aRichard Rorty, que fala explicitamente de filosofias (e obras de arte,e Weltanschauungen individuais, e também paradigmas científicos) como de

“redescrições” do mundo – portanto supondo que, de qualquer modo, alguma coisacomo um mundo, o mundo, se dê, mesmo se acessível somente sempre do ponto de vista aberto por uma redescrição.No caso de Nietzsche, nem a realidade do mundo se reduz à percepção do sujeito, nemo sujeito que percebe tem, por sua vez, um estatuto ontológico mais sólido do queaquele das suas pretensas “ilusões”.

Do que se trata em Nietzsche como em Rorty e na ontologia hermenêuticacontemporânea, não é uma opção metafísica a favor do subjetivismo contra oobjetivismo, ou a favor do irrealismo (idealismo) contra o realismo. O “jogo dasinterpretações” não é absolutamente um conjunto de movimentos arbitrários no qual o

sujeito, conscientemente ou até abandonando-se surrealisticamente ao próprioinconsciente criativo, cria imagens de “realidade” a opor (mas porque, depois?) àquelasdos outros.

O jogo também é sempre de fato um conflito: provavelmente, usar um termo menosduro significa somente, indicar um telos, um ideal regulativo na direção do qual semover, que é justamente o que ocorre também com a noção nietzschiana de vontade depoder, a qual não se refere só e definitivamente a um embate de forças físicas para aprepotência dos outros, mas justamente no seu movimento de ultrapassagem superatambém as várias concretizações do poder, os “interesses” dos particulares centros de vontade (sobre cuja “realidade” e “ultimidade” Nietzsche nutre justamente muitas

dúvidas).Logo: pensar o jogo das interpretações, também e antes de tudo como conflito, ou asredescrições como algo que se mede com descrições já dadas, ou os paradigmaskuhnianos como abertura que se assemelham à instituição não sempre pacífica denovas tábuas de valores, ou o evento da verdade heideggeriano justamente comoevento, como cesura e descontinuidade, também como desadaptação e angústia – tudoisto seria na verdade reconduzível a uma ontologia ilusionista, ao esteticismo de umaconcepção da realidade totalmente “virtual”, que não deveria nem mesmo acertar ascontas com o peso concreto dos meios técnicos que a tornam possível? (Dito depassagem: a violência das proibições que hoje se exercem contra as drogas além deresponder notoriamente aos interesses das narco-máfias, não seria também inspirada

em profundas resistências contra qualquer “aliviamento” do “real” – uma resistênciacontra a virtualização sentida como culpa, abandono esteticista ao arbítrio das paixões?

Page 2: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 2/9

Contudo, a vida dos drogados é totalmente diferente de um jogo, de uma diversão,etc...).

Com respeito a hermenêutica e a ontologia que ela pressupõe (mais ou menos explícitae conscientemente), os realistas pecam justamente pelo pouco realismo: não

conseguem alcançar e descrever “adequadamente” a experiência da qual ela parte,sobre a qual, se se quiser, se fundamenta. Excluem que possa existir uma experiência verdadeira porque a acham demasiadamente pouco realista, muito contrastante com osprincípios que regem cada possível realidade.

No entanto, esta experiência é a que constitui efetivamente a “realidade” de muitafilosofia contemporânea: de Nietzsche a Heidegger e a toda a galáxia do pensamentopós-moderno; mas também de várias escolas da psicanálise, de muitas posiçõesfilosóficas e epistemológicas pós-analíticas …

 A problemática nietzschiana da morte de Deus, a heideggeriana da superação dametafísica, que podem ser reunidas sob a categoria comum de niilismo, dão lugar aoque uma lógica rigorosamente metafísica define autocontradições performativas. (“Nãoexistem fatos mas somente interpretações…”), que só podem ser removidas dopanorama do pensamento contemporâneo com o apelo ao princípio de não-contradição? O argumento lógico contra o cético nunca convenceu alguém a abandonaras próprias “convicções” céticas.

Parece que justamente o realismo, diante de um fenômeno tão complexo e vasto como odo niilismo difuso na cultura e na existência de hoje (a koiné hermenêutica nos seusmúltiplos aspectos), deveria recusar-se de explicá-lo como o resultado de um banal erro

lógico, como se fosse verossímil que uma cultura inteira tenha subitamente esquecido oprincípio da não contradição.

Sublinho esse paradoxo porque me parece decisivo. Enquanto Heidegger, não só apartir da virada dos anos trinta, se esforçou de “justificar” a própria filosofia em termosepocais – que chamarei também empíricos, no sentido da experiência como fato nãoredutível ao imprimir-se de sinais sobre a tabula rasa da mente- aqui se busca darconta de todo o mundo do qual a hermenêutica quer ser teoria, interpretação, etc., como apelo a um engano lógico; além disso, com um recurso que desde sempre acreditou depoder valer como argumento vitorioso e não funcionou nunca como tal.

Propus falar, a propósito da cultura – não só filosófica do mundo ocidental, tardo-

industrial, pós-moderno, que é o nosso, de uma koiné hermenêutica. Como todas as précompreensões hermenêuticas, também esta é uma imagem vaga, que parece muitomarcada por uma espécie de impressionismo filosófico-sociológico; para muitos parece,com alguma razão, uma generalização ambiciosa em demasia, que unifica umamultiplicidade de fenômenos totalmente heterogêneos.

Todavia, assumir o risco de concentrar a atenção sobre a koiné hermenêutica comocaracterística global, e vaga, da nossa cultura atual, é indispensável para qualquer compreensão teórica não superficial da mesma, capaz de alcançar um fio condutorinterpretativo.

É esse o primeiro passo na direção de uma “ontologia da atualidade”, na direção de umpensamento que ultrapasse o esquecimento metafísico do ser, esquecimento que seperpetua até quando o pensamento se mantém na confusa fragmentação dos saberes

Page 3: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 3/9

especializados e dos múltiplos papéis sociais em que nós modernos nos encontramos jogados.

Hermenêutica; como se sabe, é a filosofia que coloca no seu âmago o fenômeno dainterpretação, quer dizer, de um conhecimento do real que não se pensa como espelho

objetivo das coisas “lá fora”, mas como uma preensão que traz consigo a marca dequem “conhece”. Luigi Pareyson a definiu “conhecimento de formas por parte depessoas”, como um nachschaffen em que o sujeito cognoscitivo alcança a coisa namedida em que, reconstruindo-a como forma, exprime nesta reconstrução também a simesmo, posto que estende e explora uma similaridade de base que pode ter diversosgraus mas que não está nunca ausente do todo.

Tem sentido conceber o conhecimento nestes termos? Pode-se razoavelmente pensarque a similaridade de que fala Pareyson (e que ele, recordemos, reconhece como basedo conhecimento dos outros e da experiência estética) não esteja tão longe do que Kantchamava esquematismo.

Qualquer que seja o valor desta aproximação, lembremos que a hermenêutica de hoje éuma, mesmo que remota, continuação do kantismo. O mundo é fenômeno, quer dizeruma ordem de coisas que o sujeito entra ativa mente a constituir. Em Kant, contudo,existia ainda a ideia de que as estruturas a priorí do sujeito fossem iguais em todos osseres racionais constituídos .

No século XX, depois de Heidegger, estas estruturas veem reconhecidas na sua radicalhistoricidade. Não só não conhecemos nunca a não ser fenômenos; mas esses se dãosomente no quadro do que Heidegger chama um projeto jogado. Conhecer, já a níveldas puras e simples percepções espaço-temporais, significa construir um fundo e umprimeiro patamar, ordenando as coisas com base numa pré-compreensão que exprimeinteresses, emoções e que herda uma linguagem, uma cultura, formas históricas deracionalidade. As coisas aparecem - se dão como entes “vêem ao ser”-, só no horizontede um projeto, se não não se deixam nem mesmo distinguir do fundo e entre elas.

Por conseguinte, pode-se também definir a hermenêutica como um kantismo quepassou pela experiência existencialista da finidade e, logo, da historicidade. Umatransformação em cuja base está a analítica existencial de Sein und Zeit [1], que por sua vez herda muitos elementos do pragmatismo (as coisas são antes de tudo e no mais das vezes instrumentos; e por isso se dão somente num projeto…), o que muito realismo dehoje tende a colocar de lado sem tê-lo verdadeiramente discutido.Tem a hermenêutica, assim, sumariamente definida, a pretensão de exprimir o“espírito do tempo “, de propor-se como a koiné dos últimos decênios da culturaocidental?

Provavelmente não existe nenhum aspecto do que é chamado de mundo pós-modernoque não esteja marca do pelo alastrar-se da interpretação. Numa relação sumária pode-se lembrar em desordem:

1) a difusão dos meios de comunicação de massa, que, paradoxalmente, não desenvolvetanto a consciência vaga e geral do seu caráter de agências interpretativas não neutras e“objetivas”;

Page 4: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 4/9

2) a autoconsciência da historiografia, para a qual mesmo a ideia de história é umesquema retórico, que por conseguinte não pode mais valer como princípio derealidade em que confiava grande parte da filosofia moderna depois, e comoalternativa, à fé empirista e positivista nos fatos verificáveis pela sensação ou aexperimentação;

3) a palavra de ordem da multiplicidade das culturas, que, com a sua mesmaconsistência de códigos capazes de durar, desmentem uma idéia unitária, progressiva,de racionalidade;

4) a destruição psicanalítica da fé na “ultimidade” da consciência. E assim enumerando,até a teoria dos paradigmas amadurecida na mesma autoconsciência dos cientistas.

 A frase de Nietzsche: “não existem fatos somente interpretações, e esta também é umainterpretação”, poderia na verdade ser desmontada, mostrada como autocontraditória

através de joguinho lógico, e por conseguinte declarada “falsa”, quando é a fórmula que,mesmo se imprecisa e vagamente, resume todos estes “fatos de experiência”compartilhados?

Não estou, contraditoriamente, pretendendo que a hermenêutica, sintetizada na frasede Nietzsche, seja a descrição mais adequada da cultura tardo-moderna. Defendo, pelocontrário, que ela é a interpretação mais razoável.

Que seja uma interpretação, significa que se formula conscientemente no quadro de umprojeto; e de um projeto jogado, segundo a terminologia de Heidegger. Que quer, por

conseguinte, ser reconhecida como interpretação racional em vista de um telos queescolhe enquanto, de certa maneira, aí já se encontra comprometida, porque lhepertence histórico-destinalmente.

Nem a ideia de razão, de bom senso, em base a qual a hermenêutica quer ser avaliada,nem os argumentos específicos que pode alegar para corroborar-se à luz deste critério,são externos à sua específica condição histórica, ao seu destino. Seria este um sintomade submissão ao irracionalismo, ao relativismo das Weltanschauungen, em gênerodemonizado porque no seu fundo se entrevê a luta violenta de todos contra todos, umaespécie de retorno à selva primitiva?

Como tentei mostrar em Oltre l’interpretazione, a hermenêutica se configura como

puro e perigoso relativismo só se não se leva bastante a sério as próprias implicaçõesniilistas. Posto que a “verdade da hermenêutica” como teoria alternativa a outras (eantes de tudo ao conceito de verdade como “reflexo” dos “fatos” ) não pode se legitimarpretendendo valer como uma descrição adequada de um estado de coisasmetafisicamente estabelecido (“não existem fatos, somente interpretações”) mas devereconhecer-se também como uma interpretação, a sua única possibilidade é a deargumentar-se como tal, quer dizer, como uma “descrição” interna ou leitura sui

generis da condição histórica na qual é lançada e que escolhe orientar numa direçãodeterminada, pela qual não existem outros critérios a não ser os que herda,interpretando, desta mesma proveniência.

Ora, a proveniência vista como legitimação da verdade da hermenêutica não pode seapresentar senão sob a luz do niilismo; só um ser que procede, indefinidamente (e não

Page 5: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 5/9

“infinitamente”) para o seu próprio enfraqueci mento legitima a afirmação da ideia de verdade como interpretação e não como correspondência.

Se não fosse assim, a hermenêutica seria só uma teoria metafísico-descritiva dapluralidade irredutível das culturas; mas enquanto metafísico-descritiva, seria ainda

 vítima, e dessa vez de maneira insustentável, de uma auto contradição performativa-insustentável justamente por que esta autocontradição refuta mesmo, e talvez sobretudo, quem pretenda que o verdadeiro é adequação ao estado das coisas.

Levar em conta o alastramento da interpretação na cultura pós-moderna, e tentarpensar também esta atitude como uma interpretação e não como nova metafísicarelativista, significa assumir a responsabilidade de mover-se em uma direção, sabendo-se proveniente, condicionado, histórico.

Nesta perspectiva, que reivindica os direitos do realismo, ou da metafísica como reflexo

cognoscitivo e prático da verdade objetiva do ser, é um interlocutor igualmente“interpretante” como um outro qualquer. Faz hermenêutica sem sabê-lo, se diriaparodiando Molière. Interpreta com vista a um projeto, que porém não reconhececomo tal por que crê ser movido pela pura vontade da verdade como reflexo daestrutura das coisas “lá fora”.

 As boas razões do hermeneuta contra o realista, mas também contra o relativistametafísico, ou contra o metafísico tout court, são atribuíveis à predileção racional doprojeto que inspira a sua interpretação da proveniência. Começando pelo fato queprojeto e interpretação são reconhecidos por ele como tais, e se colocam explicitamenteem jogo. Enquanto o metafísico – realista, relativista, naturalista ou o que seja- é

sempre como aquele que acredita de (poder) falar de lugar algum, que não leva emconta (e em jogo) a si mesmo na sua imagem do conhecimento, e está, portanto, elesim, exposto ao efeito devastador das contradições performativas. A sua vontade de verdade começa com o admitir como óbvio que a sua imagem doconhecimento significa o reflexo objetivo do estado das coisas, e que este reflexo sejapossível e desejável como valor final para o conhecimento e para a ação. Do mesmomodo, numa linguagem menos decididamente hermenêutica do que a heideggeriana,por exemplo do ponto de vista do agir comunicativo de Jurgen Habermas, se poderiadizer que aqui ocorre uma generalização “colonizante” de todas as esferas do agir doponto de vista do agir estratégico: pode-se, com certeza, reconhecer que saber comoestão as coisas em um certo âmbito é necessário e útil em vista de qualquer fim; masquanto a este fim, na medida em que por último devemos pensá-lo não mais como meio

para outro, não vale como certo referir-se ao verdadeiro como correspondência, e se éinevitavelmente reenviado ao projeto.

Um projeto que tenha como valor último o reflexo das coisas como são, que, porexemplo, pense que a emancipação da humanidade ou também, mais modestamente, afelicidade ou a perfeição do indivíduo consista no conhecimento do verdadeiro-objetivo, vai de encontro a todas as objeções, e verdadeiras e próprias contradições, decada teoria que não dê conta da historicidade, e antes de tudo da sua própriahistoricidade.

 A preferência racional – repitamos, do ponto de vista de uma noção de racionalidadeque se deixa apreender interpretativamente até a proveniência mesma – dahermenêutica se opõem, por parte do realismo nas suas várias formas, sejam razões

Page 6: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 6/9

metafísicas (a autocontraditoriedade do niilismo); seja, já que no fundo aquelas têmsomente a aparência da “definitividade”, motivações menos abstratas e ligadas pelocontrário a exigências históricas e pragmáticas.

Ora, enquanto a ontologia hermenêutica pode não se importar, em nome da

experiência histórica e do espírito do tempo, com o argumento anti-cético pretenso vence dor, ela é sensível porém àquelas objeções que se reclamam justamente dessasfontes.

Rejeitar a hermenêutica enquanto ontologia niilista parece necessário, em primeirolugar, porque de outra maneira ficaria minada a validez das ciências experimentais danatureza. A maior parte das alternativas que se apresenta nos debates filosóficoscontemporâneos, e antes de tudo aquelas que, só por comodidade esquemática, sepodem relacionar à oposição entre “analíticos” e “continentais”, tem entretanto comoadquirida a validez, neste sentido geral, das ciências experimentais.

O niilismo hermenêutica parece uma ameaça à esta validade enquanto vem,arbitrariamente como se viu, identificado com uma metafísica relativista, a qual teriatambém e sobretudo como consequência colocar em perigo a autoridade prático-socialda ciência. Este risco é tão mais temido quanto mais o pluralismo cultural dassociedades industriais avançadas comporta o possível difundir-se de um caóticopluralismo científico e tecnológico, como reflexo que coloca em discussão gravesquestões de alcance social e político.

 As recentes e ainda vivas polêmicas, e as verdadeiras e próprias manifestações sociais,que ocorreram na Itália sobre o assim chamado “método Di Bella“, nome de um médico

idoso que inventou uma cura contra o câncer demonstrada, até o momento pelo menos,como ineficaz pela medicina oficial (e cujos alto custos, por isso mesmo, não sãoreembolsados pelo serviço nacional de saúde) é só um primeiro sintoma do que poderiaacontecer numa sociedade onde não se reconheça mais a autoridade da ciência, e aadmissibilidade ou menos dos sistemas de cura, ou de outros saberes de importânciapara a vida individual e coletiva se as decisões forem confiadas a pessoas “nãoqualificadas”. Lembrarei que hoje, por exemplo, também as medicinas homeopáticasnão são reembolsadas pelo serviço nacional de saúde italiano. Para não falar dasdespesas com terapias psicanalíticas. A hermenêutica, seja com a sua ontologia niilista, seja sobretudo com o apelo àhistoricidade dos saberes, ao seu envolvimento com a distribuição do poder social, aoseu caráter global não desinteressado, produziria segundo os seus críticos um perigoso

efeito de deslegitimação da ciência, além e mais gravemente do que da moral.

De anarquismo metodológico, em outros termos, se pode mesmo discutir em círculosrestritos de epistemólogos e cientistas; mas quando isto se torna uma espécie de sentircomum, e se difunde também além dos circuitos acadêmicos através do trabalho dedesconstrução de tantos críticos que se inspiram nos trabalhos de Derrida, é necessárioreivindicar energicamente o princípio de realidade, quer dizer, a validade nãopuramente histórica das proposições cientificamente asseguradas.

Mas, anarquismo metodológico não é uma expressão inventada pela hermenêutica

niilista; provém do ambiente de filósofos considerados, ao menos em princípio,respeitosos da ciência e do seu realismo .

Page 7: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 7/9

O fato é que – como de resto, é sempre mais claro se se pensa na dificuldade de seadotar literalmente a divisão entre “analíticos” e “continentais” (que em geral é citadaquase somente para declará-la obsoleta e indefensável) -uma ontologia niilista parecemais o êxito comum, seja da tradição analítica como da continental, pelo menos namedida em que esta última se pode identificar com a hermenêutica.

Numa lista dos aspectos da cultura contemporânea da qual o niilismo quer seapresentar como interpretação” adequada” não entram só a mediatização da sociedade,o pluralismo das culturas, o desmentido freudiano da “ultimidade” da consciência, asecularização da religião e do poder; mas também e sobretudo os desenvolvimentos“irrealísticos” das ciências e a epistemologia que as acompanham.

Tome-se como exemplo uma passagem de Razão, verdade e história ( 1981 ) de umfilósofo da tradição analítica como Hilary Putnam, quando escreve: “Perguntar-se dequais objetos é constituído o mundo tem sentido somente no interior de uma dadateoria ou descrição” ; a verdade” é uma espécie de aceitabilidade racional … antes do

que correspondência com um ‘estado das coisas’ independente do discurso e da mente”(tradução italiana: II Saggiatore, 1985, pág. 57). É, como se sabe, o que Putnam chama“realismo interno” ou perspectiva “internista”- oposta a perspectiva “externista” do“realismo metafísico, segundo o qual o mundo consiste em uma certa totalidade fixa deobjetos independentes da nossa mente, existe exatamente só uma descrição verdadeirae completa de como ‘é o mundo’, e a verdade comporta uma relação de correspondênciade algum gênero entre as palavras ou os signos do pensamento, e as coisas externas, ouo conjunto de coisas externas …”(ivi).

Quem sabe se Putnam pensa que esta tese internista seja uma descrição exata do estadode coisas? Devemos supor, assumindo que ele não seja gravemente incoerente, quetambém argumentaria a aceitabilidade racional da sua tese baseando-se em apelos àexperiência do tipo daqueles, vagos e impressionistas, as quais se refere ahermenêutica. Ver o seu livro Rinnovare la filosofia (1992), tradução italiana Garzanti,1998).

Não existe, nem mesmo para o mais dogmático realismo metafísico, a possibilidade dequalquer experimentação crucial que prove realisticamente uma tese, porque cadadelimitação do âmbito de relevância é já, e sempre, um ato interpretativo; com maiorrazão, um realismo interno como o de Putnam dificilmente pode se subtrair à deriva,ou ao verdadeiro e próprio rompimento historicista e às suas implicações niilistas.

Com certeza, o realismo interno de Putnam não é o único êxito da epistemologiaanalítica e pós-analítica, nem mesmo talvez uma posição teórica dominante naqueleâmbito. Junto a tantos outros aspectos desta tradição, mostra contudo ao menos umacerta racionalidade da tese segundo a qual a ontologia niilista da hermenêutica tem bons títulos para apresentar-se como a koiné da cultura da nossa época.

Se, como se poderia demonstrar mais amplamente, o niilismo hermenêutica nãoameaça a ciência mais do que o fazem muitas teorias epistemológicas consideradasamistosas e atentas aos seus direitos, o que resta da polêmica realista contra ahermenêutica? Coerentemente com as convicções de base dos hermeneutas, segundo osquais cada reivindicação da verdade é movida por um projeto, isto é, por um interesse,é necessário perguntar-se a quais exigências conduz esta polêmica.

O que existe no fundo da necessidade de falar da realidade como algo de existente, naexpressão de Putnam, uma totalidade fixa de objetos independentes da nossa mente?

Page 8: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 8/9

Se consideramos a “tentação do realismo” nos seus aspectos de uma nova modafilosófica, podemos encontrar um certo número de motivações contingentes, a nãosubvalorizar mas provavelmente não exaustivas: banal revolta geracional contra ahermenêutica que, enquanto koiné, é enfim um paradigma consolidado, se bem quematizado; neurose fundamentalista que percorre associedades tardo-industriais comoreação regressiva de defesa contra a babei pós-moderna das linguagens e dos valoresou, simplesmente, em certos filósofos acadêmicos, apelo à ordem de uma filosofia que,segundo eles, deveria tornar a ser, como nos tempos do positivismo e do neokantismoimperantes, pesquisa (quase) positiva sobre os mecanismos do conhecer.

Motivações não inverossímeis, mas não exaustivas. Uma conclusão que deveria ainda:a) mostrar posteriormente que a hermenêutica não é de modo algum idealismoempírico, que não se sonha absolutamente em colocar em dúvida a “passividade” dasensibilidade, para usar a terminologia kantiana; b) que falar, para esta “passividade”da recepção de mensagens ou melhor, de choque com objetos, gravação de impressõessob a tabula rasa da mente, etc., não coloca em perigo nem a busca do conhecimentocientífico, nem o ter os pés na terra, na vida cotidiana, nas relações com os outros, etc.

Posto que, como disse no início, me refiro aqui somente aos primeiros movimentos deum trabalho in progress sobre o conceito de realidade, limito-me a indicar dois temasconclusivos, insistindo no fato que vale plenamente para a ontologia hermenêutica aanálise da experiência levada a cabo por Heidegger em Sein und Zeit, que era umaanálise pragmatista, mas certamente não berkeleyriana.

Para seguir o Heidegger do segundo período, da ontologia niilista do evento, não énecessário abandonar completamente a consciência originariamentefenomenológica da experiência como encontro com o seu “outro”. A analíticaexistencial, traz assim para a fenomenologia a indispensável abertura para a dimensãohistórica do encontro. A reserva de Nietzsche: “também esta é uma interpretação”, não

equivale a restabelecer a diferença entre coisas em si e esquemas mentais que antesHusserl, e depois Davidson e outros, justamente colocaram de lado.

Isto com relação a interpretação ser “somente” uma interpretação, não ser o mundo láfora, como totalidade fixa de objetos independentes do meu conhecimento, mas sim aherança de outras interpretações, por sua vez inseparáveis do que se apresentava a elascomo objeto.

Não é por acaso que Heidegger chama justamente este transmitir-se de interpretações(inseparáveis dos fatos que interpretam) a “história do ser”. Até o apelo a objetividade

das coisas como são em si mesmas conta somente enquanto é uma tese de alguémcontra outro alguém, e enquanto é uma interpretação motivada por projetos, porsofrimentos, por interesses também no melhor sentido da palavra. A realidade“mesma” não fala de si, tem necessidade de um porta-voz – quer dizer justamente,intérpretes motivados, que decidem como representar sobre um mapa um território aoqual tiveram acesso através de mapas mais antigos.

Se se abandona a idéia dos esquemas mentais contrapostos ao mundo como estávelconjunto de objetos independentes, torna-se evidente que a passividade da experiênciado mundo é mais proveniência ( ser jogados, não começar de zero, de si, etc.) do quenão receptividade de órgãos de sentido sempre “objetivamente” iguais.

Page 9: A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

8/15/2019 A Tentação Do Realismo, Gianni Vattimo

http://slidepdf.com/reader/full/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo 9/9

Que a realidade seja a (nossa) história não a faz, por isso, uma fábula; já que se omundo verdadeiro tornou-se fábula, como escreve Nietzsche, dessa forma é também afábula (o esquema mental que deveria reduzir tudo a si) que foi negada.

Daqui pode partir, me parece, uma recuperação hermenêutica da “realidade”.

Notas.

1. Ser e Tempo, 2 vols. Editora Vozes, Petrópolis, 1996.

*A palestra de Vattimo em língua portuguesa foi publicada em: VATTIMO, Gianni. A

Tentação do Realismo. Rio de Janeiro: Lacerda; Ed. Istituto Italiano di Cultura, 2001.Tradução de Reginaldo Di Piero.