A Televisão e o Mundo do Trabalho -...

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A Televisão e o Mundo do Trabalho – o poder de barganha do cidadão-telespectador João Luis van Tilburg Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Índice 1 Apresentação 1 2 Notas Introdutórias 4 3 Colocação de um problema 6 4 Mitos televisivos 10 4.1 IBOPE - medição de opinião? .. 13 4.2 Um rito em família? ....... 14 4.3 Falta de opção ou vício? ..... 15 4.4 Programação merecida? ..... 16 5 O mundo do trabalho 19 5.1 O cartão de ponto ........ 20 5.2 O ritmo do trabalho ....... 21 5.3 O estado de saúde ........ 22 5.4 O hábito de preencher o tempo não-trabalhado .......... 24 5.5 O Sistema de Crédito Pessoal e o Poder de Compra ........ 25 6 O Mundo do Televisor 25 6.1 O caráter cíclico da programação da Rede Globo .......... 27 6.2 A codificação icônica ...... 29 6.3 O método de coleta de dados .. 32 6.4 A análise dos dados ....... 32 6.5 Dados complementares ..... 36 6.6 A Telenovela .......... 38 7 O telespectador-cidadão 39 8 Observações conclusivas 48 9 Bibliografia 50 1 Apresentação Quinze anos de análise, observação, pes- quisa e estudo sobre televisão me fizeram escrever este livro, pois parece-me que os resultados destas atividades já tenham sido amadurecidos o suficiente, o que permite sua publicação. Quando, em 1974, realizei um primeiro le- vantamento sobre o “padrão Globo” de te- levisão, não era meu objetivo conhecê-lo. Salvo engano, naquela época ainda não se conceituava a produção televisiva da Globo com este termo, embora Artur da Távola dei- xasse escapar: “Uma Rede como a Globo, por exemplo, não arrisca colocar no ar um programa sem prévia seleção rigorosíssima. É o tal padrão de qualidade, do qual, mui justa- mente, o jovem executivo se orgulha” 1 . O que queria saber eram as razões que levavam e ainda levam milhões de brasilei- ros a se tornar, à noite, telespectadores assí- duos, após um dia de trabalho exaustivo. Isto porque sendo o sistema de televisão comer- cial, a audiência se constitui numa “condição sine qua non” para o funcionamento deste 1 O Globo: 20.06.74

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A Televisão e o Mundo do Trabalho – o poder debarganha do cidadão-telespectador

João Luis van TilburgPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Índice

1 Apresentação 12 Notas Introdutórias 43 Colocação de um problema 64 Mitos televisivos 104.1 IBOPE - medição de opinião?. . 134.2 Um rito em família?. . . . . . . 144.3 Falta de opção ou vício?. . . . . 154.4 Programação merecida?. . . . . 165 O mundo do trabalho 195.1 O cartão de ponto. . . . . . . . 205.2 O ritmo do trabalho. . . . . . . 215.3 O estado de saúde. . . . . . . . 225.4 O hábito de preencher o tempo

não-trabalhado. . . . . . . . . . 245.5 O Sistema de Crédito Pessoal e o

Poder de Compra. . . . . . . . 256 O Mundo do Televisor 256.1 O caráter cíclico da programação

da Rede Globo. . . . . . . . . . 276.2 A codificação icônica. . . . . . 296.3 O método de coleta de dados. . 326.4 A análise dos dados. . . . . . . 326.5 Dados complementares. . . . . 366.6 A Telenovela . . . . . . . . . . 387 O telespectador-cidadão 398 Observações conclusivas 489 Bibliografia 50

1 Apresentação

Quinze anos de análise, observação, pes-quisa e estudo sobre televisão me fizeramescrever este livro, pois parece-me que osresultados destas atividades já tenham sidoamadurecidos o suficiente, o que permite suapublicação.

Quando, em 1974, realizei um primeiro le-vantamento sobre o “padrão Globo” de te-levisão, não era meu objetivo conhecê-lo.Salvo engano, naquela época ainda não seconceituava a produção televisiva da Globocom este termo, embora Artur da Távola dei-xasse escapar:

“Uma Rede como a Globo, por exemplo,não arrisca colocar no ar um programasem prévia seleção rigorosíssima. É o talpadrão de qualidade, do qual, mui justa-mente, o jovem executivo se orgulha”1.

O que queria saber eram as razões quelevavam e ainda levam milhões de brasilei-ros a se tornar, à noite, telespectadores assí-duos, após um dia de trabalho exaustivo. Istoporque sendo o sistema de televisão comer-cial, a audiência se constitui numa “condiçãosine qua non” para o funcionamento deste

1O Globo: 20.06.74

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sistema televisivo. Não há empresário dis-posto a divulgar suas mercadorias ou servi-ços numa emissora sem audiência.

Entretanto, ao procurar estas razões, estu-dando, analisando e pesquisando programastelevisivos, como também observando famí-lias das camadas de baixa renda ao assisti-rem à televisão, confrontei-me com este “pa-drão”.

Hoje, em 1990, tenho a sensação de quelevantei tão somente um pouco do véu que– na minha opinião – cobre o padrão global;existem ainda questões como, por exemplo,a da racionalização na utilização do close.Explico-me. Em 1975 – época de bipartida-rismo, em que crescia o número de votos afavor do MDB – analisei um diálogo na no-vela Escalada, de Lauro César Muniz, entreum empresário na construção civil, Fachinni(Sérgio Brito), e um deputado federal da si-tuação, Alberto (Leonardo Vilar), no qualficava explícito o habitual investimento dosempresários na campanha dos “seus” candi-datos. O empresário cobrava dos “seus” de-putados o lobby para pressionar o GovernoFederal na concessão de favores por ocasiãoda construção da nova capital, Brasília. Odiálogo que denunciava a situação passa-senum escritório, em cena aberta. O tempotodo se vê, de dois ângulos opostos (pla-nos e contra-plano) quase panorâmicos, osdois personagens sentados. Em nenhum mo-mento, os personagens apareceram em closena tela do televisor, para evidenciar, no rosto,as suas emoções ao expor questões políticas,o que, sem a menor dúvida, foi a intenção doautor Lauro César Muniz. Esse diálogo foitratado, em termos de imagem, à distância,como se o diretor não quisesse envolver ostelespectadores. Em contrapartida, quandoum casal de namorados desta mesma novela

estava conversando, os planos foram fecha-dos e, para acentuar, ou melhor formulado,para não dispersar a atenção do telespecta-dor do tema convencional da conversa (na-moro), os rostos ficavam, muitas vezes, emclose. Parece-me que, ao utilizar, na novela,o close, procura-se subordinar a aparente im-portância do tema dos diálogos à imagemque aparece no televisor. Mas a questão daracionalização do close merece um estudomais aprofundado, para não se tirar conclu-sões apressadas. Neste instante não posso iralém dos resultados que obtive.

Resta ainda saber porque procurei as ra-zões que fazem com que milhões de cidadãosde camadas de baixa renda se tornem teles-pectadores, todas as noites.

Defendo que, como não se acaba com a in-flação por intermédio de um decreto-lei, talcomo o Plano Cruzado, também a televisãonão se torna – digamos – melhor por um sim-ples ato de vontade. É imperativo conheceras leis que fazem com que tenhamos, no Bra-sil de hoje, um tipo de programação televi-siva noturna que todos conhecem, e não ou-tro. Proponho-me a descobrir estas leis – aomenos algumas – e, no meu entender, esteobjetivo será alcançado no momento em quese conhecer os motivos que levam o cidadãobrasileiro a se tornar um telespectador assí-duo após um dia exaustivo de trabalho, e sedesvendar as razões que o levam a dar prefe-rência aos programas da Rede Globo.

Entretanto, minha proposta de analisar atelevisão no Brasil para ela se tornar melhor,necessita ser mais especificada. Melhor emque aspecto?

Considero que, num país como o Brasilde hoje, a televisão é o Meio de Comunica-ção de Massa que tem mais condições de so-cializar o conhecimento. O televisor, pois,

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dispensa o conhecimento da leitura para teracesso a informações que, sem este veículo,seria somente privilégio de poucos. Comesta afirmação, não desejo desmerecer os es-forços que deveriam ser empregados paracada cidadão dominar a escrita e a leitura.Considero que teríamos já outro tipo de pro-gramação televisiva, se o analfabetismo esti-vesse erradicado. Pois bem, quem já andoupelas periferias dos centros urbanos, quem jávisitou as zonas rurais as mais distantes doeixo Rio – São Paulo, sabe que a transmis-são simultânea de imagem e som faz comque se tornem imediatamente acessíveis a to-dos fatos e acontecimentos. Independente-mente de religião, cor, sexo, convicção po-lítica e nível escolar, a tecnologia eliminouos obstáculos impostos pela localização fí-sica. Antes o rádio falava sobre outros paí-ses e outros regimes, e o ouvinte dependiade conhecimentos prévios para poder visua-lizar, mediante a imagem acústica, uma de-terminada concepção de um fato ou aconte-cimento. Lembro-me, como se fosse hoje,na região amazônica, de um lavrador afirmarque “os russos não podem ser subversivos,pois a Praça Vermelha – onde pousara o teco-teco de um jovem alemão – é bonita demais”.Não é sem razão que a transmissão direta deMoscou, do espetáculo do Balé Bolshoi foiproibida, em janeiro de 1976, em plena dita-dura militar. A imagem de jovens “bailari-nos e bailarinas comunistas” é incompatívelcom determinadas concepções. Aliás, já em1961, quando a televisão transmitiu, ao vivo,do Teatro Municipal de São Paulo, um baléapresentado por soviéticos, uma senhora daalta sociedade – ao ser entrevistada duranteo intervalo – mostrou seu espanto pelo beloespetáculo: “Como é possível que uma di-tadura possa cultivar arte!”. Se este fato de

tempos longínquos não convencer para mos-trar o potencial democrático da televisão, tal-vez a greve geral de 14 e 15 de março de1989 possa servir de argumento. Tanto o lo-cutor do Jornal Nacional da Globo quanto oTelejornal Brasil do SBT anunciaram o fra-casso desta greve, enquanto as imagens mos-travam avenidas e ruas vazias, fábricas e lo-jas fechadas. Isto fez um telespectador in-dignado escrever ao Jornal do Brasil:

“Ora, o país da Rede Globo e do Minis-tro da Justiça não é o país real. Nesteregistrou-se a maior paralisação da his-tória” 2.

Estes “casos” evidentemente não podemser interpretados como representativos paraa televisão brasileira. Por outro lado, con-tudo, são indicações que apontam para umatelevisão melhor, ou seja, para um tipo detelevisão que socializa o conhecimento. Poroutro lado, entretanto, já deixei entrever quea socialização do conhecimento mediante atelevisão que resultaria numa televisão me-lhor, não é apenas uma questão de conteúdo,como se este melhor se limitasse a temas ouassuntos que deveriam compor os programastelevisivos, ou mesmo se este melhor sereduzisse a um a nova programação. Aofalar da racionalização da utilização doclose, já apontei para questões relacionadasà imagem televisiva ou, melhor formulado,à codificação icônica televisiva. Mostreique o momento em que se “dá um close”não é algo gratuito ou um “por acaso”. Aocontrário, almeja-se obter um determinadoefeito. Não se pode perder de vista quea câmera guia o olhar do telespectador.Este, pois, só vê o que a câmera mostra, e

2Jornal do Brasil: 22.03.89

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como a câmera mostra. Esta constataçãoevidencia que uma televisão “melhor”, ne-cessariamente, exige também um tratamentodiferente da imagem. Quem agora pensaque uma televisão ”melhor” há de mostraroutros fatos ou outras imagens, delimita,por demais, sua preocupação. Os quinzeanos de estudo e pesquisa da programaçãonoturna da televisão fizeram me descobrir aimportância do tratamento da imagem paraque a televisão se torne melhor. E é isto quecoloco, neste instante, à disposição de umpúblico maior.

Rio de Janeiro, 1990

2 Notas Introdutórias

Foi o “New York Times” de 10 de dezem-bro de 1984 que informou ao seu público:a Rede Globo é a “quarta maior televisãocomercial do mundo, depois das três redesnorte-americanas”3.

Desta forma consagrou-se, no Brasil, olugar-comum: “a Rede Globo é uma dasmelhores do mundo”, como se a qualifica-ção maior fosse sinônimo de melhor. Alémda premissa do sucesso das novelas da TVGlobo no Brasil e no exterior, os prêmios queganhou são outras tantas evidências para sus-tentar o hoje considerado “óbvio”.

Por outro lado, não estão claros os cri-térios que orientam a audiência televisiva apreferir a TV Globo no Brasil e os que le-vam as comissões julgadoras a conceder-lheos prêmios Emmy e Príncipe de Astúrias.

É exatamente a falta de clareza nos cri-térios que faz com que o lugar-comum setorne, nas palavras de R. Barthes:

3O Globo 16.12.84

“uma arma do poder (que) repetindo,despudoramente, certos temas, contri-bui para imprimir idéias, valores, álibis,que acabam por funcionar, na cabeça dopúblico, como uma verdadeira naturezamental”4.

Não está claro, pois, por que a TV Globogoza da preferência da audiência nos diasúteis, à noite, tendo até derrotado o pro-grama noturno Sílvio Santos Diferente, co-mandado, pessoalmente, por senhor SenhorAbravanel – o próprio – que, durante anosconsecutivos – nas tardes dominicais – erao “calcanhar de Aquiles” da Globo. Nãobasta afirmar que as novelas da TV Globotêm boa aceitação no exterior; a Manchete ea Bandeirantes também venderam novelas eminisséries a Emissoras e Redes estrangei-ras, mas uma vez que a TV Globo produzmais novelas que as duas outras Redes, aocomercializá-las numa quantidade maior setorna mais conhecida.

Não é raro que o sucesso da Rede Globode Televisão seja atribuído ao convênioTime-Life, como já se pôde ler, em de-zembro de 1976, na Revista Extra – reali-dade brasileira. Este convênio até pode ser-vir como hipótese para responder à inda-gação sobre a preferência da população debaixa renda pela programação noturna da TVGlobo, nos dias úteis.

Para encontrar uma resposta a esta ques-tão, comecei a estudar, no início da décadade 70, a programação televisiva, apoiando-me em documentos colecionados de jornaise revistas desde 1969, visto que não encon-trava livros publicados sobre a televisão bra-sileira, embora, neste mesmo ano, 43,1% do

41987: 276

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investimento publicitário tenha sido aplicadoneste veículo, para, aproximadamente, 4 mi-lhões de televisores.

Não nego a importância da contribuiçãode estudiosos estrangeiros para o entendi-mento do fenômeno da Comunicação deMassa no Brasil e mais especificamente datelevisão.

Entretanto, vista a diferença de clima, cos-tumes e hábitos, além das particularidadesdo capitalismo brasileiro, o quadro teóricopara o entendimento deste fenômeno neces-sita também uma referência, ao menos, sobreo que é diferente.

Já naquela época, a novela formava a es-pinha dorsal da programação televisiva. Poresta razão, procurei entender em que consis-tia o estereótipo da telenovela brasileira, ouseja, almejei descobrir não tanto a caracterís-tica da telenovela, mas sobretudo aquilo quejustificava a abordagem da temática com oobjetivo de detectar os mecanismos de en-volvimento do telespectador e concluí: “Afunção do estereótipo está na justificação dofuncionamento da sociedade (brasileira)”5.Isto, em 1973, ou seja, estávamos em pleno“Milagre brasileiro”, a época em que o ’slo-gan’ “País desenvolvido – País limpo” ocu-pava, pelo país afora, “outdoors” e soava pe-los rádios e televisores. O bicho-do-pé foi ti-rado, pela censura federal, do pé do persona-gem Zeca Diabo da novela O Bem Amado,pois este parasita não podia viver num paíslimpo. A minha dissertação de mestrado foialém da análise do conteúdo de textos tele-visivos, tão em voga naquela época. Com-parei a codificação icônica de novelas, umaproduzida pela TV Tupi, e outra pela RedeGlobo, com o intuito de descobrir o trata-

51975: 516

mento visual dado por estas emissoras às no-velas. Queria, pois, saber se existia uma dife-rença entre as novelas destas duas emissorasno que diz respeito à imagem televisiva emrelação à defesa de valores. Naquela épocajá se falava do “padrão global” para expli-car a posição hegemônica da Rede Globo.Constatei que a média de tomadas da no-vela da Globo era de S,1 segundos, e distoconcluí: “O esforço do ser hum ano – fisi-camente cansado – para seguir o desenrolarda história, está sendo substituído pelo trata-mento visual da telenovela”6.

Naquela época – 1975 – não consegui ava-liar o real significado desta conclusão, até sa-ber o que afirma Michel Thiollent, ao tratarda questão metodológica de pesquisas em te-levisão:

“Além da determinação de tempo dispo-nível (para a recuperação da força de tra-balho), as condições materiais e sociaisdo trabalho diário provocam tipos de can-saço físico e mental e interferem na expo-sição à televisão e no contexto de recep-tividade (da mensagem televisiva)”7.

A partir daquele momento, comecei a ve-rificar, de modo mais sistemático, como tra-balhadores do setor primário, secundário eterciário, de baixa renda, assistiam, em fa-mília, à televisão. Verifiquei que estes te-lespectadores não assistem calados aos pro-gramas de TV. Emitem opiniões, e não so-mente isto: conversa-se enquanto se vê tele-visão, fazendo comentários sobre aquilo quese passa no televisor, e, não raras vezes, umacena de novela suscita discussão ou faz lem-brar a um dos espectadores algo que presen-ciou durante o dia.

61980: 5871982: 45

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Ao mesmo tempo, pude constatar que adensidade de audiência, auferida pelo Ibope,é somente um instrumento político utilizadopelas emissoras em defesa de um determi-nado gosto, ou seja, não é por gostar de umprograma que a população de baixa rendase torna audiência. Não raras vezes escu-tei “hoje não tem nada que preste”. Mesmoassim, o televisor fica ligado, e a família nafrente dele.

Procuro explicar este fenômeno.Recorro ao meu arquivo de jornais e re-

vistas, iniciado em 1969 e que contém, hoje,aproximadamente 18.000 documentos, parasustentar minha argumentação.

Retomo pesquisas realizadas ecomplemento-as.

Ao mesmo tempo, desejo contribuir paradesfazer alguns mitos sobre a televisão e te-mas adjacentes.

Considero da maior importância demorar-me em questões metodológicas, pois as con-clusões às quais cheguei, somente têm vali-dade a partir da compreensão metodológica.

3 Colocação de um problema

Já em 1983, o SBT publicou, no Jornal doBrasil, a seguinte comunicação:

“Nossa linguagem simples e franca estáchegando a 95 milhões de brasileiros.Quase 14 milhões de domicílios com TV,ou 91% do total do Brasil recebem anossa imagem”8.

Dados apresentados pela revista “Im-prensa” revelam que, em 1987, a Rede Globode Televisão cobria 4.173 municípios, o que

8Jornal do Brasil: 01.05.83

equivale a mais de 21 milhões de domicílioscom televisor, ou seja, 99,93%9.

Nesses domicílios moram aproximada-mente 80% dos assalariados que ganham en-tre 0,5 e 3 salários mínimos. Citando o DI-EESE – Departamento Intersindical de Estu-dos Sócio Econômicos – o Jornal do Brasilinforma que, em outubro de 1988, este sa-lário mínimo, incluindo o valor do décimoterceiro, é 75,4% menor do que em 194010. É pertinente ressaltar, neste contexto, quedesde 1970, à medida que crescia o númerode lares com televisor, o valor do salário mí-nimo diminuía.

Os investimentos publicitários em televi-são, neste mesmo ano de 1988, atingem, con-forme a revista “Mídia & Mercado”, quaseum bilhão e quinze milhões de dólares11.Isto significaria, em média, um pouco maisde 54 dólares por lar com televisor. Esta mé-dia matemática é, evidentemente, falsa, poisas camadas sociais que têm renda entre meioe três salários mínimos, não contribuem, me-diante o consumo de mercadorias e serviçosanunciados no seu televisor, de forma pro-porcional, em termos do valor investido napublicidade. Em outras palavras, a grandemaioria da população brasileira assiste à te-levisão – aparentemente – quase de graça.

Mesmo sendo janeiro um dos meses maisfracos em termos de venda, e, por esta razão,de publicidade, e considerando ainda que aeconomia corria o perigo de cair no colapsoda hiperinflação, o faturamento bruto em pu-blicidade, no mês de janeiro de 1989, ultra-passou a quantia de 46 milhões de dólares12.

9nž 20: 921027.11.8811nž 01: 8912Meio & Mensagem: 26.07.89

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Se a absoluta maioria da audiência televi-siva não justifica o investimento publicitáriopor não garantir seu retorno, devido ao baixograu de renda e de consumo, indaga-se querazões acirram a disputa pela audiência.

Questiona-se, portanto, que tipo de tele-visão comercial é este; pois, sendo as cate-gorias de renda alta o público predileto parao escoamento das mercadorias industrializa-das, o tão falado nível dos programas televi-sivos poderia ultrapassar os limites que ca-racterizam o gasto médio.

Na sua contribuição no estudo “Um paísno ar”, Inimá F. Simões formula esta inda-gação de outra forma: “que interesse repre-senta o cidadão que mora no interior das Ala-goas?”13.

A autora considera este telespectador nomínimo um penetra sem grande importânciapara o mercado publicitário que sustenta asRedes de Televisão.

Há entretanto outras opiniões. O publici-tário Hugo Weiss relata, em 1975, quandohavia apenas 10 milhões de televisores:

”No interior do Ceará a população usavasandálias feitas com pedaços de pneus decaminhão, que protegiam bem o pé e du-ravam uma eternidade; mas aí o ChicoAnísio, que é cearense, passou a fazerpropaganda das sandálias Havaianas, quenão duram nada, nem protegem os pés edeixam um cheiro discutível, mas as san-dálias Havaianas davam status, e as ou-tras, melhores, acabaram”14.

Em 1982, o presidente da CBBA-Rio, Jo-mar Pereira da Silva, referindo-se aos mora-dores das favelas cariocas que representam32% da população do município, observa:

131986: 91141976: 219

“Essa massa fantástica vive, come, bebe,consome. Estimulados pela aspiração na-tural (sic) de ascensão social e facilitadospelos sistemas de crédito compra (sic)(...) Sonhos ou pesadelos à parte, o mer-cado dos pobres já é encarado com seri-edade por diversas empresas brasileiras emultinacionais, que dele estão extraindoparte dos seus lucros”15.

Uma pesquisa realizada em 1984 sobre oconsumidor de baixa renda, revelou:

“que aproximadamente 80% da popula-ção economicamente ativa (calculada em43.756 milhões de pessoas) se enquadracomo consumidor de baixa renda (até trêssalários mínimos). (...) A pesquisa le-vantou também o valor de renda mensaltotal disponível todo final de mês de al-guns segmentos desse mercado de baixarenda: consumidores urbanos: Cr$ 1,28trilhão (aproximadamente U$ 1 bilhão)”16.

Ainda é importante ressalvar que as pe-ças publicitárias não obtêm o impacto queo senso comum lhes atribui. Isto com-prova a agência de publicidade SSC e LintasWorldwide que - para realizar uma pesquisacujos resultados foram publicados, em parte,pelo jornal do Brasil sob o título “Telespec-tador só percebe um terço dos anúncios daTV”:

“alugou uma casa em São Paulo e man-dou instalar nela 25 telefones: 24 eramusados pelos entrevistadores contratadose um servia para que o entrevistado con-firmasse estar participando mesmo de

15O Globo: 03.10.8216Revista Indústria e Produtividade, 1984: 18

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uma pesquisa. Era a operação ’Olho naTV’. Durante três semanas foram cons-tatadas 10 mil 639 residências em SãoPaulo, ou seja, 1 em cada 60 casas comtelefone da cidade. Foram realizadas 3mil 785 entrevistas, porque 2 mil 541pessoas constatadas recusaram-se a co-laborar e 4 mil 313 ligações foram inú-teis: as pessoas não estavam com o te-levisor sintonizado em alguma das emis-soras pesquisadas ou não havia na casatelespectadores com mais de 18 anos deidade. Foram pesquisados 3 mil 596 in-tervalos comerciais da TVS (canal 4), TVGlobo (canal 5), TV Record (canal 7) eTV Bandeirantes (canal 13) entre 24 demaio e 11 de junho de 1982. (...) Emmédia, apenas 30% dos telespectadoresentrevistados ficaram atentos à TV, en-tre os que permaneceram na sala duranteos intervalos comerciais: 55% dividirama atenção entre a TV e outras atividadese 14% dedicaram-se apenas a outras ati-vidades, enquanto 1% teve uma situaçãoindefinida”17.

Entretanto, o mercado consumidor de umpaís como o Brasil possui ainda caracterís-ticas mercadológicas periféricas, que pode-riam ser classificadas como merchandisingcom efeito indireto, que provavelmente fun-ciona de modo mais eficiente que a própriamensagem publicitária.

Um gênero deste tipo de merchandisingpode ser observado ao se sair das capitaise dos grandes centros urbanos, para as ci-dades interioranas, onde sobretudo a teleno-vela faz florescer uma indústria de confec-ções que imita a moda em uso no eixo Rio-

17Jornal do Brasil: 01.07.83

São Paulo. Utilizando como chamariz foto-grafias, sobretudo das principais estrelas denovela, encontradas em revistas como “Ca-pricho” e “Amiga – TV Tudo”, as bouti-ques e armarinhos destas cidades abastecemo mercado de baixa renda. Embora o corte,geralmente mal feito, evidencie a imitação,e a matéria-prima empregada seja de quali-dade inferior, o consumo é considerável e ga-rante, desta forma, a produção da indústriatêxtil.

Um outro tipo de “merchandising comefeito indireto” com a mesma característica,embora de um outro gênero, consiste na de-sapropriação indevida de eletrodomésticos,tais como liquidificadores e máquinas foto-gráficas, incluindo aparelhos de som e tele-visores a cores, dos quais há um mercado emfavelas e cidades-dormitórios que não apa-rece, mas funciona com mecanismos pró-prios.

Sendo inacessíveis para uma grande par-cela da população trabalhadora de baixarenda, estes eletrodomésticos podem ser ad-quiridos por preços irrisórios por intermé-dio de bem-organizados grupos que os obtêmmediante a “desapropriação indevida” efetu-ada nos domicílios da classe média. Chega-se, às vezes, a uma sofisticação tal que o tipoe a marca de um aparelho podem ser enco-mendados. Como efeito deste mercado para-lelo e atuante, os antigos donos destes eletro-domésticos, não querendo abrir mão do con-forto por estes proporcionado, são obrigadosa comprá-los, outra vez, no mercado legal.

É evidente que a indústria de eletrodomés-ticos só ganha com este mecanismo de con-sumo.

Sob o título “O mercado das favelas”, ojornal O Globo noticia:

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“Pesquisa feita nas favelas cariocas mos-trou que em cinco por cento dos barracoshá dois aparelhos de TV – um a cores,outro em preto e branco. Outra consta-tação: 20 por cento dos favelados usamcremes para a pele. Os pesquisadores fi-caram boquiabertos (sic) com as marcasde produtos de limpeza e certos tipos dealimentos sofisticados que são consumi-dos nas favelas do Rio”18.

Estes dois tipos de merchandising comefeito indireto garantem a produção e, porvia da lógica, o lucro das empresas do ramo.Contribuem, de forma direta, para a acumu-lação do capital, e satisfazem, ao mesmotempo, o que o publicitário acima citado de-nominou de “aspiração natural” da popula-ção de baixa renda. Por ser natural a aspira-ção de ascensão social simbolizada por umtipo de consumo, esta é inerente ao ser hu-mano. Para completar este raciocínio, valecitar Edmund Leach:

“Todos os que vivem numa mesma co-munidade, não só trabalham em con-junto, como também comunicam entresi e partilham conceitos (e preconceitos)comuns. Os vários tipos de atividadeque podem ser distinguidos como aspec-tos diversos do comportamento humano(...) estão todos interligados”19.

Portanto, se grande parte dos brasileirosassiste ao desfile dos objetos que compõemo “Brasil desenvolvido”, por que não podemaqueles de baixa renda aspirar a obtê-los, nãoimporta através de que meios, visto que esta

18O Globo 14.08.83191985: 63

aspiração é considerada “natural” e não cul-tural?

Nesta perspectiva “o cidadão que mora nointerior das Alagoas” – na formulação deInimá F. Simões – faz parte integrante da te-levisão comercial brasileira. Torna-se tam-bém compreensível a afirmação de José Ulis-ses Alvares Acre – de sua iniciativa é o Jor-nal Nacional da Rede Globo:

“A televisão, nestes 25 anos, por sua sim-ples existência, prestou um grande ser-viço à economia brasileira: integrar con-sumidores potenciais ou não, numa eco-nomia de mercado”20.

Esta integração econômica é impensávelsem uma infra-estrutura de telecomunica-ções adequada, já prevista pelo Código Naci-onal de Telecomunicações de 1962. Sua im-plantação cabe ao Conselho Nacional de Te-lecomunicações (CONTEL) que criou paraeste fim, em 1965, a Embratel, empresa res-ponsável pelo Sistema Nacional de Televisãoformado por troncos e redes.

Por outro lado, sendo uma concessão, aexploração comercial de canais de Televisão– concomitantemente das redes – há de seobedecer as normas estabelecidas pelo Es-tado, já elaboradas pelo Código de Teleco-municações de 1962. Em outras palavras,antes da econômica, a integração politica,mediante a televisão, já fora pensada no iní-cio da década de 60. Uma vez pronta a infra-estrutura material, coube ao General Médici,em 1970, criar o Plano de Integração Nacio-nal (P.I.N.). Assim, “o cidadão que mora nointerior das Alagoas” – para usar mais umavez a expressão de Inimá F. Simões – não

201976: 66

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10 João Luis van Tilburg

pode ser considerado um penetra. Documen-tos jornalísticos da época em que foi implan-tado o P.I.N., não deixam dúvida. Assim, porexemplo, observa Valério Andrade, colunistade televisão do Jornal do Brasil:

“Desde que a TV deslocou- se doseu eixo original (Rio – São Paulo),propagando-se por diversos estados, éevidente que as emissoras-chave têm dever a integração nacional como meta enão como mero acidente via Embratel.A fórmula que serve de sustentação paraAlô Brasil, Aquele Abraço (Canal 4)mostra-se funcional em relação ao obje-tivo visado acima”21.

Dentro da perspectiva de integração naci-onal, o sistema comercial de televisão po-derá ter ainda um outro desdobramento, so-bretudo ao constatar que o Estado durantemuitos anos foi um dos seus maiores clien-tes.

A relação dos maiores anunciantes nasemissoras de televisão no Rio e em SãoPaulo, segundo estudo feito pela LEDA, re-ferente ao mês de agosto de 1976, mostraque o Governo Federal ocupa nas duas pra-ças o primeiro lugar, respectivamente 47% e36,5% do total dos valores investidos em pu-blicidade e propaganda22.

Este desdobramento encontra sua explica-ção na necessidade do controle ideológicoque somente pode ser exercido, em parte,pelas classes dominantes mediante o inves-timento em publicidade para garantirem, aomesmo tempo, o escoamento da sua produ-ção, possibilitando desta forma a produção

21Jornal do Brasil: 08.05.7022O Globo: 10.10.76

simbólica televisiva. Pois, visto que o po-der aquisitivo da grande maioria da popula-ção ativa que compõe a audiência televisiva,não é suficiente para garantir o retorno do ca-pital investido na produção e divulgação daspeças publicitárias, o Estado se vê obrigado aassumir uma grande parcela dos custos paramanter o sistema comercial da televisão bra-sileira. Talvez seja permitido afirmar que asRedes de Televisão, como tantos outros se-tores denominados produtivos, são subsidia-das!

Ora, todas estas considerações e argumen-tos explicam somente as razões que levaramo Estado e os empresários a manter o tipo desistema de televisão comercial que conhece-mos hoje. Poderia ser um outro tipo. Con-tudo, estas considerações e argumentos nãorespondem às indagações anteriormente co-locadas: Por que o cidadão brasileiro assisteà televisão, e por que este cidadão dá prefe-rência à programação da Rede Globo de Te-levisão?

Por esta razão impõe-se a verificação dosmotivos que levam a população brasileira,morando nos centros urbanos , a se tornartelespectadora assídua, todas as noites. An-tes mesmo de procurar qualquer outra ex-plicação do fenômeno televisivo brasileiro,parece-me, que, em termos metodológicos,o caminho mais indicado é examinar o que osenso comum afirma em relação a esta inda-gação.

4 Mitos televisivos

É do conhecimento público que a RedeGlobo de Televisão, à noite, detém, nos gran-des centros urbanos, nos quais o telespecta-dor tem a opção de escolha entre seis progra-

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A Televisão e o Mundo do Trabalho 11

mações televisivas, uma audiência superior,na maioria das vezes, à soma das demais Re-des de Televisão – considerando somente ostelevisores ligados

Mesmo não tendo mais, em 1989, uma au-diência hegemônica como na década de 70,é pertinente observar que a audiência de Si-nal Verde – Fórmula 1, o programa da RedeGlobo colocado no 10 lugar, contava com1.405.000 telespectadores contra 1.339.000telespectadores para Porta da Esperança, oprograma mais visto do SBT.

Esta hegemonia quantitativa raramente so-fre abalos, a não ser por ocasião de mo-dificações no ritmo da vida cotidiana, queresulta em uma programação televisiva no-turna atípica, ou – o que acontece raramente– quando um programa global não apresentaatração seja por seu texto, seja pela falta dequalidade profissional dos seus atores, comoocorreu com o seriado Tarcísio & Glória.Sob o título “índices de Sucesso”, o Jornaldo Brasil comprova o relativo fracasso desteseriado:

”Nos últimos meses, de olho nos indi-cativos, a Globo tem multiplicado afli-tas tentativas para neutralizar o adversá-rio. (...) No dia 9 de junho, finalmente,enquanto Tarcísio Meira e Glória Mene-zes suavam para escalar até os 26 pontos,em São Paulo, A praça é nossa, ela pró-pria incrédula, espetava sua bandeira nos44. Na última quinta feira, as esperançasglobais dependiam de Boi Santo, caso es-pecial de Dias Gomes pronto há meses etirado às pressas da prateleira”23.

Parece-me que, para obter uma resposta àindagação que explica não somente a densi-

23Jornal do Brasil: 09.07.88

dade da audiência televisiva noturna formadasobretudo pela população de baixa renda,mas também a preferência dada por esta po-pulação à Rede Globo de Televisão nos gran-des centros urbanos, metodologicamente seimpõe partir de uma programação noturnaatípica. Isto porque é necessário saber a ra-zão que leva alguém a se tornar telespecta-dor.

Em virtude da característica técnica terimagem para ser vista, o televisor absorvea audiência de tal maneira, que ao ver umprograma televisivo, outras atividades, sejamlúdicas ou não, na grande maioria dos ca-sos, são incompatíveis com esta. A dona-de-casa, o motorista de ônibus, uma datilógrafa,podem executar suas atividades profissionaisescutando rádio. O mesmo vale para ativida-des lúdicas. É evidente que a leitura de umjornal ou revista é incompatível com qual-quer outra atividade; entretanto, a hora daleitura é determinada pela vontade do leitor.O telespectador, ao contrário, não escolhe omomento para assistir a um programa televi-sivo da sua preferência; a hora da transmis-são deste programa o obriga a interromperoutra atividade.

Nesta perspectiva, a atividade ver televi-são, além de ser totalmente absorvente, con-tém outra característica: hora marcada. Épor esta razão que uma programação tele-visiva atípica poderá evidenciar o motivoque leva alguém a se tornar telespectadorde um programa e não de uma programa-ção. Pois, por ser atípica, a composição destaprogramação interrompe o ciclo conhecidode programas que se sucedem um a outro,o que possibilita ao telespectador procuraralgo que lhe agrade mais. Em outras pa-lavras, uma programação atípica possibilita,

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ao menos em tese, verificar se a audiência vêtelevisão ou assiste a programas.

Ao assistir a um programa – observaPatrick Besenval – o telespectador age damesma forma que ao escolher um livro, umfilme ou um jornal. Contentando-se em es-colher uma programação, o espectador nãose importa, pelo menos em tese, com aquiloque vai ver; permite que sua preferência naatividade ver televisão seja determinada poraquilo que a emissora acha por bem trans-mitir. Mudando de canal, é ele que define asua preferência, ou seja, começa a assistir àtelevisão.

No que diz respeito à programação televi-siva noturna, a semana de carnaval é atípicaem virtude das transmissões ao vivo dos des-files das Escolas de Samba, na Marquês deSapucaí, e dos bailes nos grandes clubes. Oformato do programa transmissão ao vivo do1˚ Grupo, por exemplo, é determinado pelotempo que as Escolas de Samba necessitampara chegar na Praça da Apoteose. Emboraexista o critério cronometragem que conta naobtenção de pontos para indicar a Escola vi-toriosa, este, entretanto, é muito frágil, poisa quebra de um carro alegórico, ou mesmoum tiroteio, são razões para uma Escola adiarsua entrada no Sambódromo. Em outras pa-lavras, a televisão perde sua independênciana determinação do elemento tempo para fa-zer sua programação e este elemento é deextrema importância para uma emissora ga-rantir sua audiência. Assim, quando há umatransmissão exclusiva, ao vivo, de um jogode Futebol, a emissora de TV tem poder debarganha suficiente para determinar a horaem que o espetáculo se inicia.

”As emissoras de televisão (...) compramos direitos de transmissão depois de as-

segurar a venda de um pacote de patroci-nadores. Pagam alto, e, por isso, deter-minam o horário dos jogos – no Brasil,em dias de semana, tem de ser depois dasnovelas”24.

É evidente que no exercício do poder debarganha uma Rede de Televisão deve podercontar com a fragilidade das estruturas!

”O horário dos jogos de futebol sul-americano nunca foram, nem podem serlevados (sic) a sério. Sobretudo, quandoos interesses comerciais se sobrepõem àvontade dos organizadores, programas eregulamentos podem ser mudados a qual-quer momento.(...) O jogo entre Brasil eArgentina, programado inicialmente paraàs 20 horas – 21 horas de Brasília – pas-sou para 22 horas, e Bolívia x Colômbiaprevisto para 22 horas, passou a ser pre-liminar, iniciando-se às 20 horas. A in-versão foi anunciada na manhã de ontempela Federação Boliviana, sem nenhumaexplicação. Soube-se, porém, que aten-dia às exigências da TV Globo”25.

O horário do espetáculo carnavalesco é es-tabelecido por motivos de ordem turística ede tradição. A programação televisiva no-turna atípica, por isso, cria para as Redes deTelevisão, menos sintonizadas, uma oportu-nidade de mostrar ao público que, eventual-mente, se acostumou a ver a programação deuma Rede em vez de assistir a programas dasvárias Redes, sua existência. É este o mo-tivo principal que levou, em 1987, a RedeManchete a elaborar uma programação pre-paratória de Carnaval, além do investimento

24Jornal do Brasil: 30.06.8725Jornal do Brasil: 30.04.87

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de grandes som as na cobertura deste eventoque possibilita uma programação atípica. Apolítica de uma programação atípica, pois,não se restringe somente aos dias em que umevento ocorre:

“A TV Manchete arma seu equipamentoe prepara seus profissionais há seis me-ses a sua cobertura mais importante (sic).Estreou seu carnaval em dezembro como programa Esquentando os Tamborins,com os comentários de Haroldo Costa.Depois, veio o Festival de Músicas deCarnaval até começar, na sexta-feira pas-sada, a transmissão ao vivo, e com exclu-sividade, do primeiro dos 29 bailes destacidade”26.

Também é evidente que, na criação deuma programação atípica, interesses finan-ceiros envolvidos abrangem grandes somas:

Chega a um pouco mais de Cz$ 7 mi-lhões (aprox. 600.000 BTN) o total que serápago pelas televisões pelos direitos de trans-missão do desfile das escolas de samba nopróximo carnaval. O contrato, assinado naquinta-feira com a Liga Independente dasEscolas de Samba do Rio de Janeiro, tem atéagora como signatários apenas as TVs Globoe Manchete”27.

A luta pela audiência por ocasião do Car-naval – também chamada a guerra dos logo-tipos – não deixa a menor dúvida de que aRede Manchete deseja marcar presença nostelevisores, ou seja, seu objetivo principal élevar o público telespectador a assistir pro-gramas e não a ver uma programação. Estaluta pela audiência é, às vezes, marcada porlances curiosos:

26Jornal do Brasil: 22.02.8727Jornal do Brasil: 14.12.86

”Como todos os anos, a Manchete semanteve imbatível na guerra dos logoti-pos gigantescos, iluminados este ano pornéon no início dos desfiles. No domingo,a Manchete usou um ado, nome técnicodo recurso eletrônico que cobriu o logo-tipo global com um selo de seu Carnavalnas Estrelas. A Globo chegou a mudar oângulo de sua cobertura no desfile da Ca-prichosos de Pilares (a quarta a desfilarno domingo) mas teve de conviver com o’M’ em néon vermelho da Manchete su-jando sua imagem até a manhã de terça-feira” 28.

4.1 IBOPE - medição deopinião?

O IBOPE (Instituto Brasileiro de OpiniãoPública) atesta que esta estratégia da Man-chete, pelo menos por ocasião de uma pro-gramação atípica, leva a resultados até ines-perados. Os resultados da pesquisa de audi-ência realizada pelo IBOPE, por ocasião doCarnaval 87, revelam os seguintes dados:

”Na segunda-feira, o telespectador pa-rece mais decidido a pegar a onda daManchete. Às l9h30m., a Globo obtém77% da audiência, contra 7% da Man-chete. Este índice global cai para 64% às20hs. contra 14% da Manchete. No ho-rário de Roda de Fogo, recupera a audi-ência com 74% contra 9% da Manchete.Mas, a partir das 21hs. seus índices co-meçam a despencar para 45% contra 39%às 21h30m., e chegam a 33% às 22h.contra 53% da Manchete, neste momentolíder da audiência carioca com 21% de

28Jornal do Brasil: 04.03.87

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vantagem em relação à Globo até 1h30m.de terça-feira. Na alta madrugada, a van-tagem da Manchete cai”29.

Convém, contudo, observar que o IBOPEnão se responsabiliza pela qualidade do es-petáculo, conforme José Perigault, então di-retor executivo do IBOPE, afirma em 1973:

”Na verdade, o IBOPE só constata a pre-ferência popular, da qual é termômetro.Mas o que escraviza emissoras e agên-cias, em última análise, é mesmo o pú-blico. É em função do gosto popular quesão feitas as programações”30.

Com esta afirmação está criada a contro-vérsia evidenciada pelo título do artigo es-crito, em 1971, por Carlos A. Dunshee deAbranches, “A Ditadura dos IBOPES”. Eleafirma:

”Até hoje a televisão brasileira tem vi-vido em função da propaganda, de formaque o patrocinador representa a força de-cisiva no planejamento, elaboração e exe-cução dos programas. Como corolário,a qualidade e o êxito dos programas sãomedidos apenas por critérios de audiên-cia. Em linguagem mais simples: bome lucrativo é exclusivamente o que dáIBOPE. Como o patrocinador é um em-presário, que, na maioria dos casos, querlegitimamente vender os seus produtosou serviços, a ele interessa anunciar nosprogramas que atraem maior número detelespectadores”31.

29Jornal do Brasil: 05.03.8730Jornal do Brasil: 21.03.7331Jornal do Brasil: 08.09.71

Tanto a opinião de José Perigault quanto acrítica que lhe é feita por Carlos A. Dunsheede Abranches não explicam, entretanto, porque os cidadãos brasileiros se tornaram te-lespectadores, como também nem um nemoutro pode afirmar em sã consciência que ocidadão brasileiro gosta do que assiste ou vêno seu televisor. Presume-se!

Pois mesmo admitindo que um dado quan-titativo em determinadas circunstâncias podeobter um significado qualitativo, em nenhummomento a pesquisa do IBOPE solicita queo telespectador opine sobre o programa queestá sendo transmitido no momento da for-mulação da pergunta: qual o canal a que estáassistindo? Em outras palavras, a respostadada é algo exterior à opinião do telespecta-dor.

Por conseguinte, a preferência dada a umaprogramação atípica não evidencia a razãoque leva uma pessoa a interromper uma ati-vidade para se tornar expectador e isto por-que o resultado detectado pelo IBOPE é re-sultante da quantificação de sentimentos, oque, no máximo, pode demonstrar o melhorentre os melhores, ou o menos chato entreos piores. Em outras palavras, a quantifica-ção de sentimentos – não de opiniões – nãopermite uma avaliação do programa propria-mente dito, e, por via da lógica, explicitar arazão que levou um telespectador a mudar decanal.

4.2 Um rito em família?Também pesquisas realizadas sobre a inter-pretação de programas televisivos não evi-denciam as razões que levam o cidadão a setornar telespectador. Parte-se do pressupostode que o programa ou a programação que go-zam da preferência satisfazem necessidades,

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A Televisão e o Mundo do Trabalho 15

seja de informação, seja de entretenimento.Carlos Eduardo Lins da Silva afirma:

”De um modo geral, a televisão é vistacomo uma coisa boa pelas comunidades.E o principal motivo para essa atitudesimpática é o fato da TV ser consideradaum objeto útil e uma fonte de diversão eentretenimento importante”32.

Ondina Fachel Leal registra que a altaclasse média intelectualizada liga o tele-visor “por causa da empregada e a genteacaba acompanhando também”, ou porque“é bom prestar atenção no que está aconte-cendo na TV brasileira” [1986: 43]. Entre-tanto, referindo-se ao local do televisor nacasa de uma família de baixa renda, a autoraobserva: ”O fato de se ter acidentalmenteacompanhado a mudança de local do apare-lho de televisão evidenciou que todos aque-les objetos e o lugar dos objetos não são gra-tuitos” 33.

Num debate sobre “Televisão e Popu-lações desfavorecidas”, Mundicarmo MariaFerreti relatou que os moradores da VilaAnjo da Guarda, um dos bairros mais pobresde São Luiz - MA, antes de qualquer outradívida, pagam a conta da luz para não perdera telenovela.

É evidente que este tipo de comporta-mento – utilizando a expressão de OndinaFachel Leal – não é gratuíto, ou seja, verou assistir a televisão constitui-se quase umaprimeira necessidade, algo que vai além dosimples gostar. Ondina Fachel Leal afirmaainda:

”A hora da novela é um momento de reu-nião das pessoas que se repete ritualisti-

321985: 82331986: 35

camente todos os dias. (...) A noção deritual é aqui a que melhor define a práticaregular da reunião de pessoas, onde cadaum ocupa um lugar determinado (...)”34.

Num estudo realizado por Yvonne Al-ves que procura “(...) descrever, etnogra-ficamente, os modos de cada família assis-tir à novela e se comportar diante dela”35,evidencia-se a ocupação de lugares na salaconforme critérios hierárquicos, quando umafamília assiste à televisão:

”Descreverei esse ritual a partir das des-crições feitas pelos dois grupos de alunosde suas famílias. Embora haja algumasdiferenças entre os dois grupos, princi-palmente no tipo de casa e disposição doaparelho de TV, as semelhanças são im-pressionantes. A novela é vista na grandemaioria das famílias e principalmente pormulheres. Alguns homens a vêem e em90% dos casos têm um lugar especial-mente reservado, uma poltrona ou a partemais confortável do sofá”36.

Mas mesmo denominando de rito a reu-nião de pessoas numa hora prefixada para verou assistir à televisão, os estudos citados, nãorespondem à indagação por que as pessoas li-gam seu televisor, embora não haja como ne-gar que a reunião em família numa hora pre-fixada possa assumir características de rito.

4.3 Falta de opção ou vício?Eventualmente é legítimo afirmar que a faltade opção para se entreter obriga o trabalha-dor de baixa renda a se tornar telespectador.

341986: 48351981: 03361981:11

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Parece-me, entretanto, uma resposta simplesdemais para poder explicar, por exemplo, atotal ausência de novelas aos domingos, en-quanto em todos os dias úteis pelo menosnove novelas estão no ar, no Rio de Janeiro.Pois quem assiste à novela por falta de opçãonão deixa de preferi-la nos domingos tam-bém, tal como acontece nos feriados civis ereligiosos. E, para quem não tem opção deentreter-se, à noite, nos dias úteis, quem agarante nos domingos à noite?

A importância da telenovela na estruturada programação televisiva como um todo,para garantir audiência.

Além da falta de opção, também o víciopela programação da Rede Globo de Tele-visão pode ser mencionado para explicar agrande densidade de audiência. Entretanto aexplicação de que o padrão global vicia ostelespectadores não torna inteligível o slo-gan da Rede Globo de Televisão, há algunsanos, ao divulgar sua programação por oca-sião do Carnaval: “A mesma programação eo melhor do Carnaval”. Quem não gosta deCarnaval sai prejudicado, e os foliões tam-bém, porque perderam suas novelas que exa-tamente naqueles dias revelam intrigas cos-turadas com muita audácia e suspense no de-correr de capítulos anteriores.

É pertinente retomar, ainda, a questão dosíndices de audiência apontados pelo IBOPE,pois estes são publicados em jornais e re-vistas ao alcance do grande público, alémdo fato de que jornais e revistas em colunaspróprias, comentam favorável ou desfavora-velmente programas televisivos, ou seja, emcirculação estão apreciações quantitativas equalitativas. Esta prática não deixa de seruma espécie de merchandising indireto.

Não raras vezes este tipo de merchandi-sing se caracteriza por peculiaridades, como

demonstra uma notícia da “Coluna do Zó-zimo” no Jornal do Brasil:

”Somavam mais de 200 pessoas os convi-dados que compareceram à recepção ofe-recida anteontem em Brasília pelo Chan-celer e Sra Azeredo Da Silveira em ho-menagem ao casal Henry Kissinger. For-mavam os vários grupos de conversa di-plomatas, altos funcionários, militares eparlamentares, cujas mulheres acabarampreferindo Francisco Cuoco ao homena-geado, pois de repente abandonaram afesta, reunindo-se numa saleta vizinha ao’living’, para acompanhar mais um capí-tulo da novela O Astro”37.

Esta prática de merchandising indiretopode levar alguém a verificar, ele mesmo,no seu televisor, a validade expressa no re-sultado numérico ou na crítica especializada,tal como acontece com as cotações avalia-tivas que acompanham, nos jornais diários,a programação cinematográfica. Neste caso,alguém se torna telespectador por uma razãoexplícita: deseja conferir uma opinião emi-tida. Entretanto, antes deste novo telespec-tador, milhares ou milhões de outros já exis-tiam sem termos explicitado a razão para talfenômeno.

4.4 Programação merecida?É legítimo, decerto, também apelar para oditado cada país tem a televisão que me-rece, sugerindo-se que a programação televi-siva vem ao encontro do nível cultural, sócio,econômico e político de uma nação.

De certo, este ditado não é aceito por to-dos. Assim, Augusto Costa, dirigente da

37Jornal do Brasil: 29.09.78

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ANURT (Associação Nacional de Usuáriosde Rádio e Televisão) discorda:

”Acho que o brasileiro não tem a te-levisão que merece. Temos passagensheróicas em nossa história; tivemos umOsvaldo Cruz que ninguém conhece.Agora, qualquer criança brasileira sabetudo sobre a conquista do Oeste Ame-ricano, tudo sobre os ’Kid’s’ assassinosdos Estados Unidos e nada sobre os ’Jo-sés”’ 38.

No caso da validade do ditado ’Cada paistem a televisão que merece’, deve-se encon-trar uma explicação para algumas constata-ções como, por exemplo, o aparecimento deuma audiência estrondosa por ocasião da no-vela Roque Santeiro, que alterou datas delançamento de filmes e horários de teatro, eque provocou a escassez de táxis às 21.15hs.– um fenômeno, aliás, não novo na históriada televisão brasileira. A novela Selva de Pe-dra, na sua primeira edição, já acusara umaaudiência da mesma natureza, o que levou aRede Globo de Televisão a optar pela sua re-produção, em roupas novas. Ocorreu, entre-tanto, a debandada da audiência para outrasestações televisivas porque o público já nãose conforma mais com um antigo esquemade narrativa maquiavélica. Reconhecendo orelativo fracasso da repetição, a Rede Globofoi obrigada a investir audaciosamente emuma novela-denúncia, Roda de Fogo, na qualse trata de algo pouco revelado pelos telejor-nais: a época de guerrilha urbana, remessailegal de dólares para o exterior, organiza-ção de lobbys para forçar uma candidaturaà presidência da República e a presença deum ex-presidente que já fora chefe do SNI,

38Jornal do Brasil: 03.07.82

de forma explícita denominado de direita. Aeste fato deve-se acrescentar o investimentodo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) nojornalismo, competindo com o Jornal Nacio-nal da Rede Globo, e, em grau menor, com oJornal da Manchete e o Jornal Bandeirantes.Dois meses após ter implantado uma novamodalidade de telejornalismo – o jornal comanchorman – o SBT alcançou 10 pontos deIBOPE no horário da novela das Sete da TVGlobo39.

Se esta mudança de qualidade expressapor uma abordagem política da história re-cente e pela valorização do jornalismo fazcom que cada país tenha a televisão que me-rece, ou seja, se a TV reflete mudanças intro-duzidas na vida política da nação, indaga-sepor que não há sinais de modificação em pro-gramas tais como Programa Sílvio Santos,Viva a noite, e no mais recente Domingãodo Faustão da Rede Globo, e também na exi-bição de séries enlatadas, filmes e desenhosanimados? No que diz respeito aos progra-mas nacionais mencionados, vale observarque sua estrutura não necessita de modifica-ções para abordar temas com conteúdo maispolítico, pois a novela Roda de Fogo tam-bém continuou a ter os ingredientes caracte-rísticos da estrutura de uma novela: amorese paixões, suspense e o inevitável final feliz.Mesmo em pleno 1986 este esquema funci-ona:

”Membros da OAB elogiaram a atitudede Bruna Lombardi em Roda de Fogo(como a juíza Lúcia) querendo entregarà Justiça os documentos que comprome-tem (seu namorado) Renato Villar. Al-guns fãs, porém, sugerem que ela deixe

39Jornal do Brasil: 07.12.88

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18 João Luis van Tilburg

os documentos de lado e viva seu grandeamor” 40.

Como se explica, em outras palavras, estadualidade da programação televisiva, a nãoser que o merecimento do gênero da televi-são brasileira se baseia em mesclar o gostoduvidoso com um crescente interesse pelaRes publica (a coisa pública), nas classes po-pulares após a época denominada de “aber-tura política”? Neste sentido é pertinente ob-servar que, durante as greves dos metalúrgi-cos, no ABC, no final da década de 70, os ín-dices de audiência das novelas não indicaramnenhum declínio, embora milhares de mu-lheres de operários participassem ativamentedo fundo de greve e de distribuição de gêne-ros alimentícios de primeira necessidade.

Se o ditado cada país tem a televisão quemerece for verdadeiro para explicar a densi-dade de audiência, confrontamo-nos com ou-tro fenômeno que contradiz a existência deuma proporcionalidade entre procura de in-formação e nível de politização. Lucian Pyeafirma:

”Quanto mais as pessoas se sentem ca-pazes de participar das atividades políti-cas, tanto maior necessidade sentem deeducação e informações. Quanto mais in-formações têm, tanto mais se interessampelos acontecimentos políticos. Quantomais educação têm, tanto mais informa-ções buscam”41.

Constata-se, contudo, que não se modifi-cou a procura de jornais de sindicatos e deassociações de bairros – embora sendo dis-tribuídos gratuitamente. Percebe-se também

40O Globo 09.11.86411967:27

que a TV Educativa – apesar das interferên-cias da censura tem revelado maior interessepela Res publica que as outras Redes – nãoconsegue atrair maiores audiências.

É importante deixar registrado o nível dodebate político na TVE, durante a elabora-ção da nova Constituição, e a interferênciado Governo:

”A ofensiva política do governo Sarney– que começou na segunda-feira passadacom a fixação, pelo presidente, do prazode cinco anos para seu mandato e pas-sou pela demissão, sexta-feira, do minis-tro Dante de Oliveira– chegou à TVE. Opresidente da Funtevê (órgão ao qual atelevisão estatal, com sede no Rio, es tásubordinada) , Roberto Parreira, confir-mou que o afastamento do diretor-geralda emissora, João Rui Medeiros, na úl-tima quinta-feira, se deve ’à nova polí-tica de maior espaço para o governo’ naprogramação. (...) Parreira nega qual-quer tipo de censura prévia a programa-ções, mas em Brasília assessores diretosde Bornhausen – que não se quiseramidentificar – informaram que o presidenteSarney não permitirá críticas ao seu go-verno na rede estatal”42.

Neste quadro delineado, parece-me que osargumentos em favor do ditado cada país tema televisão que merece não resistem a sim-ples observações empíricas que expliquem adensidade da audiência televisiva; ou, em ou-tras palavras, não evidenciam as razões quelevam um cidadão a se tornar um telespecta-dor assíduo.

Visto que nenhum fenômeno social se ex-plica por si mesmo, convêm procurar não no

42Jornal do Brasil: 25.05.87

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A Televisão e o Mundo do Trabalho 19

próprio veículo, mas fora dele, indicaçõesque respondam à nossa indagação.

Ao verificar uma constante na densidadede audiência televisiva, à noite, após um diade trabalho exaustivo, no que diz respeito àquantidade de televisores sintonizados, nãono mesmo canal, mas sim na mesma pro-gramação, é legítimo procurar uma correla-ção entre este fenômeno e a organização dotempo, visto que a atividade ver televisão éincompatível com outras.

Yvonne Maggie Alvez observa que “emgrande número de casas a novela funcionacomo um relógio. (...) O jantar é servido nahora da novela, ou janta-se às pressas paranão se perdê-la”43. Ondina Fachel Leal con-firma esta observação:

”Nas casas da vila, é ao entardecer que seliga o televisor e a partir deste momento otelevisor passa a funcionar também comoum relógio na casa. Na novela das seisestá na hora de banho das crianças, na dassete se cozinha o jantar, no Jornal Nacio-nal é hora da janta, e depois do jantar seassistirá à novela das oito”44.

Em outras palavras, o televisor organiza otempo e no mesmo instante controla a execu-ção de atividades, visto que ver ou assistir àtelevisão é uma atividade absorvente e comhora marcada.

Nesta perspectiva, Jacques Le Goffafirma:

”A conquista do tempo através da medidaé claramente percebida como um dos as-pectos importantes do controle do uni-verso pelo homem. De um modo não tão

431981: 12441986: 49

geral, observa-se como numa sociedadea intervenção dos detentores do poder namedida do tempo é um elemento essen-cial do seu poder: o calendário é um dosgrandes emblemas e instrumentos do po-der” 45.

Neste sentido, o calendário, ou seja, a di-visão do tempo no que diz respeito à sua uti-lização, é um elemento organizador simulta-neamente individual e coletivo que dirige ocotidiano, e sob este prisma o cartão de pontodeverá ser visto como extensão do calendá-rio, e, como tal, divide o tempo em traba-lhado e não-trabalhado. Por esta razão, não émais o ciclo cósmico, o levantar e o por-do-sol, que rege o dia-a-dia.

5 O mundo do trabalho

No mundo do trabalho é possível encon-trar fatores que explicam a densidade da au-diência televisiva, visto que há uma correla-ção entre esta e a divisão de tempo em traba-lhado e não-trabalhado.

A composição deste mundo é extrema-mente complexa, pois, além de envolver ocartão de ponto e as condições de trabalho,não pode deixar de lado o estado de saúde dotelespectador de baixa renda e alguns hábi-tos adquiridos na sua educação, para menci-onar apenas alguns fatores. A complexidadedeste mundo decorre da articulação de umconjunto de elementos, cada um tendo suaimportância somente na inter-relação com osdemais.

Antes, contudo, é necessário observar queeste mundo do trabalho é um assunto pouco

451984: 260

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20 João Luis van Tilburg

estudado, pelo menos no Brasil, cujo pro-cesso de industrialização tem característicaspróprias, muito distanciadas dos países ex-portadores de tecnologia de ponta. Por estemotivo não é possível descrevê-lo exaustiva-mente, e, por conseguinte, limito-me a apon-tar aspectos que são do meu domínio.

5.1 O cartão de pontoOriginalmente o sistema de medição detempo estava ligado à organização cósmica,cuja unidade menor era o dia. Na atual erada industrialização, a distinção entre temposocial e tempo natural se impõe, pois mesmosendo o tempo social modulado a partir danatureza e submetido aos ritmos do universo,a divisão do dia de 24 horas esconde indi-vidual e coletivamente uma manipulação dotempo.

O tempo natural, caracterizado pela alter-nância do dia e da noite, pelas fases da lua ea sucessão das estações, e mesmo pela loca-lização dos outros planetas, pouca influênciaexerce hoje.

O dia de vinte e quatro horas, dividido emturnos contínuos de oito horas, já se tornauma constante na civilização industrial, detal forma que a Consolidação das Leis doTrabalho (CLT) a contempla no Artigo 73.O fato de que as máquinas não precisamde descanso, só de manutenção e conserto,faz com que o serviço nos setores primáriose secundários e até mesmo num crescentenúmero de atividades do setor terciário, di-vida para os homens o tempo em trabalhadoe não-trabalhado. O tempo que resta apósuma jornada de trabalho está em função dotrabalho; visa, pois, à recuperação da forçade trabalho. O dia da era da industrializa-ção é o encravamento entre duas espécies

de tempo: uma que regula a fertilidade e,por conseguinte, a sobrevivência da raça hu-mana, alimentando-se e multiplicando-se, ea outra que sujeita esta mesma raça humanaao ciclo de trabalho, imposto pela capaci-dade das máquinas. Mesmo no campo, osarados e as ceifadeiras puxados por tratoresdesconhecem a diferença entre dia e noite.

Limitando-se às populações de baixarenda que habitam as periferias das grandescidades, constata-se que a hora do levantarestá determinada ou controlada pelo apito dafábrica, pelo cartão de ponto, mesmo para amulher do assalariado, que tem uma tarefasocial: a preparação do café e da marmita.Visto que a pouca remuneração reduz o al-moço a arroz, feijão, farinha e, vez ou outra,a um ovo ou uma fatia de carne, o tempero dofeijão é feito na hora do preparo da marmita,pois seus ingredientes clássicos, tais comocarne seca, toucinho ou ling’́uiça, que per-mitem além de calorias e proteínas, um gostopeculiar, não estão mais incluídos na sua pre-paração. Por esta razão, o tempero é feito nahora em que o trabalhador se prepara para aotrabalho. Este motivo obriga a mulher do as-salariado de baixa renda, mesmo que ela nãotrabalhe fora de casa, a se levantar antes domarido.

Em outras palavras, o cartão de ponto domarido determina a hora de ela se levantar,aliás todas as suas demais tarefas de dona decasa, incluindo aquelas realizadas nos diasde folga e feriados.

A hora de levantar é calculada pela medi-ção do tempo gasto pelo assalariado para sedeslocar da sua casa para o local do traba-lho. Neste cálculo estão incluídos os minu-tos necessários para ele se dirigir para a pa-rada de ônibus e/ou estação, o tempo gastopelo ônibus e/ou trem e uma previsão de

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tempo “extra”, devido a um possível engar-rafamento de trânsito ou atraso do trem. Ouseja, calcula-se, tomando como referência ahora de entrada no serviço, a hora do levan-tar, e é por esta razão que os programas ra-diofônicos, a partir das três horas da madru-gada, caracterizam-se pela marcação do ho-rário. Um levantamento que realizei, eviden-ciou, por exemplo, que o Programa LucianoAlves Comunica, que se iniciava às quatrohoras da madrugada, mencionou, num es-paço de sessenta minutos, vinte e três vezes ahora. Este programa radiofônico transmitidoem 1985, pela Rádio Globo AM, de segunda-feira a sábado de 04:00 a 7:00, foi decupadoem 18.09.85, no horário de 4:00 a 5:00hs.:

– Noticiário: 01– telefonemas com rádio-ouvintes: 12– músicas: 05– narração/encenação: 02– informes de utilidades: 11– mensagens publicitárias: 19– propaganda governamental: 01– indicação do horário: 23– prefixos da estação: 15– prefixos do programa: 14– prefixos de seções do programa: 07.Para finalizar a questão do tempo, é útil

lembrar o resultado de uma pesquisa rea-lizada, há alguns anos, pelo Ministério doTransporte: em média os trabalhadores debaixa renda gastam, por dia, entre duas emeia a três horas em deslocamentos entresua moradia e o local de trabalho. Acres-centando a este dado a jornada de trabalhoque , normalmente, mesmo em tempo de crse econômica, gira em redor de dez horas, eincluindo ainda uma hora de descanso, obte-mos o resultado médio de aproximadamente13 a 14 horas diárias durante as quais o traba-lhador de baixa renda está a serviço, de modo

direto, do mundo do trabalho. E isto numaforma cíclica, durante cinco dias e meio porsemana, mês após mês; sobrando, portanto,um dia e meio por semana de descanso, noqual o relógio não exerce uma função de con-trole. Jacques Le Goff observa:

”A grande virtude da semana, é introduzno calendário uma interrupção regular dotrabalho e da vida quotidiana, um períodofixo de repouso e tempo livre. A sua peri-odicidade pareceu adaptar-se muito bemao ritmo biológico dos indivíduos e tam-bém às necessidades econômicas das so-ciedades”46.

5.2 O ritmo do trabalho

A este ritmo biológico estabelecido em fun-ção da organização do mundo do trabalho, corresponde também o ritmo de trabalhopropriamente dito. Um ritmo extremamentemonótono, em virtude da constante repeti-ção de movimentos idênticos, como mostrao filme “Tempos Modernos” de Charles Cha-plin.

A repetição dos movimentos ou é coorde-nada pela linha de montagem que nega a pos-sibilidade de alteração mesmo do posiciona-mento do corpo, ou pela chefia intermediá-ria, que não permite um mínimo de descansoem virtude dos métodos avaliativos para me-dição quantitativa do trabalho.

Além da repetição dos movimentos idên-ticos que por si só já expressa um controleritmado, o mundo do trabalho se caracterizapela repressão presente na constante vigilân-cia que regula mesmo o tempo necessáriopara fazer as necessidades fisiológicas.

461984: 280

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Monotonia, controle e repressão não sãopropriedades do trabalho apenas do setor se-cundário. O setor terciário, seja nos servi-ços de bancos, de escritórios ou de comércio,seja no transporte, manutenção ou qualqueroutra forma de atendimento público, tambémestá submetido a estes mesmos mecanismos,embora com características próprias, de su-bordinação ao objetivo do mundo do traba-lho: a rentabilidade.

Também é pertinente neste contexto men-cionar os resultados próprios à divisão socialdo trabalho, pois os últimos estágios do pro-cesso de produção, além de reduzirem o mo-vimento do corpo a gestos idênticos e repeti-tivos, negam o poder criativo, independentedo seu grau de desenvolvimento, de qual-quer assalariado de baixa renda. O objetoque passa por centenas de mãos, é produzidode forma parcializada por gestos impessoais,não tomando o operário qualquer consciên-cia nem responsabilidade pelo resultado fi-nal. O trabalho, em resumo, foi alienado doseu elemento lúdico.

A divisão social do trabalho também esta-belece um ritmo organizado a partir da quan-tidade de peças que constituirão o produto fi-nal.

5.3 O estado de saúdePode-se ainda mencionar uma terceira qua-lidade de ritmo, que diz respeito à questãoda fronteira entre a audição e os ruídos am-bientais, tanto em relação à sua intensidadequanto decorrente da sua continuidade, am-bas caracterizadas pela total ausência de har-monia, às quais os trabalhadores de baixarenda estão sujeitos.

Independente do grau de decibéis, a cons-tância destes ruídos, mesmo que não se-

jam mais percebidos no nível da subjetivi-dade, objetivamente afeta o estado de saúdeprovocando mutações, incondicionalmentedestruidoras da ordem criada pela seleçãoque o aparelho auditivo exerce. Sob o tí-tulo “Ruído industrial é o mais prejudicial àsaúde”, o Jornal do Brasil publica resultadosde um estudo realizado pelo otorrinolaringo-logista Moacir Tabasnik, professor na UERJ.A reportagem observa, citando o professor:

”Assim como reage ao frio, ou ao calor,o organismo reage ao ruído. (...) As rea-ções ao ruído variam, mas os homens sãomais suscetíveis, provavelmente por fato-res endócrinos. (...) As mudanças fisio-lógicas podem ser variadas, atingindo asáreas cardiovascular, respiratória, neuro-lógica e psicológica”. Em resumo, con-forme a intensidade, o ruído pode provo-car irritação, fadiga e mal estar, aumentaro nível de colesterol, causar úlcera e ou-tros distúrbios digestivos, prisão de ven-tre, alterações químicas na urina e impo-tência47.

Ao sofrerem mutações, os elementos regu-ladores auditivos – cuja atividade determinaa qualidade da percepção informativa – nãotêm mais as mesmas condições sociais deatuação, reduzindo a seleção natural abaixodo nível considerado normal. Esta constata-ção por si só evidencia que a natureza dosruídos oriundos do local de trabalho resultana desestabilização da saúde , no decorrer,evidentemente, de um processo constante econtínuo, da perda de aptidão do raciocínio,visto que o estado emocional está sendo afe-tado.

47Jornal do Brasil: 09.01.89

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Eventualmente esta desestabilização daseleção natural de informações (ruídos) po-derá se constituir em uma explicação, para ofato de os locutores da Rede Globo de Tele-visão não se dirigirem em tom de conversaao telespectador. Estes locutores, como tam-bém o apresentador do programa Domingãodo Faustão, utilizam um volume de voz in-compatível com o ambiente familiar em queo telespectador se encontra. O que caracte-riza, entre outros, o Programa Sílvio Santose o Viva a noite – no que diz respeito à uti-lização do microfone – é exatamente o clima”familiar” criado pelos seus apresentadores,embora os três programas mencionados se-jam realizados em presença de auditórios.

Além desta conseq’́uência originada pelapresença de ruídos nos locais de trabalho,convém mencionar dados levantados poruma pesquisa entre trabalhadores metalúrgi-cos, no município do Rio de Janeiro. A pes-quisa não teve condições de ser finalizadaem virtude de constrangimentos surgidos naresposta às questões colocadas sobre as con-dições de saúde dos trabalhadores desta ca-tegoria. Conseguiu-se, contudo, evidenciarque os operários que estavam dispostos apreencher o questionário sofreram cronica-mente de insônia, diarréia e impotência se-xual.

Em outra oportunidade, um trabalhador debaixa renda que visitara seus parentes no in-terior, comentou comigo:

”Esse pessoal da roça não conhece a vidaque a gente leva na cidade. Eles (os pa-rentes) queriam saber as coisas com amulher da gente. Você sabe de que es-tou falando, né? Então eu disse: ora, umdia a gente não tem disposição porque otrabalho cansou muito ou porque o chefe

aperreou a gente. Outro dia, a mulherda gente não quer porque está aborrecidaporque o dinheiro não deu. Aí, só duasvezes por semana. Aí o pessoal da roçanão entende. Ora, eles fazem até mais deseis vezes por semana”.

Este quadro, caracterizado pela irregulari-dade do estado de saúde, comprova, sem dú-vida, a debilidade física dos trabalhadores.

A saúde torna-se ainda mais debilitadadevido à baixa remuneração. Conformedados estatísticos disponíveis, aproximada-mente 67,8% da força de trabalho empregadapossuem uma renda mensal entre 0,5 e 3 sa-lários mínimos [JB 31.12.88]. Estes, con-forme a Constituição, Artigo 7˚, se destinamà habitação, alimentação, educação, saúde,lazer, vestuário, higiene, transporte e previ-dência social.

Ao estabelecer o mínimo necessário paraatender às necessidades de uma família dequatro pessoas, o DIEESE (DepartamentoIntersindical de Estudos Sócio Econômicos)calcula um salário 75,5% superior àqueleatualmente em vigor48. Para chegar a estevalor, tomou-se como referência a lei da Ra-ção Mínima promulgada em 1937, acompa-nhando, no que diz respeito a seus compo-nentes alimentares, diretrizes da Organiza-ção Internacional do Trabalho (OIT).

Observando a composição alimentar es-tabelecida pela lei da Ração Mínima, 75%do valor líquido da atual remuneração mí-nima deveriam ser destinados à alimentaçãodo próprio trabalhador. Sendo ele pai de fa-mília, a aplicação desta lei se torna irreal. Aconseq́’uência imediata desta constatação éo estado frágil de saúde da grande maioriados trabalhadores de baixa renda.

48Jornal do Brasil: 27.11.88

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Nesta perspectiva, as condições psicoló-gicas e físicas do trabalhador, que apon-tei acima, somadas às reais possibilidadesde alimentação adequada aos esforços físi-cos exigidos pelo trabalho, executado diaria-mente, e ao tempo gasto em transporte, resul-tam num estado de espírito que praticamenteimpossibilita qualquer motivação para exer-cer atividades que exijam esforço intelectual.

5.4 O hábito de preencher otempo não-trabalhado

Menciono a falta de motivação para ativida-des que exigem esforços intelectuais por doismotivos. O primeiro se refere à precariedadedo sistema escolar e o segundo aos hábitos eatitudes adquiridos pela educação.

No que diz respeito à precariedade escolardeve-se observar que a escrita, tanto quantoa leitura são técnicas – embora não sejamapenas isso; a literatura o comprova. A es-crita se destina a dar formas às idéias e a lei-tura visa captar idéias materializadas na es-crita. A aplicação destas duas técnicas en-volve uma atividade mental de alta abstra-ção, por se constituir uma ”tradução” de có-digos bastante ambíguos para o concreto e opalpável. O domínio destas técnicas, comoaliás de qualquer técnica, consiste no conhe-cimento de suas regras e sua constante apli-cação. A escrita e a leitura são constituí-das por um conjunto de operações intelectu-ais muito complexas. Trata-se não de jus-taposição de palavras, mas de escolher en-tre as combinações possíveis aquela que dáa forma exata à idéia a ser transmitida ou aser captada. Na transferência destas técnicase no seu domínio, o sistema escolar é falhoe não promove o que nos interessa neste ins-tante: o hábito de leitura.

Explica-se, desta forma, embora não demaneira exclusiva, a baixa tiragem do jor-nal O Dia, com aproximadamente 250 milexemplares nos dias úteis, considerando-seque este jornal tem sua maior penetração nascamadas de baixa renda no Rio de Janeiro.

Neste contexto é pertinente citar umapesquisa realizada pelo jornal O Globo.Verificou-se que, no início da década de oi-tenta, somente 26% da população da GrandeSão Paulo, na faixa etária de 15 a 65 anos,tem o hábito de ler jornal49. Conside-rando que o ensino do 1˚ grau no Estadode São Paulo supera em qualidade o dos de-mais Estados em virtude das exigências pos-tas pelo crescente parque industrial, é possí-vel avaliar o significado da tiragem média de1.668.000 exemplares de jornais que diaria-mente circulam nas capitais do país.

Ainda um outro fator deve ser mencionadopara explicar a falta de hábito de leitura.Na educação do dia-a-dia, as populações debaixa renda se confrontam com uma dificul-dade crônica: a falta de dinheiro decorrenteda remuneração insuficiente, que impossibi-lita a diversificação das atividades de entre-tenimento. Freq́’uentar cinema, teatro, mu-seu, exposições, concertos e outras ativida-des desta natureza que, pelo menos em tese,poderiam estimular habilidades e qualifica-ções, e por conseguinte, levar à procura deinformações complementares mediante a lei-tura, são opções pouco acessíveis. Mesmopodendo usufruir gratuitamente desses even-tos, o deslocamento por meio de transportecoletivo implica em gastos – sem mencionarainda, primeiro, o número reduzido de ôni-bus e trens suburbanos que circulam nos finsde semanas e, segundo, a liberdade de não

4910.05.81

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A Televisão e o Mundo do Trabalho 25

ser obrigado a recorrer ao transporte coletivocomo nos dias de trabalho.

Este conjunto de fatores também contri-bui para a não formação do hábito de leitura,pois, em última análise, a aquisição de qual-quer hábito é decorrente de elementos favo-recedores.

5.5 O Sistema de Crédito Pessoale o Poder de Compra

Convém ainda ressaltar que o sistema de cré-dito pessoal é um elemento a mais que con-tribui para que o trabalhador de baixa rendaapele para o televisor para preencher o seutempo não-trabalhado.

A necessidade do descanso, em vista darecuperação da sua força de trabalho, fazcom que a aquisição de um televisor em su-aves prestações, ou seja, dentro das possibi-lidades reais da economia familiar de baixarenda, alie-se a mais outros elementos quedeterminam a escolha da televisão em rela-ção à falta de maiores e mesmo melhores op-ções para preencher o tempo não-trabalhado.A atração pela imagem, seja em cores sejaem preto e branco, exerce uma influênciaproporcional a um nível de abstração que éresultado tanto da natureza do trabalho exer-cido quanto de hábitos e atitudes adquiridospor ocasião da educação na família e na es-cola.

Diante deste quadro, a televisão pode servista como uma das poucas opções, e omundo do trabalho e seus elementos corre-latos, mesmo não sendo tratados de formaaprofundada, mas de modo suficiente para oentendimento do seu significado, explicam,pelo menos em parte, os altos índices de au-diência decorrentes do usufruir massivo do

televisor à noite após uma longa jornada detrabalho exaustivo, repressivo e monótono.

Esta constatação me permite concluir quenão se trata, de forma alguma, de costume oude vício quando uma família de baixa rendaliga seu televisor, à noite, para preencher otempo não-trabalhado. Faz parte integrantedo cotidiano, isto sim, sentar-se em frente dotelevisor, todas as noites, como sendo umaimposição decorrente das características domundo do trabalho, e sobretudo como sendoo entretenimento o mais adequado às condi-ções físicas e psicológicas em que esta fa-mília se encontra após um dia de trabalhoexaustivo.

Entretanto, não está claro ainda se a audi-ência televisiva de baixa renda simplesmentevê televisão ou se esta escolhe o que consi-dera o melhor programa, ou seja, se esta au-diência assiste à televisão. Esta indagaçãoainda não foi respondida.

6 O Mundo do Televisor

O conjunto de fatores, acima enumerado,característicos do mundo do trabalho no Bra-sil, e que formam um todo articulado, pos-sibilita compreender as razões que levam ocidadão a se tornar telespectador assíduo, ouseja, explica a densidade constante de audi-ência televisiva, que raramente sofre oscila-ções significativas.

Esta densidade constante de audiência te-levisiva tem uma característica a mais, comopode ser verificado ao se comparar a audiên-cia média do mês de janeiro com aquela domês de fevereiro de 1989, no Rio de Janeiro.

Anteriormente fiz uma distinção entre veruma programação e assistir a programas. Osaltos índices alcançados pela Rede Globo

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26 João Luis van Tilburg

poderão sugerir, à primeira vista, que a maiorparte desta audiência vê uma programação.Em determinadas ocasiões, contudo, o teles-pectador vira o botão, como indicam dadosdo IBOPE. Por esta razão é provável que ocidadão brasileiro assista à televisão, comose pode deduzir dos exemplos que seguem:

”Quarta-feira, pela segunda vez na se-mana, a Bandeirantes superou os índicesda Globo no período da noite. Na trans-missão do jogo (da Copa Pelé) entre Bra-sil e Uruguai, na Vila Belmiro, a Ban-deirantes conseguiu a média de 38 pon-tos em São Paulo, maior ainda do que nojogo com a Itália, com Pelé em campo,que foi de 32. No Rio não chegou a tanto,mas atingiu média alta”50.

”A TV Manchete registrou, segunda-feira, pela primeira vez, no horário da no-vela Corpo Santo, 31 pontos no Ibope.Motivo: a morte da personagem Simone,a heroína da história, que está provo-cando uma enxurrada de cartas e telefo-nemas à emissora”51.

Embora os dados fornecidos não distin-gam o público espectador conforme as cate-gorias habituais, pode-se, de certo, admitirque não somente as categorias A e B muda-ram de canal por terem sido informadas, comantecedência, por jornais, sobre a realizaçãode um programa com apelo especial. Mesmonão tendo o hábito de ler jornal, as categoriasC e D também mudaram, fato este evidenci-ado pela grande oscilação dos índices de au-diência. O fato de que uma novela disparou,quase de repente, na corrida pela disputa da

50Jornal do Brasil: 12.01.8751Jornal do Brasil: 23.07.87

preferência do telespectador por causa de ummomento culminante na história, confirmaque existe um número significativo de espec-tadores à procura de programas por parte dascategorias tanto A e B quanto C e D.

O SBT, já em 1976, quando ainda sechamava TVS, iniciou suas transmissões noRio de Janeiro, com uma política de pro-gramação para, além de conquistar audiên-cia, atender a telespectadores que estavammais interessados em assistir a programasdo que a ver uma programação. Esta polí-tica denominava-se de “sessão contínua” queconsistia em repetir, consecutivamente, trêsou quatro vezes, um mesmo programa, comono cinema, e que permitia os telespectadoresassistirem a esse programa sem perder os daTV Globo e da TV Tupi52. Em 1987, o SBTrepetiu esta política com os seriados Holo-causto e Raízes, anteriormente exibidos pelaTV Globo.

Seja como for, há muitos anos os progra-mas ou a programação da Rede Globo gozamda preferência do público espectador, à noite,um fato que não se explica por si mesmo. Oconjunto de fatores do mundo do trabalho so-mente faz compreender a densidade de audi-ência à noite; não a preferência por uma de-terminada Emissora. Por esta razão impõe-se verificar se fatores deste mundo do traba-lho refletem, de forma específica, nas produ-ções da Rede Globo, fazendo com que estasse distingam daquelas produzidas pelas ou-tras Emissoras de Televisão. Somente destamaneira torna-se possível encontrar uma ex-plicação que justifique a preferência dada àTV Globo, às noites, após um dia de trabalhoexaustivo. Visto que todas as Redes de Tele-

52Revistas Movimento: 07.06.76 e Amiga TVTudo 21.07.76

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visão, além da imagem, transmitem uma pro-gramação e que cada uma destas programa-ções têm características próprias, impõe-se aabordagem de três temas, a saber: a progra-mação televisiva noturna, a codificação icô-nica e a narrativa televisiva.

6.1 O caráter cíclico daprogramação da Rede Globo

Ao iniciar a enumeração de elementos quecompõe o mundo do trabalho, abordei emprimeiro lugar, o sistema de medição dotempo. Verifiquei que um dia de trabalhotem seu ritmo próprio regido pelo cartão deponto. Este ritmo é continuado pela progra-mação da Rede Globo de Televisão cuja ca-racterística é ser cíclica.

Um levantamento cuidadoso da programa-ção noturna revela que a rigor, desde o inícioda década de 70, a Rede Globo introduziu, demodo gradativo, uma só modificação na suaprogramação, no horário entre 18 e 22 ho-ras. Esta modificação pode ser comprovadapela permanência da expressão novela dasoito, pois hoje a “novela das oito” começaàs 20h30min, salvo algumas exceções ocasi-onadas pela Copa do Mundo e pelos Progra-mas do TRE.

A rigor, a programação noturna da RedeGlobo é a mesma desde o início de 70; o quese modificou são os nomes dos programas.

Há, entretanto, uma particularidade: a mu-dança do horário da ”novela das oito” sedeve a um resultado de uma pesquisa rea-lizada sob encomenda da Rede Globo paraapurar as razões que ocasionaram a quedade audiência televisiva nos sábados, às 22h,da mesma forma que nos demais dias da se-mana, incluindo o domingo.

Em virtude de ser obrigada a se levantar

cedo de segunda a sábado por causa do car-tão de ponto, a maioria dos assalariados debaixa renda costum a deitar- se antes das dezhoras. Em conseq’́uência disto, o nível daaudiência televisiva sofre uma queda acen-tuada nesta hora. Na noite de sábado estaqueda se repete, embora o cartão de pontonão organize o tempo do dia seguinte, poreste ser domingo. O que ocasionava estaqueda de audiência nas noites de sábado? In-teressada neste problema – pois queria ga-rantir uma audiência constante nesta noite –a Rede Globo realizou uma pesquisa.

Uma notícia no Jornal do Brasil de12.05.72, sob o título TV revela hora de sá-bado em que carioca é mais conjugal, di-vulga dados desta pesquisa sobre os hábitosda audiência televisiva nos sábados:

”Estudando, hora a hora, os hábitos dostelespectadores, ele [Homero Sanchez]descobriu – na pesquisa sobre comporta-mento sexual – que a queda de audiênciaque causava preocupação, indicava queum número considerável de cariocas sededicava às obrigações conjugais”53.

Nesta perspectiva, um dado de uma outrapesquisa é relevante. Lívia Neves de Ho-landa Barbosa, no seu estudo sobre o sistemade representação dos dias da semana em doisgrupos de mulheres compostos por 10 operá-rios e 17 funcionárias de nível médio e supe-rior, observa:

”Um bom fim-de-semana é aquele emque, além das relações afetivas (amizade,namoro etc.) pinta uma boa ’trepada’como disse uma das informantes”54.53Jornal do Brasil: 12.05.72541984: 22

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Desde então, a Rede Globo gradativa-mente começou a alterar o horário noturnoda sua programação – de segunda a sábado –de tal forma que, a partir de 1975 a “noveladas oito” se inicia às 20h30min. Isto faz comque a primeira novela transmitida no horá-rio considerado nobre, comece às 18h, a se-gunda às 19h, garantindo, ao mesmo tempo,o toque de cinco segundo do Jornal Nacionalpontualmente às 19h 59min. A não alteraçãoda programação noturna possibilita prevê-la,como também o trabalhador de baixa rendade antemão já sabe, salvo modificações pro-fundas no seu dia-a-dia, o que fará no dia se-guinte, e mesmo no mês que segue. Em ou-tras palavras, a programação se caracterizapor seu caráter cíclico, de tal forma que ou-tras Redes de Televisão se referem à progra-mação da Rede Globo para poder obter ín-dices de audiência proporcionais ao capitalinvestido.

Este caráter cíclico se reproduz tambémem programas humorísticos tais como TVPirata, Chico Anísio e, até pouco tempoatrás, Viva o Gordo. Ao iniciar, anualmente,no mês de março, os programas compostospor personagens já conhecidos e novos, a or-dem cronológica da apresentação dos esque-tes só sofre alterações ou por intervenção da(auto)censura ou por baixos índices de apro-vação por parte da audiência.

O SBT usa várias maneiras para po-der romper com esta “ciclicidade” da RedeGlobo, com o intuito de quebrar um dosmecanismos que garante a hegemonia à TVGlobo:

”Domingo passado, Sílvio Santos ousoumais uma vez. Durante seu programa,anunciou a exibição do seriado PássarosFeridos de uma forma bem original: avi-

sou ao público que a série iria ao ar desegunda a sexta-feira, logo depois de Ro-que Santeiro. Com aquele sorriso queencanta o público, Sílvio Santos elogioua atração da Globo e disse que ninguémprecisaria perder a novela, mas, depois,deveria mudar o canal para assistir ao talfantástico seriado. A manobra deu certo eSílvio Santos chegou a bater a audiênciada Globo em São Paulo”55.

Dois anos depois, por ocasião do pro-grama do SBT Cinema em Casa que exibiuum filme de grande apelo popular, a RedeGlobo mudou de estratégia:

”A TV Globo já decidiu o que fazer paracompetir com a TVS que exibirá hoje ofilme “Rambo II”. A ordem é esticar oJornal Nacional e a novela Vale Tudo –que normalmente tem uma hora de du-ração – foi editada às pressas, ontem àtarde, para ir ao ar entre 20h40min e22h40min”56.

Embora programado para entrar no ar às21h30min; 0 SBT retardou a transmissão dofilme até a TV Globo terminar com a novelaVale Tudo, deixando na tela do televisor umaviso para os telespectadores da Globo nosseguintes termos: assista tranq’́uilamenteà novela; nós não vamos iniciar o filme“Rambo II” antes do capítulo da novela ter-minar.

Uma terceira forma desta “ciclicidade”consiste na regularidade dos intervalos para atransmissão de mensagens publicitárias. Namaioria das vezes estes intervalos ocorremde dez em dez minutos, e invariavelmente

55Jornal do Brasil: 21.08.8656Jornal do Brasil: 26.08.88

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terminam com uma chamada relacionada aum programa televisivo ou da mesma noiteou de um dos dias seguintes.

A única exceção na característica de regu-laridade de intervalos comerciais foi introdu-zida pela Rede Globo a partir da pesquisamencionada no programa Primeira Exibi-ção, transmitido aos sábados, imediatamenteapós a “novela das oito”. O primeiro in-tervalo comercial se dá após 20 ou 25 mi-nutos, com o intuito de garantir uma densi-dade de audiência após as 22h, quebrandodesta forma a rotina cotidiana da populaçãode baixa renda. Esta estratégia, na véspera dedomingo, dia em que a ausência do cartão deponto permite adiar a hora de levantar, en-contra uma plausível explicação no fato deque, ao iniciar-se um filme, um problemaé apresentado. A especificação deste pro-blema e a sua localização geralmente ocu-pam uns 20 a 25 minutos, tempo suficientetambém para despertar a curiosidade do te-lespectador e fazê-lo modificar seus hábitosaté mesmo no nível das relações matrimoni-ais, conforme detectou a pesquisa de audiên-cia do IBOPE.

Nesta perspectiva, existe uma concordân-cia entre a regulação do tempo trabalhado edo não-trabalhado. Uma concordância que,em última análise, toma como referência orelógio de ponto que, como afirmei, não ape-nas organiza o tempo do assalariado de baixarenda como também o da sua mulher. A pes-quisa citada não deixa dúvida.

Ao mesmo tempo, nas várias formasde “ciclicidade” da programação da RedeGlobo, encontram-se argumentos para expli-car a densidade de audiência desta Rede emdetrimento das demais. Estas, para organi-zar sua programação, tomam como referên-cia não o cotidiano da audiência possível,

mas a aparentemente todo-poderosa concor-rente. A Rede Globo somente mostra com-petência no entendimento dos hábitos da po-pulação de baixa renda, criados pelo cartãode ponto.

Percebe-se que a programação nos domin-gos acompanha estes hábitos, pois o temponão-trabalhado nestes dias se caracteriza poruma maior disponibilidade de utilização, oque livra o trabalhador de baixa renda da ri-gidez do cartão de ponto dos dias úteis. Estaé uma das razões de não haver novela no do-mingo, pais a novela cuja natureza consistena continuidade da narrativa dividida em ca-pítulos, exige um horário fixo. O programaFantástico, Show da Vida não exige pontua-lidade por parte do espectador, tampouco oprograma Os Trapalhões, por não possuírema característica da continuidade narrativa.

Em resumo, tanto a programação horizon-tal (programas diários distribuídos pelos diasda semana) quanto a vertical (a seq’́uênciados programas num dia) da Rede Globo deTelevisão se encaixam no cotidiano das ca-madas de baixa renda de tal modo que or-ganizam o tempo não-trabalhado destas ca-madas. E assim como o assalariado sabe oque fará, no seu local de trabalho, no dia se-guinte, no mês seguinte, e mesmo no ano quese segue, assim também não haverá gran-des modificações no preencher do seu temponão-trabalhado: às 8 horas em ponto o JornalNacional entrará no ar; segue-se a novela e,conforme o dia. ele assistirá a um filme, umseriado ou um programa humorístico.

6.2 A codificação icônicaUm segundo componente a ser analisadopara entendermos as razões que levam as ca-madas de baixa renda a preferir a programa-

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ção noturna da Rede Globo, encontra sua ex-plicação na codificação icônica dos progra-mas que compõem esta programação. Não ésuficiente afirmar que a Rede Globo atendemelhor ao gosto popular do que as demaisEmissoras. Simples constatações contradi-zem esta afirmação. A título de exemplo,pode ser mencionada a disputa pela audiên-cia, no decorrer de 1988, entre a Rede globoe o SBT.

É do conhecimento público que, duranteanos, o programa humorístico Viva o Gordo,da Rede Globo, gozava da preferência dostelespectadores. Muitas vezes, nas segundasfeiras à noite, esta Rede obtinha uma audiên-cia maior que a soma dos televisores ligadosàs outras Emissoras.

O SBT, por motivos mercadológicos, deci-diu investir na modernização da sua progra-mação, com o objetivo de desfazer sua ima-gem “brega” junto às classes empresariais, ede ampliar o número de seus clientes parapreencher os intervalos comerciais. Contra-tou o artista Jô Soares, e é pertinente ob-servar que nesta contratação estava previstatambém a contratação dos profissionais res-ponsáveis pelos textos dos quadros humorís-ticos.

Quando finalmente estréia o programaVeja o Gordo na SBT, verifica-se que os te-lespectadores – que sempre deram preferên-cia ao programa humorístico – não mudamde canal; ficam com a Rede Globo que inau-gura o programa Tela Quente.

De certo, o filme lançado pela TV Globona noite da estréia de Jô Soares no SBT, foiimbatível: “O retorno de Jedi”, um longa-metragem inédito na TV, com ótima bilhete-ria no cinema. Ocorre, entretanto, que tam-bém nas segundas-feiras que se seguem, aexpectativa de audiência gerada pela contra-

tação de Jô Soares e sua equipe não é pre-enchida, mesmo não sendo os filmes do pro-grama Tela Quente da qualidade de gênero“O retorno de Jedi”. O SBT chega até a pôrem dúvida os dados de audiência apuradospelo IBOPE. Sílvio Santos contrata pesqui-sadores da USP para fazer a pesquisa. Me-ses depois, a equipe contratada confirma osdados apurados pelo IBOPE.

O SBT, então, começa a ousar, e no qua-dro “Zezinho”, o último do programa Veja oGordo, o humorista faz uma artista mostrarseus seios, algo que somente foi insinuadona Rede Globo. A audiência, entretanto, ficacom a Globo.

Quando, posteriormente, o programa APraça é Nossa, do SBT, ganha em audi-ência da Globo nas quintas-feiras, esta úl-tima transfere o programa Tela Quente paraaquela noite. Em substituição a este pro-grama a Globo transmite, nas segundas-feiras, o seriado norte-americano ”A Máfia”.Não se constataram oscilações significantesna disputa pela audiência.

Não é lícito afirmar que a população tele-visiva se acostumou a ver a programação daRede Globo. Há indicações suficientes quenegam a veracidade desta afirmação, comoevidenciam dados levantados pelo IBOPE.Cito um exemplo:

”Na sexta-feira, dia 16, o Ibope foi tes-temunha de que a novela Dona Beijada Manchete alcançou, no horário das21h30min, 36 por cento de audiência.Neste mesmo horário o programa ChicoBuarque/Caetano Veloso, na TV Globo,pegava 31 por cento de Ibope”57.

Aliás, ao se defender a hipótese de que a

57Jornal do Brasil: 20.05.86

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audiência se acostumou a ver a programaçãonoturna da Globo, como se explica o fato deque os telespectadores, na sua imensa mai-oria, decidem “mudar de canal”, de noite,após um dia de trabalho exaustivo, quandoum programa da Globo perde sua capacidadehabitual de atração, como aconteceu com oseriado brasileiro Tarcísio & Glória? A au-diência televisiva escolheu A Praça é Nossa,do SBT, derrubando a Globo, não por este sermais “popular”. Hoje – no período em queestou escrevendo este texto – Globo Repór-ter reconquistou sua audiência costumeira, eA Praça é Nossa, mesmo apresentando ído-los populares (agora sim é empregada corre-tamente a qualificação popular) como Pelé eZico, não consegue repetir o que era consi-derado uma façanha do Sílvio Santos.

Defendo, ainda, que não basta uma no-vela ser “boa” para garantir uma audiênciaque justifique o investimento médio de apro-ximadamente 2 milhões de dólares. José M.O. Ramos, no livro “Telenovela – história eprodução”, esboça os critérios que definem aqualidade de uma novela como “boa”:

“ É preciso prestar atenção nos seguin-tes itens: o enredo tem que ser realista,plausível de acontecer com cada um dosespectadores, para que melhor se iden-tifiquem com os personagens; não sedeve apresentar problemas muito distan-tes, complicados ou insolúveis”58.

Com estes critérios à disposição, parece-me, é adequado classificar como “boas” asnovelas da Rede Manchete. Entretanto, di-ficilmente, e mesmo com artifícios, a TVManchete é capaz de alcançar, com a ajuda

581989: 74

das suas novelas, o 1˚ lugar do IBOPE, ànoite:

”O capítulo de Dona Beija em que apa-rece Maitê Proença tomando banho nuanuma cachoeira só foi ao ar na quarta-feira graças a uma decisão pessoal dopresidente José Sarney. A censura tinhavetado, em cima da hora, o capítulo in-teiro, que só foi ao ar, mesmo assim comalguns cortes, devido a um providencialtelefonema do empresário Adolfo Bloch,o dono da TV Manchete, ao presidente daRepública, meia hora antes de a novelaentrar no ar”59.

Mesmo este tipo de artifício – a nudez fe-minina – nem sempre consegue seduzir umaparcela razoável da audiência televisiva. As-sim a novela Carmen conseguiu entrar nosdois dígitos do IBOPE somente em determi-nadas ocasiões:

”Hoje tem espetáculo? Tem, sim, se-nhor. O capítulo da novela Carmem queirá ao ar hoje pela TV Manchete mostraem toda a sua plenitude, iluminada pelaluz de uma fogueira, a nudez de LucéliaSantos”60.

Parece-me, portanto, que outros motivosfazem com que a absoluta maioria dos teles-pectadores fique preferindo a programaçãoda Rede Globo de Televisão.

Já em 1974 realizei uma pesquisa, emborasem grande rigor científico, para verificar osmecanismos empregados pela TV Globo naprodução de novelas, com o intuito de apre-ender elementos componentes da sua codi-ficação icônica. Analisei as novelas Fogo

59Jornal do Brasil: 02.05.8660Jornal do Brasil: 14.10.87

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sobre Terra e A Corrida do Ouro, e consta-tei que, em média – incluindo o movimentode “travelling” – somente em 29,7% do to-tal das tomadas dos capítulos analisados, acâmera estava em movimento, ou seja, emmais de 70% de todas as tomadas, havia mo-vimento somente na imagem. De início, nãodei muita importância a este dado.

Mas em 1975, dados primários resultan-tes da minha pesquisa sobre a utilizaçãodo close nas novelas Escalada e Meu RicoPortuguês produzidas, respectivamente, pelaRede Globo e pela então Rede Tupi, fo-ram tão relevantes, no que diz respeito aotema em pauta que, posteriormente procureiconfirmá-los mediante outros levantamentossobre a codificação icônica de programas te-levisivos.

Sempre preocupado em descobrir as ra-zões que levam as populações de baixa rendaa dar preferência à Rede Globo à noite apósum dia de trabalho exaustivo, analisei, detempos em tempos, a composição das ima-gens televisivas e, em meu entender, não háuma mera coincidência: a codificação icô-nica desta Rede é seu padrão global. Veja-mos.

Inicialmente, limito-me a apresentar, demodo comparativo e sucinto, os dados dapesquisa sobre as duas novelas, realizada em1975, apresentando o método utilizado nacoleta de dados. E, por fim, comparo as con-clusões às quais cheguei com os resultadosobtidos na análise da codificação icônica denovelas posteriores e do Jornal Nacional.

6.3 O método de coleta de dadosPara garantir o caráter aleatório dos dadosprimários para posterior análise, utilizei ométodo Semana Composta, que consiste em

analisar um capítulo em cada dia da semana,durante seis semanas consecutivas, sendo oprimeiro capítulo o da segunda-feira da pri-meira semana, o segundo capítulo o da terça-feira da segunda semana, e assim por diante.

No que diz respeito ao tempo, este métodoabrange aproximadamente 25% da duraçãode uma novela; em relação à quantidade decapítulos analisados, atinge-se 4% sobre ototal de 150 capítulos.

Por outro lado, os capítulos analisadossituam-se no meio da novela, o que signi-fica, de fato, selecionar os momentos carac-terizados por uma complexa intriga de rela-ções sociais entre os personagens. Trata-sedo maior número de personagens necessáriospara garantir uma plausível sucessão de fatosoriginados pela colocação do tema principal,apresentado nos vinte primeiros capítulos, ea ser solucionado nos últimos. Desta forma,embora apreenda uma porcentagem relativa-mente pequena de capítulos, o método Se-mana Composta pode ser considerado ade-quado para os seus fins, sobretudo em vir-tude da abrangência de dois tempos: o tempode ficção e o tempo de transmissão. Há deser considerado ainda o objetivo da pesquisa,qual seja, detectar os elementos que com-põem a codificação icônica.

6.4 A análise dos dadosOs capítulos analisados da novela Escalada,transmitida pela Rede Globo, mostraram 18personagens em 14 cenários; a Rede Tupiapresentou na novela Meu Rico Português 41personagens em 27 cenários. Estes dados,comparados entre si, revelam uma concen-tração de personagens e cenários por parteda Rede Globo, e uma dispersão por parte daRede Tupi, o que significa que a novela Es-

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calada proporciona ao telespectador um me-lhor entendimento, relacionado a um menoresforço mental para acompanhar a história.

Assim, a Rede Globo visualiza em 65%das suas tomadas apenas um ou dois per-sonagens na imagem do televisor; a RedeTupi, ao contrário, utiliza 54,1% das toma-das para mostrar três ou mais personagens.O resultado imediato da redução da quanti-dade de personagens na imagem do televi-sor consiste, pois, na facilidade da leitura daimagem, proporcionando uma densidade deconcentração de atenção.

E por fim, a média de cada tomada da TVGlobo é de 5,1 segundos; a TV Tupi tem,como, média 11,6 segundos por tomada. Arapidez da montagem da imagem, empre-gada pela Rede Globo, faz com que a atençãodo telespectador seja conduzida de um planopara outro sem este ter a preocupação de pro-duzir energia mental para seguir a seq’́uênciados fatos.

O pouco movimento da câmera ou – emoutras palavras – sua quase imobilidade,como verifiquei na minha pesquisa de 1974,encontra na média de 5,1 segundos por to-mada uma explicação: a rapidez com que éefetuada o corte da imagem não torna possí-vel movimentar a imagem.

O movimento cinematográfico e televisivose caracteriza, como sabemos, pelo movi-mento na imagem, pelo movimento da ima-gem, e pela conjugação destes dois: o movi-mento na imagem que está em movimento.A rapidez de edição – imposta em virtudede a televisão brasileira ser comercial, ne-cessitando, como conseq’́uência, de audiên-cia para se sustentar – reduz o uso deste mo-vimento, o que resulta na mutilação da ex-pressão pela imagem que, além do enqua-dramento e ângulo, tem como propriedades

as várias formas de movimento. A explo-ração destas formas de movimento é subs-tituída pela palavra, ou seja, pelo texto que,por esta razão, se torna movimento!

A articulação destes dados evidencia que acodificação icônica adotada pela Rede Globopossui um ritmo apropriado ao estado físicoe psicológico do trabalhador de baixa renda,após um dia de trabalho monótono. A mo-notonia, pois, imposta pelo tipo de trabalhorealizado, resultando em gestos idênticos,é compensada no momento do preencher otempo não-trabalhado, por uma seq’́uênciaquase rítmica de imagens que proporcionasua leitura imediata, em virtude da baixa in-formação identificável no momento da trans-missão. A evidência da imagem apresen-tada no televisor não permite sua negaçãoe, por esta razão, dispensa qualquer esforço,mesmo físico, para o acompanhamento dahistória. Em outras palavras, existe uma re-lação entre a codificação icônica da novelada Rede Globo e o estado físico e psicoló-gico do conjunto de telespectadores, o quepermite afirmar que a densidade da audiênciaencontra sua explicação, em parte, na com-posição rítmica da imagem televisiva.

Esta afirmação obtém maior consistênciaao se verificar a fidelidade do conjunto dostelespectadores em 1983, por ocasião de mo-dificações administrativas da Rede Globoquanto ao contrato de trabalho dos astrose estrelas prediletos do grande público. ARede Bandeirantes lança a novela Sabor deMel com o slogan “até o elenco da novela das8 já mudou de canal”61. A novela teve curtaduração. Mesmo com a promessa de prê-mios e mais prêmios para quem decifrasseo enigma central da história, a novela saiu

61Jornal do Brasil: 02.04.83

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do ar, melancolicamente, após quatro mesesde duração. A peça publicitária publicadano Jornal do Brasil não deixa dúvidas sobrea qualidade artística ou o apelo popular doelenco da novela Sabor de Mel:

”Sandra Bréa, Raul Cortez, CarmenSilva, Eva Todor, Zaíra Bueno e até ocostureiro Clodovil – grande arrecadadorde Ibope – fazem parte do elenco milio-nário contratado pela Rede Bandeirantespara Sabor de Mel (...)”62.

Mesmo quando profissionais – de grandeexperiência, reconhecida pela crítica espe-cializada (sic), como por exemplo WalterAvancini, que junto com Roberto Talma di-rigiu a novela Saramandaia de Dias Gomes,transmitida em 1976 – “mudam de canal”, ostelespectadores não os acompanham.

Não tanto para atualizar os resultados ob-tidos na pesquisa de 1975, mas sim para veri-ficar uma tendência, realizei junto com estu-dantes da PUC-RJ, em 1988, outra pesquisasobre a codificação icônica de novelas, utili-zando o mesmo método adotado em 1975.Estudamos as novelas Vale Tudo da RedeGlobo, e Olho por Olho da Rede Manchete.

O número de personagens e dos cená-rios da novela da Rede Globo, respecti-vamente, dobrou e quase triplicou. Mas,concomitantemente, as tomadas com um oudois personagens no vídeo aumentaram emquase 145%. Existe, portanto, um equi-líbrio: complicou-se, sem dúvida, por umlado, a narrativa novelesca, devido a um nú-mero maior de personagens, mas, por outrolado, este número é compensado pela con-centração maior dos personagens no vídeo, a

62Jornal do Brasil: 03.04.83

saber, 93.7% das tomadas mostram, no má-ximo, dois personagens na imagem.

Verifiquei esta excessiva concentração depersonagens no vídeo só no momento da de-cupagem icônica, pois ao assistir os capítu-los da novela nos dias da sua transmissão,não a tinha reparado, embora estivesse en-volvido mais pelas atividades da pesquisado que pelas atuações de Maria de Fátima eOdete Roitmann, os maus elementos da no-vela Isto me fez recorrer à análise mais de-talhada dos dados obtidos em 1975, e ve-rifiquei que, neste ano, 15% das tomadasmostraram um só personagem no vídeo, en-quanto, em 1988, este resultado chega à por-centagem excessiva de 73,3%.

Este dado me leva a concluir que o au-mento dos cenários utilizados tem pouca re-levância no que diz respeito à inteligibilidadeda leitura da imagem televisiva, visto quea grande maioria dos planos empregados éou “meio plano” ou “close”; em outras pala-vras, o cenário exerce pequena importância,na maioria das vezes, no momento em que sedesenrolam os diálogos. Ele é insubstituívelquando a narrativa verbal está subordinada àação, como nos casos de assassinato, desas-tre de automóvel, flagrante de adultério etc.

Mais outro dado chamou, particularmente,minha atenção: a média de tempo das toma-das da novela da Rede Manchete. Ao assis-tir à novela Olho por Olho, tive a impres-são de uma demorada edição de imagens.Por isso, a média de 5,6 segundos por to-mada me surpreendeu. Por esta razão, de-cupei novamente os seis capítulos gravados,conforme o critério de Semana Composta,e constatei que 5,2% do total das tomadascobrem 29,1% do tempo. São as tomadasque têm a duração de mais de 16 segundos,ou seja, aproximadamente três vezes a mé-

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dia. A novela Vale Tudo, da Rede Globocomporta também tomadas mais prolonga-das, mas estas ocupam 9,1% do tempo to-tal e 1,7% da totalidade das tomadas. Istosignifica que no mesmo espaço de tempo aTV Manchete gasta, aproximadamente, trêsvezes mais segundos e três vezes menos to-madas do que a Rede Globo, o que resultanuma instabilidade de ritmo, pois o poucotempo que resta à TV Manchete é preenchidopor um número praticamente igual de toma-das. Tentarei exemplificar as particularida-des da codificação icônica das duas Emis-soras. Vamos supor que cada capítulo daGlobo e da Manchete dure exatamente umahora, ou seja, sessenta minutos. Assim a TVManchete gasta, então, 29 minutos para mos-trar em cinco tomadas uma parte do capítulo.Disto resulta que nos 31 minutos restantes,personagens e objetos se congestionam emnoventa e cinco tomadas. A Rede Globo, aocontrário, usa 9 minutos para menos de duastomadas, de tal forma que restam 51 minutospara noventa e oito tomadas. Percebe-se queo ritmo adotado na edição pela TV Globo ébem mais equilibrado que o da Manchete,de tal forma que a câmera da Rede Globoguia o olhar do telespectador exausto comtranq́’uilidade de “plano” para “plano”.

A particularidade do ritmo de edição ado-tado pela Rede Manchete se deve, em maisde 90% dos casos, às cenas externas. A gra-vação dessas cenas dá a impressão que ape-nas uma só câmera está sendo utilizada. As-sim, numa tomada totalmente aberta e pa-rada, um personagem se aproxima de ou-tro; segue-se o corte, para dar início ao diá-logo entre os dois personagens, às vezes delonga duração, em meio plano, com câmeratambém parada. Na novela da TV Globo,as tomadas de mais de quinze segundos es-

tão, na maioria das vezes, em função oudo merchandising – o tem a musical sobres-sai durante alguns segundos – ou do drama.Assim, quando um casal se encontra, apóslongo tempo de separação, a câmera em mo-vimento focaliza, por mais de 90 segundos,o diálogo entre os dois personagens. A dire-ção de câmera não quis separar o casal feliz,recorrendo às tomadas de “plano – contra-plano”. Em resumo, quando ocorrer a edi-ção mais demorada, a TV Globo procura vi-sualizar sentimentos, ou seja, deseja evitara separação na imagem recorrendo ao cos-tumeiro “plano – contra-plano”, enquanto aTV Manchete parece ser obrigada a recorrera este tipo de edição por outras razões cujomérito não está em discussão, neste instante.

Parece-me que a instabilidade do ritmo deedição característico à novela da TV Man-chete, não contribui para prender a atençãodo telespectador de baixa renda. Ele, em vir-tude das propriedades do mundo do trabalho,está esgotado física e psicologicamente. Nãocontabilizando as tomadas de longa duração,a média de tomadas da Rede Manchete é de4,1 segundos. A falta de ritmo na imagem,ou seja, na narrativa visual – mesmo sendoesta extremamente pobre em virtude do exa-gerado uso do “plano – contra-plano” aliadoao “meio plano” e “close”, fazendo com quea leitura da imagem se dê instantaneamente– não consegue superar a falta de energia“mental” – devido ao cansaço do trabalhador– necessária para gerar a vontade de prestaratenção. Em outras palavras, a codificaçãoicônica da Rede Globo é mais coerente: oritmo impresso pela edição nas novelas ana-lisadas nesta Rede, não é uma necessidadeimposta por exigências do discurso do autorda novela nem mesmo uma questão da lin-guagem televisiva, mas sim uma imposição

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decorrente das condições do mundo do tra-balho do cidadão-telespectador.

6.5 Dados complementaresNo decorrer dos últimos anos, realizei aná-lises semelhantes de outras telenovelas e deséries brasileiras, com o intuito de atualizaros dados obtidos na minha pesquisa de 1975.A oscilação verificada entre os dados desteano com aqueles apurados posteriormente, émínima: a variação, por exemplo, da médiade tomada por segundo é de 0,4 segundos amais ou a menos. Por esta razão iniciei em1981 uma pesquisa sobre o telejornalismo –ainda não terminada – com o intuito de co-nhecer as características da codificação icô-nica desses programas. O que nos interessaneste momento, para análise, é o Jornal Na-cional da Rede Globo de Televisão que sem-pre acusa um maior número de televisores li-gados.

Devo observar, porém, que nem sempre aquantidade de televisores ligados, registradapelo IBOPE, corresponde a uma audiênciada mesma grandeza:

”O diretor de marketing da COFAP (Con-federação de Autopeças) referiu-se àdescoberta feita pelos pesquisadores daagência de que apenas 18% dos telespec-tadores ficam atentos à TV na hora dosprogramas jornalísticos”63.

Menciono ainda outro dado detectado naminha pesquisa sobre os telejornais. Os in-tervalos na transmissão destes telejornais secaracterizavam, naquela época, de um ladopor mensagens publicitárias exclusivamentedirigidas a camadas sociais de renda alta,

63Jornal do Brasil: 01.07.83

tais como anúncios de automóveis e servi-ços bancários, e, de outro lado, pela totalausência de informações relativas à progra-mação televisiva da mesma noite ou do diaseguinte, como é costume nos intervalos co-merciais dos demais programas. A explica-ção deste fenômeno podemos talvez encon-trar na afirmação do animador Chacrinha,dada em 1971 numa entrevista na Rede Tupi:“O Jornal Nacional é um misto quente. Opovo só come o pão; não tem dinheiro paracomprar presunto nem queijo”. Ele contes-tava não o número de televisores ligados, for-necido pelo IBOPE, mas sim a real audiênciado Jornal Nacional.

Neste telejornal da TV Globo detectei aexistência de trinta modalidades na trans-missão de notícias. Esta variedade de mo-dalidades se origina nas formas diferencia-das da conjugação da voz à imagem, acom-panhadas ou não por ruídos ambientais. Atítulo de exemplo, menciono a modalidadede uma entrevista numa língua estrangeiratransmitida via satélite com tradução simul-tânea feita no Brasil, complementada comruídos ambientais (ruídos de manifestação,terremoto etc.) também transmitidos via sa-télite.

Estas modalidades foram empregadas noJornal Nacional da Rede Globo, nos dias21.04, 29.04, 07.05, 16.05, 22.05 01.06.81.

Assim, o Jornal Nacional da Rede Globode Televisão, no dia 10 de junho de 1981,transmitiu ao todo 24 notícias, e nesta trans-missão utilizou 13 destas modalidades. Otempo necessário para a transmissão das 24notícias foi de 17 minutos e 55 segundos, ouseja, cada notícia levou, em média, 44,7 se-gundos. Em relação ao número de tomadas,constatei que, em geral, cada notícia tinhaquase sete tomadas, o que significa que, em

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média, foram utilizados 6,4 segundos por to-mada. E, por sua vez, cada modalidade detransmissão comportou, em média 12,7 to-madas.

Em 1986, para verificar uma eventualmodificação na codificação icônica do Jor-nal Nacional, realizei um levantamento domesmo gênero, sem constatar, entretanto, os-cilações significativas.

Ao comparar os dados obtidos no levan-tamento da codificação icônica das novelase do Jornal Nacional, verificamos uma cons-tante: uma montagem de alta velocidade, oque confirma, no meu entender a existênciade uma correlação entre o estado físico e psi-cológico do trabalhador de baixa renda e aalta preferência da audiência pela programa-ção noturna da Rede Globo de Televisão.

Eventualmente poder-se-ia objetar que éprópria à linguagem televisiva esta “rapidez”na edição. Nada é menos verdadeiro, poisos telejornais europeus, por exemplo, não se-guem este mesmo estilo. Lá, a quantidade deinformação é menor, mas se ganha em pro-fundidade. Parece-me que o TJ Brasil doSBT adotou este mesmo estilo. Testes querealizei tanto com pessoas de baixa rendaquanto com estudantes universitários mos-tram com clareza que aproximadamente 70%das informações do Jornal Nacional não sãoabsorvidas, exatamente em virtude do ritmoacelerado na edição, que impede o aprofun-damento das notícias transmitidas.

Por fim, um esclarecimento é oportuno afim de evitarmos o determinismo social.

É evidente que a Rede Globo não pensoumaquiavelicamente este esquema de codifi-cação icônica que acabei de analisar. Con-versas que tive com funcionários desta Rede,já em 1975, esclareceram que quase a grandemaioria dos técnicos envolvidos na produ-

ção fez escola na TV Tupi, onde americanos,no início da década de cinq’́uenta, ensinaram“como fazer televisão”. Diretores da área deprodução de novelas de outras Emissoras etambém atores chamaram minha atenção poruma explicação plausível deste uso abusivode “plano e contra-plano”: seria em decor-rência do processo industrial de produção denovelas que ocasiona o pouco tempo dispo-nível para o ensaio, o que obriga os direto-res a recorrerem ao “plano e contra-plano”em demasiado. Por outro lado, entretanto,a crescente concentração de personagens novídeo, além da rapidez da edição, permitemadmitir que aquilo que se denomina de estilotelevisivo, hoje se tornou “marca registrada”.Nesta perspectiva é significativo o que o jor-nal O Globo registrou no início da novela OOutro:

”A cúpula global decidiu que os capítulosde O Outro precisam de mais ação. Daíque eles estão sendo reeditados tornando-se mais compactos e dinâmicos”64.

Observa-se que ação há de ser entendidapor edição veloz na imagem sem movimen-tos, como já afirmei.

Contudo, parece-me que o conjunto des-tes dados apresentados – além de necessitarpesquisas complementares – ainda não con-figura uma explicação definitiva, caso sejapossível, da densidade de audiência televi-siva à noite, e a preferência predominantepela Rede Globo de Televisão. No meuentender, falta ainda estudar a espinha dor-sal da programação noturna desta Rede, ouseja, uma análise da narrativa novelesca, queocupa aproximadamente 60% do tempo nohorário considerado nobre.

6428.03.87

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6.6 A Telenovela

A narrativa de maior sucesso da programa-ção televisiva hoje é, sem a menor sombrade dúvida, a novela, como também aconte-cia nos tempos áureos do rádio. Aliás, inde-pendente dos seus vários gêneros (os tradici-onais instrumentos para modular o inconsci-ente), a narrativa, na sua forma seja de do-cumento, seja de ficção, data de tempos lon-gínquos. Primeiro na sua forma oral, seguidapela escrita e hoje radiofônica, cinematográ-fica e sobretudo televisiva – sem que uma eli-mine a outra – a narrativa sempre constituiuo instrumento mais popular para transmitirfatos e acontecimentos. Permite, através daidentificação com os heróis, canalizar o de-sejo, aquilo que não existe, mas seria bomque existisse.

Nesta perspectiva, a telenovela desempe-nha uma função social. Ao se organizar me-diante representações simbólicas e a partir dedados provenientes do real, a novela constróium mundo “sui generis”. Este mundo estáregido por leis, como toda a vida do homemse organiza em base de regras e normas. Otrabalho está regulamentado, o jogo, a vidasocial e assim também o campo simbólico.Uma das regras, talvez a mais marcante, éque a narrativa transmite concomitantementeo real e a ficção, o acontecimento e a ima-ginação, o fato e o desejo, sem entretantopermitir qualificar de mentiroso aquele quea apresenta. E a sua norma mais exigenteé fazer com que o herói sobreviva, indepen-dentemente das suas qualidades morais. Foiassim que Sinhozinho Malta levou a viúvaPorcina, na novela Roque Santeiro, para se-rem felizes para sempre, atendendo às nor-mas do melodrama popular e desagradandoas interpretações mais ideológicas.

O imaginário e o simbólico confluem naconstrução de uma realidade com caracterís-ticas próprias, que pouco tem a ver com o diade trabalho monótono, repressivo e exaus-tivo, o que permite liberar os desejos e aagressão – causada pelo mundo do traba-lho – mediante os mecanismos mais varia-dos e extremamente complexos de identifi-cação. Esta liberação, que desde os gregosse denomina catarse, faz esquecer, ao levarao mundo de representações, as repressões,principalmente as econômicas. O multico-lorido, a abundância do vestuário e dos ce-nários e a fartura dos alimentos e das deco-rações, em resumo, a opulência da imagempreenchem o vazio sempre presente nas ca-sas dos trabalhadores de baixa renda.

O caráter doméstico do televisor, o seuuso familiar e a sua utilização integrada nomundo do trabalho, por sua vez contribuemainda mais para o sucesso da telenovela, cujoconteúdo faz aproximar o mundo da ficçãodo mundo cotidiano, e vice-versa.

Esta aproximação entre o mundo real e aficção conhece duas modalidades, uma temá-tica e outra temporal. Esta última teve pelaprimeira vez seu clímax na novela Sol de Ve-rão, em que festas religiosas e civis tais comoNatal e Carnaval, do calendário oficial, coin-cidem com os acontecimentos da ficção. Amodalidade temática consiste na abordagemde acontecimentos da atualidade, tais como aocorrência de greves como ocorreu na novelaVereda Tropical, e a tributação de cavalos nanovela Que Rei Sou Eu?, parodiando o seloobrigatório para os automóveis poderem tra-ficar nas rodovias federais.

A todos estes argumentos, que, em últimaanálise, evidenciam os elementos que cons-tituem o padrão global, pode se opor o en-foque de que a TV Globo surgiu numa época

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em que a televisão ainda não tinha grande pe-netração nas camadas de baixa renda, e que,na medida em que o televisor se popularizou,ela conseguiu, no decorrer dos anos, acostu-mar o crescente público telespectador a verou a assistir à TV Globo, eliminando grada-tivamente as outras Emissoras de TV.

Ainda outros argumentos podem ser apre-sentados, tais como a política de estrelismoda TV Globo e, na década de setenta, o to-tal apoio ao Governo Militar, que lhe ren-deu favorecimentos, e, “last but not least”,o capital estrangeiro nela investido em seuinício.De certo, todos estes elementos con-tribuíram para o estado televisivo atual, quenão deveria ser necessariamente este.

O estado televisivo caracterizado pelo pa-drão global, acostumou, sem dúvida, a massade telespectadores a sintonizar seu televisorna programação da TV Globo não porque“ipso facto” gosta mais desta, mas sim poresta se adequar mais ao estado físico e de es-pírito desta massa de telespectadores, resul-tante das características do mundo brasileirodo trabalho. As demais Redes de Televisãosomente conseguirão conquistar uma fatiamaior de audiência na medida em que substi-tuírem a sua atual referência, à programaçãoda TV Globo, por uma outra, qual seja, o co-tidiano das camadas sociais de baixa renda.

Com esta afirmação conclusiva, resultadoda articulação dos elementos que compõemo mundo do trabalho com as característi-cas dos componentes da programação glo-bal, torna-se necessário analisar a realizaçãoda produção da mensagem televisiva. Istoporque atores sociais envolvidos no processode comunicação, acima analisados, ocupamposições diferenciadas, ou seja, impõem-sedetectar com mais precisão, os atores soci-

ais presentes nesse processo e caracterizar opapel de cada um.

7 O telespectador-cidadão

Ao indagar por que o cidadão brasileiro debaixa renda se tornou um telespectador assí-duo nos dias úteis, à noite, vimos que em vir-tude das condições de trabalho e das caracte-rísticas da programação televisiva noturna noBrasil, só resta à população de baixa renda,após um dia de trabalho exaustivo, assistirà programação da Rede Globo, por esta seadaptar, no nível da codificação icônica, aoestado físico e psicológico deste cidadão.

Com esta afirmação categórica, de certo,está criada uma polêmica, pois, em últimaanálise, sugere-se que nas mesmas condi-ções, as mesmas causas produzem os mes-mos efeitos. Pode-se, entretanto, admitirque, caso todas as seis Redes de Televisãotivessem uma programação com caracterís-ticas idênticas àquelas da TV Globo, o es-tado televisivo brasileiro seria outro, ou seja,as mesmas condições do mundo do trabalhoresultariam em uma audiência proporcional-mente diversa. Não se pode perder de vista,pois, que a tendência monopolizante da qualcomumente se acusa a Rede Globo, não temtanto sua origem nesta Emissora, mas napreferência da audiência a cujas condiçõesfísico-psicológicas a TV Globo se ajustou.

E pertinente observar que até o presentemomento raramente falei dos programas quecompõem uma programação televisiva, e,pela lógica, também, não afirmei que o teles-pectador gosta dos programas a que assiste.Assinalei somente que este dá preferência àprogramação noturna da TV Globo devido àssuas características.

E legítimo observar que nesta preferência

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implicitamente está sendo tratada a questãodo gosto, pois o telespectador escolhe o me-lhor entre os melhores, ou melhor entre os pi-ores programas. Não existe uma terceira al-ternativa, a não ser desligar o televisor. Estaalternativa, porém, não está em debate pordesejarmos saber a razão pela qual o cida-dão de baixa renda prefere a programação daRede Globo.

A afirmação de que o cidadão de baixarenda escolhe o melhor entre os melhores,ou o menos chato entre os piores progra-mas, é discutível, pois a audiência noturnada TV Globo, nos dias de semana, se apre-senta bastante estável, como já constatamos.Vale, de certo, para a programação domini-cal, pois neste caso existe uma concorrênciarazoavelmente equilibrada entre as cinco Re-des de Televisão comercial, o que indica queo telespectador escolhe um entre vários pro-gramas, como comprova uma informação doJornal do Brasil, sob o título “Azarão no pá-reo – Manchete rouba luta entre Faustão eSílvio”:

”Pelo menos das 18h às 18h30min de do-mingo, a Manchete conseguiu mais umavez o lugar de ’azarão’ na disputa pelaaudiência do Rio entre o Domingão doFaustão, da Globo, e o Programa SílvioSantos, da TVS. Os 39 pontos do jogoVasco e Fluminense bateram neste horá-rio os 29 do Faustão e os 9 de Sílvio San-tos. A Copa Rio, dois jogos consecuti-vos (Botafogo e Cobofriense, às 16h, eVasco e Fluminense, às 18h), enfrentou abadalada estréia da Globo com bons ín-dices de audiência também no período de16h30min às 17h (25 pontos contra 29 daGlobo e 6 da TVS), e de 17h30min às18h (28 contra 33 da Globo e 6 da TVS).

Os números confirmam ainda uma esma-gadora vitória da Globo contra a TVS,com a audiência máxima de 48 pontosde 15h30min às 16h, contra 10 da TVS.O ponto alto da TVS não ultrapassouos 15 pontos, de 15h às 15h30min e de16h30min às 17h”65.

Entretanto, pode-se admitir que existeuma correlação entre a preferência dada auma programação e os índices de audiên-cia auferidos pelo IBOPE. Caso a progra-mação noturna da Rede Globo fosse com-posta por programas de preferência exclu-siva, acima de qualquer outra, não teria sen-tido, por exemplo, a disputa pela exclusivi-dade de transmissão de eventos esportivos.

Seguindo esta linha de raciocínio, é per-mitido afirmar que a posição hegemônica daTV Globo aparenta mais do que é. Esta cons-tatação permite concluir que o telespectadortem um poder de barganha, e por isto é ne-cessário analisar a correlação de forças entreos atores sociais que atuam na TV comercial.

Ao se tornar um telespectador assíduo, ocidadão de baixa renda, de certo, procura sa-tisfazer uma necessidade que o motiva a es-colher um programa.

Quase todos os autores atribuem aosMeios de Comunicação de Massa a funçãode atender a necessidade de informação, for-mação e de entretenimento. Os publicitáriosacrescentam mais outra, a de divulgação.

Entretanto, no momento em que se pro-cura definir cada uma destas funções, as ca-racterísticas se entrelaçam. Ao tratar dos as-pectos da produção da mensagem, GerhardMaletzke escreve:

”No que diz respeito à intenção de or-

65Jornal do Brasil: 29.03.89

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dem objetiva, o comunicador visa a ob-ter determinados efeitos no receptor. Es-tes efeitos intencionais conhecem sete ca-tegorias. O comunicador visa a entre-ter, diminuir a tensão e distrair o recep-tor; transmitir, valores estéticos, ofere-cer satisfação artística; envolver o recep-tor emocionalmente, induzi-lo à virtude;oferecer informações, ensinar-lhe fatosatuais e úteis; influenciar nas opiniões ena conduta do receptor; provocar atos”66.

Neste sentido, um programa de entreteni-mento comporta necessariamente elementosinformativos, e visto que se impõe uma se-leção entre os elementos informativos dis-poníveis, os critérios que orientam a esco-lha estão de forma direta referenciados a umquadro axiológico, de tal maneira que asfronteiras entre informação, formação e en-tretenimento estão amalgamadas. A críticafeita por José Carmos Avelar ao filme “Ter-remoto”, deixa evidente esta mescla de in-tenções:

”Nos filmes onde parece existir somentea intenção de divertir a platéia com estí-mulos visuais e sonoros, onde aparente-mente existe apenas um brinquedo paralevar as pessoas a repousar e deixar depensar, é que as idéias passam com maioreficiência, sem serem percebidas (sic). Epor isto mesmo os vários dramas parti-culares desenvolvidos em torno de terre-moto é que são importantes, apesar daatenção despertada pelos vistosos e rui-dosos efeitos especiais. Eles dão umsentido ao espetáculo, porque confirmampreconceitos e clichês populares (sic)”67.

661963: 9167Jornal do Brasil: 25.06.75

Aliás, todos os estudos de conteúdo demensagens, mesmo daquelas que visam aproporcionar entretenimento, transmitidaspelos meios de comunicação de massa, com-provam que estas se referem a um quadro devalores de forma explícita.

Ao tentar detectar a necessidade que o te-lespectador deseja satisfazer, assistindo à te-levisão, do ponto de vista da tríplice fun-ção atribuída aos Meios de Comunicação deMassa, impossível, portanto, é avançar. Emúltima análise, pois, ao distinguir estas fun-ções, trata-se da forma e não do conteúdo.

Por outro lado, possuindo qualquer ne-cessidade um elemento subjetivo, é legítimoafirmar que o telespectador procura na no-vela satisfazer sua necessidade de entreteni-mento, no telejornal a de informação e numprograma de entrevista a de formação. Ouseja, o elemento subjetivo do telespectadorse caracteriza pela expectativa. Ele procuranão no conteúdo, mas na forma, satisfazer auma necessidade.

De início pode-se distinguir duas formasnos programas televisivos: a ficção e o do-cumento. A ficção é definida por Tomás Gu-tiérrez Alea como “histórias totalmente cri-adas a partir de uma idéia preconcebida edesenvolvida na base de princípios dramáti-cos” 68. O programa documental comportaa atualidade entendida como a mediação di-reta com a vida real, seja planetária ou não,ou seja, o hic et nunc.

Vale mencionar, neste contexto, as for-mulações usadas nos telejornais, tais como“Testemunho ocular da história”, da TVTupi, e ”Cobertura completa” da RedeGlobo, além dos logotipos da Rede Bandei-

681984: 34

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rantes, o Olho, e da Rede Globo, o globo re-produzido pela televisão/televisor da Globo.

A denominação documental é utilizada,portanto, na sua concepção utilitária, ou, aformulação de J. de Broucker: “Um mapa denavegação no qual se procura, entre as ban-cas flutuantes de areia, o canal por onde na-vegar seu barco”69.

Ao estruturar uma programação, o empre-sário de uma Rede de Televisão tem comoprincipal objetivo satisfazer a expectativa –diga-se, de passagem, subjetiva – do teles-pectador mediante um dos programas quecomportam os mais variados gêneros tradi-cionais, tais como o melodrama e a comédia,nos quais o espetacular obtém seu devidopeso. Estes gêneros, que desde a antiguidademoldam a narrativa popular, como afirmaWalter Benjamim, hoje foram apropriadospelos meios de comunicação de massa na ob-servação de Desidério B. López:

”Os meios de comunicação coletiva seapropriaram dos gêneros tradicionais ecriaram outros novos para controlar o in-consciente coletivo do nosso tempo. Ojornalismo desenvolveu o folhetim e acrônica marrom e policial. O cinema am-pliou o gama dos gêneros de forma sur-preendente, constituindo-se na máquinamais poderosa para modular a libido so-cial: o bangue-bangue e o policial, a co-média e o cinema de aventuras, o melo-drama e os filmes de guerra, o cinema cô-mico, burlesco e do absurdo. Por sua vez,a televisão e o rádio adaptaram os gêne-ros cinematográficos, impondo-lhes suascondições específicas de produção”70.

691971: 277701981: 5

Nesta perspectiva, fica evidente que a cul-tura de massa é uma deformação da culturapopular, como afirma J. Martín Barbero:

”A cultura de massa não é a simples di-vulgação da cultura culta, mas sim a de-formação da cultura popular. (...) O queestá sendo explorado são matrizes que vi-eram, historicamente, de muito longe, eatravés das quais o imaginário popularse torna cúmplice da dominação massiva.Vocês sabem que não existe dominaçãosem cumplicidade e sedução entre o do-minador e o dominado”71.

A partir desta cumplicidade e sedução es-tão estruturados os programas televisivos e oseu apelo popular.

Necessário é saber como e de que maneirase processam e se articulam, na estrutura doprograma televisivo, esta cumplicidade e se-dução.

Por ser comercial a televisão, e por con-seguinte, necessitando de audiência, o em-presário de uma Rede de Televisão não podenegar, impunemente, o que está enraizado nadenominada “alma do povo”, ou seja, no sen-timento, na vivência humana que, como ob-serva Desidério B. López,

”nunca é absolutamente individual: so-mente a experiência de tal vivência o é,mas sua estrutura, seu conteúdo e seusefeitos são sempre sociais. Por esta ra-zão a grande ressonância que esta obtémnos grandes públicos”72.

Sendo a narrativa, nos seus mais variadosgêneros, algo anterior ao sistema que rege

711984: 23721981: 5

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hoje a vida material, esta incorpora aindapráticas e modos de percepção estranhos aeste sistema. Com a passagem de um sis-tema econômico para o outro, característicasde um se incorporam ao outro, pois nuncahaverá uma ruptura brusca, embora haja con-flitos. É através desses conflitos que umasociedade vive suas relações contraditóriascom o passado. Os progressos materiais tra-zidos por um novo sistema exercem pressãosobre as mentalidades. Por esta razão, es-tas se transformam, o que provoca o conflitocom a tradição, ou seja, as transformaçõesquantitativas iniciam um lento processo deordem qualitativa.

Nesta perspectiva, a estrutura de um pro-grama televisivo, ao incorporar um dos gêne-ros da narrativa, reflete o conflito, a relaçãopassado/presente. Nas novelas, por exemplo,trata-se dos conflitos entre as gerações e, emrelação aos programas humorísticos, é perti-nente apontar o quadro da velhinha em Vejao Gordo, a professora Salomé em Chico Aní-sio Show, e a velhinha surda em A Praça éNossa.

O conflito entre o passado e presente nãoé a única forma de estruturação do programatelevisivo. Há um outro tipo de conflito,com outras características, embora articu-lado com o primeiro.

Somente é possível contornar, atenuar ouresolver o conflito entre o passado e o pre-sente ao mostrar os benefícios materiais queeste último traz. Esta justificativa se pro-cessa necessariamente mediante representa-ções simbólicas, tais como felicidade e bemestar, empregadas também nos programas te-levisivos.

Ao desfrutar um programa televisivo, o te-lespectador contempla uma realidade fictí-cia, que, mesmo tratando do conflito entre

presente e passado, pouco tem a ver comas condições de trabalho e, por extensão,de moradia. A ostentação de felicidade ebem-estar, tratada simbolicamente, contra-diz, portanto, o real, o que faz com que a ar-ticulação entre a ficção e o real não alcance averossimilhança necessária para a credibili-dade, que é um dos mecanismos para garan-tir a audiência.

Neste instante é pertinente observar queo assistir à televisão não é um ato isolado;ele está diretamente inter-relacionado como mundo do trabalho, como vimos anteri-ormente; é um dos demais atos que com-põem o cotidiano. No momento em que esteinter-relacionamento dos atos que compõemo cotidiano é bruscamente negado, ou seja,quando não se constrói uma ponte entre omundo do trabalho e as representações sim-bólicas de felicidade e de bem estar, a fimde justificar os benefícios do presente, a pos-sibilidade de atender à expectativa do teles-pectador se reduz, o que afeta a densidade deaudiência. Por esta razão, há de ser atenuadaa discrepância entre o real e a ficção. Isto setorna possível ao se tratar de elementos quecompõem o mundo do trabalho, ou, em ou-tras palavras, ao se introduzir o descontenta-mento gerado pelo mundo do trabalho. Ao setratar da insatisfação com a situação política,econômica e social, está presente o real que,articulado com a felicidade e o bem-estar daficção, estrutura o programa televisivo me-diante um dos gêneros da narrativa. Destamaneira a expectativa em relação a um pro-grama é satisfeita: contempla-se a vida coti-diana mediada pela ficção.

Assim, na novela Cavalo de Aço, trata-seda expulsão de posseiros ”que há mais de20 anos labutaram nessas terras”; em Esca-lada, é denunciado o fato de que empresários

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financiam as campanhas eleitorais de depu-tados; em Os Gigantes, revela-se a práticade “dumping” por empresas transnacionais;em Sétimo Sentido, fala-se do desespero detrabalhadores desempregados e da greve; emRoda de Fogo, empresários são acusados deformar “lobbies” para forçar um candidato àpresidência da República; em Mandala, umlíder operário é morto por ocasião de umagreve; e em O Salvador da Pátria, empre-sários e um líder sindical procuram fazer acabeça de um bóia-fria, sem falar ainda dacorrupção na polícia e tráfico de drogas.

Nesta perspectiva, explicita-se que,usando a formulação de J. Martín Barbero,não há dominação sem cumplicidade esedução entre dominado e dominador. Oselementos da narrativa popular e a mescla-gem de elementos tirados da vida cotidianaarticulados com o quadro axiológico domi-nante, constituem uma condição sine quanon para o empresário de uma Rede deTelevisão garantir a audiência.

Quando, no início da década de oitenta, ascamadas de baixa renda começam, de formadecisiva, a participar do momento político –lembre-se, por exemplo, da campanha “Di-retas Já”, como também o avanço do Movi-mento Popular – o Jornal do Brasil noticia:

”Quem achar que índice de audiência éo melhor termômetro da televisão, errou.Eles dizem, por exemplo, que as nove-las brasileiras navegam em mar de ro-sas. Puro engano. Apesar de encantarplatéias daqui e de além-mar, a teleno-vela passa por momentos difíceis, crisedas mais bravas. (...) Faltam idéias. Fal-tam escritores treinados na arte de produ-zir quilos de laudas por dia. costurandoidéias com tal mestria que o telespecta-

dor acredite nas artimanhas cotidianas deum diabo”73.

Foi por isso que no início da década de oi-tenta surgiu a idéia de fundar um centro deestudos que, posteriormente, recebeu o nomede “Casa de Criação Janete Clair”.

Em outras palavras, é a própria contradi-ção que caracteriza um programa televisivo esua estrutura, contradição esta que se impõee que resulta na fragilidade do “estado tele-visivo” brasileiro. Sua audiência vive a dis-crepância na distribuição de renda, oriundada subordinação do sistema capitalista brasi-leiro à metrópole capitalista. Esta fragilidadese caracteriza por conseq’́uências imprevisí-veis. Assim, em 1985, o Jornal do Brasilanuncia que “a luta de classes chegou à mídiaeletrônica” quando usineiros e trabalhadoresrurais da Zona da Mata pernambucana fize-ram propaganda no horário nobre da Globo,por ocasião do dissídio coletivo. A FETAPE,Federação dos Trabalhadores da Agriculturade Pernambuco, anuncia, tal como em um in-tervalo comercial:

”Este ano, os camponeses exigem salá-rios de Cr$ 762 mil 449. Não é nada,perto do lucro dos patrões. Mas o mí-nimo para que continuem vivos”74.

Sendo comercial, pois, a televisão há deanunciar tanto durante os intervalos comer-ciais quanto nos seus programas mediante omerchandising, os últimos lançamentos parao mercado interno. Por ser comercial, afirmaDionísio Poli:

”(...) a única receita da televisão é a pu-blicidade. (...) A receita da publicidade é

73Jornal do Brasil: 24.03.8574Jornal do Brasil: 22.09.85

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obtida através da comercialização de umacoisa chamada tempo em televisão”75.

Este tempo é a mercadoria colocada àvenda pelo empresário de uma Rede de Tele-visão.

Esta mercadoria, entretanto, possui umacaracterística “sui generis”, pois sua quali-dade – expressa em termos quantitativos pe-los índices de audiência – não lhe acrescentaum valor a mais, mas sim faz com que a leida oferta e procura propicie ao empresário,dono da Rede, elevar seu preço. Por esta ra-zão, Dionísio Poli pode afirmar:

”Entretanto, no que a televisão vende istonão existe: o tempo não se guarda: oque condiciona toda a economia da te-levisão no mundo. (sic) Este é o fatoque faz com que a economia da televi-são seja fundamentalmente diferente deoutras atividades industriais ou comerci-ais, ou até mesmo de outras empresas deserviço, porque ela lida com o único pro-duto que é irrecuperável e totalmente pe-recível – não dá para ser guardado”76.

Para contornar esta fragilidade da televi-são comercial, concessões devem ser feitas,pois, como afirma Antônio Gramsci: “ne-nhuma sociedade se propõe a solucionar ta-refas quando as condições necessárias sãoinexistentes”77.

Por não ter, na prática, outra opção parapreencher seu tempo não-trabalhado a nãoser vendo ou assistindo a televisão, as ca-madas de baixa renda não satisfazem as ex-pectativas geradas pela sua insatisfação com

751979: 26761979: 26771978: 51

o político, o econômico e o social somentecom temas ligados apenas ao melodrama.Esta insatisfação deve estar incorporada aocotidiano do qual estar à frente do televisorfaz parte integral. Somente nesta perspectivatorna-se compreensível a crítica e a denúncianos programas televisivos de ficção. Parece-me até que desta maneira surgiu, na televisãobrasileira, um novo gênero de melodrama,qual seja, o melodrama-documentário.

Esta política adotada pelo empresário deuma Rede de Televisão gera quatro con-seq́’uências:

- atende à expectativa do telespectador;- garante uma densidade de audiência ne-

cessária para que o empresário de uma Redede Televisão assegure, ao menos, o retornodo capital investido;

- permite, mediante a divulgação de mer-cadorias e serviços nos intervalos comerciaise através do merchandising, que os demaisempresários escoem sua produção;

- o que, por sua vez, ainda lhes possibilitaindicar caminhos a serem percorridos pelaaudiência, em vista de solucionar problemasrelacionados ao seu cotidiano, ou seja, estágarantida a propagação dos valores das clas-ses dominantes.

A articulação destes interesses estruturaum programa televisivo de ficção, como aanálise de um capítulo da novela SétimoSentido evidencia a seguir:

”Na noite de 23 de setembro de 1982,a Rede Globo de Televisão mostrou aopovo brasileiro Dona Santinha, empre-sária de um complexo industrial, infor-mando a seus filhos que Tião Bento erairmão deles. Foi mais um capítulo da no-vela ’Sétimo Sentido’.

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Antes deste episódio, houve uma cenacom os três filhos Rivoredo – Rude, San-dra e Tony –, num quarto de dormir, con-versando sem dizer nada de importante. Aomesmo tempo, a Rede Globo ressalta a mas-culinidade de Rude, elegante dos pés a ca-beça em um roupão. Sandra está vestida comum peignoir cor-de-rosa, que procura escon-der os contornos do corpo. E por fim Tony, ofilho mais novo, encostado a uma mesa, tam-bém de roupão, só que com cores adequadasa um garotão. O telespectador vê a porta seabrir. Entra Dona Santinha. Talvez o verboentrar seja por força de expressão, pois DonaSantinha não entra. Ela desliza lentamentesobre o tapete, expondo aos olhos de milhõesde telespectadores a sua veste noturna, corde rosa. Embora o ambiente seja de tensão,os personagens não elevam a voz, gesticulamcom moderação, e, ao se falarem, usam pala-vras bonitas, sem agressão. Em uma só pala-vra, parece que estamos presenciando umaaula de etiqueta, de cultura, de comporta-mento à altura de um Brasil desenvolvido. Amesma novela mostra que nem todas as ca-madas sociais já alcançaram este padrão decivilização. Quando aparece no televisor oapartamento da personagem Giza, a porta dobanheiro sempre está aberta, a cama sempredesarrumada, não há sequer cadeira para sesentar. Os visitantes devem bater à porta parase anunciar, pois a campainha não funciona.E Giza, a moradora do apartamento, sempregrita. E como! Aliás, é seu estilo de vida.Usa gíria, usa gestos desproporcionais, estásempre descabelada e sua maquilagem acen-tua mais ainda que ela não chega nem aos pésda cultura da família Rivoredo. E as irmãsde Giza? São outra coisa, oposto de Giza.Vestem-se bem, não dão gargalhadas estron-dosas, maquilam-se moderadamente, sempre

educadas. São assalariadas como foi Giza.Mas esta meteu-se em encrencas. Organizouuma passeata contra os patrões. Liderou umagreve. Acampou em frente ao palacete da fa-mília Rivoredo. E perdeu o emprego. As ir-mãs dela são mais responsáveis. Procuramfazer sempre suas obrigações. Tratam comcarinho seus chefes e chamam a Diretora-Presidente da empresa pelo nome. Aliás, acasa onde elas moram com o pai viúvo, sem-pre está bem arrumada. Todas as coisas fi-cam em seus devidos lugares, como no pala-cete dos Rivoredo. E tem mais. A irmã, se-cretária das empresas Rivoredo, encontrou oseu príncipe encantado, embora ela tendo umdefeito físico. Giza não. Alguns dias após terconquistado o médico, este é assassinado”78.

Esta descrição que se limita aos compo-nentes visuais, revela as características dospapéis sociais dos três atores envolvidos naatividade de assistir à televisão, a saber, a au-diência, o empresário de uma Rede de Te-levisão e os empresários da indústria, so-bretudo de bens duráveis. Há de ser obser-vado, entretanto, que existe um desequilíbriono que diz respeito ao poder de barganha decada um destes atores, como explico a seguir.

Não há a menor dúvida sobre a qualidadeda proposta embutida na descrição acima emrelação à defesa de um modelo de sociedade.Também não há dúvida de que tudo aquiloque contradiz esta proposta, é tratado emfunção de justificar por que este modelo nãose concretiza plenamente. Não é sem razãoque a personagem Giza é demitida. Tambémnão é sem razão que o noivo dela é assas-sinado, e há de ser enfatizado que, em ne-nhum momento, a história justifica este as-sassinato. Em outras palavras, a morte do

78Tilburg: 93

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noivo só poderá ser entendida como sendoo resultado de uma intervenção de um justi-ceiro externo. Detecta-se aqui os interessesdaqueles que detêm maior poder de barga-nha. Entretanto para poder defender este mo-delo de sociedade e justificar suas falhas, im-possível é não mostrar a atuação do terceiroator social, o assalariado – a maioria da au-diência televisiva – que, na citada novela, or-ganiza uma greve, uma passeata e um acam-pamento em frente ao palacete dos proprie-tários da indústria alimentícia. É pertinenteobservar que na época a ficção retratava umasituação real: os professores de 1˚ e 2˚ grausde Curitiba estavam acampados em frente àsede do governo estadual, reivindicando me-lhores salários.

Os índices de audiência revelam que aestrutura de um programa televisivo, comoo acima desdobrado, agrada ao telespecta-dor, o que não significa que este não de-seje algo diverso. Ao mesmo tempo, a den-sidade de audiência proporciona ao empre-sário da Rede de Televisão a venda do seuproduto real, qual seja, tempo e espaço, que,por sua vez, permite ao industrial divulgarsuas mercadorias, criando necessidades paraesta mesma audiência. A articulação des-ses interesses tão diversificados e contradi-tórios é regida pelo binômio cumplicidade esedução. No dia em que, por quaisquer mo-tivos, a sedução perder sua razão de ser. atelevisão comercial será obrigada a conce-der mais. Nisto consiste o poder de barganhado público-telespectador. A curta história datelevisão no Brasil confirma isto. Quandose cristalizou o modelo político-econômico-social implantado a partir de 1964, começou-se, gradativamente, no meio da década desetenta, a consolidar a estrutura atual dosprogramas televisivos, o que proporcionou à

Rede Globo de Televisão conquistar a prefe-rência de que goza hoje. E à medida que odescontentamento popular crescia, pelo nãocumprimento dos objetivos prometidos nodiscurso do modelo, mais concessões eramfeitas: o real, num ritmo cada vez mais ace-lerado, mistura-se com a ficção.

Contudo, o poder de barganha dos teles-pectadores necessita ainda de alguns acertos,a fim de que o seu peso político possa seravaliado corretamente.

A crítica feita, nas novelas, às situaçõessociais possui propriedades decorrentes dacodificação icônica de que falamos anterior-mente. O ritmo empregado na edição, queleva o telespectador de plano a plano, nãopermite uma crítica analítica; limita-se a serdescritiva, ou seja, retrata, somente, situa-ções sociais. Não as analisa, como tambémnão o faz o humor político de quadros quefazem parte de Chico Anísio Show e Veja oGordo. A rápida seq́’uência de planos im-possibilita a reflexão, que tem um ritmo maislento em que o diretor, com a ajuda da câ-mera, guia o olhar do espectador. Quase di-ria: “o diretor acompanha o olhar do especta-dor de plano a plano, a fim de que este tenhao tempo necessário para poder aderir ou nãoà sua posição política”. Não é permitido afir-mar isto, pois o tempo em que um plano estána tela do televisor, está a priori determinadopelo ritmo empregado pela edição e não pelanecessidade subjetiva do telespectador.

Entretanto, se o tempo de exposição natela, no caso das telenovelas das “oito” daTV Globo, tem uma média de 5,1 segundospor tomada, é permitido concluir que estetempo disponível não possibilita a análise.Ou melhor formulado, o tempo indispensá-vel para o telespectador “ler” o que está natela é inexistente, e isto porque o ritmo im-

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primido pela edição, como já afirmei anteri-ormente, não é uma necessidade do discursodo autor da novela, mas sim uma imposiçãodecorrente das condições do mundo do tra-balho do telespectador. Nesta perspectiva, acrítica feita a situações sociais só tem condi-ções materiais de ser descritiva.

Por fim, é pertinente observar, mais umavez, que a tendência monopolizante destaRede tem sua origem somente na preferên-cia da audiência por sua programação no-turna, que está ajustada às condições físicase psicológicas das camadas de baixa renda,ou seja, ao mundo do trabalho.

8 Observações conclusivas

O televisor na casa das famílias das cama-das de baixa renda é, sem a menor dúvida,um dos móveis. Cada um deles tem o seuvalor de uso, entretanto a utilidade do tele-visor, na forma em que é aproveitado hoje,evidencia que o tempo nada mais é do queum instrumento de controle, igual ao metroe ao quilo, e que, por esta razão, a separaçãoentre tempo trabalhado e não-trabalhado es-conde uma falsa dicotomia, pois o tempo éum só.

É evidente – visto que a linguagem do ho-mem se caracteriza pela sucessão de palavrasque constroem um sentido ou argumento –que é impossível não segmentar um fenô-meno social para poder compreendê-lo. En-tretanto, impõe-se, após sua decomposição,a reconstrução deste fenômeno.

Por outro lado, é pertinente ressaltar quenão é objeto deste estudo a televisão nem suaprogramação ou programa, mas sim o teles-pectador que pertence às camadas de baixarenda.

E possível, pois, estudar este telespecta-dor a partir de outras referências que não omundo do trabalho. Não tenho nenhuma cer-teza de que se obtenham afirmações conclu-sivas que consolidem aquelas às quais che-guei. Dito isto, é permissível retomar a ques-tão da separação entre tempo trabalhado enão-trabalhado.

O pensamento dualista que faz a separaçãoentre natural e sobrenatural, entre natural ecultural, matéria e espírito, desenvolvimentoe subdesenvolvimento, leva também a sepa-rar o tempo trabalhado do não-trabalhado.

Nesta perspectiva cabe observar que a se-paração entre o tempo trabalhado e o não-trabalhado é somente sustentável no nível daabstração; o trabalho e o não-trabalho sãoqualidades diferentes e não opostas de ocu-pação de tempo. Por esta razão o tempoda atividade ver ou assistir a televisão, emprimeiro lugar, não se opõe ao tempo traba-lhado, mas faz parte integrante dele, e em se-gundo lugar, é um grau diferente na atividadede comunicação, dentro de um contexto so-cial bem mais amplo. Pois, como mostreianteriormente, o telespectador intervém deforma direta neste processo de comunicaçãotelevisiva; o mínimo que faz é integrar umaaudiência de um determinado programa.

O mundo do televisor, portanto, é maiordo que a sala da casa, não porque traz paradentro dela as notícias planetárias e mesmoextra-planetárias, mas sim por integrar as ati-vidades do dia-a-dia da população, sobre-tudo urbana, de baixa renda.

Dentro desta perspectiva é legítimo afir-mar que o televisor, como o cartão de ponto,é uma das extensões do calendário, ou seja,faz parte dos mecanismos de controle dotempo por parte daqueles que detêm o po-der na sociedade. Quase diria o plim-plim é

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o toque de recolher, este toque que faz partedo estado de sítio empregado para controlaruma situação política.

Não há como negar, portanto, que a tele-visão é parte integrante na estrutura produ-tiva da sociedade capitalista brasileira, masa verdade não se esgota nesta constatação.Desconhecer o poder de barganha da audiên-cia televisiva é atribuir à lógica capitalista acapacidade de esgotar a realidade atual.

Isto permite afirmar que, na perspectivadelineada, o atual estado televisivo brasileirose constitui em um mecanismo de controledas atividades do cidadão de baixa renda porparte daqueles que detêm o poder, o que é desuma importância para garantir este mesmopoder. O controle ideológico é extrema-mente fugaz, pois idéias e valores são incon-troláveis. Mesmo um sistema de censura omais eficaz possível não impede que cresçao descontentamento com uma situação de ex-ploração.

Por esta razão, é possível e mesmo opor-tuno para aqueles que detêm o poder, quea programação televisiva comporte contradi-ções, pois a mescla entre o real e a ficção re-sulta no controle do descontentamento, porgarantir uma densidade de audiência.

Consagra-se, a partir daí, o veredicto gostonão se discute ao verificar que um conjuntode fatores praticamente obriga o cidadão bra-sileiro de baixa renda a preencher seu temponão-trabalhado com programas televisivos.Ao se constatar que a codificação icônica deprogramas da Rede Globo de Televisão seadequa ao seu estado físico e psicológico,gerado pelo mundo do trabalho, discute-se,sim, o gosto. Indaga-se, em última análise,se o cidadão brasileiro de baixa renda – apro-ximadamente 80% da população economica-

mente ativa – de fato gosta dos programasapresentados nos televisores, todas as noites.

No que diz respeito a pesquisas sobre te-levisão – sobretudo àquelas que têm comoobjeto o telespectador e sua leitura do con-teúdo ideológico dos programas – há de serconsiderado que não é suficiente detectar seo cidadão-telespectador de baixa renda con-corda ou não com este conteúdo. Por im-posição metodológica, há de ser averiguadose este cidadão-telespectador está sentado di-ante do televisor por realmente gostar doprograma ou por outras razões. Conformeos resultados desta averiguação, a interpre-tação dos dados primários obtidos deve serdiferenciada qualitativamente.

Mais outra conclusão se apresenta. Écompreensível que, nas primeiras décadas dasua existência, a televisão conseguiu dividirantagonicamente os estudiosos que se con-frontaram com este fenômeno, em “apoca-lípticos e integrados” conforme a formula-ção de Umberto Eco. A avalanche televisivafoi assustadora para uns e promissora paraoutros, dividindo os estudiosos europeus enorte-americanos em dois campos opostoscomo se fosse uma guerra de trincheira. NoBrasil ambos os campos conquistaram seusadeptos.

Hoje – 40 anos depois da inauguração daprimeira Emissora no Brasil – a televisãodeixou de ser novidade; já passou o temposuficiente para estudá-la sob ângulos antagô-nicos, embora não fossem alcançadas con-clusões definitivas, ou seja, os resultados deestudos e de pesquisas sobre o fenômeno te-levisivo permitem analisar este mesmo fenô-meno sob outro ângulo.

Parece-me que, uma das conclusões desteestudo permite afirmar que, por ser comer-cial, a televisão brasileira há de considerar

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a lei da procura e oferta, pois, independenteda nossa vontade, é esta a lei que rege omercado: somente conquistando uma parteda audiência possível, uma Emissora sobre-vive financeiramente. Por outro lado, é falsoconsiderar que esta lei faz com que o teles-pectador exerça função participante nas deci-sões relativas à programação televisiva, em-bora sua audiência fortaleça uma Rede aoassistir a um programa. Neste sentido nãoé verdadeiro o argumento que procura sus-tentar uma participação por parte da audi-ência quando consideradas, no desenrolar deuma novela, sugestões de cartas enviadas àsEmissoras. Participação, pois, não é sinô-nimo de pesquisa de mercado. Em outras pa-lavras, o poder de barganha que a audiênciatelevisiva detém, merece estudo mais apro-fundado, não tanto com o intuito de verificarseu funcionamento, mas sim como exercê-lo coerentemente em vista da socialização doconhecimento.

Outra conclusão permite colocar uma in-dagação em relação ao uso da linguagem te-levisiva. Será que é própria da linguagem te-levisiva o ritmo cada vez mais acelerado deedição, ou tal ritmo nada mais é do que umartifício para garantir a densidade de audiên-cia necessária ao controle sobre as ativida-des desta mesma audiência? Caso a últimaafirmação se aproxime mais da verdade, atese de que a televisão é o meio, por exce-lência, de planos fechados tais como “close”e “meio plano”, também não obtém sustenta-ção. Em outras palavras, também um estudomais aprofundado da linguagem televisiva setorna oportuno a fim de descobrir suas reaispotencialidades.

Esta conclusão deixa mais do que evidenteque a realização de uma televisão melhor –dentro do sistema comercial que conhece-

mos –, na perspectiva da socialização do co-nhecimento, independente do gênero empre-gado (novela, programa musical, telejornal)que medie este conhecimento, exige algo amais do que um simples ato de vontade.

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