A Substituição Tributária no ICMS – problemas e possíveis ... · mercadorias e serviços às...
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Monografia em nome de: Ângelo de Angelis
A Substituição Tributária no ICMS – problemas e
possíveis soluções
Monografia apresentada ao concurso de monografias da
Federação Nacional dos Fiscos Estaduais – FENAFISCO
Maio de 2012
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RESUMO
A substituição tributária do ICMS foi introduzida pelos Estados brasileiros
ainda nos anos 1970, quando da vigência do então ICM. Na época as
condições da tecnologia da informação e a pulverização dos estabelecimentos
de varejo dificultavam a atuação dos Fiscos estaduais na fiscalização das suas
operações. Pela sistemática da chamada substituição tributária das operações
subsequentes ou para frente, o imposto relativo às operações da indústria para
a distribuição, desta para o varejo e deste para o consumidor é arrecadado na
indústria, ou em outro elo intermediário da cadeia produtiva que concentra a
distribuição. O objetivo é facilitar e racionalizar a ação do Fisco ao concentrar a
fiscalização em poucos grandes contribuintes, ao invés de centenas ou
milhares de pequenos varejistas.
Este mecanismo foi fartamente explorado pelos Estados e Distrito
Federal no Brasil nas décadas que se seguiram para poucos produtos que
atendiam determinadas condições: relevância para a arrecadação, produção ou
distribuição concentradas, homogeneidade, consumo de varejo pulverizado e
preços finais conhecidos ou tabelados.
A partir de 2008, os Estados passaram a explorar o instituto da
substituição tributária para frente para vários outros produtos, inaugurando uma
nova fase, mais conflituosa, da sua exploração. Ao mesmo tempo em que
propiciou consideráveis ganhos de arrecadação para os Estados, potencializou
vários conflitos em torno da tributação do valor agregado.
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O objetivo desse trabalho é demonstrar como isto se deu, mostrar os
problemas gerados e, ao final, propor linhas de soluções calcadas em um novo
paradigma que leve em conta as modernas tecnologias de informação e as
atuais estruturas de varejo, bem mais concentradas do que as dos anos 1970,
quando da instituição da substituição tributária para frente no Brasil (ST)
Para isto, parte dos fundamentos e das características essenciais dos
impostos sobre o valor agregado (IVA) consubstanciadas em pesquisas
realizadas em todo o mundo pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário
Internacional. Pretende-se confrontar e avaliar as características da ST com os
fundamentos do IVA. Posteriormente, avalia o surgimento deste instituto no
Direito europeu e no Brasil, na tentativa de apontar seus pressupostos básicos.
Na sequência tenta reconstituir sua evolução no Brasil confrontando sua
configuração com os seus próprios pressupostos básicos e com as
características do IVA.
Ao final, conclui-se que, especialmente a partir de 2008, o espraiamento
do uso da ST transformou o ICMS em uma espécie de anti-IVA, que há fortes
evidências de que os recentes ganhos de arrecadação decorrentes desta
exploração advêm não da captura do imposto sonegado no varejo e sim da
sobretaxação dos consumidores finais e que a tecnologia da informação dos
dias de hoje bem como as estruturas de varejo, mais concentradas, condenam
a ST ao anacronismo. As condições tecnológicas dos dias de hoje permitem a
ação do Fisco junto aos milhares de contribuintes varejistas e a reconstrução
do ICMS sobre as bases clássicas do IVA.
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SUMÁRIO
Apresentação.......................................................................................................5
Capítulo 1 - Características e aspectos históricos da formação dos impostos
sobre o valor agregado........................................................................................6 Capítulo 2 - Características e evolução geral da substituição tributária no
Brasil..................................................................................................................13 Capítulo 3 – O problema do ressarcimento.......................................................31
Capítulo 4 – Os efeitos colaterais da substituição tributária para frente (ST)...41
Capítulo 5 – Possíveis soluções........................................................................72
Considerações Finais........................................................................................84
Referências Bibliográficas.................................................................................90
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A P R E S E N T A Ç Ã O
O título da monografia sugere tema de fôlego, muito fôlego. O que se
busca compreender, em especial, são os principais problemas decorrentes das
práticas de substituição tributária no ICMS em negócios privados e na
Administração Tributária, pelo menos os mais divulgados pela mídia e pelo
debate nacional. A pretensão deste trabalho é compreendê-los de forma
generalizada a partir de uma “visão de helicóptero”, como se diz, evitando-se,
contudo, incorrer em superficialidades nada esclarecedoras.
Na análise dos problemas decorrerão apontamentos para possíveis
soluções, tendo como substrato a nova instrumentalização do Fisco, formada
por bases detalhadas de dados, que hoje se dispõe pelo Sistema Público de
Escrituração Digital, o SPED. Sem a intenção de abarcar a complexidade do
tema, tem-se como objetivo apontar alternativas ao uso indiscriminado da
substituição tributária como meio de alavancar receitas. Acredita-se que as
alternativas devam calcar-se na clássica atuação dos agentes do Fisco, aliada,
porém, aos modernos instrumentos e sob a regência de uma nova ordem de
gestão e organização da Administração Tributária.
O tema, como já foi dito, é de fôlego e este trabalho, modesto. Espera-
se, entretanto, poder contribuir para o aprofundamento do debate e para a
permanente busca da excelência do Fisco.
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CAPÍTULO 1 Características e aspectos históricos da formação dos impostos sobre o valor agregado
O Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e
sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ICMS, foi introduzido pela Constituição Federal de 1988 em seu
artigo 155, II, e outorgado aos Estados-membros da federação brasileira e ao
Distrito Federal como sucessor do antigo Imposto relativo à circulação de
mercadorias, ICM, que havia sido instituído em 1965 nos moldes de um
imposto sobre o valor agregado.
Os impostos sobre o valor agregado tributam o valor que cada agente
econômico, normalmente empresas, agrega à produção e à circulação de bens
e serviços ao longo das cadeias produtivas. São impostos repercussivos,
multifásicos e não cumulativos, através dos quais as empresas têm a
possibilidade de repercutir o ônus tributário de suas vendas ou saídas de
mercadorias e serviços às empresas seguintes, suas clientes, que, por sua vez,
procedem da mesma forma em relação a seus clientes e assim
sucessivamente. Ao longo dessa cadeia, as empresas recolhem ao governo a
diferença entre o imposto incidente sobre a saída de mercadorias e serviços
(débitos) e o imposto pago na entrada (créditos). Em termos líquidos recolhe-se
o equivalente à tributação da diferença entre o valor das vendas brutas, em sua
maior parte, e o valor das aquisições de insumos e mercadorias. Essa
diferença representa, grosso modo, o valor que cada firma agrega aos produtos
por ela produzidos e comercializados.
No final da cadeia, o último adquirente, não tendo para quem mais
repercutir o imposto, suporta todo o ônus do tributo. Por essa sistemática de
débitos e créditos procura-se onerar, destarte, somente o consumo, anulando-
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se os efeitos da tributação sobre as transações intermediárias, sobre a
eficiência da produção e sobre a formação dos preços relativos (1).
As características da repercussão, da multifase, da não-cumulatividade
do imposto e do método de crédito do imposto pago na transação anterior
evitam a cobrança de impostos em cascata (cumulatividade). Essa espécie de
tributação articula-se em nexos indissociáveis cujo rompimento compromete
outra vantagem: sua neutralidade sobre os negócios privados. Ou seja, busca-
se a arrecadação tributária, mas neutralizando seus efeitos sobre os
mecanismos de mercado que, supostamente, primam pela maximização da
eficiência e da eficácia, seja na alocação dos escassos recursos disponíveis no
sistema econômico, seja na formação dos preços relativos, o que inclui preços
intermediários e finais, ou, ainda, na localização geográfica dos
empreendimentos.
Não se pretende fazer apologias a excelência do mercado como ente
supremo da maximização da eficiência e, muito menos, ao Governo, ente por
excelência da regulação e/ou direcionamento da atividade econômica, mas, tão
somente, destacar o aspecto filosófico que, originariamente, orientou a
arquitetura dos impostos sobre o valor agregado desde os seus primórdios na
França da primeira metade do século XX (2). Tais impostos deveriam manter-se
neutros em relação aos fluxos das transações correntes da economia e da
formação de capital e, para atingir tal fim, recaiam, em última instância, sobre o
consumo. Em outras palavras, onerar o consumo implicaria o livre fluir dos
bens e serviços pela economia de acordo com as leis que lhes são próprias.
Ideia, aliás, presente nos postulados clássicos de Adam Smith e de David
Ricardo (3).
1 Since (the tax) is levied, ultimately, on consumption and not on intermediate transactions between firms- while tax is charged on such purchases it is, in effect, fully refunded – a VAT does not distort the prices that producers face in buying and selling from one another. Accordingly, the tax has the desirable feature of not violating production efficiency…Taxes on intermediate transactions, in contrast, if not offset will drive a wedge between the buying and selling prices of producers. International Monetary Fund (2001) – p. 15 e 16. Observem que a substituição tributária rompe todos estes mecanismos. 2 International Monetary Fund (2001) – p. 1 a 8. 3 Ver A Riqueza das Nações de Adam Smith e Princípios de Economia Política e de Tributação de David Ricardo.
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A antiga tributação cumulativa sobre os fluxos de comércio funcionava
como obstáculo aos princípios defendidos por Smith e Ricardo, assim como as
exações unifásicas no meio das cadeias produtivas, a exemplo dos antigos
impostos únicos, não menos cumulativos. Os impostos únicos, imposto único
sobre combustíveis ou imposto único sobre minerais, eram cobrados no Brasil
no sistema que antecedeu o ICMS. Sua incidência era sobre o consumo, tanto
o consumo intermediário como o final. Uma transportadora, por exemplo,
pagava o imposto sobre o consumo de óleo diesel e não podia aproveitar o
respectivo crédito, pois os impostos unifásicos cobrados no consumo
intermediário eram cumulativos. Os impostos cumulativos pela falta de
neutralidade afetavam a atividade econômica em vários sentidos: encareciam a
produção, distorciam a formação dos preços relativos, promoviam a
verticalização dos negócios privados, funcionando como freios ao crescimento
econômico, além de instigar a evasão fiscal.
Nos anos de 1920, o industrial alemão Von Siemens propôs a criação de
um imposto sobre as vendas de indústrias de forma não cumulativa (4). Mas
somente a partir dos anos 1950, a ideia da tributação não cumulativa começou
a inserir-se nos sistemas tributários de vários países. Em 1965, um novo marco
na história da tributação não cumulativa do valor agregado: o Brasil inova ao
introduzir a tributação em dois níveis, o IPI, no nível do governo central, e o
antigo ICM, no nível subnacional (Estados e Distrito Federal). Inovou, também,
na amplitude das bases de incidência, incluindo desde operações mercantis da
indústria ao comércio de varejo, algo, até então, inédito em todo o mundo.
A partir dos anos 1970, os Impostos sobre o Valor Agregado – IVA -
conquistaram sistemas tributários dos mais diversos países do mundo
capitalista. Da Europa ao continente africano, do Canadá aos demais países
latino-americanos, da Oceania à Ásia. Curiosamente, os EUA ficaram fora
dessa “regra” (5). A ampla divulgação da tributação do valor agregado tinha
razão de ser. Tratava-se, segundo Richard Bird (2009), de uma verdadeira
4 International Monetary Fund, 2001 – p. 04. 5 International Monetary Fund, 2001, p. 4 a 8
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máquina arrecadatória (6). Tributar o valor agregado implicava promover a
arrecadação a partir da sua formação multifásica e não cumulativa ao longo
das cadeias produtivas, propiciando consideráveis ganhos de receitas devido à
grande amplitude da sua incidência.
Pesquisas desenvolvidas pelo Banco Mundial (7) e pelo Fundo Monetário
Internacional (8), ao mesmo tempo em que identificaram e compilaram as principais características dos IVA em todo mundo, demonstraram a diversidade das suas formas de cobrança e das várias especificidades de cada IVA local.
Dentre as características comuns à maioria dos IVA apontadas por esses
estudos, destacam-se a amplitude das bases de incidência (da indústria ao
comércio de varejo), o uso do método do crédito como mecanismo para
operacionalizar a não-cumulatividade, a incidência multifásica e, o que chama a
atenção para os propósitos deste trabalho, tratamentos diferenciados para
pequenos contribuintes ou pequenas empresas e produtores rurais em grande
número em todos os países pesquisados (9). Além dessas características,
outras foram relacionadas como típicas do IVA: a cobrança na origem ou no
destino, a desoneração de bens de capital, a multiplicidade de alíquotas, a
opção por créditos físicos ou créditos financeiros, os regimes de diferimento,
entre outras, o que denota grande diversidade de escolhas na adoção de
impostos sobre o valor agregado.
Os compêndios do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional
demonstraram ainda que o tratamento diferenciado para pequenos
produtores/empresas é adotado em todos os países devido a dificuldades do
poder público em alcançar grande número de pequenos contribuintes
capilarizados. O traço comum desse tratamento são os regimes simplificados
de recolhimentos pela aplicação de uma alíquota mais baixa sobre a receita
bruta de vendas - uma exceção ao método do crédito. Outro procedimento
comum são os esquemas de diferimento, também conhecidos como ring
systems, quando uma indústria ou outro grande agente da cadeia produtiva se
6 Money Machine, no original em inglês. 7 The World Bank, Value Added Taxation in Developing Countries – A Word Bank Sumposium (1999). 8 International Monetary Fund - The Modern Vat (2001). 9 Estas pesquisas envolveram quase todos os países onde há impostos sobre o valor agregado.
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responsabiliza pelos impostos dos pequenos produtores/fornecedores. Além
desse procedimento, observam-se também transferências de créditos de
produtores rurais para seus adquirentes comerciais ou industriais. Soluções do
tipo substituição tributária para frente, foram consideradas exceções adotadas
em poucos países, além do Brasil, Argentina, Malawi, países bálticos, algumas
repúblicas da antiga União Soviética e Belarus. Mesmo assim, alguns desses
países já aboliram a substituição tributária.
Considera-se importante destacar que a tributação cumulativa e/ou
unifásica nas transações intermediárias será mais problemática, quanto mais
complexa e diversificada for a estrutura produtiva de uma economia. A
complexidade do sistema econômico determina relações interempresariais
mais matriciais e menos lineares. Nesse sentido, complexas formações de elos
multisetorias tornam extremamente inviáveis os impostos cumulativos
repercussivos ou cumulativos unifásicos. Nessas condições, a tributação
cumulativa e/ou unifásica acaba por onerar a produção a ponto de estimular as
empresas a reverem suas estruturas organizacionais e suas operações para
escaparem do tributo. Isto é muito comum entre coligadas de um mesmo grupo
empresarial em que algumas empresas têm a “função” de recepcionar vendas
subfaturadas. Outro problema é que a tributação cumulativa torna incerto o
ônus tributário sobre bens e serviços localizados na ponta do consumo, que
fica na dependência do número de fases que antecedem a etapa final da
cadeia produtiva, o que, dentre outros inconvenientes, desorganiza a formação
dos preços finais (10).
Diante desses problemas, a tributação não cumulativa revelou-se a mais
adequada por tornar neutra (ou quase neutra) sua influência nas transações
intermediárias. Os impostos cumulativos foram abolidos na maioria dos
sistemas tributários mundo afora. E a tributação unifásica cumulativa deixou de
ser aplicada em transações intermediárias para ser aplicada em transações
10 Em alguns países da Europa e na América do Norte, impostos unifásicos do tipo Excise Tax e Retail Sales Tax nunca são cobrados em fases intermediárias do comércio, mas nas vendas de varejo, ou seja, na etapa final da cadeia produtiva (The World Bank, 1999, p. 45-48).
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finais, normalmente na última etapa das cadeias produtivas, no consumo de
varejo.
As características intrínsecas e indissociáveis que se desenvolveram em
torno dos IVA ao longo das décadas contemplam a necessária neutralidade
que esta espécie de tributo deve ter, especialmente em países de complexas
estruturas industriais (11). Além das características já apontadas (repercussão,
multi-etapa e não cumulatividade), tornou-se consenso em todo mundo a
utilização do método do crédito como meio de operacionalizar a repercussão,
bem como a incidência dos IVA sobre preços de mercado, este último dado é
relevante para este trabalho. Conclusão
O ICMS é um imposto cuja concepção original atendia aos princípios
clássicos da tributação do valor agregado desenvolvida na segunda metade do
século XX. Sua origem é o antigo ICM, que foi instituído nos moldes de um IVA
em substituição aos impostos cumulativos presentes em nosso sistema
tributário, mormente o Imposto sobre Vendas e Consignações. A experiência
tem demonstrado que impostos cumulativos oneram a produção, instigando
reestruturações de negócios e evasão fiscal. Da mesma forma, impostos
unifásicos cobrados no meio das cadeias produtivas tornam-se cumulativos e,
por isso, normalmente são cobrados na etapa final, a exemplo dos impostos
sobre o consumo como o Retail Sales Tax (EUA) e o Excise Tax (Grã
Bretanha).
À medida que as estruturas produtivas da economia tornam-se
complexas, mais problemática é a cobrança de impostos cumulativos e
unifásicos no meio das cadeias produtivas. Em seu lugar, os impostos não
cumulativos do tipo IVA são a melhor opção porque neutralizam os efeitos da
tributação nos elos intermediários das cadeias produtivas. Vale esclarecer que
11 Essas outras características referem-se à adoção do princípio de destino nas transações de comércio exterior, à variedade de alíquotas conforme a natureza das operações e dos bens transacionados e, uma das mais propaladas, à desoneração do investimento pelo aproveitamento integral do imposto referente às aquisições de bens de capital como crédito fiscal pelos adquirentes. Esta última e a adoção do princípio de destino são as características-chave para fazer valer outra característica fundamental dos IVA: a limitação do seu alcance impositivo sobre a parcela do Produto equivalente somente ao consumo.
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a neutralidade da tributação reforça a eficiência do sistema econômico, do qual
depende o poder público para arrecadar receitas. E são justamente as
características intrínsecas e indissociáveis dos IVA, tais como a repercussão
do ônus tributário, a não-cumulatividade, a tributação multifásica, a utilização
do método do crédito, a amplitude da tributação e a formação das bases de
incidência sobre preços de mercado, quando combinadas em um único
sistema, que se auto reforçam em prol da neutralidade da tributação do valor
agregado.
Nesse contexto, insere-se a substituição tributária, utilizada como
instrumento promotor de arrecadação pelo combate à sonegação futura,
afetando toda a ordem estabelecida e desencadeando reações pró-evasão
entre os agentes privados. Ou seja, o mal acaba voltando-se justamente contra
quem quis a todo custo evitá-lo e o que se pretende combater, a evasão, passa
a ser um crescente e preocupante problema. Compreender como esse fato
acontece é o objetivo maior deste trabalho. Antes, porém, as características da
substituição tributária serão examinadas.
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CAPÍTULO 2
Características e evolução geral da substituição tributária no Brasil
A substituição tributária é um regime pelo qual a lei atribui a outrem a
responsabilidade pelo pagamento do imposto devido pelo contribuinte que
praticou o fato gerador. A obrigação tributária é deslocada para terceira pessoa
que não o contribuinte original. Este regime foi concebido para facilitar a ação
do Fisco na promoção da arrecadação tributária (12). Segundo Paulsen (2010,
p. 83), os primeiros registros da normatização desse instituto se deram na
Alemanha no início do século XX com o advento do Código Tributário do Reich
(Reichsabgabenordnung), sobre o qual Albert Hensel publicou em 1924 a obra,
Direito Tributário (Steuerrecht).
Paulsen esclarece que Hensel não abordou, nessa obra, a substituição
tributária de modo específico, “deixou claro, ao analisar a figura do devedor
tributário, que não raramente outra pessoa que não o devedor tributário era
considerado pela lei como obrigado ao pagamento, tendo exemplificado com as
hipóteses de retenção sobre rendimentos do trabalho e do capital.” (2010, p.
84). No Direito alemão, a transferência da obrigação originária para um terceiro
já configurava uma espécie de substituição tributária, também utilizada em
outros países europeus.
O tratamento desse instituto no Direito Tributário da Suíça (anos 1930),
da Itália (anos 1930) e da Espanha (anos 1940) também é descrito por
Paulsen, bem como o tratamento mais recente pela Lei Geral Tributária
Portuguesa de 1998. No Direito desses países, é recorrente o caráter dual
dessa espécie de obrigação tributária com a presença de dois sujeitos
passivos: um terceiro a quem se atribui a responsabilidade pela retenção e
recolhimento do tributo, hoje denominado substituto e o outro, devedor
12 Conferir a conceituação de Panzarini (2008): A substituição tributária é o mecanismo pelo qual o ICMS incidente nas sucessivas saídas promovidas pelos atacadistas ou varejistas é retido na fonte por industrial ou importador (substitutos) no momento da venda da mercadoria para os comerciantes (substituídos).
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originário, o substituído. Em todos esses casos, a transferência da obrigação
tributária para um polo concentrador da arrecadação é sempre entendida como
medida de eficácia e garantia do crédito tributário. O objetivo é evitar a evasão
dos devedores originários, normalmente muito pulverizados.
A passagem abaixo, transcrita de Paulsen (2010), ilustra bem o espírito
e o intuito da substituição tributária:
“No direito Espanhol, considera-se que ‘la sustitución es um tipo
concreto de colaboración.’(13) Dá-se ‘por razones de técnica o eficácia
recaudatoria’(14) e tem como objetivo ‘simplificar la gestión y la recaudación tributária mediante la reducción del número de relaciones jurídicas por la
Hacienda’ (15)...” (p.104,5)
A ideia de eficácia e simplificação da gestão tributária pela concentração
da fiscalização e controle da arrecadação em poucos contribuintes no lugar de
ampliar para outros que com eles se relacionam aparece em todas as
concepções analisadas pelo estudioso no Direito dos países europeus citados.
Na conclusão de seu trabalho, Paulsen destaca que “a utilidade do instituto da
substituição tributária como mecanismo de facilitação, racionalização e garantia
da arrecadação faz com que esteja presente nos diversos ordenamentos
jurídicos.” (grifos nossos)
O aspecto relevante do estudo é demonstrar que as relações analisadas
referem-se a situações em que o terceiro a quem se atribui a responsabilidade
pela retenção e recolhimento do tributo, o substituto, mantém direta e estreita
relação com o fato gerador. O exemplo recorrente no texto de Paulsen são as
retenções de impostos em que empregadores são obrigados a reter e recolher
o imposto no lugar dos empregados.
13 CALVO ORTEGA, Rafael. Curso de Derecho financiero. I. Derecho Tributário. 11ª ed. Thomson/Civitas, 2007, p. 157. 14 GONZALEZ, Eusébio; GONZALEZ, Teresa. Derecho Tributário I. Plaza Universitária, Salamanca, 2004, p. 247. 15 GONZALEZ, Eusébio; GONZALEZ, Teresa. Op. cit., 2004, p. 247.
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As manifestações de substituição tributária analisadas por Paulsen
demonstram duas características marcantes que são os elementos centrais
dessa espécie de responsabilidade: a utilidade como mecanismo de facilitação,
racionalização e garantia de arrecadação, a que neste trabalho denomina-se
pressuposto da utilidade, e o vínculo direto que há entre o responsável e o fato
gerador (ou fato imponível), a que neste trabalho denomina-se pressuposto do
vínculo direto. O uso desse instituto em impostos sobre valor agregado só é
funcional, como será demonstrado, quando os dois princípios estiverem
presentes.
A substituição tributária no Brasil
No Brasil, a introdução desse instituto no Direito se deu pelo Código Tributário Nacional de 1966 que, em seu artigo 121, distingue o contribuinte,
sujeito passivo que “tenha relação pessoal e direta com a situação que
constitua o respectivo fato gerador” (16), do responsável, sujeito que, “sem
revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição
expressa de lei” (17). O mesmo Código prevê no artigo 128 a possibilidade da lei em “atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a
responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do
cumprimento total ou parcial da referida obrigação”. (grifos nossos) (18)
Nosso Código Tributário Nacional é enfático: o responsável deve manter
vínculo direto com o fato gerador e somente a lei pode atribuir tal
responsabilidade (19). Esse vínculo se faz em respeito à capacidade econômica
do substituto como garantia da presunção de liquidez e certeza que cerca o
crédito tributário (Derzi, 2010, p. 737). Não se pretende alongar-se sobre o
aspecto jurídico da questão, mas tão somente chamar a atenção para a
problemática do não respeito a este princípio nos casos de substituição
16 Brasil, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 121. 17 Idem. 18 Brasil, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 128. 19 Assim se posiciona Aliomar Baleeiro (2010): “A lei, e só ela, de modo expresso, pode substituir o contribuinte por outra pessoa, desde que vinculada ao fato gerador da obrigação tributária.”
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tributária para frente em que o responsável (substituto) não tem vínculo com os
fatos geradores futuros sobre os quais a responsabilidade do imposto lhe é
atribuída.
Rosa (2011) comenta que para “facilitar o controle da arrecadação e
fiscalização, os Estados, logo no primeiro ano de vigência do ICM, na década
de 70, já começaram a pensar na substituição tributária como forma de facilitar
a operacionalização do imposto.” Naquela época, os Estados passaram a
cobrar o imposto “na fonte, onde o fabricante, ao vender para o comerciante, já
deveria reter o ICM que incidiria na venda futura, portanto, antes da ocorrência
do fato gerador.” (p. 108).
A primeira manifestação concreta de substituição tributária apontada por
Rosa se deu pelo Protocolo ICM nº 02/72 entre os Estados das regiões Norte e
Nordeste reunidos em Brasília, época em que ainda não existia o Conselho
Nacional de Política Fazendária, o CONFAZ. O protocolo estabelecia a
retenção do ICM na fonte para produtos como farinha de trigo, cerveja,
refrigerantes e cana-de-açúcar. (PricewaterhouseeCoopers, 2010, p. 11)
Segundo a cláusula primeira desse Protocolo, os Estados deveriam
tomar providências para que os seus contribuintes efetuassem a retenção do
ICM nas saídas internas ou interestaduais dos produtos referidos. Essa
retenção seria calculada de acordo com determinadas margens a serem
aplicadas sobre o preço de venda do estabelecimento (ou preço de saída). A
cobrança antecipada dos impostos sobre fatos geradores futuros só se tornaria
possível mediante valoração das bases de cálculo por estimativas,
diversamente das que seriam estabelecidas a preço de mercado. Rosa (2011)
comenta ainda que no início dos anos 70 esse instituto foi largamente utilizado
pelos Estados por meio de regimes especiais aplicados a grandes fabricantes
de cigarros, cervejas, refrigerantes e a “indústrias de cosméticos que utilizavam
grande número de revendedores autônomos em vendas porta-a-porta
(marketing direto).” (p. 155).
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Na época, havia no Brasil dois ou três fabricantes de cervejas e duas ou
três marcas da bebida, cuja produção era altamente concentrada. Além disso,
o produto era extremamente homogêneo, tanto do ponto de vista das suas
características físicas como no de preços, sendo vendido em milhares, senão
milhões, de bares e restaurantes distribuídos por diversos centros urbanos
(grande capilaridade). As mesmas características estavam presentes na
fabricação e distribuição de cigarros e de outras mercadorias que passaram
para o regime de retenção antecipada.
Esses produtos, além de fisicamente homogêneos, tinham preços de
varejo bem conhecidos. Muitos eram tabelados pela antiga Superintendência
Nacional de Abastecimento, a SUNAB, e outros pelo próprio fabricante, cujos
distribuidores entregavam a mercadoria juntamente com um pequeno cartaz
contendo a descrição do produto e seu preço de varejo, que deveria ser fixado
no estabelecimento comercial do varejista.
Quanto aos cosméticos, a capilaridade talvez fosse ainda maior. Havia
pouquíssimos fabricantes e importadores, e as vendedoras tinham clientes
distribuídos em milhões de residências e salões de beleza. Apesar dessa
realidade, os preços dos produtos também eram bastante conhecidos, pois as
representantes se faziam acompanhar de listas de preços dos produtos que
vendiam de porta em porta.
Em todos esses casos, a cobrança do imposto na fase final do varejo era
extremamente inviável e custosa em razão das limitações tecnológicas e das
estruturas de mercado da época. Em suma, os primeiros produtos a entrarem
na substituição tributária, eram produtos homogêneos de alta concentração
industrial (ou de importação) e de grande capilaridade varejista. Seus preços
de varejo eram igualmente homogêneos e conhecidos e, em muitos casos,
tabelados.
Essas características estavam em conformidade com o pressuposto
clássico da transferência de responsabilidade da obrigação tributária, o
pressuposto da utilidade (facilitação, racionalização e garantia da arrecadação)
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(20), embora não atendessem ao pressuposto do vínculo direto. O responsável
substituto não participava diretamente da venda do distribuidor para varejista
nem deste para o consumidor final. Da mesma forma, no caso das
representantes de cosméticos, os fabricantes ou distribuidores nacionais não
participavam diretamente da venda dos produtos.
Nesse caso, a desvinculação do responsável com o fato gerador que só
aconteceria no futuro era algo inédito. A situação impunha a necessidade de se
conhecer, no presente, o valor da base de cálculo no futuro. O problema foi
contornado pelas estimativas de margens de valor agregado a serem aplicadas
sobre os preços de saída do fabricante ou do importador. Como o preço de
varejo era homogêneo e conhecido, as margens eram mais aderentes à
realidade dos preços de mercado. Nessas condições, o imposto incidente nas
operações de varejo podia ser capturado antes do consumo, no fabricante ou
importador com razoável grau de aderência da base de cálculo à realidade do
mercado. A ausência do pressuposto do vínculo direto não representava,
portanto, um problema sério, bastava a plenitude do pressuposto da utilidade.
Naquela época, a espécie de substituição tributária referida representava
grande produtividade arrecadatória e maior eficácia do Fisco, cuja presença
(fiscalização) em milhões de varejistas era praticamente impossível. A
fiscalização era feita sobre alguns grandes fabricantes ou importadores por
amostragem de registros devido às limitações da tecnologia de informação,
então disponível (pressuposto da utilidade). Entretanto, essa espécie de
tributação sepultava dois dos quesitos fundamentais da tributação do valor
agregado: o uso do método do crédito e a tributação multifásica. O primeiro
quesito perdia o próprio sentido de ser, porque a partir da retenção não haveria
mais imposto a ser creditado, já que este fora todo recolhido nas fases
anteriores. Quanto ao segundo aspecto, ao concentrar a arrecadação em
determinadas empresas tornava-a com características de unifásica no meio
das cadeias produtivas, algo totalmente fora da lógica dos IVA.
20 Mizabel Derzi (2010, p. 737) enumera pressupostos semelhantes: praticidade, comodidade na arrecadação, garantia do crédito e proteção contra a evasão.
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Mesmo com essa descaracterização, as primeiras formas de
substituição tributária sobre fatos geradores futuros não provocavam sérias
cumulatividades no então ICM, já que não havia consideráveis distorções das
margens estimadas em relação aos preços de mercado. Em outras palavras, a
não-cumulatividade continuava presente uma vez que o imposto antecipado
representava a soma das parcelas que seriam recolhidas de forma não
cumulativa em cada fase (futura) da cadeia produtiva, cuja incidência se dava
sobre bases de cálculo de razoável aderência aos preços de mercado.
A reação dos comerciantes, contudo, não foi favorável ao regime. A
ausência do método do crédito e a retenção dos impostos futuros pelo
fabricante implicavam o encarecimento da mercadoria para o
distribuidor/atacadista que teria de mobilizar maior parcela do seu capital de
giro para quitar a fatura. Muitos ingressaram na justiça questionando a sua
legalidade (Rosa, 2011, p. 155). Para contemporizar as críticas, a Lei
Complementar 44/83, em seu parágrafo 3º do artigo 3º, acrescentou ao artigo
6º do Decreto-Lei nº 406/68 “que fazia as vezes de lei complementar do velho
ICM, a possibilidade da substituição tributária para frente.” (Rosa, 2011, p.
155):
§3º - A lei estadual poderá atribuir a condição de responsável:
a) ao industrial, comerciante ou outra categoria de contribuinte, quanto ao imposto devido na
operação ou operações anteriores promovidas com a mercadoria ou seus insumos;
b) ao produtor, industrial ou comerciante atacadista, quanto ao imposto devido pelo comerciante
varejista (grifo nosso);
c) ao produtor ou industrial, quanto ao imposto devido pelo comerciante atacadista e pelo
comerciante varejista (grifo nosso);
§4º - Caso o responsável e o contribuinte substituído estejam estabelecidos em Estados diversos,
a substituição dependerá de convênio entre os Estados interessados.
O item “a” referia-se à substituição tributária nas operações
antecedentes, como se verá ainda neste capítulo. Os itens “b” e “c” referiam-se
à substituição tributária das operações futuras, que a partir de então passou a
ter amparo em Lei Complementar. Criava-se status legal para a ficção jurídica
20 www.BLOGdoAFR.com
dos fatos geradores futuros ou presumidos, embora não descritos naquele
momento com esse nome.
Para o caso de indústrias e atacadistas que viessem a vender
mercadorias para outros Estados (fatos geradores a ocorrer em outros
Estados), o parágrafo 4º estabelecia a necessidade (“dependerá”) de convênio
para substituição tributária em operações e prestações interestaduais. A
medida era necessária para que um Estado repassasse ao outro o produto da
arrecadação do imposto retido por substituição. Além disso, na ausência de
convênios, mercadorias adquiridas com substituição tributária em um Estado e
negociadas em outro teriam de ser vendidas sem o imposto retido, o que daria
ao remetente do Estado de origem o direito à restituição (não se falava em
ressarcimento na época).
Vale lembrar que a lei tributária que introduz essa espécie de retenção
tem eficácia somente dentro do próprio Estado, não produzindo efeitos em
outros, justificando, assim, a necessidade de convênios. Por esse motivo, os
Estados, ao incluírem um produto na substituição tributária, normalmente o
faziam mediante convênios com outros Estados, o que evitava acúmulo de
pedidos de restituição (ressarcimento). Rosa (2011, p. 156), em seu trabalho,
esclarece que os questionamentos jurídicos e as ações dos contribuintes
contra os Estados continuavam, com decisões que ora pendiam a favor dos
contribuintes, ora a favor dos Estados.
O próximo passo foi a Constituição Federal de 1988, que no artigo 155,
parágrafo 2º, XII, b, estabeleceu que caberia à lei complementar dispor sobre
substituição tributária. A Emenda Constitucional nº 3/93, embora considerada
por alguns autores de duvidosa constitucionalidade (21), previu no próprio texto
constitucional (parágrafo 7º do artigo 150) que:
Art. 150.
§7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável
pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada
21 Conferir CARRAZA, Roque Antônio. ICMS. 13ª ed. Malheiros Editores, 2007, p. 312-315.
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a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido
(grifos nossos).
A partir dessa emenda, o instituto da substituição tributária sobre fatos
geradores futuros estaria constitucionalmente garantido. A figura do fato
gerador presumido, ficção jurídica que até então era subentendida nas
referências ao imposto devido por futuros sujeitos passivos, aparecia “com
todas as letras” em um texto constitucional, qualificando com maior propriedade
o que seriam “fatos gerados futuros”.
Outra novidade na lei era a possibilidade da “imediata e preferencial
restituição da quantia paga” caso o fato gerador presumido não se realizasse.
O que seria correto. Porém, tempos depois, o dispositivo seria o motivo
alegado para o não ressarcimento do imposto pago nos casos em que a
mercadoria fosse comercializada no varejo por preço final inferior ao previsto
nas margens de retenção.
O dispositivo constitucional previsto no artigo 155, parágrafo 2º, XII, b,
entretanto, só viria a ser atendido com a Lei Complementar 87/96, a chamada
Lei Kandir, que dispôs sobre substituição tributária do ICMS, destacando a
aplicação deste instituto em três dimensões temporais:
a) substituição tributária nas operações ou prestações antecedentes;
b) substituição tributária nas operações ou prestações concomitantes;
c) substituição tributária nas operações ou prestações subsequentes,
também denominada substituição tributária para frente ou
progressiva, como já esclarecida neste trabalho.
Verbis:
Art. 6º - Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer
título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que o contribuinte assumirá a condição de
substituto tributário.
§ 1º - A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou
mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subsequentes, inclusive ao valor
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decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem
bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto (grifos
nossos).
Com este dispositivo, a Lei Complementar 87/96 – a Lei Kandir -
consolidou o instituto da substituição tributária no Brasil, promovendo, de uma
vez por todas, em operações subsequentes, a desvinculação entre o
responsável e o fato gerador da obrigação tributária, contrariando o que fora
disposto no artigo 128 do CTN (22). Além disso, dispôs, em seu artigo 9º, sobre
a necessidade de acordo (convênio ou protocolo) entre os Estados para a
aplicação da substituição tributária para frente nas operações interestaduais, o
que, como já destacado, é necessário para se garantir a justa distribuição de
receitas entre as unidades federadas e, ao mesmo tempo, evitar-se o acúmulo
de pedidos de ressarcimento.
A partir da Lei Kandir e até o ano de 2007, o sistema funcionou em
relativa harmonia entre os Estados. Havia certa variação das mercadorias
sujeitas ao regime de Estado para Estado, isto é, cada Estado continha sua
cesta de mercadorias sujeitas ao regime. Todavia, os Estados firmavam
convênios que abrangiam a maior parte delas, o que conferia ao sistema
alguma harmonização. Enquadravam-se no regime mercadorias relativamente
homogêneas, tanto em suas características físicas como em preços finais, cuja
produção fosse altamente concentrada e vendas de varejo amplamente
pulverizadas. As mercadorias que mais se enquadravam nesses pressupostos,
na época, eram automóveis, pneus, motocicletas, cigarros, refrigerantes,
cervejas, chope e, depois da Constituição Federal de 1988, combustíveis (23),
22 Conferir o posicionamento de Mizabel Derzi (2010, p. 739): O interesse (na capacidade econômica do responsável e os meios de garantir-lhe o ressarcimento do imposto pago) é crescente nas hipóteses de substituição tributária progressiva ou “para frente”, cuja peculiaridade reside em que o acontecimento do fato descrito na norma secundária antecede temporalmente o acontecimento do fato descrito na norma primária. A inversão aproxima a criação legislativa da inconstitucionalidade, pois cria obrigação para o responsável antes sequer nascida a do contribuinte e ofende a capacidade econômica, que deve ser sempre atual – nunca antes de se concretizar. As leis ordinárias contêm uma série desses exemplos exorbitantes.
23 Antes da Constituição Federal de 1988, o antigo ICM não tributava “combustíveis”, que eram tributados pelo antigo Imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de combustíveis e lubrificantes líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza de competência da União (Amed & Negreiros, 2000, p. 285).
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que, dentre outras, tornaram-se as mercadorias “tradicionais” da substituição
tributária.
A Lei Kandir amenizou os conflitos sobre a validade jurídica da
substituição tributária. Entretanto, a partir de então, aprofundaram-se os
conflitos em torno das diferenças do imposto pago nos casos em que a base de
cálculo utilizada para a retenção superava a base de cálculo realizada na ponta
final, a preços de mercado. Esses conflitos, ainda não superados, encontram-
se sob judice, como se verá no próximo capítulo.
A partir do ano de 2008, constata-se uma profusão descoordenada de
leis e decretos estaduais autônomos para a inclusão de um número crescente
de produtos na substituição tributária para frente e poucos acordos entre os
Estados. Essas práticas degradaram cada vez mais o ICMS como imposto
sobre valor agregado, provocando inseguranças jurídicas pela constituição de
sujeitos passivos sem vínculos com o fato gerador, descaracterizando a base
de cálculo do ICMS e transformando o instituto da substituição tributária na
maior panaceia tributária que já se verificou neste país.
A esta altura da discussão seria pertinente examinar as modalidades de
substituição tributária elencadas na Lei Kandir.
As modalidades de substituição tributária
A Lei Kandir, no art. 6º parágrafo 1º, arrolou três modalidades de
responsabilidade, o que implica três modalidades de substituição tributária:
A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou
mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subsequentes.. (grifos
nossos)
Em razão de a substituição tributária subsequente, ou para frente, ter
sido tratada na seção anterior, dá-se, nesse momento, destaque à substituição
tributária antecedente ou regressiva ou, ainda, para trás, cuja responsabilidade
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é atribuída a um terceiro em relação às operações ou prestações
antecedentes. Neste caso, o terceiro é o receptor de mercadorias remetidas ou
de serviços prestados por pequenos produtores de baixo grau de formalização,
ou por pessoas físicas não inscritas como contribuintes do imposto
(ambulantes, catadores, etc), ou, ainda, por grande número de pequenas
empresas, mesmo que formalizadas. O receptor normalmente é uma empresa
ou organização formalizada de maior porte, podendo ser uma cooperativa, um
armazém, uma fábrica ou um processador de sucatas (24). A responsabilidade
pelo pagamento do imposto dessas operações ou prestações fica atribuída ao
receptor da mercadoria ou do serviço prestado. Ou seja, desloca-se a
responsabilidade do contribuinte (substituído) para o responsável (substituto).
Trata-se do chamado imposto diferido ou do instituto do diferimento.
No Brasil é comum essa espécie de substituição tributária no setor
sucro-alcooleiro em que uma usina de açúcar e álcool é a responsável pelo
ICMS das remessas de cana por produtores rurais. Além das remessas da
cana em caule do produtor para a usina, o ICMS das remessas do álcool anidro
da usina para a refinaria, onde será misturado à gasolina, também é diferido
para a receptora (a refinaria). Nesse caso, há duplo diferimento na cadeia, do
produtor para a usina (remessas de cana) e desta para a refinaria (remessas
de álcool anidro).
No Estado de São Paulo há outros casos de aplicação do diferimento,
como, por exemplo, nas saídas de produtos agropecuários como algodão em
pluma, café cru, aves, gado, hortifrutigranjeiros, laranja e leite do produtor para
a indústria. O ICMS dessas operações fica diferido para o momento da saída
dos produtos resultantes da sua industrialização ou abate (artigos, 329 a 389
do Regulamento do ICMS/SP).
A substituição tributária antecedente ou regressiva é própria de
estruturas de mercado imperfeitas denominadas como monopsônios ou
24 No Relatório do Banco Mundial (1999), p. 156-167, relatam-se casos semelhantes de responsabilidade atribuída a terceiros nos chamados ring systems adotados em alguns países africanos, quando uma indústria ou um exportador são os responsáveis pelos impostos de seus pequenos fornecedores rurais.
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oligopsônios, em que há um único ou poucos compradores que centralizam a
aquisição da produção de vários fornecedores. A ação do Fisco, neste caso,
torna-se mais eficiente e eficaz junto ao adquirente centralizador, o responsável
pelo recolhimento dos tributos devidos pelos seus fornecedores.
No que se refere aos impostos do tipo IVA, há dois procedimentos
básicos para operacionalizar o diferimento. No primeiro, os adquirentes apenas
recebem a mercadoria ou o serviço sem o tributo e, por isso, não efetuam o
crédito. Nesse caso, a receita do imposto é integralmente capturada na ocasião
em que o responsável vende a sua própria produção. Como não houve crédito
na entrada, o débito da operação seguinte engloba tanto o imposto sobre o
valor por ele agregado quanto o da operação antecedente, o que seria devido
pelo remetente do substituto. Rosa (2011, p.111) adverte que o diferimento não
se caracteriza como benefício fiscal. A operação ou prestação antecedente é
tributada, apenas adia-se o momento do lançamento e do recolhimento do
imposto transferindo-se sua responsabilidade para outrem (o adquirente).
No segundo caso, o adquirente, ao receber mercadoria ou serviço com
diferimento, paga ao governo o imposto dessa operação antecedente no ato do
recebimento e aproveita o respectivo crédito para compensação contra os
débitos decorrentes de suas vendas (ou saídas) subsequentes.
Em ambas as situações, o responsável recolhe tanto o imposto da
operação ou prestação antecedente como o da sua própria operação ou
prestação. Não há cumulatividade. O efeito cascata está ausente porque o
imposto pago sob qualquer um desses regimes de diferimento não inclui, em
sua própria base, o imposto da operação anterior. Vale dizer, o centralizador
desembolsa e repercute o mesmo imposto que pagaria e repercutiria caso não
houvesse o diferimento sob um sistema normal de débitos e créditos. A
incidência do imposto continua sendo sobre o valor agregado, apenas desloca-
se a parcela devida pelo contribuinte (antecedente) para o substituto, que
continua mantendo vínculos diretos com o fato gerador.
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Outros aspectos relevantes da modalidade de substituição tributária
referida são: primeiro, a incidência ocorre sobre os reais preços de mercado;
segundo, está presente a repercussão do ônus tributário; terceiro, o método do
crédito não é desconsiderado, e quarto, o imposto continua plurifásico, embora
com certa concentração em alguns pontos da cadeia.
O que se pretende elucidar é que o diferimento não macula as
características intrínsecas do IVA a ponto de tornar inviável a sua utilização.
Em razão de o substituto manter relação direta com o fato gerador, uma vez
que participa na ponta da recepção da mercadoria, é estabelecido um vínculo
que faz com que a base de cálculo possa ser constituída a preços de mercado,
não afetando a formação dos preços no restante da cadeia. Ou seja, tanto os
princípios da utilidade como o do vínculo direto estão presentes, bem como as
características intrínsecas e indissociáveis do IVA. Nota-se que a presença do
pressuposto do vínculo direto reforça uma das características do IVA: a
formação da base de cálculo a preços de mercado. Um vínculo dessa natureza
faz dispensar o uso de pautas, margens e assemelhados.
Pelos motivos arrolados, confirma-se o diferimento como espécie
adequada de substituição tributária, comprovado pelo seu largo uso em todo o
mundo, conforme demonstram as pesquisas do Banco Mundial e do FMI.
Nas operações ou prestações concomitantes, duas hipóteses de
incidência e dois fatos geradores do mesmo imposto ocorrem ao mesmo
tempo. O exemplo clássico são as saídas de mercadorias que acarretam
concomitantemente as prestações de serviços de transporte (Rosa, 2011, p.
143). No Estado de São Paulo havia substituição tributária nessas transações
até julho de 2008, quando esta foi abolida. O serviço de transporte em São
Paulo tinha como responsável (substituto) o tomador do serviço. O
transportador era o substituído.
A aplicação da substituição nesse caso devia-se à existência de muitos
transportadores autônomos ou de transportadoras de outros Estados não
inscritas em São Paulo e que lá iniciavam a prestação do serviço. Nota-se que
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se considera como fato gerador o serviço de transporte iniciado no estado.
Porém, a aplicação da substituição tornou-se indistinta tanto para as empresas
transportadoras inscritas em São Paulo como para as não inscritas e também
aos autônomos. A grande mudança se deu em agosto de 2008 quando,
segundo Rosa (2011, p. 144), o governo estadual isentou “os serviços de
transporte de cargas com início e fim dentro do Estado.” Ainda de acordo com
o autor, em “1º de setembro voltou a tributação normal com o fim da isenção,
mas não voltou a substituição tributária” para as transportadoras paulistas. No
entanto, a substituição continua sendo aplicada para os serviços de transporte
de cargas prestados por transportadoras de outros Estados e por autônomos.
No caso descrito, o substituto – o tomador do serviço - está diretamente
vinculado na ponta receptora do fato gerador, o que garante a aplicação do
tributo sobre bases de cálculo reais, isto é, realizada a preços de mercado.
Estão presentes também o pressuposto da utilidade e todos os demais
quesitos da neutralidade do IVA (repercussão, não-cumulatividade, método do
crédito e IVA plurifásico), não sendo, portanto, problemática a substituição
tributária nas operações e prestações concomitantes, pelo menos do ponto de
vista dos pressupostos que fundamentam este trabalho.
Conclusão
As primeiras manifestações de substituição tributária que surgiram no
direito positivo europeu consideravam dois pressupostos básicos para a
aplicação deste instituto: a utilidade como mecanismo de facilitação,
racionalização e garantia da arrecadação (pressuposto da utilidade), e a
vinculação do responsável com o fato gerador (pressuposto do vínculo direto).
No Brasil, a substituição tributária surgiu com o CTN em 1966 que, em
seus artigos 121 e 128, previu a transferência de responsabilidade distinguindo
o contribuinte, sujeito passivo com relação pessoal e direta com o fato gerador,
do responsável, sujeito que teria sua responsabilidade atribuída por lei desde
que vinculado ao fato gerador. Três modalidades de substituição tributária
surgiram.
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A primeira, a antecedente, regressiva ou para trás, quando o
responsável (substituto) responde pelos tributos das operações ou prestações
anteriores dos seus remetentes, normalmente pessoas físicas ou jurídicas em
grande número. Exemplo recorrente dessa substituição tributária são os
mercados de gêneros agrícolas em que vários produtores fornecem sua
produção a um grande laticínio ou a uma grande cooperativa. É uma situação
típica de mercados mono ou oligopsônicos. Nessa modalidade, os dois
pressupostos básicos da utilidade e do vínculo direto estão presentes, além
disso, coaduna-se com as características intrínsecas e indissociáveis dos
impostos sobre o valor agregado. Em razão de sua natureza, sua evolução foi
pacífica, sem registros de grandes conflitos fisco/contribuintes. A ampla
utilização da substituição tributária antecedente em todo o mundo atesta a sua
conveniência.
A segunda, a concomitante, quando dois fatos geradores ocorrem
simultaneamente e a lei atribui a um dos sujeitos passivos a responsabilidade
pelos tributos de ambos. O exemplo típico é a prestação de serviços de
transporte de cargas em que o contratante, normalmente uma indústria ou um
atacadista, assume a responsabilidade pelos tributos sobre a saída da carga
transportada (fato gerador 1) e sobre o serviço de transporte (fato gerador 2).
Da mesma forma que a anterior, esta modalidade também se coaduna tanto
com os pressupostos básicos da utilidade e do vínculo direto, quanto com as
características intrínsecas e indissociáveis do IVA. Por este motivo também
não tem sido motivo de significativos conflitos entre Fisco e contribuintes.
A terceira modalidade, a substituição tributária subsequente, progressiva
ou para frente - doravante ST, quando a responsabilidade é atribuída a um
sujeito passivo em relação às operações ou prestações que ocorrerão no futuro
por outros sujeitos passivos com os quais ele não mantém vínculos, nem com
os respectivos fatos geradores (futuros). A responsabilidade atribuída ao
fabricante de cervejas pelos tributos devidos nas operações subsequentes dos
distribuidores aos varejistas e destes aos consumidores é um exemplo desta
modalidade. Nesse caso, dentre os pressupostos básicos da atribuição de
responsabilidade a terceiros, o da utilidade não é afetado, porém o do vínculo
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direto é plenamente desrespeitado. Além disso, a substituição tributária
subsequente macula as características intrínsecas e indissociáveis do IVA, tais
como, a cobrança multifásica, o método do crédito e a formação da base de
cálculo sobre preços de mercado. Destarte, anula-se uma das principais
vantagens do IVA, a sua neutralidade, o que tem provocado, como se verá,
sérios distúrbios nas cadeias produtivas.
A substituição tributária para frente, portanto, evoluiu de forma
conflituosa no Brasil. Contribuintes substitutos e substituídos sempre se viram
prejudicados, contestando na justiça a validade jurídica do instituto. Além disso,
o baixíssimo uso desta modalidade em todo o mundo atesta a sua
inviabilidade.
Todavia, a ST foi largamente utilizada pelos Estados da federação
brasileira sobre produtos que atendessem certas características e que,
posteriormente, se transformariam em quesitos básicos para a inclusão do
produto na substituição tributária. Assim, esses produtos deveriam apresentar
alta relevância para a arrecadação e que, ao mesmo tempo, tivessem sua
produção altamente concentrada, apresentassem relativa homogeneidade
física e de preços de varejo e tivessem suas vendas finais dispersadas por
grande quantidade de estabelecimentos varejistas. Deste modo, racionalizava-
se a fiscalização em poucos grandes contribuintes e garantia-se a arrecadação,
evitando-se a evasão do imposto pela alta capilaridade do varejo.
No início, a desvinculação do substituto em relação aos fatos geradores
futuros não representava grave distorção em termos de aderência das bases
de cálculo utilizadas na retenção do imposto por substituição tributária em
relação aos preços efetivamente praticados no mercado. Os preços de varejo
eram bem conhecidos e muitos, tabelados, o que possibilitava razoável
aderência daquela base de cálculo aos preços de mercado. Por isto, o
problema do ressarcimento não era grave. Porém, os comerciantes
contestavam na justiça a validade jurídica do regime, uma vez que onerava as
faturas das aquisições de mercadorias comprometendo maior parcela do seu
capital de giro.
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Desde os primeiros anos da década dos 70, mercadorias como
automóveis, pneus, motocicletas, cigarros, refrigerantes, cervejas, chope e
combustíveis (esta última, após a CF 1988) tornaram-se as mais utilizadas no
regime de substituição tributária para frente. Até 2007 estes produtos
“reinaram” na substituição tributária. Entre 2008 e 2009, houve uma verdadeira
“explosão” de novos produtos na ST em alguns Estados trazendo uma série de
consequências não desejadas para o sistema de tributação valor agregado no
Brasil. Em capítulo adiante, retornaremos a esse ponto.
A partir da Lei Kandir, verdadeiro marco legal, os conflitos mais agudos
entre Fisco e contribuinte deixou a esfera da validade jurídica do próprio
instituto e passou para outro campo, o das diferenças das bases de cálculo
estimadas em relação às bases de cálculo reais valoradas a preço de mercado.
Àquela época, os preços de varejo já não eram, de antemão, bem conhecidos
e, muito menos, tabelados. As discussões e ações judiciais em torno desse
conflito envolviam o chamado ressarcimento, objeto do próximo capítulo.
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CAPÍTULO 3
O problema do ressarcimento
Discute-se, neste breve capítulo, o problema do ressarcimento nas
hipóteses em que o substituído, o varejista, vende a mercadoria por preços e
margens de valor agregado inferiores aos estipulados por portarias. Algumas
críticas são enumeradas: específicas ao não ressarcimento e outras de ordem
geral.
Na substituição tributária para frente, o lançamento do imposto só se
torna possível mediante estimativas da base de cálculo, dada a evidente
desvinculação que há entre o sujeito passivo por substituição e os fatos
geradores futuros. A Lei Complementar 87/96 normatiza a base de cálculo em
seu artigo 8º parcialmente abaixo transcrito.
Art. 8º A base de cálculo, para fins de substituição tributária, será:
II - em relação às operações ou prestações subsequentes, obtida pelo somatório das parcelas seguintes:
a) o valor da operação ou prestação própria realizada pelo substituto tributário ou pelo substituído intermediário;
b) o montante dos valores de seguro, de frete e de outros encargos cobrados ou transferíveis aos adquirentes ou tomadores de serviço;
c) a margem de valor agregado, inclusive lucro, relativa às operações ou prestações subsequentes.
§ 2º Tratando-se de mercadoria ou serviço cujo preço final a consumidor, único ou máximo, seja fixado por órgão público competente, a base de cálculo do imposto, para fins de substituição tributária, é o referido preço por ele estabelecido.
§ 3º Existindo preço final a consumidor sugerido pelo fabricante ou importador, poderá a lei estabelecer como base de cálculo este preço.
§ 4º A margem a que se refere a alínea c do inciso II do caput será estabelecida com base em preços usualmente praticados no mercado considerado, obtidos por levantamento, ainda que por amostragem ou através de informações e outros elementos fornecidos por entidades representativas dos respectivos setores, adotando-se a média ponderada dos preços coletados, devendo os critérios para sua fixação ser previstos em lei.
§ 5º O imposto a ser pago por substituição tributária, na hipótese do inciso II do caput, corresponderá à diferença entre o valor resultante da aplicação da alíquota prevista para as operações ou prestações internas do Estado de destino sobre a respectiva base de cálculo e o valor do imposto devido pela operação ou prestação própria do substituto.
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§ 6o Em substituição ao disposto no inciso II do caput, a base de cálculo em relação às operações ou prestações subsequentes poderá ser o preço a consumidor final usualmente praticado no mercado considerado, relativamente ao serviço, à mercadoria ou sua similar, em condições de livre concorrência, adotando-se para sua apuração as regras estabelecidas no § 4o deste artigo. (Redação dada pela Lcp 114, de 16.12.2002)
Da leitura dos dispositivos da Lei Complementar, depreende-se que a
base de cálculo parte do valor da operação de saída (vendas) dos substitutos,
obtida pelo real valor de mercado (art. 8º, II, “a”), acrescido do plus do valor
agregado futuro. Exemplificando: à base valorada a preços de mercado
acrescentam-se, primeiramente, as despesas de transporte e seguros e outras
que hão de se agregar para compor o preço final (art. 8º, II, “b”).
Posteriormente, agrega-se a esta base a margem de valor agregado (“inclusive
lucro”) das operações ou prestações subsequentes (art. 8º, II, “c”) que, em
razão de os fatos geradores ainda não ocorrerem, deve ser estimada.
Nos parágrafos seguintes da Lei, normatiza-se o cálculo de estimativa
da margem do valor agregado e se estabelece a possibilidade de substituí-la
por preços finais, estimados ou conhecidos. Ou seja, há dois critérios para a
estimativa do valor agregado das operações ou prestações futuras em relação
a valores de saída dos substitutos: pela aplicação de percentual de valor
agregado (margem) sobre os valores de saída e pela diferença entre preços
finais, estimados ou conhecidos, e preços praticados pelo substituto. O primeiro
é percentual que se aplica sobre determinado valor básico, e o segundo é com
base na diferença de preços aplicada sobre quantidades transacionadas.
O critério da margem de valor agregado (percentual sobre a base) é o
mais utilizado nos dias de hoje, dada à ausência de homogeneidade dos
produtos finais, tanto em termos físicos quanto em termos de preços, por isso,
utilizam-se médias. O segundo critério, mais raro nos dias de hoje, foi utilizado
no passado, na época em que os produtos sujeitos a ST eram mais
homogêneos e os preços, tabelados.
A margem do valor agregado deve ser obtida “com base em preços
usualmente praticados”, o que requer pesquisas, levantamentos e outros
elementos “fornecidos pelas entidades representativas dos respectivos
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setores.” A margem de valor agregado é calculada pela relação entre os preços
usualmente praticados no varejo e os preços usualmente praticados pelos
remetentes, os substitutos. Elabora-se a média ponderada de preços finais e
intermediários para chegar-se a uma margem média do setor, cuja fixação
deve obedecer “critérios fixados em lei”.
No parágrafo 5º da Lei, fica estabelecido como o imposto devido por
substituição tributária deve ser calculado: pela diferença entre o produto da
aplicação da alíquota interna de cada Estado, (normalmente 18% ou 17%)
sobre a base de cálculo da ST, e o imposto incidente na operação própria do
contribuinte. Este último é o imposto normal da operação ou prestação de
saída, calculado a preço de mercado, que entra no regime normal de apuração
entre débitos e créditos do substituto. A outra parcela, resultado da diferença, é
o imposto devido por substituição tributária, calculado por margens estimadas.
Pela leitura dos parágrafos 2º, 3º e 6º da Lei, percebe-se uma constante
preocupação do legislador em aproximar-se dos preços de mercado sempre
que possível. Faculta-se ao legislador estadual a possibilidade da adoção de
preços finais fixados, sugeridos ou usualmente praticados no lugar da margem
calculada por preços médios ponderados. O preço final ao consumidor “único
ou máximo”, mencionados no parágrafo 2º, são fixados por órgão público, ou
seja, são preços tabelados que, na prática, não existem mais. Deve-se
considerar que qualquer preço final que entre no lugar da margem, seja ele
sugerido ou usualmente praticado, não deixa de ser preço pasteurizado
instituído por decreto ou por portaria.
Os preços e as margens são fixos, mas o mercado é dinâmico. As
secretarias da fazenda se esforçam com pesquisas, planilhas, reuniões com
entidades representativas dos setores e publicam periodicamente portarias e
decretos na tentativa de adequá-los aos preços de mercado. É uma corrida
perdida, já que o mercado é muito mais dinâmico e diverso. Há comerciantes
que operam com margens abaixo das publicadas e outros com margens acima.
A tributação torna-se, portanto, desigual. Após a efetiva realização do fato
gerador, os comerciantes que operaram com margens inferiores às publicadas
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são prejudicados, por isso reclamam pelo ressarcimento do valor pago a maior.
Por outro lado, os que operaram com margens superiores às publicadas não
pagam a diferença.
Tanto o ressarcimento do pagamento a maior bem como o recolhimento
complementar do imposto pago à menor foram abolidos pelas legislações
estaduais e por sentenças do Supremo Tribunal Federal. A Emenda
Constitucional nº 03/93 incluiu o parágrafo 7º ao artigo 150 da Constituição
Federal assegurando ao substituído a “imediata e preferencial restituição da
quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”. Da mesma forma,
a Lei Complementar 87/96 em seu artigo 10 estabeleceu estar “assegurado ao
contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por
força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que
não se realizar.”
Fatos geradores presumidos não realizados decorrem de vendas não
realizadas por motivos de perecimento, furto, deterioração ou qualquer outro
fator que tenha impossibilitado a venda da mercadoria. Outra hipótese é o fato
gerador realizado posteriormente em operação ou prestação não tributada,
como, por exemplo, exportação, venda para Zona Franca de Manaus ou venda
para outro Estado com o qual não há protocolo ou convênio. Nesses casos, o
fato gerador se realiza sem o imposto que havia sido retido por substituição,
cabendo ao comerciante o ressarcimento da quantia paga a mais. O que é
evidente e justo.
Outra categoria de fatos geradores presumidos não realizados são as
saídas interestaduais de mercadorias que sofreram retenção por ST no Estado
de origem para as quais não há acordos com no Estado de destino. A
presunção é que, para estas mercadorias, os fatos geradores futuros
ocorreriam dentro do próprio Estado que instituíra o regime. Como os fatos
gerados presumidos que serviram de base para a incidência da ST no Estado
de origem não terão ocorrido dentro deste Estado, cabe ao remetente
substituído, que havia adquirido mercadorias com retenção, o direito ao
ressarcimento.
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Em relação às vendas finais, realizadas por margens ou preços
inferiores aos fixados em portarias ou decretos, houve muita controversa.
Alguns Estados faziam o ressarcimento e outros não. Houve Estados que
ingressavam, no Supremo Tribunal Federal, Ações Diretas de
Inconstitucionalidade pelo não ressarcimento dos valores pagos a maior. Em
2002, a hipótese de ressarcimento foi julgada inconstitucional (ADI 1851/AL,
RE 354.035-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 19/12/2002).
Na sentença de 2002, os Ministros do Supremo alegaram que o texto
constitucional não explicita a hipótese de ressarcimento devido a diferenças
entre margens ou preços estimados e margens ou preços efetivos, mas, tão
somente, a não realização do fato gerador presumido. Da mesma forma, não
caberia o pagamento complementar do imposto nos casos em que margens ou
preços estimados fossem inferiores às margens efetivas. Essa sentença foi o
marco inicial da institucionalização de margens e preços pasteurizados.
Se a decisão do STF fosse de outra natureza, favorável ao
ressarcimento do imposto pago a maior e pela cobrança da diferença do
imposto pago a menor, criar-se-ia uma situação bizarra, vivida atualmente,
porém por outros motivos (como se verá). Trata-se da negação do próprio
instituto da ST. Considerando-se que grande parte dos varejistas solicitaria
ressarcimento, este fato demandaria fiscalização em milhares de contribuintes.
A outra parte dos contribuintes que teria de pagar a diferença demandaria,
igualmente, fiscalização em milhares deles.
Ressarcimentos e pagamentos de diferença negam a própria natureza
da ST, reincidindo no problema que justamente deveria ser evitado: a
fiscalização de milhares de contribuintes. Posteriormente, São Paulo e
Pernambuco moveram ADINs contra suas próprias leis estaduais que previam
o ressarcimento. O julgamento das ADINs foi suspenso em 2007 com empate
de 05 votos contra 05 a favor, faltando apenas o voto do ministro Carlos Britto
(PriceWaterhouseCoopers, 2010, p. 20). Até hoje não houve decisão judicial.
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O governo paulista, no entanto, antes que o STF se decidisse, publicou
a lei estadual 13.291 de dezembro de 2008 permitindo todas as hipóteses de
ressarcimento. Porém, em relação às vendas finais realizadas por valores
inferiores à base de cálculo utilizada na substituição tributária, a lei paulista
autorizou somente o ressarcimento nos casos em que esta base de cálculo
tenha sido o preço final a consumidor, único ou máximo, autorizado ou fixado
por autoridade competente (Rosa, 2011, p. 199-200). Como informado
anteriormente, esses preços não são mais praticados no Brasil (preços
tabelados) ficando, portanto, inoperante o dispositivo.
A pasteurização de margens e preços para a composição da base de
cálculo da substituição tributária e a definitividade do pagamento provocam,
portanto, sérios desequilíbrios no mercado, o que tem suscitado muitas críticas
e reações pró-evasão fiscal. Esta questão será examinada no próximo capítulo.
Para finalizar, destacam-se algumas críticas e relatos representativos sobre a
substituição tributária.
Roque Antônio Carraza (25) dirige críticas certeiras à sistemática de
substituição tributária para frente, ressaltando que estimativas de base de
cálculo fere o princípio da tipicidade da tributação, bem como viola o princípio
da não confiscabilidade, burla o princípio da não-cumulatividade e retira os
quesitos da segurança e certeza, juridicamente inerentes a qualquer exigência
tributária. Segundo o autor, estimativas descaracterizam a base de cálculo e,
em adesão às ideias de Alcides Jorge Costa, considera que “descaracterizada
a base de cálculo, descaracterizado está o tributo.”
Carraza é enfático ao argumentar pela inconstitucionalidade da
substituição tributária para frente, destacando o efeito confiscatório do não
ressarcimento do imposto pago a maior para os comerciantes que vendem por
preço abaixo do que serviu de base de cálculo (26). Destaca também a
25 CARRAZA, op. cit. p. 328. 26 Adiante, este efeito será muito lembrado ao se discutir os verdadeiros motivos do grande incremento de arrecadação proporcionado pela ST.
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cumulatividade que esse regime introduz na cadeia na medida em que é
negado ao contribuinte o direito ao crédito do imposto pago a maior.
Na literatura internacional sobre o assunto, há poucas referências sobre
substituição tributária para frente, uma vez que impostos baseados em pautas
fiscais e assemelhados já foram banidos dos sistemas tributários em quase
todo o mundo. Dentre os principais autores, destacam-se Alan Schenk & Oliver
Oldman (2007), que consideram os chamados “método da margem bruta”
como exceção ao método do crédito. Descrevem o uso da substituição
tributária em países em que o fabricante (manufacturer) ou o distribuidor
(distributor) são os substitutos responsáveis pela retenção do imposto devido
nas vendas porta a porta. Os autores ressaltam, ainda, que os substitutos
responsáveis sabem de antemão os preços de varejo, ou seja, admite-se esta
espécie de antecipação quando o preço de varejo é conhecido e invariável:
fixado pelo próprio fornecedor (27).
O trabalho do Fundo Monetário Internacional (2001, p. 20) faz críticas ao
uso do chamado método da margem bruta (28) no lançamento de impostos do
tipo IVA nos países bálticos, na Rússia, em algumas antigas repúblicas
soviéticas e Belarus. As convenções e os métodos utilizados para o cálculo da
margem bruta são apontados como ultrapassados, típicos das economias
planejadas do passado, aludindo-se às antigas repúblicas socialistas do Leste
europeu e à extinta União Soviética. A tributação deveria assentar-se sobre os
preços de mercado (actually realized), ao invés de se utilizarem preços fictícios
(notional prices).
27 No original em ingles. The alternative employed in some countries is to require the manufacturer or distributor who sells to these door-to-door sellers to report as the taxable amount of the sales the retail price of the items sold. The manufacturer and distributor know these prices because they generally set the recommended retail prices (grifos nossos). In Alan Schenk & Oliver Oldman. Value Added Tax – A comparative Approach no item H. Sales to Door-To-Door Seller and Similar Independent Contractors. Cambridge University Press 2007, p. 259. 28 Segue a descrição do método da margem bruta neste trabalho do FMI (no original em inglês): In addition, a notable variant of the subtraction method is the “gross margin” method used by some in the BRO region (Baltic States, Russia and the other republics of the former Soviet Union) at the retail and wholesale stages, and by Belarus (until January 2000) for all transactions. This method taxes firms on the difference between their revenues and costs, but with both these items calculated in ways that reflect the conventions and methods of past planned economies rather than market-oriented notions of value added: sales might be valued at notional accounting prices, for example, rather than those actually realized.” (grifos nossos).
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Em relação ao IVA adotado nos demais países do mundo, localiza-se, na literatura internacional referida sobre o assunto, o uso do instituto da ST
somente na Argentina e em Malawi (29).
Conclusão
A desvinculação do responsável substituto em relação aos fatos
geradores futuros impõe a necessidade de se estimar a base de cálculo da
retenção do imposto por substituição tributária. Segundo a Lei Kandir, essa
estimativa pode ser feita por dois critérios. O primeiro critério é o da margem de
valor agregado estimada, um percentual a ser aplicado sobre o valor das
saídas do substituto. O percentual é calculado pela relação entre os preços
médios estimados do produto no varejo em relação aos preços médios
praticados nas vendas do segmento. As médias são obtidas por pesquisas e
informações fornecidas por entidades representativas dos respectivos setores.
O segundo critério é a diferença do preço final estimado ou conhecido em
relação aos preços de saída dos substitutos. É um valor absoluto e unitário
(não percentual) que se multiplica pelas quantidades saídas a cada operação
do estabelecimento do substituto.
O primeiro critério é o mais utilizado pelos Estados, uma vez que os
preços finais dos produtos, em sua maioria, não são fixos nem tabelados e
muito menos conhecidos. Assim, de acordo com o critério da margem bruta, a
base de cálculo ST é obtida pela soma do produto resultante da aplicação do
percentual da margem de valor agregado sobre a base de cálculo “normal” da
operação ou prestação (valor de saída do substituto) mais fretes, juros, seguros
e outras despesas cobrados ou transferíveis aos adquirentes ou tomadores
mais a própria base de cálculo da operação ou prestação do substituto.
Sobre a base de cálculo ST, aplica-se a alíquota do imposto, resultando
no imposto total devido pelo restante da cadeia. O imposto devido por ST é a
diferença entre o imposto “cheio” assim calculado e o imposto devido na
29 The World Bank (1999), Bird e Gendron (2009).
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operação ou prestação própria, calculado sobre a base normal de saída a
preços de mercado. O substituto recolhe os impostos calculados em duas
guias: uma relativa ao imposto da operação própria e outra do imposto
calculado por substituição tributária, relativa ao imposto estimado das
operações ou prestações futuras. O imposto recolhido por ST é repercutido
para o adquirente nas faturas de venda do remetente, que também o repercute
para o adquirente seguinte e assim sucessivamente até o adquirente final.
O problema surge quando o último elo da cadeia produtiva, normalmente
o varejista, vende a mercadoria por margem ou preço diferente da estimada
para o cálculo do imposto devido por ST. Os que vendem por valores inferiores,
reclamam o ressarcimento. Os que vendem por valores superiores, nada
reclamam, porém o Fisco poderia cobrar a diferença, no entanto, não o faz.
O Supremo Tribunal Federal sentenciou que não cabe ressarcir nem
pagar diferenças devido à divergência de valores entre os efetivamente
realizados a preços de mercado e os utilizados para o cálculo do imposto
recolhido por ST. Instituiu-se, desse modo, a pasteurização das bases de
cálculo. Do ponto de vista constitucional a decisão é correta, segundo o STF,
porém do ponto de vista dos efeitos da tributação sobre as cadeias produtivas
os resultados não foram os melhores. No entanto, se a decisão do STF tivesse
sido a favor do ressarcimento e do pagamento das diferenças do imposto
cobrado a menor, reincidiria a situação que a própria ST procura evitar: a
fiscalização em grande número de contribuintes, ou seja, os próprios varejistas
que entrariam com milhares de pedidos de ressarcimento junto às secretarias
de fazenda e outros milhares cujo pagamento da diferença à menor teriam de
ser igualmente fiscalizados.
O Estado de São Paulo, afinado à decisão do STF, entrou com ADIN
contra sua própria lei que previa o ressarcimento e o pagamento da diferença.
Embora a decisão ainda não esteja proferida, o Estado publicou nova lei cujos
efeitos práticos impedem tanto o ressarcimento quanto o pagamento da
diferença.
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As principais críticas conferidas ao regime ST foram de Roque Antônio
Carraza, Alan Schenk & Oliver Oldman e do FMI. Carraza argumenta que
estimativas de base de cálculo sobre fatos geradores, que ainda não
ocorreram, e o não ressarcimento do imposto pago a maior ferem vários
princípios constitucionais. Alan Schenk & Oliver Oldman defendem que os
métodos baseados em margens brutas (estimadas), mecanismos de exceção,
devem ser aplicados somente sobre fabricantes ou distribuidores que vendem
seus produtos pelo sistema porta a porta. A Pesquisa do FMI identifica o uso
de esquemas semelhantes a ST (aplicação de margens estimadas) em poucos
países, avaliando o método como ultrapassado e típico de economias
planejadas do passado. Em relação ao restante do mundo, a literatura
internacional sobre o assunto aponta o uso da ST em poucos países: Argentina
e Malawi. A seguir, alguns efeitos da substituição tributária no Brasil serão
objeto de análise.
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CAPÍTULO 4
Os efeitos colaterais da substituição tributária para frente (ST)
Diante de um tema tão profundo e complexo, é possível apontar apenas
alguns efeitos indesejados que o instituto da substituição tributária para frente
está provocando nas cadeias produtivas. Trata-se de apontamentos baseados
em algumas pesquisas de campo e na própria vivência deste autor na lida
diária com o problema. O objetivo é levantar pontos e problemas que são de
grande relevância e, portanto, merecedores de maior aprofundamento.
Em primeiro lugar, um destaque deve ser dado para o efeito phármacon
apontado por Rafael Pandolfo (30). Trata-se de uma analogia a um antigo
ensinamento de Platão, em Fedro, que esclarece que uma mesma substância
que cura pode matar, dependendo de como é administrada e da sua dosagem.
No presente caso, o “remédio” da substituição tributária concebido para sanar o
sistema tributário da sonegação e facilitar a fiscalização pode destruir o próprio
sistema, o que se estende à “Constituição como garantia do contribuinte e
como pedra angular do nosso ordenamento jurídico.” (p. 134-135).
Pandolfo adverte, ainda, que o médico, ao prescrever um medicamento,
avalia as condições e características individuais de cada paciente, “sendo
impensável a aplicação em série e na mesma quantidade de um medicamento
a todos...” (p. 135). O efeito phármacon da substituição tributária se manifesta,
segundo o autor, na pasteurização das margens e preços utilizados como base
de cálculo e na pretensa “definitividade” do valor pago, não se admitindo o
ressarcimento nas hipóteses de margens supervalorizadas em relação ao
preço de mercado nem a cobrança da diferença a maior nos casos em que
margens e preços estimados sejam inferiores às efetivamente praticadas no
varejo. Essa pasteurização e essa pretensa “definitividade” do valor pago
30 PANDOLFO, Rafael. Substituição Tributária, Limites Constitucionais e Phármacon, in FERREIRA NETO, Arthur M; NICHELE, Rafael (coordenadores). Curso Avançado de Substituição Tributária. São Paulo: *IOB, 1ª ed. 2010, p. 125-139.
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equivalem a aplicação de uns mesmo medicamentos em série e na mesma
quantidade a todos, independentemente da sua capacidade contributiva.
Para melhor entendermos o efeito phármacon na substituição tributária
no Brasil, podemos dividir a sua instituição em duas grandes etapas: a primeira
se estende dos anos 1970 até 2007, quando o remédio era ministrado em
doses mais baixas, havendo certa tolerância ao medicamento pelo organismo
do paciente e, a segunda, a partir de 2008, ano em que passou a ser
ministrado em doses cavalares, desencadeando efeitos colaterais indesejados
no corpo do paciente. Vejamos como isto se deu. A explosão de novos produtos na ST
O Quadro 1 a seguir, extraído do trabalho desenvolvido pela
PricewaterhouseeCoopers/CNI (2010, p. 44) ilustra a quantidade de produtos
na ST por Estado de 2004 a 2009.
Por esse quadro, observa-se que até 2007 a quantidade de produtos
incluídos na ST por Estado era relativamente estável não passando de 100
produtos na maioria deles. Em muitos, girava em torno de 60 a 70 produtos e,
em outros, em torno de 90 a 95 produtos. Em Santa Catarina, não passava de
44. As exceções ficavam por conta de Rondônia (com mais de 180), Rio
Grande do Norte (em torno de 145), Goiás (com 114) e Piauí (de 103 a 111).
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Quadro 1 Quantidade de produtos no regime de substituição tributária
- por Estado –
Estado 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Minas Gerais 68 74 81 88 98 337 São Paulo 66 66 66 67 105 281 Rio Grande do Sul 66 66 66 66 75 266 Rio de Janeiro 94 94 94 97 104 238 Rondônia 182 183 181 184 189 189 Alagoas 71 69 74 148 150 169 Amazonas 67 69 69 70 73 146 Rio Grande do Norte 139 140 143 144 146 146 Goiás 114 114 114 114 115 117 Piauí 103 104 110 111 116 116 Mato Grosso 70 72 72 78 98 105 Acre 91 92 95 95 95 95 Pará 90 90 90 90 92 92 Bahia 82 84 86 87 90 90 Ceará 75 79 86 84 88 88 Mato Grosso do Sul 73 73 74 80 85 85 Tocantins 81 83 79 79 84 84 Paraná 67 67 67 56 68 83 Espírito Santo 74 76 79 79 81 81 Paraíba 72 74 77 75 77 78 Amapá 68 71 72 72 77 77 Santa Catarina 44 44 41 43 75 77 Pernambuco 71 72 73 73 76 77 Sergipe 73 75 80 76 80 77 Roraima 63 70 70 73 76 76 Maranhão 70 73 71 74 74 74 Distrito Federal 68 69 69 72 76 72 Fonte: PricewaterhouseeCoopers/CNI, 2010, p. 44
Outra exceção notável é o Estado de Alagoas que, antecipando-se ao
grande movimento de inclusões que aconteceria a partir de 2008, passou de 74
produtos incluídos na ST em 2006 para 148 produtos em 2007.
O Quadro 2 a seguir, extraído do mesmo trabalho da
PricewaterhouseeCoopers/CNI, ilustra o fluxo de inclusões/exclusões de novos
produtos na ST por Estado. Exceto em Alagoas, como comentado, foi a partir
de 2008 que se deu inicio ao movimento de grandes inclusões de novos
produtos na ST, notadamente nos Estados de São Paulo, Santa Catarina e
Mato Grosso, seguidos por Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de
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Janeiro e demais Estados. Esse movimento acentuou-se consideravelmente
em 2009, principalmente em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio
de janeiro e Amazonas, seguidos por Alagoas, Paraná e Mato Grosso.
Quadro 2
Quantidade de produtos incluídos/excluídos no regime de substituição tributária - por Estado –
Estado 2005 2006 2007 2008 2009 Minas Gerais 6 7 7 10 239 São Paulo 0 0 1 38 176 Rio Grande do Sul 0 0 0 9 191 Rio de Janeiro 0 0 3 7 134 Rondônia 1 -2 3 5 0 Alagoas -2 5 74 2 19 Amazonas 2 0 1 3 73 Rio Grande do Norte 1 3 1 2 0 Goiás 0 0 0 1 2 Piauí 1 6 1 5 0 Mato Grosso 2 0 6 20 7 Acre 1 3 0 0 0 Pará 0 0 0 2 0 Bahia 2 2 1 3 0 Ceará 4 7 -2 4 0 Mato Grosso do Sul 0 1 6 5 0 Tocantins 2 -4 0 5 0 Paraná 0 0 -11 12 15 Espírito Santo 2 3 0 2 0 Paraíba 2 3 -2 2 1 Amapá 3 1 0 5 0 Santa Catarina 0 -3 2 32 2 Pernambuco 1 1 0 3 1 Sergipe 2 5 -4 4 -3 Roraima 7 0 3 3 0 Maranhão 3 -2 3 0 0 Distrito Federal 1 0 3 4 -4 Fonte: PricewaterhouseeCoopers/CNI, 2010, p. 45.
A Figura 1 a seguir ilustra os dados extraídos do Quadro 1 para os
principais Estados, onde observamos claramente a grande mudança de
patamar das novas inclusões, especialmente a partir de 2009.
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Figura 1 Quantidade de produtos incluídos na ST
- por Estados selecionados -
M i nas Gerai s São Paulo
400
350
300
250
337
300
250 200
281
200
150
100
50
68 74 81 88
150 100
50
66 66 66 67
105
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009
Ri o Gra nde do Sul Ri o de Janei ro
300
250
266 250
200
238
200
150
100
50
66 66 66 66 75
150
100
50
94 94 94 97 104
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 0
2004 2005 2006 2007 2008 2009
Al a goa s Amazonas
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
71 69 74
148 150
169 160 140 120 100 80
60
40
20
0
67 69 69 70
146
73
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Fonte: PricewaterhouseeCoopers/CNI, 2010, p. 45 e elaboração própria.
Da observação dos dados dos Quadros 1 e 2, concluímos que a
“revolução” da substituição tributária que ocorreu no Brasil a partir de 2008 e
que incluiu centenas de novos produtos nesse regime se manifestou
principalmente nos Estados mais industrializados das regiões Sudeste e Sul,
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seguidos por Alagoas, Amazonas e Mato Grosso. Nos demais Estados, não
houve movimento tão expressivo de novas inclusões, situando-se em torno de
2 a 5 novos produtos por Estado. Ou seja, a maior parte desta “revolução” se
deu nos Estados mais industrializados do centro-sul do país.
Aos produtos que se encontravam na ST antes dessa “revolução”,
denominaremos velha ST. Esses produtos atendiam aos quesitos básicos de
inclusão no regime (vide texto a seguir). A partir de 2008, grande parte dos
novos produtos incluídos no regime não atendia a esses quesitos. A esse
conjunto de novos produtos denominaremos nova ST. Passemos ao exame de
cada uma delas.
A velha substituição tributária
Os produtos que compunham a velha ST, conforme discutido no
Capítulo 2, apesar de configurarem-se como uma espécie de anti-IVA,
limitavam-se a produtos que atendiam um conjunto de quesitos básicos cujos
efeitos minimizavam suas distorções nas cadeias produtivas. Como dito
naquele capítulo, esses quesitos eram:
a) a concentração da produção em poucas indústrias;
b) a homogeneidade do produto;
c) a homogeneidade do preço de varejo (corolário do anterior);
d) a relevância do produto para arrecadação e
e) a grande capilaridade da distribuição do produto no varejo.
Havia consenso nacional acerca dos produtos que se adequavam a
essas características, sobre os quais todos os Estados (e o Distrito Federal),
em sua unanimidade, cobravam o imposto por ST por meio de leis e convênios.
Esses produtos pertenciam aos seguintes grupos: cigarros, automóveis,
combustíveis e lubrificantes, motos, tintas e vernizes, pneus e câmaras de ar
(Rosa, 2011, p. 185-186).
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Havia também outros grupos de produtos para os quais não havia
unanimidade em relação à cobrança da ST, mas que a maioria dos Estados e o
DF cobravam. Eram eles: cimento, sorvete, refrigerantes, cerveja, chope e
água mineral (Rosa, 2011, p. 185-186), que também atendiam aos quesitos
básicos de inclusão na ST.
Os dois grupos compunham o conjunto dos produtos da velha ST, os
chamados “produtos tradicionais”. Como atendiam àqueles quesitos básicos
para inclusão na ST, os objetivos eram atingidos: facilitava-se e racionalizava-
se a fiscalização e o controle da arrecadação sobre poucos grandes fabricantes
no lugar de milhares de estabelecimentos varejistas, garantindo-se, destarte, a
captura da receita que, do contrário, perder-se-ia na sonegação do varejo.
Como havia convênios, havia também relativa harmonização entre os
Estados e o DF em torno das regras e, especialmente, em torno das margens
de valor agregado em todo território nacional, o que conferia certa estabilidade
aos chamados custos de conformidade, que são os custos necessários para o
contribuinte manter a burocracia de gestão dos seus impostos. Ao mesmo
tempo, esta harmonização possibilitava o trânsito interestadual das
mercadorias sujeitas a ST sem os atuais transtornos dos pedidos de
ressarcimento e/ou do pagamento antecipado nas fronteiras entre os Estados,
doravante a serem comentados.
Cabe lembrar que esse modelo foi concebido no início dos anos 1970
em que era maior a homogeneidade tanto dos produtos sujeitos a ST quanto
dos seus preços de varejo, que eram bem conhecidos quando não, tabelados.
Além disso, o mercado de varejo era mais capilarizado e os sistemas de
informação baseavam-se em processamentos de documentos-fonte papel,
gerando registros em outros papeis impressos, como listagens e livros
encadernados.
Nesse modelo, as condições então vigentes, dificultavam a ação do
Fisco em atingir milhares de pequenos varejistas. Essa restrição era
contornada pela aplicação da ST sobre aqueles produtos tradicionais, apesar
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da resistência dos contribuintes que nunca deixou de se manifestar, mesmo
que os produtos atendessem aos quesitos básicos de sua inclusão na ST. Essa
velha ST vigorou do início dos anos 70 até o ano de 2007. As tentativas de
pacificar os inevitáveis conflitos Fisco/contribuintes se davam pela edição de
novas normas constitucionais e infraconstitucionais e também por decisões
judiciais.
A “revolução” da ST que se deu a partir de 2008 alterou todo esse
quadro, aprofundando esses conflitos e provocando grandes distorções no
sistema de tributação do valor agregado, assunto a ser discutido no próximo
item.
A nova substituição tributária
A lista de inclusões de novos produtos na ST a partir de 2008 é
extremamente extensa, não cabendo nos limites deste trabalho, sendo possível
apenas mencionar alguns grupos de novos produtos incluídos.
No Estado de São Paulo, por exemplo, em 2008, medicamentos,
produtos de perfumaria e higiene pessoal, bebidas alcoólicas além daquelas
que já estavam na ST (cerveja e chope), autopeças, produtos fonográficos,
pilhas e baterias, lâmpadas elétricas, papel, produtos de limpeza, ração animal,
produtos alimentícios e materiais de construção, cada qual com suas
intermináveis listas de subitens, foram incluídos (Rosa, 2011, p. 185-187).
Em 2009, o governo do Estado de São Paulo incluiu bicicletas,
ferramentas, instrumentos musicais, produtos de colchoaria, produtos de
papelaria, máquinas e aparelhos mecânicos, elétricos, eletromecânicos e
automáticos, bem como materiais elétricos, artefatos de uso doméstico,
brinquedos, além de produtos eletrônicos, eletroeletrônicos e eletrodomésticos.
Para cada grupo de produtos há listas de especificações por código NCM
(Nomenclatura Comum do MERCOSUL) (Rosa, 2011, p. 185-187).
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O detalhamento das inclusões é minucioso, alguns beiram a bizarrice,
como, por exemplo, em produtos alimentícios, o item “chocolates” constantes
no art. 313-W, § 1º, 1, “a” a “d” do RICMS/SP que contém as seguintes
especificações:
a) chocolate branco, em embalagens de conteúdo inferior ou igual a 1 quilo; b) chocolates contendo cacau, em embalagens de conteúdo inferior ou igual a 1
quilo; c) chocolate em barras, tabletes ou blocos ou no estado líquido em pasta, em
pó, grânulos ou formas semelhantes, em recipientes ou embalagens imediatas de conteúdo igual ou inferior a 2 quilos;
d) chocolates e outras preparações alimentícias contendo cacau, em embalagens de conteúdo igual ou inferior a 1 quilo, excluídos os achocolatados em pó.
Nos demais Estados, o estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI aponta
para uma enorme profusão de atos normativos, principalmente decretos,
contendo grande diversidade e especificação de produtos que passaram a ser
incluídos na ST.
Basta a leitura de uma amostra desses decretos para perceber que a
imensidade de detalhes e especificações dos novos produtos incluídos na ST
esbarra em um dos principais pressupostos da inclusão de um determinado
produto na ST: a homogeneidade. Onde não há homogeneidade, não há
preços conhecidos no varejo, ensejando o uso crescente de médias e pautas
para a valoração das bases de cálculo.
O distanciamento desses novos produtos dos quesitos básicos da ST
denota o uso inadequado dela como “medicamento” e o conseqüente
surgimento do efeito phármacon que se manifesta sob outros efeitos colaterais
indesejados que a seguir passaremos a discutir. Efeitos phármacon da substituição tributária - introdução
A explosão de novos produtos contendo extensas listas de
especificações, cada qual com diferentes margens de valor agregado e que se
alteram no decorrer dos meses, está transformando o instituto da ST no Brasil
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em um imenso sistema cada vez mais distante dos seus próprios pressupostos
básicos. A consequência imediata é tornar o instituto da ST um mal contra si
próprio, dificultando a fiscalização e o controle da arrecadação, que deixaram
de ser exercidos sobre poucos grandes contribuintes e passaram a ser
exercidos sobre uma imensa rede de novos contribuintes substitutos.
Além disso, a profusão de normas e a diversidade de produtos atingidos
pela nova ST impõem aos contribuintes maiores custos de conformidade
devido ao aumento das obrigações acessórias e a necessidade de complexos
sistemas de gestão e controle de estoques. A situação torna-se mais crítica
para indústrias e atacadistas com mix de vendas/compras distribuídos por
vários Estados com diferentes legislações e margens de valor agregado. Há
casos de empresas que mantém andares inteiros com funcionários
especializados em substituição tributária, tamanha a complexidade da
legislação e dos sistemas de controle envolvidos.
Os produtos da nova substituição tributária são tão diversos que, apesar
de muitos deles terem produção concentrada e redes de distribuição dispersa,
não apresentam homogeneidade nas suas características físicas e tampouco
no seu preço final, o que impõe dificuldades adicionais à fiscalização. Toma-se
o exemplo de instrumentos musicais. A linha de teclados da Yamaha ou da
Casio apresenta os mais díspares instrumentos em termos de modelos e
preços. O mesmo se diz sobre eletroeletrônicos cujos preços variam muito de
magazine para magazine.
Apesar disso, a verdade é que a nova ST tem proporcionado grandes
ganhos de arrecadação do ICMS para os principais Estados que a adotaram
(PricewaterhouseeCoopers/CNI, 2010, p. 41-43), mas trouxe também uma
série de efeitos colaterais indesejados para os contribuintes, para as
administrações tributárias estaduais e para a qualidade da tributação. A
discussão sobre os ganhos de arrecadação será feita posteriormente, por ora
passemos a uma breve descrição de alguns desses efeitos colaterais.
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Efeitos colaterais da nova substituição tributária
A nova ST introduziu forte desarmonia no sistema do ICMS em nível
nacional, na medida em que a maioria desses produtos não é amparada por
convênio ou protocolo. As novas inclusões aumentaram a complexidade na
administração de milhares de itens com diferentes legislações e margens de
valor agregado, considerando-se que cada Estado tem a sua legislação
própria.
Os contribuintes industriais e comerciais tiveram seus custos de
conformidade onerados, o que redundou na maior complexidade das auditorias
fiscais. A fiscalização sobre as empresas substitutas e os atacadistas
substituídos tornou-se bem mais complexa e trabalhosa, apesar do uso de
notas fiscais eletrônicas. Não raro, examinam-se milhões de registros.
Os pedidos de ressarcimento contemplados pela hipótese de não
realização do fato gerador presumido nas saídas interestaduais, que se
referem às saídas de mercadorias para outras Unidades da Federação para as
quais não há acordo (convênios ou protocolos), tornaram-se um problema de
proporções inusitadas.
O exemplo a seguir ilustra o que se pretende demonstrar: atacadista
paulista de material de construção adquire mercadorias de fabricante ou
distribuidor paranaense. Posteriormente, o atacadista paulista vende parte
dessas mercadorias dentro do próprio Estado de São Paulo, parte para o Mato
Grosso do Sul e parte para Goiás. Não havendo acordo com o Paraná, por
exemplo, mas havendo cobrança de substituição neste Estado, o remetente
paranaense, se distribuidor, fatura suas mercadorias para o atacadista de São
Paulo sem a retenção do imposto, uma vez que a retenção paga na aquisição
da mercadoria alcança somente as saídas dentro do Estado do Paraná. Neste
caso, após faturar as mercadorias para São Paulo (sem a retenção do
imposto), solicita ao governo paranaense o ressarcimento do imposto retido a
favor do Paraná. Ao adentrar no Estado de São Paulo, o adquirente paulista
procederá a nova retenção na entrada da mercadoria no seu estabelecimento
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de acordo com as margens de valor agregado estipuladas pela legislação
paulista (as margens são específicas para cada item da nota fiscal).
Posteriormente, ao vender parte daquele lote dentro do Estado de São Paulo,
não poderá solicitar ressarcimento do imposto retido, uma vez que a retenção
feita na entrada do Estado alcança os fatos geradores futuros a ocorrer dentro
de São Paulo. Porém, para os lotes vendidos aos adquirentes localizados em
outros Estados, deverá observar se há ou não acordo com o respectivo Estado.
Não havendo acordo, depois de vendida a mercadoria sem a retenção a favor
do Estado de destino, deverá solicitar ressarcimento ao governo paulista do
imposto que havia sido retido na entrada do seu estabelecimento (em São
Paulo), pois o fato gerador presumido da operação subseqüente não se
realizou dentro de Estado de São Paulo. O adquirente do outro Estado deverá,
por sua vez, efetuar nova retenção na entrada, se a legislação do seu Estado
prever a substituição tributária para a mercadoria. No caso do atacadista
paulista, havendo acordo com o Estado de destino, ele também poderá solicitar
o ressarcimento em São Paulo, uma vez que a retenção anterior fora feita de
acordo com as margens de valor agregado estipuladas neste Estado, e efetuar
nova retenção de acordo com a margem de valor agregado estipulada com o
Estado de destino.
Essa descrição é uma amostra da complexidade que a nova substituição
tributária impôs aos contribuintes e à fiscalização. Realidade muito distante da
pretensa racionalidade e da economia de recursos que o instituto deveria
proporcionar no sentido de facilitar a fiscalização.
Outro efeito colateral é a insegurança que as novas inclusões trazem
para o mercado. A cada nova inclusão, todo o estoque de mercadorias que já
havia sido adquirido pelos comerciantes antes da inclusão é submetido à
cobrança antecipada do imposto por ST. O procedimento tem tirado o sono de
muitos comerciantes que de repente se viram obrigados a comprometer parte
considerável do seu capital de giro para recolher o imposto ST sobre estoques.
A medida tem por objetivo equalizar a carga tributária dos estoques em
relação às mesmas mercadorias que serão adquiridas com ST. A
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consequência é que, em relação aos estoques, vários comerciantes passaram,
inesperadamente, à condição de substitutos, o que, pelo menos no período da
inclusão, contradiz a ideia de centralizar a fiscalização em poucos grandes
contribuintes.
Outra consequência é que todo produto incluído na ST, se adquirido de
outro Estado ou DF com o qual o Estado do adquirente não tiver celebrado
acordo (convênio ou protocolo), como comentado anteriormente, fica sujeito a
ST na entrada. Nesse caso denomina-se pagamento antecipado a nova
modalidade de ST em que o adquirente também passa a ser substituto. Como
a gama de mercadorias na nova ST cresceu a um ritmo alucinante e o mesmo
não ocorreu com a celebração de acordos, a quantidade de substitutos
decorrentes de operações interestaduais de entrada cresceu igualmente.
Qualquer comerciante, grande ou pequeno, pode se transformar em substituto
em relação às saídas futuras das mercadorias que adquire de outro Estado.
Neste caso, a quantidade de contribuintes substitutos pode chegar a um
patamar inviável de ser atingido pelo Fisco contrariando o pressuposto que
serviu para a criação do próprio instituto. Mais uma vez, compromete-se a
ideia de centralizar a fiscalização em poucos grandes contribuintes.
Todos esses casos relatados demonstram que quantidade de
contribuintes substitutos vem crescendo a ponto de restabelecer-se a condição
que o próprio instituto da ST procura evitar: a difusão da fiscalização e o
controle da arrecadação sobre uma quantidade de contribuintes de vasta
capilaridade.
Por todos esses efeitos colaterais, caiu-se por terra o pressuposto
básico da utilidade (facilidade, racionalidade e garantia da arrecadação) (31),
ampliou-se o fenômeno da desvinculação do responsável com o fato imponível e ampliou-se a descaracterização da base de cálculo com a definitividade do
imposto pago, defeitos severamente combatidos por Carraza e outros juristas.
31 Vide Capítulo 2.
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Outro efeito colateral é a transformação do ICMS em um IVA às
avessas, desfazendo-se de suas características intrínsecas e indissociáveis
com a consequente perda de neutralidade. Como demonstrado, os IVA são
impostos amplos, multifásicos, não cumulativos e neutros. A nova ST mantém
a característica da amplitude, na medida em que abrange grande gama de
produtos, mas se transforma em um imposto com características de unifásico,
no meio das cadeias produtivas, com fortes elementos cumulativos e a sua
neutralidade comprometida. Algo bem semelhante aos antigos impostos únicos
cobrados no meio das cadeias produtivas abolidos pela Constituição Federal
de 1998.
A primeira consequência dessa transformação é o impacto sobre o
capital de giro dos substitutos e dos substituídos, uma evidente perda de
neutralidade. Alguns estudos podem servir de exemplos concretos. O estudo
da PricewaterhouseeCoopers (2010, p. 20-25) é cristalino ao demonstrar o
efeito nos substitutos. Em suas conclusões (p. 5), o estudo esclarece:
A adoção do regime resulta em redução do capital de giro das empresas que atuam como substitutos tributários do ICMS, na medida em que estas pagam o
tributo antes de receberem o valor relativo à venda efetuada.
Além disso, o descasamento entre os prazos médios de pagamento do tributo e
da realização financeira dos recebíveis resulta em maior custo financeiro para as
empresas submetidas ao regime.
O custo de capital de giro decorrente da nova ST foi estimado pela
PricewaterhouseeCoopers/CNI em aumento de até 48,7% e a perda financeira
decorrente do custo de oportunidade de remuneração dos excedentes de caixa
no mercado financeiro em até 16,6%.
Outro estudo foi apresentado por Guilherme Leal Gondo ao Instituto de
Economia da Universidade Estadual de Campinas em dezembro de 2009 (32).
32 GONDO, Guilherme Leal. Substituição tributária do ICMS em São Paulo: conceitos e ideias acerca dos impactos sobre as empresas substitutas do setor automotivo. Monografia. Campinas, 2009.
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Nesse estudo, o autor mapeou os efeitos da nova ST sobre o setor de
autopeças em São Paulo, cujas conclusões serão discutidas a seguir.
Uma das conclusões relevantes desse estudo é sobre o impacto da nova
ST na formação de preços na cadeia produtiva, que sofreram considerável
aumento. Os principais aumentos de preço no ano de 2009 se deram em lonas
de freio (9,1%), filtro de óleo (8,2%), amortecedores (7,7%) e filtro de ar (5,5%),
o que dificultou as condições de venda para os distribuidores e varejistas que,
na condição de substituídos, também se viram obrigados a mobilizar mais
capital de giro.
A necessidade de maior mobilização de capital de giro decorre não
apenas do aumento de preços, mas também da cobrança adicional o ICMS-ST
sobre o total da fatura. As empresas do setor, indústrias e distribuidores,
aumentaram o endividamento por linhas de crédito de giro rápido.
No caso da indústria, o descompasso entre o pagamento do novo ICMS-
ST no nono dia útil do mês subsequente ao da venda e os prazos de
recebimento provocou efeitos diversos no período de faturamento das
empresas, que preferiram antecipá-lo para os dias iniciais do mês.
O estudo de Gondo detectou também os impactos financeiros
indesejados decorrentes da demora do Fisco em efetuar o ressarcimento do
imposto retido nas operações interestaduais (fato gerador presumido não
realizado, como acima mencionado), o que, consequentemente, retém mais
capital de giro.
Os efeitos sobre o capital de giro das empresas, segundo o autor,
geraram outras consequências sobre as comissões dos agentes da
distribuição. Antes na nova ST, os representantes comerciais recebiam
comissões antecipadas sobre pedidos a serem faturados. Depois da nova ST,
as indústrias deixaram de contratar representantes autônomos e passaram a
adotar distribuidor próprio, sem ter de pagar comissões antecipadas.
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Pequenas e médias empresas do setor, principalmente distribuidores,
passaram a adotar um novo mark up em seus preços denominado “índice de
segurança”. O impacto, neste caso, foi maior nas empresas do Simples
Nacional.
Quanto aos efeitos sobre os estoques na inclusão de um novo produto
na ST, as empresas distribuidoras e varejistas do setor de autopeças
solicitaram pagamento em seis parcelas e deram preferência às aquisições de
outros Estados que, de acordo com Gondo, eram Estados não signatários. Em
seu estudo, o autor não chegou a detectar os efeitos do pagamento antecipado
para essas situações, já previstas no RICMS/SP. A hipótese é que as
empresas pesquisadas talvez ainda não estivessem se adequado para cumprir
a obrigação, o que, no início da implantação do regime, não era incomum, dada
à complexidade da legislação. A outra hipótese é que, simplesmente, as
empresas deixaram de cumpri-la de forma deliberada, ou seja, passaram a
sonegar o imposto.
Um ponto importante do estudo de Gondo é a detecção de um efeito
inusitado que a nova ST trouxe para os negócios. Trata-se da abertura de filiais
em Estados, até então, não signatários (no caso de empresas de autopeças),
especialmente Goiás e Espírito Santo. Relata o autor:
...o setor de autopeças (em São Paulo) tem experimentado uma nova
situação indesejada e que vem causando dissabores para aquelas empresas
que sempre acreditaram que a ST viria para extirpar as desigualdades e
pacificar as relações comerciais entre os empresários do setor. Passados mais
de dois meses da sua implantação, o mercado tem se deparado com uma
situação inusitada e ligada à concorrência em relação às empresas que se
valem de ‘paraísos fiscais’, como Goiás e Espírito Santo, adquirindo e
transferindo para suas unidades no estado de São Paulo sem o recolhimento
de guia, traduzindo esta prática em ‘descontos’ de até 15%. Assim, é como se
a mercadoria ficasse em São Paulo, sendo vendida sem o recolhimento da
guia, pois tal mercadoria acaba não saindo do Estado, ou seja, não ‘viaja’,
deflagrando em completo desajuste no setor com a conivência de algumas
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indústrias. Isto quer dizer que as empresas se valem da possibilidade de serem
tributadas apenas no momento seguinte de venda interna à cadeia, ao invés de
no momento de entrada da mercadoria no estado. Isto porque estas empresas
criam filiais nestes chamados ‘paraísos fiscais’ – que não pagam ICMS-ST – e
se valem da não assinatura de protocolos para que a aquisição da filial pela
matriz aconteça sem a cobrança do tributo. (p. 73-74)
Gondo comenta ainda o “fenômeno” da mudança de sedes de empresas
atacadistas de São Paulo para Goiás, Espírito Santo, Minas Gerais e Distrito
Federal, “levando os comerciantes paulistas a buscarem, entre outras coisas,
autopeças fora do território estadual, onde não há este sistema de tributação.”
(p. 75). Há alguns pontos, nas considerações do autor, que merecem uma
atenção maior.
Não se aplica ST sobre transferências de mercadorias entre matriz e
filial, segundo o disposto na cláusula quinta do Convênio ICMS 81/93 ainda em
vigor. Assim, era possível às indústrias sediadas em São Paulo transferirem
mercadorias para suas filiais distribuidoras ou atacadistas sediadas em outros
Estados não signatários e, posteriormente, reinseri-las no mercado paulista
sem a retenção por ST. A regra do pagamento antecipado veio para
impossibilitar essa hipótese de evasão. De acordo com essa regra, mesmo que
a mercadoria saia de São Paulo sem ST, ao voltar à sua origem, o adquirente
passa a ser o substituto e deve proceder ao pagamento antecipado a favor de
São Paulo na entrada da mercadoria em seu estabelecimento paulista (33).
A única maneira do adquirente paulista se evadir do pagamento
antecipado, e oferecer graciosos descontos aos seus clientes, seria deixar de
pagá-lo, ou seja, sonegá-lo. O atacadista sediado em outro Estado pode
vender para milhares de varejistas situados em São Paulo, os “novos
substitutos”, e estes, simplesmente, sonegarem o imposto a ser pago por
antecipação. Como sonegadores existem em grande número, torna-se difícil
33 É como se houvesse uma espécie de barreira alfandegária dentro do próprio país, algo totalmente inédito na história tributária brasileira (nota do autor).
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para a fiscalização atingir todos. Trata-se do efeito phármacon atuando a favor
da sonegação: o remédio que deveria curar reacende a doença.
Além dessas possibilidades de evasão comentadas, surgem também
novas possibilidades de elisão. Por exemplo, indústria com produtos incluídos
na ST pode vendê-los por preço inferior ao preço de mercado para atacadista
do mesmo grupo. Não é o caso de transferências ou vendas de mercadorias de
matriz para filial, operações não sujeitas à retenção, mas de vendas para
empresa coligada sobre a qual o remetente não detém o controle do capital.
Assim, essa indústria pode aplicar as margens de valor agregado publicadas
em portarias sobre uma base de cálculo propositadamente reduzida,
redundando em menos imposto a pagar por ST. O atacadista revende a
mercadoria como substituído a preços de mercado, contudo, acrescido do
ICMS-ST inferior ao que seria efetivamente devido. O substituto, ao vender por
preço inferior, poderá registrar prejuízos contábeis em suas operações,
comprometendo a solvência financeira do empreendimento. Esse “problema”
pode perfeitamente ser contornado pela celebração de contratos de mútuos
entre as empresas do grupo, restabelecendo-se a solvência financeira das
empresas que aplicam preços reduzidos sobre suas vendas (34).
Outros efeitos indesejados também se fazem sentir em outros
segmentos empresariais. As empresas optantes pelo regime do Simples
Nacional, por exemplo, chocam-se com o regime de substituição tributária pelo
fato de serem regimes incompatíveis. O regime do Simples Nacional foi
inspirado no modelo europeu, relatado no início deste trabalho, como
mecanismo de eficácia para garantir a arrecadação de segmentos
imensamente capilarizados das cadeias produtivas como as pequenas
empresas. Na Europa, não se cogitou da utilização de mecanismos do tipo ST
para garantir a arrecadação desses segmentos de difícil penetração do Fisco;
em seu lugar, optou-se por regimes simplificados (International Monetary Fund,
2001, p.113-123).
34 A concentração de excedentes de caixa em uma empresa-mãe ou em uma holding é prática comum nos conglomerados empresariais. Este expediente trás várias vantagens do ponto de vista da eficiência da gestão financeira. Por outro lado, enseja, também, verdadeiras “engenharias tributárias” com vistas à “planejamentos tributários” elisivos (nota do autor).
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No Brasil, adotaram-se os dois regimes, o que é, pelas características
intrínsecas de cada, naturalmente incompatível. As empresas do Simples
Nacional em relação às mercadorias que fabricam ou comercializam e que são
sujeitas ao regime de substituição tributária, perdem os benefícios do Simples.
O benefício só atinge o faturamento das mercadorias não sujeitas ao regime
ST, o que impõe às empresas dessa natureza custos adicionais de
conformidade. Isto ocorre porque se a empresa do SN for substituta (fábrica), a
alíquota do ICMS prevista no SN seria inaplicável a ST (as alíquotas do SN são
inferiores). Se for substituída, o regime, ao invés de favorecer, prejudica a
empresa. Ao comprar mercadorias com ST, o imposto pago na entrada não
poderia ser repassado na saída. Assim, a empresa do SN teria um ônus
tributário semelhante ao do consumidor final. Esses inconvenientes induziram a
alteração da legislação do SN, excluindo-se do benefício, produtos sujeitos a
ST.
Sob esse aspecto, a ST equipara as empresas optantes do Simples
Nacional às empresas não optantes desse regime. O efeito phármacon
reaparece: milhares de empresas do Simples Nacional passam à condição de
substitutas. O que fora concebido para evitar a fiscalização em vários
contribuintes, volta-se contra o próprio objetivo. Mais uma vez, amplia-se o
número de contribuintes capilarizados a serem fiscalizados, fenômeno que o
próprio instituto da ST propõe evitar.
Outro ponto que merece maior pesquisa diz respeito ao encarecimento
da mercadoria nacional em decorrência da nova ST, o que favorece o produto
importado. Há quem defenda que a nova substituição tributária – da forma
como vem sendo instituída nos últimos anos – favorece o produto importado da
China. As pasteurizadas margens ST quando aplicadas sobre bases de cálculo
aviltadas como as dos produtos chineses, tornam-nos mais competitivos no
mercado nacional. Distribuidores e atacadistas instalados no Brasil podem dar
preferência ao produto importado, principalmente ao produto chinês, com
reflexos negativos na arrecadação do ICMS. A este fenômeno, denominaremos
efeito China. Mais uma vez o efeito phármacon se manifesta: a ST, por essa
via, ao invés de alavancar receitas, opera no sentido inverso.
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A nova ST e os ganhos de arrecadação
Nesta altura, é preciso melhor avaliar a ideia de que os ganhos de
arrecadação proporcionados pela nova substituição tributária decorrem da
captura do imposto sonegado na ponta do varejo. A hipótese deste trabalho é
que a maior porção dos ganhos não foi proporcionada pelo “combate à
sonegação”, mas por puro e simples aumento da carga tributária sobre os
contribuintes. Vejamos.
A base de cálculo da nova ST é estimada em função de margens médias
de valor agregado ou por preços médios quando conhecidos e aceitos pelas
autoridades fazendárias. Há empresas de varejo que praticam margens e
preços superiores à média utilizada na estimativa da base de cálculo. Outras,
porém, praticam preços e margens inferiores.
As primeiras, as que praticam margens e preços superiores, recebem as
mercadorias contendo na nota fiscal o imposto ST menor do que seria o devido
na cadeia a partir da retenção, uma vez que margens e preços utilizados na
valoração da base de cálculo da ST são menores do que os efetivamente
praticados. Nesse caso, ao vender a mercadoria para seus clientes, as lojas
varejistas repassam, junto com o valor da transação, imposto menor do que o
devido se não houvesse ST. Esses adquirentes pagam, portanto, menos
imposto do que seria o devido, sendo favorecidos pela ST.
As segundas, as que praticam margens e preços inferiores, recebem as
mercadorias com o imposto retido maior do que o devido caso não houvesse
ST, repassando-o na transação de venda para os seus clientes, que acabam
pagando mais imposto, sendo penalizados pela ST.
Cabe lembrar que o repasse de impostos indiretos no preço das
mercadorias, depende da elasticidade-preço da demanda da mercadoria no
varejo. Quanto mais inelástica for a demanda da mercadoria em relação ao seu
preço, maior é o repasse e, quanto maior for essa elasticidade, menor o
repasse. De toda forma, se a empresa varejista não consegue repassar todo o
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imposto retido por ST nos casos de mercadorias de alta elasticidade-preço da
demanda, acaba por arcar, ela, a empresa, o ônus da parcela do tributo não
repassado, comprometendo, pelo menos em parte, o seu próprio de capital de
giro.
Desta forma, quem pratica margens inferiores às utilizadas para a base
de cálculo da ST acaba por pagar mais imposto do que o devido se não
houvesse ST, seja o próprio estabelecimento varejista ao assumir, em alguns
casos, parte do ônus, seja o consumidor final, ao assumir o restante ou todo o
ônus da ST.
Vale observar que grandes lojas de varejo normalmente trabalham com
giro rápido de estoques e contam com empresas financeiras para financiar o
seu crediário, potencializando esse giro e tornando a demanda mais inelástica
em relação ao preço da mercadoria.
Atualmente, as estruturas de mercado do varejo brasileiro assemelham-
se às estruturas de varejo dos chamados países desenvolvidos. São bastante
concentradas, ao contrário dos anos 1970, quando a ST para frente foi
concebida. Naquela ocasião, o varejo brasileiro era bem mais capilarizado e os
produtos sujeitos a ST eram consumidos em lojas específicas (concessionárias
de veículos, postos de gasolina, bares e restaurantes para citar alguns).
Ao atual varejo concentrado representado pelas grandes redes de
supermercados, magazines e até mesmo grandes atacadistas que vendem no
varejo, denominaremos grande varejo. Aos demais estabelecimentos varejistas
dos dias de hoje, mais capilarizados, denominaremos pequeno varejo.
Os estabelecimentos pertencentes ao grande varejo respondem pelo
grosso das vendas de todo setor varejista. Ao contrário dos anos 70,
atualmente são eles, na condição de substituídos, os principais repassadores
do imposto retido por ST aos consumidores finais. Sabe-se que no grande
varejo a sonegação não é primária, isto é, o volume de operações diárias é tão
grande a ponto de inviabilizar vendas sem emissão de documento fiscal, o que
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comprometeria o controle pelo próprio estabelecimento. Esta prática é mais
comum no pequeno varejo.
Sabe-se também que os estabelecimentos do grande varejo praticam
margens de lucro mais reduzidas em relação ao restante do mercado, uma vez
que a maior parte dos seus ganhos provém do giro das mercadorias. No jargão
popular diz-se que esses estabelecimentos ganham no giro, não na margem.
Neste contexto, os estabelecimentos do pequeno varejo perdem
competitividade. Para competirem com os grandes, não conseguem aumentar
seus preços a ponto de compensar o menor giro dos seus estoques. Por isto,
vivem no pior dos mundos, com margens reduzidas e menor giro.
Uma terceira categoria de estabelecimentos varejistas são aqueles que
vendem artigos de luxo e de marcas caras e famosas para clientes da alta
classe média e da alta sociedade. A essa categoria denominaremos varejo de
luxo que, por sua vez, praticam margens mais altas e menor giro de estoques
em relação ao restante do mercado. Ganham na margem (preços altos) e não
no giro.
As margens de valor agregado utilizadas na valoração das bases de
cálculo da retenção do imposto devido por ST é a mesma para essas três
categorias de varejo. Ela é pasteurizada.
Os estabelecimentos do grande varejo normalmente vendem suas
mercadorias por preços e margens inferiores aos utilizados na valoração das
bases de cálculo da ST, repassando para seus clientes, portanto, imposto
maior do que o devido se não houvesse ST. Isto é, os clientes do grande varejo
são sobretaxados, uma vez que o imposto ST presente na transação fora
calculado sobre margens e preços superiores aos efetivamente praticados. O
mesmo acontece com os clientes do pequeno varejo. Como o Supremo
Tribunal Federal ainda não julgou a constitucionalidade do ressarcimento
nessas hipóteses, o ônus da sobretaxação fica para os agentes finais dos
segmentos varejistas, os consumidores.
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Quanto ao varejo de luxo, ocorre o inverso. Suas margens e preços são maiores do que as utilizadas na ST, portanto, seus clientes, mais ricos, arcam
com menor carga tributária (35).
Para uma mesma marca de cerveja, por exemplo, o imposto que o
cliente paga ao adquiri-la no supermercado é igual ao imposto pago por outro
cliente em um hotel de alta classe média localizado em bairros nobres.
Retomando, como a maior parte das vendas de varejo se realiza no
grande varejo, e dado que o grosso dessas vendas é feita com a emissão de
documento fiscal, ao praticarem margens e preços inferiores às utilizadas nas
margens ST, a maior parte dos ganhos de arrecadação ST provém das
operações desses estabelecimentos que, como visto, são sobretaxados pela
ST, tanto seus clientes como o próprio estabelecimento na parcela do ônus não
repassada. Os ganhos de arrecadação proporcionada pela captura do imposto
sonegado no pequeno varejo são, portanto, marginais, pois marginais são suas
vendas em relação às do grande varejo.
Em outras palavras, os grandes ganhos de arrecadação proporcionados
pela nova ST não advêm, em sua maior parte, do pretenso “combate à evasão”
do imposto sonegado no varejo, mas da sobretaxação decorrente da ausência
de ressarcimento sobre milhares de lojas e de milhões de consumidores de
classe média e das classes “C” e “D” que hoje realizam a maior parte de suas
compras no grande varejo.
Assim, a nova ST assume configurações de imposto confiscatório,
sobretaxando lojas e consumidores de classe média para baixo e, ao mesmo
tempo, favorecendo os consumidores das classes mais abastadas. Trata-se do
efeito Robin Hood às avessas, descrito por Antônio Sérgio Valente na série de
artigos de sua autoria publicada no Blog do AFR (36).
35 Veja o efeito Robin Hood às Avessas adiante comentado. 36 VALENTE, Antônio Sérgio. Robin Hood às Avessas. Disponível em http://blogdoafr.com/2011/10/04/primeiro-ebook-e-lancado-pelo-blog-do-afr/
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Cale lembrar que uma boa parte dos consumidores clientes do grande
varejo paga este “sobre imposto” sem o perceber nas várias parcelas do cartão
de crédito e do crediário proporcionados pela recente melhoria das condições
do crédito ao consumidor.
Outro ponto de relevância, é que este fenômeno se tornou factível após
a adoção da nova ST, porque, de tão abrangente, atinge principalmente as
mais variadas lojas de comércio do grande varejo como redes de farmácias,
redes de supermercados, lojas de departamentos e redes de magazines. Algo
muito diferente da velha ST que atingia lojas mais específicas
(concessionárias, etc). Vale dizer, o uso do mesmo instrumento nos dias atuais
concebido para uma realidade de 40 anos atrás, representa enorme
anacronismo.
Por último, consideramos que os atuais ganhos de arrecadação
proporcionados pela nova ST podem representar uma considerável bolha
arrecadatória. Vejamos.
Parte desta bolha se explica pelo recente ciclo de inclusão de novos
produtos na ST (nova ST). Como visto, a cada nova inclusão, apura-se e paga-
se o imposto por ST sobre os estoques do produto nos estabelecimentos
comerciais, o que já se esgotou. Há pouca margem de novos produtos que, ao
serem incluídos na ST, sejam relevantes para a arrecadação. Portanto, dessa
fonte, nada mais sai.
Outra parte pode ser explicada, como visto, pelo pagamento antecipado
na entrada de mercadorias sujeitas a ST em um Estado e não sujeita no
Estado de origem, entre os quais não haja acordo. Este plus de arrecadação
ocorre a partir de cada nova inclusão unilateral. Um novo plus nesta frente
depende fundamentalmente dos rearranjos das operações e da (re)localização
geográfica dos estabelecimentos de distribuição por um lado e, por outro, das
possibilidades de inclusão unilateral de novos produtos na ST. A primeira
condição atua não no sentido de incrementar a arrecadação, mas nas
possibilidades de evasão e elisão. Quanto à segunda, parece pouco provável
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que a mesma aconteça nas atuais circunstâncias dado que, como dito, há
poucos produtos que possam ser incluídos atualmente. Portanto, não se pode
esperar grandes efeitos arrecadatórios por esta via.
A parte mais relevante dessa bolha talvez possa ser explicada pela
sobretaxação que a nova ST impõe sobre as vendas do grande varejo. Esta
parte pode estar ameaçada. Um considerável recuo nesta parte não pode ser
descartado, devido a intensificação da atuação dos mecanismos do efeito
phármacon, como visto.
Uma quarta parte, talvez a menos relevante, se explica pela captura do
imposto sonegado pelos estabelecimentos do pequeno varejo, o que não
repercute em expressivos aumentos de arrecadação.
Conclusão
Neste capítulo procurou-se descrever e avaliar alguns efeitos
indesejados da denominada nova substituição tributária (nova ST) sobre as
empresas, a fiscalização e a arrecadação do próprio ICMS.
Primeiramente, um destaque foi dado ao chamado efeito phármacon,
segundo o qual um remédio, quando mal administrado, pode piorar a doença,
ao invés de curar. Esta figura de linguagem seria utilizada, dali em diante, a
cada demonstração de efeito colateral indesejado que a nova ST acarreta.
Antes, porém, demonstramos em quadros e figura, dados extraídos do
estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI as quantidades de novos produtos
incluídos na ST por Estado, onde ficaram patentes dois surtos de inclusões. O
primeiro, mais moderado, ocorreu em 2008. O segundo, bastante expressivo,
em 2009, tendo à frente principalmente os Estados mais industrializados do
centro-sul do país. Outros Estados com inclusões mais expressivas fora desse
eixo foram Alagoas, Amazonas e Mato Grosso. Nos demais, as novas
inclusões não foram significativas.
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A partir destes dados, separamos o uso da substituição tributária em
dois períodos. O primeiro, a que denominados velha ST, contemplou o uso
desse instrumento desde a sua criação no início dos anos 70 até 2007,
vésperas do primeiro surto das novas inclusões.
Os produtos sujeitos à velha ST eram os produtos “tradicionais” cujas
características atendiam aos quesitos básicos de inclusão desenvolvidos ao
longo das três décadas e meia de uso do regime: relevância para a
arrecadação, produção concentrada, homogeneidade do produto e do seu
preço de varejo e vendas de varejo pulverizadas. Este sistema funcionou em
relativa harmonia entre os Estados da federação brasileira até 2007, haja vista
a quase unanimidade que havia entre eles quanto aos produtos incluídos na ST
e a celebração de convênios para quase todos esses produtos. Porém, não
sem conflitos Fisco/contribuintes. A origem desses conflitos residia no fato de
que a substituição tributária para frente, velha ou nova, transforma impostos do
tipo IVA em tributos unifásicos com bases de cálculo descaracterizadas,
impondo maiores custos de capital de giro para os contribuintes. Atos
constitucionais e Leis Complementares apaziguavam estes conflitos.
Por outro lado, os custos de conformidade eram estáveis, devido à
relativa harmonização em torno de margens estimadas e demais regras que
havia entre os Estados.
A velha ST contava situações mais adequadas em termos de preço final
dos produtos, que eram bem conhecidos e, muitos deles, tabelados. Desta
forma, os conflitos em torno da caracterização da base de cálculo não eram tão
agudos, em comparação com o que estaria por vir na nova ST.
A nova ST surgiu em 2008 ganhando enorme impulso em 2009, com a
inclusão de enorme gama de novos produtos na ST, sendo que, em grande
parte, não atendiam aos quesitos básicos de inclusão. Tratava-se de produtos
não homogêneos, de variados preços de varejo e muitos deles não relevantes
para a arrecadação. Além disto, não houve harmonização entre os Estados. A
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maior parte dessas novas inclusões se deu de maneira autônoma com poucos
acordos entre os Estados.
Assim, legislações diversificadas, grande variedade de margens de valor
agregado estimadas, o crescimento dos pedidos de ressarcimento nas
operações interestaduais, o surgimento da ST sobre estoques a cada nova
inclusão, o surgimento do pagamento antecipado na entrada da mercadoria no
Estado, tudo isto, impôs aos contribuintes maiores custos de conformidade e,
para a fiscalização, maiores complexidades e dificuldades operacionais, algo
muito distante do princípio da utilidade como mecanismo de facilitação da
fiscalização, racionalização e garantia da arrecadação que deveria orientar o
uso da substituição tributária.
Ao mesmo tempo, a transformação do imposto multifásico em unifásico
trouxe aumentos do custo de capital de giro tanto das empresas substitutas
como das substituídas. Pesquisas e estudo acadêmico demonstraram a reação
das empresas para enfrentarem este impacto: aumento do endividamento por
linhas de crédito de giro rápido, antecipação do faturamento, troca de
representantes por distribuidores exclusivos, além de rearranjos
organizacionais com redistribuição de estabelecimentos por Estados
contemplando práticas elisivas quando não, sonegatórias, configurando-se,
tudo isso, uma clara manifestação do efeito phármacon.
Outro efeito indesejado da nova ST foi o surgimento de contribuintes
substitutos em grande número e de vários portes, grandes, pequenos e
médios. Isto ocorreu em virtude da ampliação inusitada de produtos sujeitos á
ST, abrangendo outros além daqueles que já haviam sido consagrados e
também da não celebração de acordos entre os Estados. Ao invés de restrita
aos produtos tradicionais fabricados por indústrias oligopolizadas, a nova ST
atingiu produtos fabricados por indústrias de qualquer porte, grandes ou
pequenas, ampliando, assim, o número de contribuintes substitutos. Quanto às
aquisições interestaduais, de repente, qualquer comerciante de qualquer porte,
atacadista ou varejista, se transforma em substituto pelo pagamento
antecipado em suas aquisições interestaduais não amparadas por acordos.
68
Uma terceira frente de ampliação do número de substitutos foram os
comerciantes (também de qualquer porte) que detinham estoques de produtos
incluídos na nova ST e que, inesperadamente, se transformaram em
substitutos. Embora esse efeito seja localizado no tempo, não deixou de
contribuir para aumentar o leque de novos substitutos.
Assim, a fiscalização se viu às voltas com algo até então inusitado: a
pulverização de contribuintes substitutos, comprometendo a ideia de
racionalizar e facilitar a fiscalização em poucos grandes contribuintes. Mais
uma manifestação do efeito phármacon.
Em relação ao regime do Simples Nacional (SN) a nova ST tornou-se
totalmente incompatível. Na contabilização das operações das empresas do
SN, as mercadorias sujeitas a ST ficaram de fora do regime simplificado. Como
quase todos os produtos estão na nova ST, praticamente o regime do SN é
letra morta para a maioria das empresas optantes, pelo menos no que diz
respeito às suas operações e prestações sujeitas ao ICMS. Aumentaram-se
custos de conformidade para essas empresas e reapareceu o efeito
phármacon pela pulverização de contribuintes do SN que se tornaram
substitutos.
Possibilidades de evasão e elisão foram relatadas. Por exemplo, a de
distribuidores e atacadistas vinculados que se instalam em Estados limítrofes,
recebem mercadorias não amparadas por acordos sem a retenção e,
posteriormente, revendem as mesmas mercadorias (sem retenção e com
graciosos descontos) para varejistas do Estado de origem. O pagamento
antecipado pode deixar de ser feito pelos varejistas adquirentes. Como existem
em grande número, dificulta-se o alcance da fiscalização nestes contribuintes.
Justamente o contrário do que o instituto da ST procura combater. Mais uma
manifestação do efeito phármacon.
Uma possiblidade de elisão é o caso de indústrias substitutas que ao
venderem mercadorias para atacadistas coligados, para os quais não detém o
controle do capital, o fazem por preço inferior ao preço de mercado, reduzindo-
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se a base de cálculo da ST, e destarte, pagando-se menos imposto. O
atacadista vende a mercadoria pelo seu preço de mercado. A redução do lucro
bruto da substituta é compensada pelo equivalente aumento do lucro bruto do
atacadista. Em se tratando de empresas do mesmo grupo, um contrato de
mútuo intermediado por empresas holding restabelece a liquidez da substituta.
Essas reações demonstram mais possibilidades de manifestação do efeito
phármacon.
Em relação à arrecadação três observações foram apontadas.
Primeiro, o espraiamento da nova ST para enorme gama de mercadorias
vendidas no varejo pode provocar indesejadas transferências das aquisições
de atacadistas e distribuidores de produtos nacionais para produtos
importados, principalmente para os mais baratos provenientes da China. Como
a base de cálculo para a maioria das mercadorias sujeitas ao regime ST é
valorada por margens de valor agregado pasteurizadas, a mesma margem que
se aplica sobre produto nacional também é aplicada sobre produto mais barato
importado da China, gerando menos imposto a pagar (efeito China). Cabe
destacar que este mesmo efeito está presente para todos os tributos. Porém, a
nova ST funciona como indutor adicional (e importante) desse fenômeno,
podendo acarretar perdas de arrecadação e contribuir para o processo de
desindustrialização. Puro efeito phármacon.
Segundo, é duvidosa a ideia de que a nova ST proporcionou grandes
ganhos de arrecadação pela captura do imposto sonegado na ponta do varejo.
Que houve consideráveis ganhos de arrecadação, não resta dúvidas. Os
dados, por si só, o demonstram. Porém, há fortes evidências de que estes
ganhos não provêm do pretenso “combate à sonegação”, mas da sobretaxação
dos segmentos formalizados do varejo.
Isto decorre do fato de que as empresas que operam no grande varejo
concentrado, que são os grandes magazines, lojas de departamentos e redes
de supermercados respondem pela maior parte das vendas de produtos
sujeitos à nova ST. Como estes estabelecimentos comerciais ganham no giro e
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não na margem, praticam margens e preços inferiores às médias utilizadas na
valoração das bases de cálculo da ST. Desta forma, recebem mercadorias com
imposto retido MAIOR do que o seria caso não existisse a ST. Como não há
ressarcimento para essas hipóteses, repassam, pelo menos, parte desse
imposto nas transações que efetuam com seus clientes, os consumidores
finais. A parte não repassada devido às condições da elasticidade-preço da
demanda é suportada pelo seu próprio capital de giro. De toda forma, o ônus
final do imposto ST anteriormente retido é suportado pelos contribuintes e
consumidores finais. A parte suportada pelo consumidor final, em muitos casos,
é diluída em suaves prestações que as atuais condições favoráveis do crediário
proporcionam. Além disto, o crescimento das vendas neste segmento para as
classes “D” e “C” e para a classe média foi espetacular nos últimos anos.
Assim, sobretaxação das vendas em contínuo crescimento no grande
varejo devido à turbinação do consumo que se verificou nos últimos anos,
proporcionou robustos ganhos de arrecadação nos segmentos formalizados do
setor. Ou seja, a captura do imposto sonegado pelos estabelecimentos do
pequeno varejo, mais propensos à evasão, proporcionou contribuição marginal
(muito pequena) para o incremento da arrecadação.
Quanto aos estabelecimentos do varejo de luxo, a hipótese defendida é
que os mesmos praticam margens e preços superiores aos utilizados para a
valoração da base de cálculo da ST pagando, portanto, menos impostos do
que o seria se não houvesse a retenção antecipada.
Por tudo isto, a nova ST, além de ter proporcionado polpudos ganhos de
arrecadação a partir da sobretaxação dos segmentos formalizados do grande
varejo, promoveu uma enorme injustiça tributária, configurando-se o chamado
efeito Robin Hood às avessas descrito por Antônio Sérgio Valente em sua série
de artigos homônima (ver nota de rodapé nº 36).
Por fim, foi salientado que o crescimento da arrecadação proporcionado
pela nova ST configura-se como uma bolha arrecadatória de difícil sustentação.
Até agora, tem sido sustentada, dentro outros fatores, por novos produtos que
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passaram para o regime, ensejando recolhimentos sobre estoques e
pagamentos antecipados. Foi considerado que as condições que levaram
vários produtos à nova ST já se esgotaram, restando poucos produtos capazes
de proporcionar relevante arrecadação. Portanto, por esta via a bolha não se
sustenta.
Por outro lado, os ganhos de arrecadação proporcionados pela
sobretaxação dos segmentos formalizados do varejo podem ter vida curta.
Além do efeito China já apontado, a reação das empresas para fugirem da ST
e oferecer ao comércio produtos com atraentes descontos passa pela
reconfiguração geográfica de distribuidores e atacadistas e de outros arranjos
operacionais que visam “planejamentos tributários”. Estes expedientes podem
redundar em fomento das práticas elisivas e sonegatórias, atuando a favor do
estouro da bolha, ou, como referido, reforçando o efeito phármacon.
Os problemas aqui relatados não esgotam o assunto. Como já foi dito,
são apontamentos. Por outro lado, vislumbram-se possíveis soluções a seguir,
discutidas.
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CAPÍTULO 5
Possíveis Soluções
O objetivo desse capítulo é discutir possíveis soluções para os
problemas da nova substituição tributária (nova ST) anteriormente apontados.
As propostas aqui discutidas não esgotam o assunto, como dito. Dentre
as várias propostas apresentadas destacam-se três grupos:
a) as soluções que visam restituir a antiga configuração do sistema da
substituição tributária para frente;
b) as soluções que visam ampliar o atual sistema da nova ST e
c) uma nova linha de soluções que leva em conta a obsolescência da
substituição tributária e o uso intensivo da tecnologia da informação.
Soluções que visam restituir a antiga configuração do sistema da
substituição tributária para frente
Esta categoria de soluções pode ser representada pela proposta contida
no estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI (p. 177-179), que consiste na
adoção das medidas a seguir comentadas.
Segundo a PricewaterhouseeCoopers/CNI, o objetivo é “tornar a
substituição tributária mais neutra, coerente e adequada às premissas que
ensejaram a criação dessa sistemática de apuração...” (p. 176). Para alcançar
esse objetivo a primeira medida seria autorizar o ressarcimento do imposto
pago a maior nas hipóteses em que a base de cálculo utilizada na retenção for
superior às margens e preços efetivamente realizados. O ressarcimento seria
efetuado em espécie (crédito em conta corrente) ou em créditos fiscais.
A medida retira o efeito da sobretaxação das transações do grande
varejo e restitui a justiça fiscal. Embora o estudo não mencione a irmã siamesa
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dessa medida – o pagamento da diferença quando a base de cálculo da ST for
inferior ao preço de venda real da mercadoria, o pagamento complementar –
ela seria necessária para a completa restituição da justiça fiscal. Caso
contrário, não se eliminaria por completo o efeito Robin Hood às avessas.
Do ponto de vista operacional, a medida repõe à fiscalização a imensa
quantidade de auditorias fiscais junto aos milhares de varejistas que pleiteariam
o ressarcimento. Do mesmo modo, o pagamento complementar demandaria o
mesmo esforço de fiscalização em centenas ou milhares de contribuintes. Algo
totalmente contrário ao que o próprio instituto da ST procura evitar.
A segunda medida é de ordem financeira e tem por objetivo amenizar o
custo de capital de giro dos contribuintes substitutos. Consiste em ampliar “o
prazo de recolhimento do ICMS por substituição tributária para período superior
ao prazo médio de recebimento das vendas...” (p. 176).
A medida é salutar e parece atingir os objetivos pretendidos. Na prática,
não é possível a perfeita sincronização entre prazos de recebimento de vendas
e pagamento de impostos. Ao mesmo tempo, quanto mais pasteurizados forem
os prazos de recolhimento, maiores serão os desvios em relação a prazos
efetivos e maiores as reclamações por prazos mais adequados a cada negócio.
A fixação de prazos de recolhimento de acordo com os prazos médios
praticados por setor de atividade econômica identificados pela Codificação
Nacional de Atividade Econômica (CNAE) poderia amenizar as consequências
da proposta. A medida se coaduna com a proposta seguinte que prevê a
inclusão apenas dos produtos que atendam aos quesitos básicos da
substituição tributária.
A terceira proposta é a exclusão do regime dos “produtos que não se
coadunem com os requisitos teóricos da sua inclusão” (p. 177), isto é, ficaria na
ST somente os produtos de grande relevância para a arrecadação, de
concentrada produção, que fossem homogêneos, de comercialização
pulverizada e cujos preços finais fossem conhecidos e homogêneos. O estudo
procura demonstrar que o aumento indiscriminado de produtos sujeitos a ST
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nos últimos anos, incluiu produtos que não atendem a esses pressupostos,
causando inúmeros transtornos tanto para o Fisco quanto para os
contribuintes.
A proposta é coerente com o objetivo de restabelecer a velha
substituição tributária e torná-la mais neutra. Na prática, porém, a retirada de
produtos da ST esbarraria em um problema de ordem financeira e operacional:
o que fazer com os estoques de mercadorias adquiridas com ST? A partir do
momento em que um produto fosse retirado da ST - ao contrário da cobrança
do ICMS-ST sobre estoques quando da sua inclusão - as fazendas estaduais
teriam de ressarcir aos adquirentes do imposto pago por antecipação. O
desencaixe que os tesouros estaduais teriam de efetuar para atender a
proposta não seria desprezível. Uma possível solução seria a apropriação do
imposto pago por antecipação incluído nos estoques em créditos fiscais para
aproveitamento parcelado. Esse ressarcimento em créditos demandaria, pelo
menos por algum tempo, grandes esforços de fiscalização e teria impactos
negativos nas arrecadações estaduais que poderiam, a princípio, ser
recuperados nas vendas posteriores, pelo sistema de débito e créditos.
A proposta necessita de maiores estudos e reflexões que não cabem no
espaço desse trabalho. Como comentado, o objetivo é apontar possíveis
soluções para o aprofundamento do debate.
Outra medida proposta pelo estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI é
a observação de critérios objetivos para inclusão de produtos na ST e alteração
das margens de valor agregado. Considera que tanto os critérios de inclusão
de novos produtos na ST quanto à definição das margens de valor agregado
são obscuros, não aparecendo de forma clara nos textos das normas
tributárias. Propõe maior objetividade e transparência, “reduzindo os custos
inerentes ao cumprimento das ... obrigações principal e acessória” (p. 177).
Considera-se que a transparência e a objetividade são quesitos
fundamentais em uma democracia e, por isto, pressupõe-se que a inclusão de
novos produtos na ST deveria ser antecedida por pesquisas, reuniões e
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discussões entre representantes fazendários e representantes empresariais, o
que seria igualmente válido para a definição de margens de valor agregado.
No contexto da proposta, que prevê a retirada de produtos da ST e/ou a
inclusão de novos produtos que atendam aos requisitos, pressupõe-se que as
administrações fazendárias adotariam os mesmos critérios e procedimentos de
transparência e objetividade tanto na inclusão como na exclusão. Toda norma
publicada sobre a matéria deveria conter em seu texto os critérios técnicos e as
justificativas.
Quanto à redução dos custos de conformidade mencionada na proposta,
a publicação dos critérios objetivos e das justificativas de inclusão/exclusão não
é medida suficiente para redução desses custos. Reduzir custos de
conformidade implica, dentre outras medidas, a eliminação da publicação
desordenada de normas. O enorme mosaico de normas estaduais atinentes à
substituição tributária que hoje existe representa grande empecilho à redução
dos custos de conformidade. No contexto da proposta, a permanência de
poucos produtos na ST possibilitaria reduzir esse mosaico e articular as
normas em um sistema orgânico em níveis estadual e nacional (convênios).
Isto sim contribuiria para a redução dos custos de conformidade.
Por último, o estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI propõe a
“uniformização regional das margens de valor agregado por natureza do
produto” (p. 177). O estudo identificou grande variedade de margens de valor
agregado baixadas por decreto ou por portarias para um mesmo produto em
Estados de uma mesma região. Em um país de dimensões continentais e de
grandes desigualdades regionais que nem o Brasil é natural a ocorrência de
diversidades de margens, capacidades econômicas e de arrecadação. O
problema identificado pelo estudo é o uso de diferentes margens de valor
agregado para Estados de uma mesma região, o que provoca distorções
imediatas, como por exemplo, aumento de preços e escassez do produto,
como mediatas, como por exemplo, a transferência de uma indústria de um
Estado para outro vizinho em virtude do último oferecer margens de valor
agregado mais vantajosas.
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A proposta é adequada para o contexto que procura manterem-se na ST
poucos produtos. Margens de valor agregado regionalizadas, nesse contexto,
poderiam evitar uma espécie de guerra fiscal calcada em margens mais
vantajosas. Seriam necessários acordos (convênios ou protocolos) entre
Estados de uma mesma região. A medida contribuiria para a redução dos
pedidos de ressarcimento nas remessas de mercadorias de um Estado para
outro com diferentes margens de valor agregado, pelo menos entre Estados de
uma mesma região. Contribuiria também para a redução dos custos de
conformidade pela redução da quantidade de normas.
A regionalização da substituição tributária poderia amenizar os conflitos
entre Estados de uma mesma região somente nesse item: ST. Porém, poderia
suscitar outros problemas de ordem federativa. O ocorrido no comércio
eletrônico é um exemplo. O Protocolo CONFAZ 21 foi firmado entre Estados de
uma região para sobretaxar, na entrada, mercadorias provenientes dos centros
de distribuição de regiões mais industrializadas. O mesmo poderia ocorrer com
margens de valor agregado regionalizadas, onde o pagamento antecipado
poderia servir como instrumento de alavancagem da arrecadação na entrada
dos Estados de uma região. Toda discussão que envolva ICMS em nível
regional ou nacional - no contexto atual de franca beligerância fiscal entre os
Estados da federação brasileira - não pode ser tratada regionalmente.
Soluções que visam ampliar o atual sistema da nova ST
Há propostas informais de universalização da substituição tributária para
frente tanto no nível estadual quanto no nível federal.
No nível estadual, cada Estado cobraria a ST a seu próprio modo,
instituindo-a praticamente a todo o universo de mercadorias transacionadas em
seu território. A medida exacerbaria todos os conflitos já existentes, podendo
estimular medidas retaliativas no âmbito da guerra fiscal e, destarte, afetar
negativamente o comércio inter-regional e a integração nacional. O
crescimento da quantidade de contribuintes substitutos contrariaria os
pressupostos do próprio instituto da ST, estimulando as possibilidades de
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evasão e elisão e trazendo grandes dificuldades para a fiscalização, como
discutido neste trabalho.
Em nível nacional, há propostas que advogam pela aplicação da
universalização da ST para todos os produtos, o que demandaria amplos
convênios. A pretensa harmonização da proposta, na verdade, teria como
consequência sérias dificuldades de ordem prática e operacional, podendo
agravar a evasão e a elisão fiscal, como já comentado. Incongruências de
margens entre regiões/estados, desvios de margens e preços em torno de
médias, aumento generalizado do custo de capital de giro, encarecimento da
produção, crescimento do número de contribuintes substitutos, inviabilização
do Simples Nacional, enfim, mais uma vez, todos os problemas anteriormente
comentados, seriam exacerbados em todo o território nacional.
Em suma, ambas as medidas potencializariam todos os problemas
apontados nesse trabalho. Os tempos são outros. Hoje, o valor agregado é
cada vez mais difuso. Grande diversidade de ocorrências do mundo moderno
concorre para a sua formação. Os modernos sistemas de informação
associados ao uso intensivo de talento humano e inteligência quando aplicados
a novos processos redundam em produtos cada vez mais diferenciados e
customizados. Tudo isso redunda em grande diversidade de preços. Ou seja,
homogeneidade e pasteurização, tão afeitas a ST, são paradigmas do
passado.
Nesse passo, discute-se a seguir as possibilidades de soluções que
levem em consideração o anacronismo e a obsolescência da ST bem como o
uso intensivo da tecnologia da informação visando eliminá-la do sistema de
tributação do valor agregado do ICMS.
A linha de soluções baseada na tecnologia da informação
A substituição tributária para frente está se tornando anacrônica, com
alto grau de obsolescência. A concepção básica por trás da sua criação tinha
por substrato as dificuldades operacionais do Fisco em penetrar suas ações na
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imensa capilaridade do varejo. A realidade do início dos anos 1970, época em
que começou a ser explorada pelos Estados brasileiros, moldou suas
características fundamentais. Como observado, naquela época, os então
poucos produtos de maior relevância para a arrecadação como, por exemplo,
automóveis, combustíveis, cervejas, chope, refrigerantes, cigarros e outros
eram mais homogêneos e seus preços finais eram mais conhecidos, quando
não, tabelados.
A maior parte do valor agregado no varejo antigo se realizava do então
“centro” das grandes cidades, o “centro comercial” como era chamado,
composto por várias lojas, boutiques, padarias, magazines, empórios e vendas.
Apesar da presença de lojas de departamento e de algumas redes de lojas, o
grau de concentração do varejo era bem menor do que o dos dias de hoje. No
interior, essa realidade era mais contundente. Naquelas localidades o varejo de
maior concentração localizava-se nos antigos armazéns que, não raro, também
praticavam comércio de atacado, porém, em menor grau de concentração do
que os grandes atacados modernos.
Pelo lado da produção, era relativamente pequena a quantidade de
grandes indústrias de oligopólio e/ou de monopólio. Para cada produto incluído
na ST na época, poucas grandes indústrias abasteciam a maior parte do
comércio daqueles produtos em todo território nacional.
A tecnologia da informação da época assentava-se em processamentos
centralizados de lotes de documentos em papel que eram preenchidos à mão
ou datilografados ou ainda digitados no decorrer dos fluxos transacionais. Os
dados assim captados eram processados a posteriori, gerando registros para
impressão também a posteriori em listagens, livros fiscais, livros contábeis e
outros relatórios impressos. A ação fiscal era voltada para verificações da
autenticidade desses registros por cruzamentos de dados e de outros
procedimentos de auditoria sempre a posteriori e por amostragem.
Esse modelo era extremamente custoso para o espraiamento da ação
fiscal sobre a grande base pulverizada de contribuintes do varejo. Como o
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processamento de dados era alimentado por documentos em papel emitidos no
decorrer das transações, omissões fraudulentas pela imensa gama de
estabelecimentos varejistas era de difícil detecção pela ação do Fisco. As
condições dos sistemas de informação não eram suficientes para captar
informações não declaradas por varejistas, apesar do uso das máquinas
registradoras.
Foi sob o manto dessas condições que surgiu a necessidade de
esquemas de substituição tributária para a antecipação do recolhimento do
imposto nas fases pré-varejo, principalmente junto aos poucos grandes
fabricantes que existiam na época.
A moldagem daqueles quesitos básicos de inclusão de produtos na ST
nada mais era do que o espelho das então estruturas empresariais da
produção e do consumo bem como da tecnologia da informação. De qualquer
forma, sujeitava-se a ST somente aqueles produtos “tradicionais” que atendiam
àqueles quesitos. Apesar disso, como visto, desde o início, a substituição
tributária era contestada pelos comerciantes.
Atualmente, as condições são outras. Hoje, as dificuldades operacionais
de penetrabilidade do Fisco na imensa malha das operações de varejo são
bem menores, o que abala um dos principais alicerces de pressupostos da
própria existência da substituição tributária para frente.
A começar pelos próprios produtos tradicionais. Vários deles apresentam
grau de homogeneidade bem inferior. Por exemplo, hoje em dia há várias
marcas e sabores de cervejas, chope, refrigerantes e sorvetes, cada qual com
variados graus de diferenciação em suas características físicas e de
apresentação, tornando seus preços bastante desiguais no varejo. O mesmo
ocorre para os demais produtos atualmente incluídos na ST. De maneira geral,
atualmente fatores diversos concorrem para a formação do valor agregado
tornando-o desigual para produtos semelhantes. Por exemplo, concorrem para
a formação e diferenciação do valor agregado, tanto na produção quanto na
circulação, os mais variados serviços de projeto e de design, características de
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pontos de venda, qualidade do atendimento, apresentação do produto, etc. Inteligência e talento, valores intangíveis, influenciam a diversidade de valores
e preços (37).
Atualmente, a maior parte do valor agregado que se realiza no varejo
acontece em estruturas de grande concentração como as redes de
supermercados, que vendem de gêneros alimentícios e bebidas a vestuário,
cama, mesa e banho, móveis, utensílios domésticos, pneus e uma infinidade
de outros gêneros, e shoppings centers, que aglutinam em um só local e sob
uma única administração de logística, vários pequenos e grandes
estabelecimentos comerciais. Essas estruturas concentradas de varejo também
se segmentam por faixas de renda. Há desde grandes lojas e redes de varejo e
de atacado populares de altíssimo giro e menor valor agregado por item
comercializado até grandes lojas de supermercados localizados em bairros
nobres de menor giro, porém de maior valor agregado por item comercializado.
Além do comércio de varejo que se realiza nessas estruturas físicas,
cresce o comércio eletrônico pela internet, o que tem sido motivo de cobranças
adicionais de ICMS pelos Estados de destino (já comentado). Centros de
distribuição de grandes redes varejistas ou importadores de bens de consumo
distribuem vendas por canais alternativos às tradicionais lojas de varejo.
Entregam a mercadoria na residência do adquirente pela contratação de
empresas especializadas em transporte e entrega. Esta modalidade vem
crescendo muito nos últimos anos. O ICMS incide sobre essas operações pela
alíquota final (trata-se de aquisições finais), independentemente do Estado de
destino. Além dos registros dessas transações serem naturalmente eletrônicos,
concentram-se em poucos centros de distribuição e importadores.
Atualmente, os sistemas de informação se baseiam em processamentos
em tempo real e na disponibilização dos registros em redes compartilhadas, o
que permite a modelagem da ação fiscal em outros parâmetros, com acessos
37 Para uma discussão sobre os modernos processos de agregação de valor ver Ladislau Dowbor (2009). Da Propriedade Intelectual à Economia do Conhecimento disponível em http://www.pucsp.br/icim/ingles/downloads/papers/TL_069.pdf
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on line em tempo quase real. A nota fiscal eletrônica permite maior
acessibilidade aos sistemas de informação da rede varejista que hoje
apresenta escala de operações e maior de grau de concentração do que no
passado. As novas tecnologias de informação permitem acesso do Fisco a um
universo muito maior de operações, inclusive junto à imensa gama de
operações de varejo, o que deverá ser facilitado pelo s@t fiscal, uma espécie
de nota fiscal eletrônica do varejo a ser implantada nos próximos anos.
A fiscalização dessas operações pelo uso intensivo da tecnologia da
informação hoje disponível pode dispensar, naturalmente, o instituto da
substituição tributária em sua íntegra, modelado para atender as condições da
tecnologia da informação de outra época.
A proposta de soluções nessa linha poderia tomar alguns elementos da
proposta apresentada pela PricewaterhouseeCoopers/CNI. A retirada
começaria pelos produtos de menor relevância para a arrecadação e para os
que permanecessem, estender-se-ia o prazo de recolhimento. Daí para frente,
a cada período, um conjunto de produtos seriam retirados da ST. A retirada
gradual de acordo com a relevância do produto para a arrecadação minimizaria
os impactos das apropriações de créditos sobre os estoques remanescentes.
Ao mesmo tempo, seriam construídos novos procedimentos de
fiscalização de varejo baseados no uso intensivo do cruzamento de dados
eletrônicos, utilizando-se das bases proporcionadas pela nota fiscal eletrônica,
SPED e de outras bases, como por exemplo, vendas por cartão de
crédito/débito. Após a implantação do s@t fiscal, cujas bases seriam
incorporadas aos cruzamentos, o sistema ganharia maior eficiência.
A construção dessas soluções pelos Estados entraria na agenda dos
demais temas do federalismo fiscal hoje em discussão no nível nacional,
principalmente os que dizem respeito à reforma tributária. O projeto poderia ser
coordenado pela Comissão Técnica Permanente (COTEPE) no âmbito do
CONFAZ, o que permitiria a sua necessária harmonização.
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No prazo de alguns anos, poder-se-ia atingir um sistema mais
harmonizado quiçá sem nenhum produto na substituição tributária, garantindo-
se as vantagens do pleno funcionamento do IVA de acordo com as suas
características intrínsecas e indissociáveis. Conclusão
Neste capítulo foram apresentadas algumas linhas de soluções para
eliminar os graves problemas que hoje contribuintes e Fisco enfrentam com a
nova ST. O objetivo não é esgotar a discussão sobre o rol de soluções que se
apresentam, mas apontar linhas de atuação e suas principais consequências
em cada uma delas.
Foram apresentadas três linhas de soluções hoje presentes no debate.
A primeira sintetiza todas as soluções orientadas para o
restabelecimento da velha ST, entendida como a sistemática ideal que
minimizaria as distorções introduzidas no sistema de tributação do valor
agregado. Essa linha de soluções está expressa nas propostas contidas no
estudo da PricewaterhouseeCoopers/CNI e propõe basicamente a volta do
ressarcimento, a ampliação do prazo de recolhimento do imposto retido por ST,
a exclusão do regime dos produtos que não se coadunam com os quesitos
básicos da ST, o estabelecimento de critérios objetivos e transparentes para a
inclusão de novos produtos e para o estabelecimento das margens de valor
agregado e a uniformização regional das bases de valor agregado por natureza
do produto.
Algumas medidas da proposta poderiam trazer problemas e conflitos
adicionais. O ressarcimento deveria ser acompanhado do pagamento da
diferença. Além disto, à medida que os produtos fossem sendo retirados da ST,
créditos sobre estoques remanescentes deveriam ser ressarcidos. As medidas
restabeleceriam o que a própria ST procura combater: a grande capilaridade de
contribuintes a fiscalizar. A uniformização regional das bases de valor agregado
poderia instrumentalizar medidas beligerantes no âmbito da guerra fiscal.
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O outro conjunto de soluções sugere a universalização da ST, para
todos os produtos. Dentro desse conjunto, há soluções que visam essa
ampliação unilateral por cada Estado e outras orientadas para uma
universalização coordenada a nível nacional onde os Estados da federação
brasileira, o que demandaria amplos convênios ST para todas as mercadorias
transacionadas entre seus territórios.
Como apontado, as soluções que universalizam a ST, distorcem as
funções do IVA e potencializam todos os problemas e conflitos hoje existentes.
A medida representaria grande retrocesso aos impostos sobre valor agregado
pré-varejistas, há muito tempo banido dos sistemas tributários em todo o
mundo.
Por fim, foram apresentadas soluções que levam em conta o
anacronismo da ST, arquitetada para a realidade econômica e tecnológica dos
anos 1970, e o uso das modernas tecnologias de informação na fiscalização
das operações de varejo. Um dos pressupostos básicos para a construção do
modelo antigo eram as dificuldades de ordem operacional que a fiscalização
enfrentava para alcançar a escala de operações dos estabelecimentos de
varejo, dada a tecnologia de informação da época. Hoje, as condições dessa
tecnologia permitem superar a maior parte daquelas dificuldades.
Nessa linha, as propostas seguiriam a orientação pela gradual
eliminação dos produtos da ST, graduada de acordo com a relevância do
produto para a arrecadação e, ao mesmo tempo, pela construção de modos de
fiscalização calcados no uso das bases de dados proporcionadas pela nota
fiscal eletrônica, SPED e, futuramente, pelo s@t fiscal. Essa linha se efetivaria
dentro de um plano nacional de reforma do sistema de tributação do valor
agregado coordenado pelo CONFAZ no nível da coordenação e pela COTEPE
no nível da implantação. Desta forma, poder-se-ia restabelecer no horizonte de
alguns anos a vigência plena das características intrínsecas e indissociáveis do
IVA com todas as suas vantagens decorrentes.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este breve estudo procurou demonstrar que a substituição tributária
aplicada ao ICMS por vários Estados da federação brasileira está
transformando o sistema de tributação do valor agregado no Brasil no seu
próprio avesso.
A concepção original deste regime foi normatizada no Direito europeu no
século XIX e considerava que a sua aplicação deveria atender aos aqui
denominados pressupostos da utilidade, entendido como o mecanismo de
facilitação, racionalização e garantia da arrecadação, e da vinculação direta,
que pressupõe a vinculação direta do responsável com o fato gerador. O
pressuposto da utilidade se aplica a situações em que um único sujeito
passivo, o substituto, aglutina o cumprimento das obrigações tributárias
decorrentes de fatos geradores promovidos por grande número de
contribuintes, os substituídos, que com ele transaciona. Desta forma, torna-se
mais racional para o Estado cobrar os impostos daquele único sujeito passivo
no lugar de vários outros. O pressuposto da vinculação direta estabelece que o
substituto deva guardar vínculos diretos com os fatos geradores para os quais
ele se responsabiliza pelo pagamento do imposto. Esse pressuposto assenta-
se na lógica da capacidade contributiva do substituto como agente
economicamente capaz de responder pelos impostos de outrem e na sua
possibilidade de valorar um dos elementos essenciais da obrigação tributária: a
base de cálculo.
O instituto da substituição tributária quando aplicado aos impostos sobre
o valor agregado (IVA) deve guardar sintonia com as suas características
intrínsecas e indissociáveis, sob pena de descaracterizar-se da base de cálculo
e, portanto, a própria obrigação tributária, e de afetar uma das principais
vantagens dessa espécie de tributação: a neutralidade do IVA nas transações
intermediárias. A neutralidade dos IVA é fator crítico para o desenvolvimento e
eficiência das economias industriais de maior complexidade.
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As características intrínsecas e indissociáveis do IVA - a repercussão do
ônus tributário, a não-cumulatividade do imposto, a tributação multifásica, a
utilização do método do crédito, a amplitude da tributação e a valoração das
bases de cálculo a preços de mercado – se articulam e se auto reforçam em
prol da neutralidade do IVA. A experiência tem demonstrado que, quando
rompidas, instauram-se custosos conflitos Fisco/contribuintes e até mesmo
entre os próprios sujeitos ativos. Ao mesmo tempo, o rompimento dessa
articulação instiga movimentos sistematizados de evasão e elisão fiscal.
A experiência também tem demonstrado que a aplicação da substituição
tributária na tributação do valor agregado para as transações que se realizam
em mercados imperfeitos organizados sob a forma de monopsônios ou
oligopsônios em que um ou poucos compradores dominam a recepção de
produtos remetidos por vários sujeitos passivos, preserva os pressupostos da
utilidade e do vínculo direto. Ao mesmo tempo, não macula as características
intrínsecas e indissociáveis do IVA, preservando-se a sua neutralidade. Por
isto, a substituição tributária quando aplicada às operações antecedentes não
tem sido objeto de grandes conflitos. É o que atesta a ampla utilização dessa
modalidade em todo o mundo.
Por outro lado, o uso do instituto da substituição tributária nas
transações subseqüentes realizadas em estruturas de mercado mono ou
oligopólicas, onde um ou poucos produtores ou vendedores respondem por
toda a oferta do mercado, preserva o princípio da utilidade, mas rompe com o
do vínculo direto e com várias das características intrínsecas e indissociáveis
do IVA. A tributação continua ampla e repercussiva, levando ao consumo o
imposto retido por substituição tributária, mas prescinde do método do crédito,
torna-se unifásica a partir do momento da retenção e as bases de cálculo
passam a ser valoradas não por preços de mercado, mas por preços de tabela,
pautas, margens de valor agregado estimadas e assemelhados. A não-
cumulatividade é afetada pelo não aproveitamento do crédito do imposto pago
a maior nas situações em que a base de cálculo estimada seja maior do que a
efetivamente realizada. O aumento do custo de capital de giro das empresas
que compõem a cadeia produtiva, aumentos de preços e injustiças fiscais com
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a sobretaxação de uns em detrimento de outros são alguns dos efeitos
colaterais provocados por esse rompimento. O baixo uso dessa sistemática em
todo o mundo atesta sua inadequação.
No Brasil, a substituição tributária nas transações subseqüentes aplicada
ao então ICM teve início nos anos 1970. No decorrer daqueles anos, os
Estados aplicavam essa espécie de cobrança sobre produtos que, atendendo
ao pressuposto da utilidade, fossem relevantes para a arrecadação, tivessem
sua produção altamente concentrada e seu consumo de varejo altamente
capilarizado, fossem fisicamente homogêneas e apresentassem preços finais
conhecidos ou tabelados. Dessa forma, os problemas de valoração da base de
cálculo decorrentes da ausência de vínculos direto do contribuinte substituto
com os fatos geradores futuros eram contornados pelo uso de preços
tabelados pela então Superintendência Nacional de Abastecimento, a SUNAB,
ou até mesmo pelo próprio fabricante. Os poucos produtos sujeitos ao regime o
eram em todo o território nacional, amparadas por leis e convênios que se
firmavam entre os Estados. Havia harmonia federativa na aplicação da
substituição tributária para frente.
Porém, o mesmo não ocorria nas relações Fisco/contribuintes. Esses
últimos contestavam na justiça a validade jurídica do regime, uma vez que,
desrespeitadas aquelas características intrínsecas e indissociáveis do IVA, se
viam prejudicados pelo encarecimento dos produtos que adquiriam, pela maior
retenção do seu capital de giro devido à transformação do imposto em
unifásico, abolindo da apuração o método do crédito.
A validade jurídica do instituto da substituição tributária nas operações
subseqüentes foi pacificada com a Lei Kandir, em 1996, editada em
cumprimento ao texto constitucional. Porém, o sistema de preços conhecidos e
tabelados já havia sido corrompido pelo surto inflacionário dos anos 1980 e
início dos anos 1990. O sistema de preços de mercado instaurado a partir da
segunda metade dos anos 1990 fez surgir outra sorte de conflitos em torno do
ressarcimento do imposto pago a maior nas situações em que a base de
cálculo das operações subseqüentes fosse maior do que as efetivamente
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realizadas. Os contribuintes passaram a pleitear na justiça o direito ao
ressarcimento. Desde o início dos anos 2000, o assunto encontra-se sub
judice. A partir de então, impostos pagos a maior não são ressarcidos e
também, por outro lado, os contribuintes que pagaram a menor, não são
obrigados a complementar a diferença após a realização do fato gerador das
operações subsequentes. O ressarcimento foi admitido na lei somente para as
hipóteses em que o fato gerador subsequente, ou presumido, não se
realizasse. Na prática, o resultado foi pela “definitividade” do imposto pago por
substituição tributária.
Este regime concebido nos anos 1970 e aplicado em poucos produtos
em conformidade com o pressuposto da utilidade, mesmo que sob vários
conflitos Fisco/contribuintes, permaneceu até 2007. A ele, foi denominada,
neste trabalho, a expressão velha substituição tributária ou velha ST.
A partir de 2008, principalmente os Estados mais industrializados do
centro-sul do país e alguns outros passaram a aplicar a substituição tributária
para frente para quase todos os produtos comercializados no varejo, muitos
deles fora do pressuposto da utilidade. Este espraiamento representou uma
verdadeira “revolução”, aqui denominada como nova ST. A característica
marcante desse processo reside na sua forma predominantemente unilateral,
onde a maior parte da cobrança é interna, dentro de cada Estado e à sua
própria maneira. A velocidade com que produtos foram incluídos na nova ST
não foi acompanhada por acordos firmados por convênios ou protocolos entre
os Estados.
Esta “revolução da ST” promoveu um verdadeiro boom na arrecadação
dos Estados que a promoveram. Porém, rompeu com o único pressuposto que
ainda a mantinha sob alguma justificativa: o pressuposto da utilidade. Com ela,
vários contribuintes, grandes ou pequenos tornaram-se substitutos
comprometendo-se o mecanismo de facilitação, racionalização e garantia da
arrecadação. Suas consequências foram além. A profusão de normas em boa
parte direcionadas para a valoração da base de cálculo das infinitas
especificações de produtos sujeitos ao regime provocou crescimento dos
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custos de conformidade e, em contrapartida, dificuldades para a fiscalização, a
exemplo do ICMS antecipado sobre estoques quando da inclusão de um novo
produto na ST, fazendo surgir milhares de novos contribuintes sujeitos à ação
fiscal.
A ausência de acordos entre os estados trouxe dificuldades adicionais
para contribuintes e secretarias de fazenda, a exemplo do acúmulo de pedidos
de ressarcimento pelos distribuidores que remetem produtos para estados com
os quais não há acordo (situação em que o fato gerador presumido não foi
realizado). Outra consequência da ausência generalizada de acordos foi a
instauração do pagamento antecipado dos produtos na entrada do estado, uma
espécie de alfândega dentro de uma federação. Algo inusitado.
As reações no mercado foram as mais adversas. Aumento de preços
intermediários e aumento do custo de capital de giro têm provocado efeitos
colaterais indesejados, tendentes à evasão e à elisão fiscais. Remessas de
indústrias para atacadistas coligados, abertura de centros de distribuição em
Estados vizinhos com vistas à redução ou evasão do imposto, são alguns dos
problemas captados por estudos e pesquisas.
A ideia de que os robustos ganhos de arrecadação da nova ST provêm
da captura do imposto sonegado no varejo precisa ser revista. Há fortes
evidências de que esses ganhos provêm da sobretaxação dos milhões de
consumidores que efetuam compras nos grandes centros de varejo e de que as
receitas capturadas pelo imposto sonegado são marginais.
Todos esses problemas é a manifestação das consequências do
rompimento da nova ST com os pressupostos da utilidade e do vínculo direto e
também do seu rompimento com as características intrínsecas e indissociáveis
do IVA.
As soluções que apontam para a restituição à velha ST são anacrônicas,
como anacrônico e obsoleto está se tornando o próprio instituto da substituição
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tributária para frente. Outras soluções que apontam para a generalização do
instituto tendem a potencializar todos os problemas.
A velha ST foi concebida na época em que havia poucos produtos que
atendiam ao pressuposto da utilidade. As estruturas de varejo não tinham a
mesma concentração das estruturas de hoje. A tecnologia da informação então
disponível dificultava a ação do fisco na capilarizada rede de estabelecimentos
varejistas. Atualmente as condições são outras. A maior parte das vendas de
varejo se realiza em estruturas de grande concentração. A tecnologia da
informação dos dias de hoje permite o acesso do Fisco à gigantesca
quantidade de registros das transações intermediárias e de varejo. Há soluções
tecnológicas capazes de colocar inteligibilidade e controle sobre a montanha
detalhada de dados que diariamente flui dos sistemas de produção e
distribuição para os mais variados pontos de
consumidores.
varejo e destes para os
Esta nova realidade possibilita a preservação e até mesmo o
revigoramento dos princípios da utilidade e do vínculo direto não pelo uso da
sistemática da substituição para frente que se tornou obsoleta, mas pela
construção de novos paradigmas de fiscalização calcados na tecnologia da
informação, em concepções modernas, bem a frente daquelas construídas nos
anos 1970. Trata-se, em última instância, de restabelecer a articulação das
características intrínsecas e indissociáveis clássicas do IVA.
Nos anos 1960, o Brasil inovou como o primeiro país do mundo a adotar
o IVA na amplitude do velho ICM. Com a “revolução” da substituição tributária
dos anos 2000, inovou novamente, como o primeiro país do mundo a construir
o anti-IVA. Estamos inovando mais uma vez com a construção de um amplo
Sistema Público de Escrituração Digital, o que nos possibilitará reconstruir um
novo IVA.
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