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9 INTRODUÇÃO As indagações que deram origem a esta dissertação partiram de um fenômeno social que é o superendividamento e nos levaram ao tema do consumismo. No exercício de nossa profissão, como advogada, vejo que este é um fenômeno que vem se tornando, até mesmo pela força com que vai se ampliando por todo o mundo globalizado, foco de atenção de muitos juristas. Entretanto, não há ainda, no Brasil, uma legislação específica para atender a demanda de consumidores superendividados, casos muitas vezes complexos, ainda que muitos estudiosos se interessem pelo tema. Desenvolver esse trabalho no âmbito de um mestrado interdisciplinar nos pareceu o caminho mais acertado para nossa pesquisa, pois a questão do superindividamento, em sua complexidade, exige que seja estudado pelo ângulo social, psicológico e jurídico. O superendividamento deve ser visto no contexto das relações sociais e econômicas. Há décadas o discurso hegemônico vem sendo o do livre mercado, sustentado pela livre concorrência, considerada a melhor forma de regulação dos atores econômicos. As únicas críticas conhecidas eram as dirigidas, não ao modelo capitalista de mercado, mas a exacerbação da ciranda especulativa, deslocada da economia real, que poderia esbarrar nos seus próprios limites 1 . Sabemos que hoje o questionamento sobre as políticas econômicas vem crescendo, mas também é preciso reconhecer a força do capitalismo. A matéria do jornal O Globo, reportagem de Altamir Tojal 2 do dia 29 de setembro de 2008 é bastante expressiva a respeito: “É recomendável não cair na tentação dos profetas do pensamento único, que assinaram antes da hora o atestado de óbito da diferença. Eles saudaram a convergência das idéias em torno do paradigma absoluto do mercado. Deu no que deu”. Para Altamir, citando Gilles Deleuze, o capitalismo é um “sistema imanente que não para de expandir os próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o próprio capital”. E continua Tojal, observando que depois do enfraquecimento do estado do bem- estar e o fim do comunismo soviético, o liberalismo triunfante quis enterrar a esquerda e desqualificar qualquer proposta alternativa. O estadismo coroou a imoralidade e a incompetência, sendo deplorável que esse fracasso tenha sido usado para penalizar políticas sociais e para promover 1 Revista Le Monde Diplomatique, Ano 2, número 17, Dezembro de 2008. Comportamento, desejo de consumir; Penar um mundo novo. p. 3 2 Tojal, Altamir - Jornal O Globo, 29 de setembro de 2008, primeiro caderno, coluna Opiniões, p. 7. PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com

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INTRODUÇÃO

As indagações que deram origem a esta dissertação partiram de um fenômeno social que é o

superendividamento e nos levaram ao tema do consumismo. No exercício de nossa profissão, como

advogada, vejo que este é um fenômeno que vem se tornando, até mesmo pela força com que vai se

ampliando por todo o mundo globalizado, foco de atenção de muitos juristas. Entretanto, não há

ainda, no Brasil, uma legislação específica para atender a demanda de consumidores

superendividados, casos muitas vezes complexos, ainda que muitos estudiosos se interessem pelo

tema.

Desenvolver esse trabalho no âmbito de um mestrado interdisciplinar nos pareceu o caminho

mais acertado para nossa pesquisa, pois a questão do superindividamento, em sua complexidade,

exige que seja estudado pelo ângulo social, psicológico e jurídico.

O superendividamento deve ser visto no contexto das relações sociais e econômicas. Há

décadas o discurso hegemônico vem sendo o do livre mercado, sustentado pela livre concorrência,

considerada a melhor forma de regulação dos atores econômicos. As únicas críticas conhecidas eram

as dirigidas, não ao modelo capitalista de mercado, mas a exacerbação da ciranda especulativa,

deslocada da economia real, que poderia esbarrar nos seus próprios limites1. Sabemos que hoje o

questionamento sobre as políticas econômicas vem crescendo, mas também é preciso reconhecer a

força do capitalismo.

A matéria do jornal O Globo, reportagem de Altamir Tojal2 do dia 29 de setembro de 2008 é

bastante expressiva a respeito: “É recomendável não cair na tentação dos profetas do pensamento

único, que assinaram antes da hora o atestado de óbito da diferença. Eles saudaram a convergência

das idéias em torno do paradigma absoluto do mercado. Deu no que deu”.

Para Altamir, citando Gilles Deleuze, o capitalismo é um “sistema imanente que não para de

expandir os próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o

próprio capital”. E continua Tojal, observando que depois do enfraquecimento do estado do bem-

estar e o fim do comunismo soviético, o liberalismo triunfante quis enterrar a esquerda e

desqualificar qualquer proposta alternativa. O estadismo coroou a imoralidade e a incompetência,

sendo deplorável que esse fracasso tenha sido usado para penalizar políticas sociais e para promover

1 Revista Le Monde Diplomatique, Ano 2, número 17, Dezembro de 2008. Comportamento, desejo deconsumir; Penar um mundo novo. p. 32 Tojal, Altamir - Jornal O Globo, 29 de setembro de 2008, primeiro caderno, coluna Opiniões, p. 7.

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a farra do crédito. E, pior, para sufocar a divergência e indultar os que se locupletam na

“exuberância irracional”.

E o autor também nos alerta para a sedução do superendividamento: É bobagem demonizar o

crédito, comenta, mas é bom não empenhar a alma. E volta a Deleuze com o que chamou o “homem

endividado”, ou seja, o sujeito que nasceu dessa versão contemporânea capitalista, que depende cada

vez menos da coerção explícita para exercer sobre ele o controle social, bastando para agora a

alegria do cartão de crédito.

Dos consultórios psicanalíticos ao Judiciário é comum cidadãos em busca de “socorro” por

estarem superendividados. A ciência do Direito é chamada para mediar às situações individuais

desses conflitos de interesses entre consumidor e fornecedor. O que aborda o Direito sobre essa

questão? Procura-se, com estudos ainda iniciais, criar-se uma legislação que proteja o consumidor

superendividado desta força avassaladora, que é o mercado de consumo.

Enquanto isso, este mercado não cessa de produzir, a cada dia, objetos visando capturar o

interesse do sujeito. A esse mercado de consumo, o sujeito pode responder de várias maneiras,

situando-o numa dimensão de gozo que toma uma forma particular em cada sujeito. Em todas as

esquinas, atrás de todas as vitrines, encontram-se objetos feitos para causar o desejo. Se o sujeito

aceita as ilusões impostas por este Amo contemporâneo, aprisiona-se facilmente às ofertas do

consumo3.

A revista Le Monde diplomatique Brasil, em Dezembro de 2008, trouxe uma matéria que

abordou o tema, falando sobre o consumo infantil, demonstrando como as crianças também são

vítimas da era do consumismo, ao destacar que em nossa sociedade há um verdadeiro exército

publicitário trabalhando ininterruptamente para convencer as crianças a comprar toda sorte de

produtos. Com fotos bem produzidas e indicações de artistas renomados, a propaganda adentra suas

defesas psíquicas ainda frágeis e promove ilusões. A criança carece de critérios próprios para avaliar

se cada objeto corresponde ao que ela realmente desejaria: suas vontades ainda costumam ser

fugazes, logo, facilmente dirigidas por especialistas em sedução. Outra vez aquilo que é

intensamente querido num dado momento, logo cai no esquecimento, trocado por outra coisa eleita

como alvo prioritário do desejo momentâneo.

Os ditames do capitalismo transformaram-se na principal força propulsora e operativa do

mundo globalizado e o consumismo passou a ser a sua principal forma de sustentação. Consumismo

e não consumo, porque a capacidade humana de desejar passou a ser manipulada a fim de incentivar

3 Apud Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no XEncontro do campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p.68.

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a compra desenfreada. O consumismo associa e apregoa que a felicidade está ligada à satisfação de

um volume e a uma intensidade de desejos sempre crescente, que implica a rápida substituição dos

objetos destinados a satisfazê-los.

Para desenvolver as idéias acima, no primeiro capítulo, que contextualizam socialmente o

problema do superendividamento, buscamos o pensamento de Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky,

Guy Debord e Gilles Deleuze, pois os autores descrevem com muita pertinência a evolução de uma

realidade capitalista, o surgimento de novos prazeres da vida, falando sobre a revolução consumista

que passou a desempenhar um papel importante inclusive no processo de auto-identificação

individual e de grupo, adentrando, assim, nos aspectos psicológicos da questão.

É neste contexto, descrito por Bauman, que o Judiciário, a cada dia que passa, é mais

acionado a socorrer cidadãos superendividados que se submeteram à armadilha do crédito facilitado.

Não se pode negar os benefícios da globalização, mas o capitalismo trouxe consigo, o

apassivamento dos sujeitos frente ao poder de sedução dos simulacros veiculados pela mídia, ou

melhor, por todo um arsenal de maneiras de incentivar o consumo.

No segundo capítulo, descrevemos como o Direito tem analisado o fenômeno e qual é a sua

visão sob o aspecto judicial. Trouxemos o amparo Constitucional e a legislação infraconstitucional,

ressaltando o Código de Defesa do Consumidor para abordar a questão do superendividamento,

assim como destacamos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por ser de extrema relevância

para o trabalho pois, como é assegurado neste Princípio, todo ser humano tem dignidade só pelo fato

de ser pessoa, daí a necessidade e respeito por parte dos demais, devendo ser assegurado pelo

ordenamento jurídico, condições mínimas aos exercícios dos direitos fundamentais. Desrespeitar tal

princípio representa um ato de intolerância. Às pessoas devem ser asseguradas condições mínimas

para sobrevivência, compatível à dignidade.

Claudia Lima Marques e Rosangela Lunardelli Cavallazzi, advogadas especialistas no estudo

do Superendividamento, em seu livro, “Direito do Consumidor Endividado – Superendividamento e

Crédito” (2006), ofereceram uma contribuição qualificada ao debate com uma reflexão sobre o tema

do superendividamento dos consumidores em nosso país e demonstram a necessidade da elaboração

de legislação específica com urgência.

Com base no Direito Comparado, alguns autores demonstraram como a questão é enfrentada

em outros países.

As juízas Clarissa Costa de Lima e Karen Rick Danilevicz Bartoncello, ao pesquisarem o

fenômeno, desenvolveram um Projeto Piloto que traremos mais adiante neste trabalho. Para as

juízas, o tratamento do crédito ao consumidor na América Latina foi o tema central da pesquisa

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como causa do superendividamento. A incitação ao crédito e ao endividamento caracteriza a

sociedade de consumo atual em todos os seus sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica

a internacionalidade dos problemas daí decorrentes. As magistradas reconhecem a importância do

crédito ao consumo e seus efeitos positivos, pois permite melhorar o nível de vida da população,

além de impulsionar o desenvolvimento da atividade industrial, mas apontam para uma força

externa que leva o consumidor a consumir, como efeito da publicidade feita pelos fornecedores. A

livre escolha do consumidor está submetida a uma pressão, na medida em que o crédito ao consumo,

por sua virtualidade em diferir o pagamento, assim como toda forma de propaganda, age como um

meio de seduzir o consumidor.

É justamente esta questão, a pressão para o consumismo e o que resta de escolha para resistir

ou não a esta pressão que nos levou a acreditar que a psicanálise poderia contribuir, ao lado dos

estudos sociológicos e jurídicos, para elucidar uma análise mais apurada deste tema. Aí, supomos,

estaria a importância da Psicanálise para os operadores do Direito: ter conhecimento das

determinações do inconsciente sobre o desejo do sujeito e, portanto, sobre as suas reações face às

demandas de mercado, apassivando-se ou reagindo a elas.

No terceiro capítulo trouxemos a Psicanálise e a ética do desejo. No primeiro item, Freud e a

descoberta do inconsciente; no segundo, a concepção de sujeito em Lacan e, no terceiro, as relações

entre necessidade, demanda e desejo, para chegarmos a questão da alienação e separação.

Hoje o consumo chega a ser classificado, para utilizar a expressão de Freud, como causa de

um mal-estar de nossa civilização com estatuto de sintoma. A Psicanálise, que tem como uma das

suas questões centrais a relação entre sujeito e desejo, parece-nos poder contribuir para o trabalho

tendo em vista suas possibilidades de crítica à sociedade baseada no consumismo: o consumo

convoca o sujeito apenas como consumidor e não como sujeito do desejo. Curar-se do consumismo

é curar-se da voz imperativa do Outro que articula o Deus do mercado.

O objetivo desta dissertação está em desenvolver um estudo interdisciplinar – Direito e

Psicanálise tendo em vista contribuir para uma discussão destas questões, de modo a contribuir com

o Direito na compreensão da constituição do sujeito.

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CAPÍTULO I – O DEUS DO MERCADO: CONSUMO X CONSUMISMO

Neste capítulo, traremos a diferença entre consumo e consumismo, caracterizando o segundo

como produto do capitalismo que transforma as subjetividades em mercadoria, ou seja, abordando as

conseqüências da economia sobre a subjetividade enfocando os efeitos da publicidade, da facilidade

ao crédito e dos muitos outros recursos usados pelos interessados na manutenção desse status, de

modo a provocar no indivíduo o superendividamento que evidencia seu assujeitamento ao mercado.

Para desenvolver esta reflexão sobre a questão do consumismo, neste capítulo, tomaremos de

modo especial, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, Guy Debord e Gilles Deleuze, autores que se

notabilizam por suas análises sócio-política do capitalismo e seus efeitos sobre o sujeito.

1 – A SUBJETIVIDADE COMO MERCADORIA

Vivenciamos momentos da história em que se passou do consumo calcado nas necessidades

essenciais para o consumo desenfreado, fazendo surgir a sociedade consumista. Esta sociedade

interpela seus membros basicamente ou talvez até exclusivamente, como consumidores; uma

sociedade que julga e avalia seus membros principalmente por suas capacidades e condutas

relacionadas ao consumo4.

Para melhor explicar a expansão da passagem do consumo ao consumismo iremos descrevê-

los na visão de Bauman5 e após, o que tem sido a revolução consumista em nossa civilização.

O consumo é uma atividade que fazemos todos os dias, muitas vezes, sem planejamentos

antecipados e sem nenhuma consideração. É um elemento inseparável da sobrevivência biológica do

ciclo metabólico de ingestão, digestão e excreção, uma condição que os humanos compartilham com

todos os outros organismos vivos e que constituiu uma forma de vida.

A atividade de consumo, por toda a história da humanidade, tem oferecido um suprimento

constante de produtos, a partir do qual, a variedade de formas de vida e o padrão das relações inter-

humanas podem ser moldada6.

Para Bauman, o consumismo chega quando o consumo assume seu papel-chave o que, na

sociedade de produtores era exercida pelo trabalho. Como um tipo de arranjo social resultante da

reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer,

4 Bauman, Zygmunt. Vida Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.109.

5 Bauman, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 37.6 Ibidem, p. 38.

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neutros quanto ao regime, o consumismo transformou-se na principal força propulsora e operativa

da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação social,

além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante

nos processos e auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de

políticas de vida individuais.

A natureza das relações interpessoais tende a ser remodelada à semelhança dos meios e

objetos de consumo e segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista7.

Em continuidade, Bauman destaca ao descrever a passagem do consumo ao consumismo, a

capacidade de querer, desejar, ansiar e, particularmente, de experimentar emoções repetidas vezes,

conforme os interesses capitalistas, de fato passou a sustentar a economia do convívio humano no

capitalismo.

Conforme Bauman, essa síndrome é uma série de atitudes e estratégias, julgamentos e

prejulgamentos de valor, pressupostos explícitos e tácitos variados, mas intimamente

interconectados sobre os caminhos do mundo e as formas de percorrê-los, as visões da “felicidade” e

as maneiras de perseguí-las, as preferências de valor e as relevâncias tópicas. A síndrome

consumista é uma questão de velocidade, excesso e desperdício 8.

O consumismo favorece uma economia do excesso e do lixo. Estes não sinalizam seu mau

funcionamento, mas constituem sua garantia e o único regime sob o qual uma sociedade de

consumidores pode assegurar sua sobrevivência9.

Com a revolução industrial, a mercadoria aparece efetivamente como uma potência que vem

realmente ocupar a vida social. O consumo permitiu o desenvolvimento do comércio, abrindo o

caminho para a produção em massa. O processo contínuo das técnicas de fabricação permitiu

produzir em enormes séries as mercadorias padronizadas, surgindo uma nova filosofia comercial,

rompendo com as atitudes do passado e mais tarde os grandes magazines romperam com a tradição

comercial do passado.

Marx10, em seu livro “O capital” diz que a mercadoria é misteriosa simplesmente por

encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, aprensentando-as como

características materiais e propriedades sociais inerente aos produtos do trabalho, por ocultar,

portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e trabalho social total, ao

7 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.109.

8 Ibidem, p. 110.9 Ibidem, p. 108.10 Marx, K. O capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, livro I, v. I, 1975, p. 81.

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refleti-la como relação social existente, a margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho.

Uma relação social definida, estabelecida entre homens, assume a forma fantasmagórica de uma

relação entre coisas. Marx chamou isto de fetichismo, que esta sempre grudado aos produtos do

trabalho, quando são gerados como mercadorias, dizendo ainda ser inseparável da produção das

mercadorias.

Para Guy Debord11, que também se dedica ao estudo dessas questões, chamou “sociedade do

espetáculo” o movimento essencial da sociedade consumista dizendo ser o princípio do fetichismo

da mercadoria a dominação da sociedade por coisas que se realiza no espetáculo. O conceito de

sociedade do espetáculo é uma tentativa de compreensão das características de uma fase específica

da sociedade capitalista, é o momento em que a mercadoria chega a ocupação total da vida social.

Não só a relação mercadoria é visível, como nada mais se vê senão ela: o mundo que se vê é o seu

mundo. O espetáculo é um elemento articulador que estabelece mediações entre as várias dimensões

da realidade social capitalista. Ele faz ver um mundo presente e ausente, é o mundo da mercadoria

dominando tudo que é vivido. A alienação presente no processo de produção do produto estende-se

por toda vida social do cidadão. A sociedade do espetáculo não é a superação da alienação, mas a

sua elevação a um patamar superior12.

Veremos como este significante alienação também é tomado por Lacan para falar do sujeito

apassivado ao desejo do Outro.

Para Debord13 a produção das mercadorias pode permanecer durante muito tempo artesanal,

contida numa função econômica marginal, onde a sua verdade quantitativa esta ainda encoberta. No

entanto, lá onde encontrou as condições sociais do grande comércio e da acumulação dos capitais,

ela apoderou-se do domínio total da economia. A economia inteira tornou-se então o que a

mercadoria tinha mostrado ser no decurso dessa conquista, um processo de desenvolvimento

quantitativo. A economia transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundo da economia.

E continua Debord14, o consumidor real torna-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é

esta ilusão efetivamente real e o espetáculo a sua manifestação geral. No momento em que a

sociedade descobre que ela depende da economia, a economia, de fato, depende dela.

11 http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm12 Coelho, Cláudio Novas Pinto e Castro, Valdir José de. Comunicação e Sociedade do Espetáculo. São Paulo:Paulus, 2006, p. 16-18.13 http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm14 http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm

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Segundo Debord a crítica da sociedade de espetáculo é a crítica da sociedade que reduza vida

humana a aparência. O espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana,

isto é, social, como simples aparência15.

Debord também atualiza e complementa a concepção de Marx, chamando a atenção para a

presença das imagens nas relações sociais de produção, de troca, de consumo e nas dimensões

superestruturais que justificam essas relações. O espetáculo confirma o caráter mercantil das

relações sociais capitalistas. O capitalismo é fruto de um processo histórico que separou os

trabalhadores dos meios de produção e tornou possível a transformação da força de trabalho em

mercadoria16.

Diante disso, homens e mulheres, lançados na sociedade do espetáculo ao modo de vida

consumista, desejam e almejam a apropriação, a posse a acumulação de objetos/mercadorias

valorizados pelo conforto que proporciona o respeito que outorgam a seus donos que passaram a

fazer parte da cena do espetáculo.

Na sociedade de produtores, principal modelo societário da fase sólida da modernidade, foi

sustentada basicamente para a segurança.

Neste período histórico, a apropriação e a posse de bens que garantam o conforto e o respeito

podem ser de fato as principais motivações dos desejos e anseios na sociedade de produtores, um

tipo de sociedade comprometida com a causa da segurança estável, que baseia seus padrões de

reprodução a longo prazo, em comportamentos individuais criados para seguir essas motivações.

Se a atividade de consumir, encarada dessa maneira, deixa pouco espaço para a inventividade

e a manipulação, isso não se aplica ao papel que foi e continua sendo desempenhado pelo

consumismo nas transformações do atual dinâmica do modo humano de ser e estar no mundo.

De acordo com Bauman, apostou-se no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado,

regular, transparente e, como prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro.

Esse desejo foi de fato uma matéria prima bastante conveniente para que fossem construídos

os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender a era do

“tamanho é poder” e do “grande é lindo”, já relativo ao consumismo que em seu esforço para evocar

disciplina e subordinação, basearam-se na padronização e rotina do comportamento individual. O

homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de “felicidade” por um quinhão de

segurança.

15 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991. A sociedade do espetáculo.Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.12-13.16 Coelho, Claudio Novas Pinto e Castro, Valdir José de. Comunicação e Sociedade do Espetáculo. São Paulo:Paulus, 2006, p. 16.

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Nessa era, amplos volumes de bens espaçosos, pesados, obstinados e imóveis auguravam um

futuro seguro, que prometia conforto, poder e respeito pessoal. A satisfação parecia de fato residir,

acima de tudo, na promessa de segurança a longo-prazo, não no desfrute imediato de prazeres.

A posse de um grande volume de bens implicava ou insinuava uma existência segura, imune

aos futuros caprichos do destino. Muitas vezes, sendo a segurança a longo prazo, o principal

propósito e o maior valor. Os bens adquiridos não se destinavam ao consumo imediato, pelo

contrário, deviam ser protegidos da depreciação ou dispersão e permanecer intactos. Eles deveriam

ser resguardados do desgaste e da possibilidade de caírem prematuramente no desuso.

A utilização no todo ou em parte dos bens de consumo, para oferecer conforto e segurança,

precisava ser adiada, no caso de terem deixado de realizar a principal função na mente de seu dono

quando foram, de maneira laboriosa, montados, acumulados e estocados, ou seja, a função de

continuar em serviço enquanto pudesse surgir a necessidade de usá-los. Nova mentalidade passa a

ser embutida na cabeça do indivíduo.

Bauman coloca que as condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente

e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de apreendê-las efetivamente17.

Apenas bens de fato duráveis, resistentes e imunes ao tempo poderiam oferecer a segurança

desejada. Só esses bens tinham a propensão ou ao menos a chance, de crescer em volume e não

diminuir e só eles prometiam basear as expectativas de um futuro seguro em alicerces mais duráveis

e confiáveis, apresentando seus donos como dignos de confiança e crédito.

Aqui surge uma indagação que será respondida oportunamente. O consumismo não seria

uma manipulação da condição própria do sujeito, o de ser desejante?

Mas o desejo humano de segurança e os sonhos de um estado estável definitivo não se

ajustaram a uma sociedade de consumidores. As realizações individuais não podem solidificar-se em

posses permanentes.

O desejo humano de estabilidade, segundo Bauman18, teve que se transformar e de fato se

transformou de principal ativo do sistema em seu maior risco, quem sabe até potencialmente fatal, a

uma causa de mau funcionamento do mesmo.

Dificilmente poderia ser de outro jeito, já que o consumismo associa a felicidade não tanto à

segurança, mas a um volume e uma intensidade em busca de satisfação de desejos sempre

crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a

satisfazê-las.

17 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 7.18 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 44.

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E daí conclui Bauman estarmos vivendo uma vida liquido-moderna, uma sociedade em que

as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que o necessário

para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir, onde não pode se manter a forma ou

permanecer em seu curso por muito tempo19.

Nesta sociedade, você ganha alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, você perde, seguindo uma

antiga norma que se mantém até os dias de hoje, trocando a segurança pela felicidade. No nosso

tempo criam-se situações em que tudo é bom, nada é ruim; não há qualquer valore, mas todos são

felizes.

Na realidade novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas

necessidades e, assim por diante, uma insaciabilidade dos desejos, uma procura constante por

mercadorias para a satisfação.

Com o advento do consumismo augura a era da obsolência dos bens oferecidos no mercado,

assinalando um aumento espetacular na indústria da remoção do lixo

A instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assim como a resultante

tendência ao consumo instantâneo e a remoção, também instantânea, de seus objetos, harmonizam-

se bem com a nova liquidez do ambiente em que as atividades essenciais são inscritas e tendem a ser

conduzidas a um futuro previsível20.

Na vida dos cidadãos da era consumista, o motivo da pressa é o impulso de adquirir e juntar.

Mas, o motivo mais premente, que torna a pressa de fato imperativa, é a necessidade de descartar e

substituir. Quando os objetos de desejo de ontem quebram a promessa e deixam de proporcionar a

esperada satisfação instantânea e completa, só resta serem abandonados.

“Não se deve chorar pelo leite derramado” é a mensagem latente por trás de cada comercial

que promete uma nova e inexplorada oportunidade de “felicidade”. A economia consumista se

alimenta do movimento das mercadorias e é considerada em alta quando o dinheiro mais muda de

mãos, e sempre que isso acontece, alguns produtos de consumo estão viajando para o depósito de

lixo. As grandes empresas especializadas na venda de “bens duráveis” já aceitaram a idéia e emitem

a opinião de que o serviço de fato escasso e, portanto, mais ardentemente ambicionado e valorizado

é o trabalho de limpeza. Sua urgência aumenta de maneira proporcional ao crescimento de

aquisições e posses.

Hoje em dia são raras às vezes em que as empresas cobram dos clientes a entrega, mas cada

vez mais adicionam à conta uma soma pesada referente à remoção dos bens duráveis que o

19 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 7.20 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 45.

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aparecimento de novos e aperfeiçoados bens, também duráveis, converteu de fonte de prazer e

orgulho em monstruosidade e estigma de vergonha.

Livrar-se deste estigma condiciona a “felicidade”. E a “felicidade” precisa ser paga. Um

exemplo gritante disso é o mercado de celulares, cuja substituição por um modelo cada vez mais

aperfeiçoado se faz em detrimento da qualidade dos aparelhos.

Segundo Bauman21 a indústria de remoção de lixo assume posições de destaque na economia

da vida líquida. A sobrevivência dessa sociedade e o bem-estar de seus membros dependem da

rapidez com que os produtos são enviados aos depósitos de lixo e da velocidade e eficiência da

remoção dos detritos.

Numa sociedade de consumidores, a busca da felicidade é usada como isca nas campanhas

de marketing destinadas a reforçar a disposição dos consumidores para se separarem de seu dinheiro

e redireciona-lá satisfação com a aquisição de bens.

Para Gilles Deleuze22 o marketing é agora o instrumento de controle social e forma

impotente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também

contínuo e ilimitado ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O

homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado.

Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo

direto de divertimentos, Debord23 diz que o espetáculo constitui o modelo presente da vida

socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e seu

colorário, o consumo.

Quanto mais o indivíduo esta isolado ou frustrado, mais busca consolo nas “felicidades”

imediatas da mercadoria. Compra-se tanto mais quanto se esta carente de amor. O shopping promete

preencher o vazio e reduzir o mal-estar de que se é vítima.

A liberdade do consumidor diz respeito a sua satisfação, mas a liberdade somente pode durar

enquanto permanecer irrealizada. A escolha é um atributo do consumidor e a natureza cooperativa

da comunidade de consumidores significa liberdade de escolha. A liberdade de escolha se assenta na

multiplicidade de possibilidades.

21 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 9.22 Deleuze, G. (1992). Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Tradução del Pal Pélbart. In: Conversações(1972-1990). RJ: Ed. 34, p. 224,23 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991.

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Page 12: A subjetividade como mercadoria

20

Atender a todas essas novas necessidades, impulsos, compulsões e vícios, assim como

oferecer novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana, a

economia consumista tem de se basear no excesso.

Para Bauman, o que começa como uma necessidade deve terminar como uma compulsão ou

vício e é isso que ocorre, já que o impulso de buscar nas lojas, e só nelas, soluções para os

problemas e alívio para as dores e a ansiedade é apenas um aspecto do comportamento que não

apenas recebe a permissão de se condensar num hábito, mas é avidamente estimulado a fazê-lo24.

A possibilidade de conter e assimilar a massa de inovações que se expande de modo

incessante está ficando cada vez mais reduzido.

O ritmo de aumento do já enorme volume de novidades tende a ultrapassar qualquer meta

estabelecida de acordo com a demanda já utilizada.

Como lidar com essa demanda? Seria impossível escapar? Esta é a pergunta que fizemos a

Psicanálise.

De acordo com Bauman25, essas tendências patológicas do crescimento exponencial da

produção de bens e serviços poderiam ser identificadas a tempo, reconhecidas pelo que são, e até

inspirar medidas terapêuticas ou preventivas, se não fosse outro processo de crescimento

exponencial, o que resulta em um excesso de informação.

Na acirrada competição pelo mais escasso dos recursos – a atenção dos consumidores – os

fornecedores de pretensos bens de consumo, incluindo os de informação, buscam desesperadamente

“sobras” não cultivadas dos tempos dos consumidores, qualquer brecha entre momentos de consumo

que possa ser preenchida a partir da informação e sua força sobre o desejo de consumismo.

Que os seres humanos sempre preferem a felicidade à infelicidade é uma observação banal,

já que o conceito de “felicidade”, em seu uso mais comum, diz respeito a estados ou eventos que as

pessoas desejariam que acontecessem, enquanto a “infelicidade” representaria estado ou evento que

elas queriam evitar. Os dois conceitos assinalam a distância entre a realidade, tal como ela é, e uma

realidade desejada.

Por esta razão, Bauman26 conclui que qualquer tentativa de comprar graus de felicidade,

experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos em relação ao ponto de vista

especial ou temporal, só podem ser mal-interpretadas e, em última análise, inúteis.

24 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.107.

25 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 54.26 Ibidem, p. 59.

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Page 13: A subjetividade como mercadoria

21

E continua dizendo que o valor mais característico da sociedade de consumidores, na

verdade seu valor supremo, em relação aos quais todos os outros são instados a justificar seu mérito,

é uma vida feliz.

A sociedade de consumidores talvez seja a única na história da humanidade a prometer a

felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade

instantânea e perpétua. Também, é a única sociedade que evita justificar e/ou legitimar qualquer

espécie de infelicidade, que se recusa a tolerá-la e a apresenta como uma abominação que merece

punição e compensação.

Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência

humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos27.

Que fazer diante dos fenômenos e as causas do desconforto e da infelicidade, tais como o

estresse, a depressão, jornadas de trabalho prolongadas e anti-sociais, relacionamentos deteriorados,

falta de autoconfiança, dívidas inacabadas e incerteza sobre estar estabelecido de maneira segura e

“ter razão”, que tendem a crescer em freqüência, volume e intensidade? A resposta vem sendo

consumir, mesmo que esse consumo possa levar ao superendividamento.

A sociedade de consumo tem como base a promessa de satisfazer o desejo humano em um

grau que nenhuma sociedade do passado teria alcançado ou mesmo sonhado. Quanto mais se anula

um sujeito pensante maior o lucro no mercado.

Mas, como manter a promessa de satisfação, que só permaneceria sedutora, enquanto o

desejo continua insatisfeito?

O cliente não está plenamente satisfeito enquanto não se acreditar que os desejos que o

motivaram e o colocaram em movimento na busca da satisfação, estimulando experimentos

consumistas, tenham sido verdadeiros e totalmente realizados. Não há uma real capacidade de

analisar, pensa e questionar.

É interessante observar que é exatamente a não-satisfação dos desejos que constitui o

verdadeiro volante da economia para o consumidor. A convicção inquebrantável a toda hora é

renovada com tentativas sucessivas de nova satisfação. A sociedade de consumo prospera, enquanto

consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros. O método para atingir tal efeito é

depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos a objeto

capaz de trazer a felicidade frente ao universo dos desejos dos consumidores28.

27 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 56.28 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 64.

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Page 14: A subjetividade como mercadoria

22

Começa-se com o esforço para apontar o objeto que possa satisfazer uma necessidade,

mostrando o caminho para satisfazer cada necessidade/desejo/vontade, mas para, além disso, dar

origem à necessidade/desejo/vontade ainda mais novos.

O domínio sobre a realidade da vida dos consumidores é condição necessária para que a

sociedade de consumidores funcione de modo adequado e se mantenha.

Segundo Bauman, um mar de hipocrisia se estendendo das crenças populares às realidades

de vida dos consumidores é condição sine qua non para que uma sociedade de consumidores

funcione apropriadamente29. Deve-se alienar o sujeito ao Outro do mercado de consumo. Suas

liberdades de agir sobre seus próprios impulsos devem ser preparadas. O anseio de liberdade é

dirigido contra formas e exigências particulares da civilização.

Sem a repetida frustração dos desejos, acredita-se que a demanda de consumo logo se

esgotaria e a economia voltada para o consumo ficaria sem combustível.

É o excesso da soma de promessas que neutraliza a frustração causada pelas imperfeições ou

defeitos de cada uma delas e permite que a acumulação de experiências frustrantes não chegue a

ponto de solapar a confiança na efetividade essencial dessa busca30.

Na realidade atual, tudo que economicamente “tem sentido” não necessita do apoio de

nenhum outro sentido – político, social ou humano.

As mudanças que significam racionalização e flexibilidade para o capital repercutem nas

extremidades receptoras como catastróficas. Passou-se a ter pouco espaço para a vida vivida como

um projeto de um planejamento de vida a longo prazo31.

Segundo Gilles Lipovetsky32, a modernidade, por intermédio da publicidade, os magazines

puseram em marcha um processo de democratização dos desejos, quando se transformou os locais

de venda em locais de sonhos, revolucionando a relação de consumo.

Não há o propósito de apenas vender mercadoria, o que ocorre é muito mais que isso,

estimula-se a necessidade de consumir, a excitar o gosto pelas novidades e pela moda por meio de

estratégias de sedução com as técnicas modernas do marketing.

O aparecimento das grandes marcas transformou profundamente a relação do consumidor.

Por uma marca apreciada, o cidadão sai da impessoalidade mostrando-se não uma superioridade

social, mas sua participação inteira e igual nos jogos da moda e do consumo.

29 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008,p. 108.30 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 65.31 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 50.32 Lipovetsky, Gilles. A felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria LuciaMachado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 31.

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Page 15: A subjetividade como mercadoria

23

Mais adiante, o processo pelos quais os produtos que antes eram de maior acesso a parte

mais elitizada da sociedade foi aperfeiçoado-se e pondo-se a disposição de todos os indivíduos.

Fez-se aparecer um poder de compra discricionário em camadas sociais cada vez mais

vastas, difundindo o crédito e permitindo que a maioria se libertasse da urgente necessidade estrita,

proporcionando a sociedade em geral, ter acesso a uma demanda material a um modo de vida

antigamente associados apenas às elites sociais33.

A sociedade dos desejos descrita por Lipovetsky, impregnada por um imaginário de

felicidade consumidora, sonhos de viagens e de modas, suavizaram-se os signos da cultura

cotidiana, despreocupando-se com o futuro, ocorrendo uma verdadeira mutação cultural.

E continua o autor dizendo que a economia consagrou-se com a mudança dos modelos e dos

estilos de vida, da moda, do crédito e da sedução publicitária provocando uma estimulação

desenfreada dos desejos, ou seja, a economia passou a depender do consumo, passando para a

sociedade do hiperconsumo34, quanto mais se consome, mais se quer consumir.

A única preocupação da globalização foi fazer a economia crescer para manter o capitalismo

e para isso, não se mediu os fins que poderia se chegar e assim, todos os países, que quisessem

acompanhar o crescimento econômico global, teriam que se adequar às exigências do mundo

capitalista, sem contanto, medir o resultado final da política implantada.

Os que se desenvolviam, o objetivo era uma expansão econômica forte, considerada

primordial, passando de uma economia centrada na oferta, a uma economia centrada na procura e

com isso o alvo foram as despesas de consumo das famílias que se tornaram o primeiro motor desse

crescimento.

Passamos a viver uma época da abundância indefinida das esferas das satisfações desejadas e

de uma incapacidade de eliminar os apetites de consumo, sendo toda saturação de uma necessidade

acompanhada imediatamente por novas procuras, numa conseqüente exigência de prestígio,

reconhecimento e integração social, uma verdadeira competição por status, uma sociedade adoecida

pelos acontecimentos globais, onde o próprio consumo passou a ser um sintoma.

De acordo com Debord35, toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições

modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos.

33 Lipovetsky, Gilles. A felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria LuciaMachado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 33.34 Ibidem, p. 12.35 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991. A sociedade do espetáculo.Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.9.

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Page 16: A subjetividade como mercadoria

24

Modificou-se o modo de vida, os prazeres, os gostos, num curto intervalo de tempo e cada

vez mais sob a dependência do sistema mercantil. O tempo de “saborear” os prazeres da vida, se

alguma vez chegou a existir, há muito que deixou de fazer sentido.

Segundo Bauman36, o mercado agora atua como intermediário nas cansativas atividades de

estabelecer e cortar relações interpessoais, aproximar e separar pessoas conectá-las e desconecta-las,

datá-las e deletá-las do diretório de texto. Altera as relações humanas no trabalho e no lar, no

domínio público assim como nos mais íntimos domínios privados. Reorienta e distribui os destinos e

itinerários das buscas existenciais de modo que nenhuma delas possa evitar a passagem pelo

shopping centers.

O autor narra o viver como uma sucessão de problemas quase sempre solucionáveis, que, no

entanto precisam e podem ser resolvidos somente por meios que estão disponíveis apenas nas

prateleiras das lojas.

Oferecem atalhos tecnológicos vendidos em lojas para todos os tipos de objetivos que antes

podiam ser atingidos pelo uso de habilidades pessoais e da personalidade, da cooperação amigável e

de negociações conduzidas com base na camaradagem.

Fornecem engenhocas e serviços sem os quais, na ausência de habilidades sociais, da vida

em sociedade e da vida em comum, relacionar-se com outras pessoas e desenvolver um modus

convivendi duradouro seria, para um número crescente de pessoas, tarefa assustadora, além do seu

alcance, talvez até inalcançáveis.

O imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora e em qualquer

idade, diversificar a oferta adaptando-se às expectativas dos compradores, reduzir o ciclo de vida

dos produtos pela rapidez das inovações, segmentar os mercados, favorecer o crédito ao consumo,

fidelizar o cliente por práticas comerciais diferenciadas. O modo de vida, prazeres e gostos

mostram-se cada vez mais sob a dependência do sistema mercantil.

O tempo e o dinheiro consagrados aos lazeres estão em alta constante. As festas, os jogos, os

lazeres, as incitações ao prazer invadem o espaço da vida cotidiana. Em conseqüência dessa

modernidade, ficam evidentes os distúrbios comportamentais, aspectos que fazem da sociedade do

hiperconsumo, segundo Gilles Lipovetsky, a civilização da felicidade paradoxal.

A liberdade de agir sobre seus próprios impulsos teve que ser preparada. O anseio da

liberdade é dirigido pelas exigências particulares da civilização. O princípio do prazer esta reduzido

36 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.117.

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Page 17: A subjetividade como mercadoria

25

ao princípio da realidade. Hoje se valoriza o superficial. O indivíduo acaba por ter suas escolhas

condicionadas.

E é aí que surgem as carapaças vazias dos signos e enchem de significados; os signos (já

tornados significados) ganham ou perdem valor, que repercutem nas oscilações da procura. Somente

no decurso desse jogo que sinais são transformados em mercadorias. O processo de mercadorização

é simultaneamente o ato de nascimento do consumidor. Percorre-se por signos em busca de

significados e significados em busca de signos37.

Enquanto os signos permanecem livres de significados, a essência da livre escolha é o

esforço para abolir a própria escolha. Daí a perpétua não satisfação dos desejos de mais ampla

escolha dos consumidores. O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, torna a

própria satisfação impossível.

O mal-estar da modernidade provém de uma espécie de segurança que tolera uma liberdade

pequena na busca da felicidade individual, ou seja, de uma espécie de liberdade de procura do prazer

que tolera uma segurança individual pequena demais.

O domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter.

No consumismo chegou-se ao reinado do aparecer parece ser. A economia que era um meio

transformou-se em fim a que os homens se submetessem totalmente.

A sociedade moderna está hoje inteiramente desregulamentada e privatizada, animada e

dirigida pelo mercado consumidor38.

O período que se conviveu com a desregulação e desmantelamento dos dispositivos de bem-

estar também se conviveu um período cada vez maior da criminalidade e, desta forma, cruelmente

cresceu o medo, ansiedade, nervosismo, incerteza, raiva e fúria da maioria silenciosa de

consumidores ostensivamente bem sucedidos39.

Viver no estado do bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito

do cidadão40.

Viver numa vida líquida é viver precariamente, pois se vive em condições de incertezas

constantes, numa sucessão de reinícios e um caminho sem volta. Deve-se largar tudo em busca de

melhor qualidade de vida.

37 Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama;Revisão técnica Luiz Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 172.38 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 57.39 Ibidem, p. 58.40 Ibidem, 1998, p. 51.

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Page 18: A subjetividade como mercadoria

26

E conclui Bauman: “Não importa a intensidade com que se concentre no objeto do desejo, o

olho do consumidor não pode deixar de dar uma espiada no valor da mercadoria do sujeito que

deseja. A vida líquida significa constante auto-exame, autocrítica e autocensura, pois se alimenta da

insatisfação do eu consigo mesmo”41.

2 – DANOS COLATERAIS

Em conseqüência dos fatos, nos dias de hoje, os conceitos de “danos colaterais”, “baixas

colaterais” e “vítimas colaterais”, descrito por Bauman42, passaram a pertencer ao vocabulário dos

advogados e tem raízes pragmáticas nas defesas jurídicas, embora o fenômeno seja descrito como

“conseqüências imprevistas” das ações humanas.

O significado dessa expressão tem como fim desculpar ações prejudiciais, justificá-las,

eximi-las de punição com base na ausência de intencionalidade, ou seja, negar a responsabilidade

moral e jurídica, o que Bauman descreve com tanta precisão como causa maior do consumismo.

Para Bauman43 medo, exclusão social, produção do mal são elementos considerados como

“os efeitos colaterais” precisamente naquela globalização que os ideológicos do livre mercado

apresentam como o melhor dos mundos possíveis.

A questão controversa é se imprevisto significa imprevisto de prever e, para ser mais

específico, se não intencional quer dizer impossível de calcular e, portanto, impossível de evitar

intencionalmente ou apenas a indiferença e frieza de quem faz os cálculos e não se preocupa em

evitar44.

Há boas razões para suspeitar que invocar o argumento da falta de intencionalidade tem o

objetivo de negar ou isentar a cegueira ética, condicionada ou deliberada própria da sociedade

pautada pelo consumo.

Com certeza há “omissões maliciosas” na expressão “baixas colaterais” ou “danos

colaterais”. O que foi omitido de modo astucioso é o fato de que as baixas colaterais ou não foram

efeito da forma como se planejou e executou a explosão de consumo, já que os que a planejaram e

executaram não se importaram, particularmente, com a possibilidade dos danos ultrapassarem os

41 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 19.42 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 149.43 http://74.125.47.132/search?q=cache:8irBtHXo8TQJ:www.ecodebate.com.br/2008/10/0. A sociedade do medorenuncia à liberdade, entrevista com Zygmunt Bauman.44 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 150.

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Page 19: A subjetividade como mercadoria

27

limites presumidos do alvo propriamente dito, atingindo a área cinzenta (já que a mantiveram fora

de seu foco) dos efeitos colaterais e das conseqüências imprevistas45.

O superendividamento bem explica essa questão levantada por Bauman, efeito do

planejamento da expansão capitalista, utilizando o consumo como meio.

E continua Bauman dizendo que algumas das vítimas podem de fato ser classificadas como

“colaterais”, mas não será fácil provar que a narrativa oficial e explícita não foi “econômica com a

verdade” que ela realmente está contando como insiste, toda a verdade e nada mais do que a verdade

sobre pensamentos e motivos aninhados nas mentes dos planejadores ou debatidos em suas reuniões.

Já era previsível o resultado que o consumismo poderia chegar. O planejamento e as técnicas

implantadas ao incentivo do consumo desenfreado tiveram como objetivo maior a expansão do

capital, sem contudo, um preparo da população à conscientização e educação para o consumo

consciente. Neste caso, falar em consumo consciente é uma forma de educar, informar, esclarecer o

consumidor quanto ao seu desejo na aquisição compulsiva dos bens oferecidos no mercado. Por isso

é habitual verificar como os consumidores atendem cada vez mais a demanda do mercado

capitalista. Aqui não poderíamos dizer que o mercado pode interferir na subjetividade do sujeito?

Daí Bauman dizer que o que é “latente”, não significa necessariamente “inconsciente” ou

“indesejado”; pode, em vez disso, significar “mantido em segredo” ou “acobertado”, deveríamos

abandonar a esperança de comprovar ou refutar uma ou outra interpretação para “além da dúvida

razoável”46.

Segundo Bauman, nas palavras de J. Livinsgstone:

... a forma mercadoria penetra e transforma dimensões da vida social atéentão isentas de sua lógica até o ponto em que a própria subjetividade setorna uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado, como a beleza,a limpeza, a sinceridade e a autonomia47.

A difusão de padrões de consumo tão amplos a ponto de abraçar todos os aspectos e

atividades da vida pode ser um efeito colateral inesperado e não planejado e inoportuna

marketização dos processos da vida48.

45 Ibidem, p. 151.46 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 152.47 Apud Eugène Enriquez, “L’idéal type de l’individu hipermoderne: l’individu pervers?”, in Nicole Aubert(org.), L’individu hypermoderne, Erès, 2004, p.49.48 Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.116.

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Page 20: A subjetividade como mercadoria

28

Tais conseqüências prejudiciais afetam os valores morais de um indivíduo e

conseqüentemente um efeito secundário dos equívocos e descasos na própria maneira pela quais as

instituições podem atuar para permanecerem viáveis.

Em relação aos valores morais, Hans Jonas49 diz que durante a maior parte da historia

humana, o impulso moral não estava repleto de perigosos extremos pela simples razão de que as

conseqüências dos efeitos humanos eram igualmente limitadas. O que acontece é o crescimento do

possível encadeamento das conseqüências dos atos humanos, não esta acompanhado de uma

expressão semelhante da capacidade moral humana. O que podemos fazer agora pode ter efeitos em

distantes gerações. Efeitos tão profundos e radicais quanto imprevisíveis, que transcendem o poder

da imaginação humana sempre limitada pelo tempo e pelo espaço, e moralmente incontroláveis,

capazes de avançar muito além das questões que a capacidade moral humana se habilitou a

enfrentar.

Bauman diz que é notoriamente difícil ou até mesmo impossível saber quais feitos da

tecnociencia são ou quais não são compatíveis com a permanecia da genuidade vida humana pelo

menos antes que um dano, frequentemente irreparável, tenha sido feito.

Ao contrario disso, impera hoje, uma sociedade em que há uma submissão alienante ao

império da mídia, que dita o que o sujeito deve desejar consumir. A publicidade especializou-se em

mostrar imagens de desejo, beleza, vida mais fácil e objetos duradouros que tentam saciar a

voracidade do homem moderno.

A atividade de consumir tornou-se uma espécie de padrão ou modelo para a maneira como os

cidadãos das sociedades ocidentais contemporâneas passaram a encarar todas as suas atividades.

Cada vez mais áreas da sociedade são assimiladas por um “modelo de consumo”, uma

espécie de filosofia-padrão de toda a vida moderna. Deveria se evitar que os padrões de vida se

congelem em rotinas e tradições.

O consumismo atua para manter a reversão emocional do trabalho e da família. Expostos a

um bombardeio contínuo de anúncios, graças a uma média diária de três horas de televisão – metade

de todo o seu tempo lazer – os trabalhadores são persuadidos a “precisar” de mais coisas. Para

comprar aquilo de que agora necessitam, precisam de dinheiro. Para ganhar dinheiro, aumentam sua

jornada de trabalho. Estando fora de casa por tantas horas, compensam sua ausência do lar com

presentes que custam dinheiro, materializando inclusive o amor.

49 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 70.

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Page 21: A subjetividade como mercadoria

29

Ocupados em ganhar mais dinheiro em função de coisas de que crêem precisar para serem

felizes, homens e mulheres têm menos tempo para a empatia mútua e para relações intensas. E,

ainda menos, para resolver seus mútuos desentendimentos e discordâncias. Isso aciona outro círculo

vicioso: quanto mais obtêm êxito em “materializar” a relação amorosa (como o fluxo contínuo de

mensagens publicitárias os estimula a fazer), menores são as oportunidades para se tentar o

entendimento. Os membros da família são mesmo tentados a evitar o confronto.

A atual sociedade admite seus membros primeiramente como consumidores; só de maneira

secundária, e em parte, os aceita como produtores.

Para atingir os padrões de normalidade, ser reconhecido como um membro pleno, correto e

adequado da sociedade, é preciso reagir pronta e efetivamente às tentações do mercado de consumo,

contribuir com regularidade para a “demanda da oferta”, mesmo em tempos de reviravolta ou

estagnação econômica deve-se ser parte da “recuperação conduzida pelo consumidor”.

Na prática, as consequências das ações humanas repercutem como uma forca cega do que

um modelo de comportamento racional.

A força do mercado esta cada vez mais desregulamentada, isenta de todo controle político

eficaz e guiada exclusivamente pelas pressões da competitividade, efeito globalmente desastrosos a

longo prazo.

A moral é sempre representada na reunião moral do eu com o Outro. Isso deixa à parte a

maioria das coisas que preenchem a vida diária de todo ser humano: a busca de sobrevivência e

auto-engrandecimento, a consideração racional de fins e meios, a avaliação de ganhos e perdas, a

procura do prazer, o poder e a política50.

Numa sociedade moderna, acentuadamente desigual e devotada à promoção da igualdade

como um valor supremo, a essência da justiça permanecera eternamente um objeto de controvérsia.

A justiça como redenção, recuperação de perdas, reparação do dano, compensação pelos

males sofridos que corrija a distorção causada pelo ato da injustiça.

Para Bauman a justiça não resulta da ação normal das injustiças. Ela vem do lado de fora,

aparece como um princípio externo à história, surge das “teorias da justiça” que são forjadas no

decurso de lutas sociais, em que as idéias morais expressam as necessidades e uma sociedade. A

justiça surge como um julgamento pronunciado sobre a história. Humano é o mundo em que é

possível julgar a história – o mundo do “racionalismo” 51.

50 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 62.51 Ibidem, p. 64.

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Page 22: A subjetividade como mercadoria

30

Sem a ordem da justiça não haveria limites para a minha responsabilidade, assim, a

coabitação com Outros, como cidadãos generalizados, não seria possível.

A justiça requer o estabelecimento do Estado. Nisso reside à necessidade da redução da

singularidade humana à particularidade de um indivíduo humano, à condição de cidadão. Essa

última particularidade reduz, empobrece, dissolve, dilui o esplendor da singularidade eticamente

formada, mas sem essa singularidade já eticamente apreendida ela própria seria inconcebível, jamais

se consumaria52.

O Estado Liberal, assentado sobre o princípio do direito humano é implementação e evidente

manifestação dessa contradição. Sua função é nada menos que limitar a misericórdia original de que

a justiça se originou.

O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de

prazer é o juiz que a está presidindo.

Pouco se faz para aumentar a percepção do mundo como justo, ao contrário, os índices de

bem-estar e qualidade de vida apontaram em direção a desigualdade, com um rápido enriquecimento

de um lado e o ofensivo empobrecimento do outro.

Enquanto os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, os ricos

desfrutam de um elevado grau de liberdade da escolha pessoal, reagindo viva e alegremente ao

crescente leque de atraentes ofertas do mercado.

É fácil demais redefinir aqueles que não reagem de maneira esperada por parte dos

consumidores adequados, seduzíveis, como pessoas inaptas para fazer bom uso da sua liberdade de

escolha, pessoas que são, em última análise, inaptas para serem livres.

3 - A VISÃO DA POBREZA NA SOCIEDADE DE CONSUMIDORES

Este ítem do capítulo tem por objetivo mostrar como é visto a questão da pobreza na

sociedade de consumidores.

Não podemos ser “pobres”, mas “eles” movem a economia, correspondendo grande parte da

camada social que impulsiona o consumismo.

A criminalidade cada vez maior, não é um produto de mau funcionamento ou negligência,

muito menos de fatores externos à própria sociedade é, em vez disso, o próprio produto da sociedade

52 Ibidem, p. 66.

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Page 23: A subjetividade como mercadoria

31

de consumidores. Quanto mais elevada à procura do consumidor mais a sociedade de consumidores

é segura e próspera.

Assim, é ampla a lacuna entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos ou

entre os que foram seduzidos e passam a agir de modo como essa condição os levou a agir e os que

foram seduzidos, mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os

seduzidos53.

Os impulsos sedutores, para serem eficazes, devem ser transmitidos em todas as direções e

dirigidos indiscriminadamente a todos aqueles que os ouvirão.

No entanto, existem mais aqueles que podem ouvir do que daqueles que podem reagir do

modo como a mensagem sedutora tinha em mira fazer.

Os que não podem reagir em conformidade com os desejos induzidos dessa forma são

diariamente regalados com o deslumbrante espetáculo dos que podem fazê-lo.

O consumo abundante é lhes dito e mostrado; é a marca do sucesso e a estrada que conduz

diretamente ao aplauso público e à fama.

Eles também aprendem que possuir e consumir determinados objetos e adotar certos estilos

de vida é a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana.

A vida vivida dessa forma torna-se um jogo onde os jogadores incapazes devem ser mantidos

fora do jogo, pois é um suplemento indispensável da integração mediante sedução, numa sociedade

de consumidores guiados pelo mercado.

Esses “excluídos” são definidos como “classes de criminosos” e, desse modo, as prisões

agora, completa e verdadeiramente, fazem às vezes das definhantes instituições do bem-estar54.

Mesmo diante da colocação feita por Bauman, nos atuais dias são eles grande parte da

camada social que consome em excesso e que hoje tem facilidade de acesso a aquisição de bens e

consumo e também, o adimplemento de suas obrigações, contribuindo para o giro do mercado.

Que a questão da pobreza refletiu, através do mercado consumista na criminalidade, a causa

pode ser retirada de fatores condicionadores a aquisição dos bens, onde aqueles que podem comprar

(ter) podem ser alguma coisa e os que não podem ficam “discriminados” pelos grupos sociais.

Bauman55 coloca em O mal-estar na pós-modernidade, que a crescente magnitude do

comportamento classificado como criminoso não é um obstáculo no caminho para a sociedade

consumista plenamente desenvolvida e universal, é seu natural acompanhamento e assim

53 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 55.54 Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 5755 Ibidem.

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Page 24: A subjetividade como mercadoria

32

reconhecidamente, os “excluídos do jogo” – consumidores falhos – são exatamente a encarnação

dos “demônios interiores” peculiares à vida do consumidor.

Os pobres de hoje tem uma infinidade de acesso ao consumo. É fácil perceber, ao caminhar

pelas cidades, como o mercado de consumo convida o indivíduo sem ao menos saber suas reais

condições pessoais de adimplir com suas obrigações assumidas.

Atualmente a acessibilidade esta em escalas cada vez maior o que denota mais uma era de

evolução do consumismo. Tempos em tempos, novas técnicas são mirabulosamente inventadas para

que a economia não pare de girar e que gire pelo maior número de pessoas, independe da condição

social, os “pobres” são grande parte da população que atende a demanda do consumismo.

Não importa o adimplemento das obrigações, a escala de consumo é maior dando

oportunidade de acesso a eles, incluindo-os no modelo do capitalismo, pois também lhes foi

permitido um acesso de ter para ser.

Se o “pobre” de hoje fosse considerado problema, o sistema capitalista não os diferenciaria,

pois a esses também são dado o acesso ao consumo e de forma mais acessível e facilitado que

outrora. Por exemplo, é possível notar a acessibilidade ao crédito, sem comprovação de renda! Isto é

um fato que se estende até aos “pobres”, que ficam atraídos pela facilitação de promessas que o

mercado capitalista oferece. E como colocar a influência desse mercado sobre a subjetividade do

sujeito, face ao seu desejo? Qualquer sujeito tem condição de discernir seus limites no consumo? Há

consciência de sua responsabilização? Cada sujeito tem sua própria subjetividade, estrutura,

constituição. No capítulo que abordarmos sobre a psicanálise poderemos verificar essas respostas

mostrando como um sujeito pode responder as demandas do mercado e aí chegarmos ao

supereendividamento.

Quanto maior a demanda de consumo, mais segura e próspera a sociedade de consumo, mais

larga e profunda se tornará a lacuna entre os que desejam e podem satisfazer seus desejos e os que

foram seduzidos de forma adequada, mas são incapazes de agir da forma como se espera que ajam,

mas hoje a realidade é outra, pois os “pobres” são também consumidores em potencial. As técnicas

para levá-los ao consumo tem sido eficaz, com o acesso facilitado.

A interferência da sociedade de consumo influência toda a vida, a mais íntima do indivíduo,

quando, por exemplo, faz promoção da novidade e o rebaixamento do rotineiro.

Os mercados de consumo superam-se em desmontar o já existente e se apropriar

antecipadamente da implantação e fixação de outras, exceto pelo breve intervalo de tempo

necessário para esvaziar os depósitos e se livrar dos implementos destinados a servi-los.

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Page 25: A subjetividade como mercadoria

33

O mesmo mercado, contudo, alcança efeito ainda mais profundo: para os membros da

sociedade de consumidores treinados de maneira adequada, toda e qualquer rotina e tudo que se

associe a um comportamento rotineiro (monotonia, repetição) torna-se insustentável – na verdade,

intolerável.

O “tédio”, a ausência ou mesmo interrupção temporária do fluxo perpétuo de novidades

excitantes, que atraem a atenção, transforma-se num espantalho odiado e temido pela sociedade de

consumo.

Para ser eficaz, a tentação de consumir, e de consumir mais, deve ser transmitida em todas as

direções e dirigida indiscriminadamente a todos que se disponha a ouvir, inclusive os “pobres”.

No entanto, o número de pessoas capazes de ouvir é maior do que o daquelas que podem

reagir da maneira pretendida pela mensagem sedutora. Daí indagar: por que algumas pessoas

escapariam dessa sedução? O que faria esta diferença? A psicanálise pode explicar...

Os que não podem agir de acordo com os desejos induzidos são apresentados todos os dias

ao olhar deslumbrado daqueles que podem.

O consumo excessivo os apreende, é sinal de sucesso, uma auto-estrada que conduz ao

aplauso público e à fama.

Eles também aprendem que possuir e consumir certos objetos e praticar determinados estilos

de vida é a condição necessária para a felicidade.

E, uma vez, que “estar feliz” transformou-se na marca da decência e na garantia do respeito

humano, isso também tende a se tornar condição necessária para a dignidade e a auto-estima.

“Estar entediado”, além de fazer a pessoa sentir-se desconfortável, está se transformando

num estigma vergonhoso, testemunho de negligência ou derrota que pode levar a um estado de

depressão aguda.

Se o privilégio de "nunca estar entediado" é a medida de uma vida de sucesso, de felicidade e

mesmo de decência humana e se a intensa atividade de consumo é a rota principal, a estrada régia

que conduz à vitória sobre o tédio, então se tirou à tampa dos desejos humanos; nenhum volume de

aquisições satisfatórias e sensações atraentes podem trazer satisfação da maneira um dia prometida

por "manter-se de acordo com os padrões". Parece não haver fim para o que um ser humano pode

desejar56.

Para tornar as perspectivas ainda mais sombrias, a crescente incidência de condutas

classificadas como criminosas não são obstáculos no caminho para uma sociedade consumista

56 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 166.

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Page 26: A subjetividade como mercadoria

34

plenamente desenvolvida e totalmente abrangente. É, ao contrário, sua acompanhante e pré-requisito

natural, talvez até indispensável. Isso por uma série de razões, mas é possível que a principal delas

seja o fato de que os que ficaram fora do jogo, os consumidores falhos, cujos recursos não estão à

altura de seus desejos, têm pouca ou nenhuma chance de ganhar, se jogarem pelas regras oficiais.

Sem segurança coletiva, dificilmente haverá muito estímulo ao engajamento político, e com

certeza, nenhum estimulo à participação no ritual democrático das eleições, já que é provável que a

salvação não venha de um Estado político que não seja, e se recuse a ser, um Estado social57.

Sem direitos sociais para todos um número grande e provavelmente crescente de pessoas vai

achar que seus direitos políticos são inúteis ou indignos de atenção.

Se os direitos políticos são necessários para estabelecer os direitos sociais, estes são

indispensáveis para manter os direitos políticos em funcionamento. Os dois tipos de direito precisam

um do outro para que sobrevivam.

Todas essas verdades foram proclamadas no programa social democrata Sueco de 2004:

Todo mundo é frágil em algum ponto do tempo. Precisamos uns dos outros. Vivemos nossas vidas

no aqui e agora, juntamente com outros, envolvidos de forma involuntária pelas mudanças que

ocorrem. Seremos mais ricos se todos puderem participar e ninguém for deixado de fora. Seremos

todos mais fortes se houver segurança para todo mundo e não apenas para uns poucos58.

O significado do Estado social na sociedade de produtores é defender a sociedade dos “danos

colaterais” que o princípio orientador da vida social iria causar se não fosse monitorado, controlado

e restringido. Seu propósito é proteger a sociedade da multiplicação das fileiras de “vítimas

colaterais” do consumismo: os excluídos, a subclasse. Sua tarefa é evitar a erosão da solidariedade

humana e o desaparecimento dos sentimentos de responsabilidade ética59.

A incriminação parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade de consumo

para o rápido desaparecimento dos dispositivos do estado do bem-estar.

Não há salvação sem progresso do consumo, ainda que ele fosse redefinido por novos

critérios; não há esperança de uma vida melhor se não for rediscutida a satisfação completa e

imediata, se nos ativermos apenas ao fetichismo do crescimento das necessidades comercializadas60.

A seguir, no segundo capítulo, trataremos destas questões pelo ângulo do Direito.

57 Ibidem, p. 178.58 Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 179.59 Ibidem, p. 181.60 Lipovetsky, Gilles. A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, tradução Maria LuciaMachado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 20.

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Page 27: A subjetividade como mercadoria

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CAPITULO II - DIREITO & RELAÇÃO DE CONSUMO

A ciência do Direito foi base originária que despertou interesse no estudo do

superendividamento. Necessitávamos compreender melhor porque um sujeito chega a este estado de

insolvência, a ponto de ir ao Judiciário pedir socorro por seus problemas pessoais ou então ser

“vítima” de cobranças judiciais por dívidas não pagas.

O estado desses indivíduos é alarmante. O fato é comum. Esse tipo de demanda parece não

chegar ao fim, ao contrário, a cada dia que passa há um fato novo nos Tribunais para ser julgado.

Desta forma, neste capítulo descreveremos o que o Judiciário vem enfrentando para dar auxílio a um

sujeito superendividado e traremos estudos realizados por pesquisadores sobre o tema.

1 – O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO

O superendividamento do consumidor é, na atualidade, um tema instigante e socialmente

relevante, no que diz respeito à área do Direito que cuida da proteção do consumidor. Trata-se de

um fenômeno social que assola, por fatores diversos, sociedades ocidentais, que se caracterizam

como sociedade de consumo massificado.

O fenômeno é tão antigo quanto o próprio Direito. Desde que o homem começou a fazer

trocas, sempre existiram aqueles que não conseguiam cumprir com o prometido. Diante de tal

situação, o tratamento dispensado a esses devedores viria com o tempo e de uma sociedade para

outra. A definição do fenômeno caracteriza-se pela impossibilidade global do devedor pessoa-física,

consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo.

Os juízes analisam a questão da boa-fé utilizando indicadores para caracterizar se o

consumidor agiu ou não conforme a boa-fé como, por exemplo: o número de empréstimos, o valor, a

destinação, os motivos que os conduziram ao endividamento, o nível intelectual que impede a

ingenuidade e torna inescusável a execução, o perfil sócio-profissional, ou seja, causas externas são

analisadas pelo juiz para analisar a boa-fé. A questão do consumidor superendividado é tratada

como um problema pessoal.

Geraldo de Faria61, para falar do fenômeno, atribui a inadimplência do consumidor a causas

internas e externas. Para questões internas, a Psicanálise poderia nos auxiliar, todavia, quando o

61 Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. Artigo de Geraldo de Faria Martins daCosta: Superendividamento, solidariedade e boa-fé. Estudo sobre direito brasileiro e Superendividamento, p. 248.

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Page 28: A subjetividade como mercadoria

36

autor se refere as causas externas como, por exemplo, os argumentos publicitários, os aparatos do

marketing que impulsionam ao consumo, verá pontos em que a Psicanálise irá discordar, pois irá

ressaltar a questão da responsabilização do sujeito que é de extrema relevância, a alienação do

sujeito ao mercado de consumo que consome sua subjetividade, que o petrifica, necessitando de sua

responsabilização para a separação dessa alienação.

Sabemos que a função do Direito é remediar questões relevantes como os casos de

superendividamento. Com base na boa-fé, observando os indicadores que os levam a se

superendividar, o Direito responde judicialmente à questão apresentada pelo cidadão, que tem

direito de exercer sua cidadania e sua dignidade enquanto pessoa.

Com base na doutrina européia, o superendividamento é classificado como ativo e passivo. O

primeiro ocorre quando o consumidor abusa do crédito e consome demasiadamente, acima das

possibilidades de seu orçamento, ainda que, mesmo em condições normais, não tenha como fazer

face às dívidas assumidas. Já no passivo a causa não é o abuso ou a má administração do orçamento

familiar, mas um “acidente da vida”. Efetivamente, tanto os acidentes da vida – desemprego,

redução de salário, divórcio, doenças, acidentes, mortes, nascimentos de filhos, etc. – e o abuso de

crédito podem criar uma crise de insolvência para os indivíduos e a família, levando à

impossibilidade de fazer frente ao conjunto de seus débitos atuais e futuros, a impossibilidade de

pagamento de boa-fé, o que a doutrina corretamente denominou de superendividado.

O superendividamento é um fato social e com efeitos em políticas econômicas e monetárias.

A necessidade de se lutar contra o superendividamento, esse grave fator de exclusão social, é

reconhecida mundialmente. O tratamento do consumidor superendividado é um imperativo de luta

contra a exclusão social que propicia.

Esse fenômeno não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um

conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade: créditos

hipotecários, carros, móveis, entre outros, inclusive decorrentes do abuso e uso até mesmo incorreto

do cartão de crédito. Somam-se ainda as causas não-econômicas, tais como falta de informação e

educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas, etc.

2 – CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEGISLAÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS

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Page 29: A subjetividade como mercadoria

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Veremos neste item legislações referentes à proteção do consumidor. Na Constituição

Federal temos princípios e normas básicas para a proteção de um sujeito face ao mercado de

consumo e também uma norma que deu embasamento para se criar a lei que disciplina hoje as

relações de consumo: o Código de Defesa do Consumidor. Descreveremos algumas legislações

infraconstitucionais que embasam o tema como: Código Civil, Código de Processo Civil, o próprio

Código de Defesa do Consumidor, a Lei da Usura, Código de Auto-Regulamentação Publicitária e

Jurisprudências.

Com isso, visamos mostrar algumas legislações que o Judiciário se baseia para decidir

questões relacionadas à defesa de consumidores superendividados. Acrescentamos também no

trabalho, pesquisas realizadas por estudiosos do tema.

2.1 – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição é um documento histórico político e ideológico que reflete o andamento e o

pensamento jurídico da humanidade. No Estado Democrático de Direito, é uma lei suprema e um

estatuto jurídico fundamental da comunidade, caracterizando-se pela imperatividade do comando,

que abriga todas as pessoas e entes na sociedade, permitindo o desenvolvimento livre e pleno da

personalidade do cidadão.

No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades, todos os cidadãos estarão

sempre sujeitos às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito

aos direitos e liberdade dos demais.

Diante dos fatores sociais, o Direito aborda a questão da liberdade diante da dignidade da

pessoa humana reconhecido pelo Estado Democrático de Direito, com proteção legal pela

Constituição Federal.

A primeira exigência da civilização é a da justiça, garantia de que uma lei, uma vez citada,

não será violada em favor de um indivíduo. Freud já dizia que a liberdade do indivíduo não constitui

um dom da civilização, ela foi maior antes da existência de qualquer civilização. O desenvolvimento

da civilização impõe restrições à liberdade e a justiça exige que ninguém fuja a essa restrição62.

Grande parte das lutas da humanidade centralizou-se em torno da tarefa única de encontrar

uma acomodação conveniente que traga a felicidade. Mas, segundo Freud é impossível desprezar até

que ponto a civilização é constituída sobre a renúncia à pulsão. Essa “frustração cultural” domina o

62 Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio deJaneiro. Imago Ed., 1997, p. 50.

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Page 30: A subjetividade como mercadoria

38

grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos e é a causa da hostilidade contra

qual toda civilização tem que lutar63.

A dignidade é algo absoluto e pertence a essência, assim já dizia São Tomás de Aquino. É o

reconhecimento no homem de sua própria dignidade, fazendo desprezar eticamente condutas

incompatíveis com tal condição. É a dignidade humana um atributo da pessoa não podendo ser

medida por um único fator, pois nela intervém a combinação de aspecto moral, econômico, sociais e

políticos, entre outros.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana obriga ao inafastável compromisso com o

absoluto e o irrestrito respeito a identidade e a integridade de todo ser humano e serve como

fundamento e princípio informadores que legitimam as manipulações sobre a vida humana,

respeitando em sua autonomia e vulnerabilidade.

Um dos fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. A

dignidade pode ser por diversas maneiras violada, como por exemplo, através da qualidade de vida

desumana. Enquanto ao homem cabe dar sentido a sua própria vida, ao Estado cabe facilitar-lhe o

exercício da liberdade.

Liberdade e dignidade ascendem ao patamar dos direitos fundamentais, pois dizer que a

pessoa humana, como titular de direitos, o direito a dignidade significa que ao ser humano

corresponde a condição de sujeito e não de objeto manipulável.

Entretanto, é necessário observar, que se o direito nos remete à “pessoa humana”, à sua

dignidade, ao cidadão. A contribuição da Psicanálise é trazer para que se considere também neste

quadro, as determinações do inconsciente, que subjaz a ética do desejo capaz de resistir às

imposições , mesmo que dos discursos dominantes.

Dentre os preceitos que regem a Constituição, destacaremos um importante fundamento

Constitucional de amparo ao cidadão que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, ligado aos

direitos e garantias fundamentais, sendo um importante objetivo da Constituição amparar a

sociedade, erradicando a pobreza, a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais,

assuntos extremamente importantes para o trabalho.

Vejamos o artigo 1º da Constituição que se rege por princípios fundamentais:

Artigo 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela uniãoindissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se emEstado Democrático de Direito e tem como fundamento:

63 Ibidem, p. 52.

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Page 31: A subjetividade como mercadoria

39

III – a dignidade da pessoa humana.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é formado por conteúdos, dentre eles os

direitos individuais e políticos, além dos direitos sociais, culturais e econômicos. Em todos os níveis

da vida social, do público ao privado, na atuação do Estado em geral, na economia e na vida

familiar, a dignidade da pessoa humana repete-se como valor fundamental e concretiza-se, dentre

outros aspectos, a assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais64.

Destacamos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por ser inerente à personalidade

humana, pois todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa, daí teremos um contraponto

ao sujeito do desejo na psicanálise.

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente

na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão e o

respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto

jurídico deve assegurar, de modo que, excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício

dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as

pessoas enquanto seres humanos.

Cavalieri65 refere-se à violação da dignidade humana como um dano capaz de ser

indenizável, conforme segue:

Temos hoje o que pode ser chamado de direito subjetivo constitucional àdignidade. Ao assim fazer, a Constituição deu ao dano moral uma novafeição e maior dimensão, porque a dignidade humana nada mais é do que abase de todos os valores morais, a essência de todos os direitospersonalíssimos. O direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, a vidaprivada ou a qualquer outro direito de personalidade estão englobados nodireito à dignidade, verdadeiro fundamento e essência de cada preceitoconstitucional relativo aos direitos da pessoa humana.

O direito da personalidade, ligado diretamente ao cidadão, deve ser compreendido, segundo

Carlos Alberto Bittar66, como os próprios da pessoa em si ou originários, existentes por sua

natureza, como ente humano, com o nascimento e os referentes às suas projeções para o mundo

exterior, a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade.

64 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoahumana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 195.65 Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 243.66 Bittar, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7 Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 10.

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Page 32: A subjetividade como mercadoria

40

O desrespeito a este princípio representa a superação da intolerância, da discriminação, da

exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua

liberdade de ser, pensar e criar.

Na passagem do século XIX para o século XX o homem era idealizado pelo liberalismo, cuja

única necessidade era a liberdade suficiente para assegurar uma vida digna para si próprio e para sua

família, o que não existiu67. Com a lógica aleatória e impessoal do mercado capitalista passou-se a

negar aos indivíduos bens absolutamente fundamentais a despeito da liberdade garantida e do

empenho que se pudesse empregar para obter tais bens.

Barcelos desenvolveu um estudo, no qual nos inspiramos, sobre o Princípio da Dignidade da

Pessoa Humana, em seu livro “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana” e trouxemos ponto importantes para este trabalho.

Para Barcellos68, a dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a

ser assegurado a todas as pessoas apenas por sua existência no mundo. Relaciona-se tanto com a

liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. A sociedade

contemporânea convive em um contingente humano que, embora dispondo de um arsenal de direitos

e garantias assegurados pelo Estado, simplesmente não tem como colher esses frutos da civilização.

A autora destacou a importância dos direitos sociais, dizendo concretizar o Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana na esfera das condições materiais de existência do homem,

demonstrando a necessidade de ser promovida a ação estatal com o intuito de dar assistência aos

desamparados para a garantia da Dignidade da Pessoa Humana. Cabe ao Estado oferecer condições

mínimas para que as pessoas possam se desenvolver e tenham chances reais de assegurar por si

próprias níveis de sobrevivência razoavelmente compatíveis a dignidade humana.

Destacou a igualdade de oportunidades como garantia de aspecto material para a dignidade

da pessoa humana, onde não cabe ao Estado definir a vida e as escolhas dos indivíduos, mas

assegurar que todos partam de condições iniciais mínimas capazes de permitir que cada um alcance

seu voo, independente da autoridade pública69.

O propósito dos direitos da cidadania não é o de promover a igualdade, mas promover a

oportunidade. Não é o de evitar as desigualdades, mas o de evitar a exclusão de um universo de

oportunidades. Os direitos sociais não pretendem substituir os mercados por um padrão de

distribuição comum que defina as recompensas a atribuir a cada um. Ao contrário, visa evitar a

67 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoahumana, 2ª Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 131.68 Ibidem.69 Ibidem, p. 208.

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Page 33: A subjetividade como mercadoria

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exclusão do mercado. O resultado da posição de cada um na sociedade depende de sua ação

individual70.

A nossa Constituição Federal não inaugurou um Estado totalitário ou paternalista que

determine uma igualdade de resultados por todos, fixando e assegurando o padrão de vida final dos

indivíduos independentemente de sua ação pessoal. A assistência social aos desamparados é o

desdobramento da dignidade da pessoa humana, funcionando como uma espécie de rede de

segurança abaixo da qual ninguém teme cair.

Segundo Espada71 é necessário garantir que todos tenham acesso àqueles bens essenciais que

se considera constituírem as condições mínimas para que se possa agir como agente moral, agir

livremente ou fazer uso da liberdade (…) e é verdade que a igualdade de cidadania restringe as áreas

em que os mercados operam ao estabelecer um chão comum abaixo do qual ninguém deverá recear

cair. A cidadania social cria um estatuto comum a todos que não depende dos caprichos do mercado.

No entanto, este estatuto não pretende substituir os mercados por um padrão de distribuição comum

que defina as recompensas a atribuir a cada um. Visa tão só fornecer a todos bilhetes de ingresso no

mercado, ou seja, propõe-se a evitar a exclusão do mercado.

Conforme Barcellos, não se coaduna com a garantia Constitucional da dignidade da pessoa

humana que alguém precise passar fome ou dormir ao relento, seja qual for o motivo ou

circunstância que o levou à tal condição, mesmo que o Estado lhe tenha assegurado, de fato,

condições iniciais de educação e saúde.

Para a autora, a avaliação acerca da necessidade da assistência social aos desamparados

haverá de ser puramente objetiva. Abaixo de um determinado patamar, qualquer pessoa se

encontrará em um estado de indignidade material indiscutível, demandando alguma forma de

assistência. Esse patamar corresponde ao núcleo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que

restará violado se esse limite não for respeitado72.

Assim, a assistência social prestada a quem dela necessitar independe de contribuição. A

Constituição procura vincular ao Estado a finalidade geral de erradicar a pobreza, socorrendo aos

necessitados, de modo a evitar situação de indignidade e miséria total.

70 Ibidem, p. 209.71 Espada, João Carlos, Direitos Sociais e Cidadania, 1999, p. 85-6.72 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoahumana, 2 ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 210.

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Page 34: A subjetividade como mercadoria

42

A Constituição Federal agrega instrumentos específicos para atingir ao fim de que todos,

com o objetivo de evitar o estado de miserabilidade, criem-se condições para o trabalho,

viabilizando um mínimo de bem estar.

A assistência social pretende produzir um efeito no mundo dos fatos que é socorrer os

desamparados como último recurso para garantir condições materiais indispensáveis à dignidade

humana, evitando sua total deterioração.

Desta forma, a Constituição Federal protege o sujeito individualmente e indo além, a nível

social, prezando por uma sociedade justa e solidária, visando erradicar a pobreza, a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais, vide art. 3º, inciso III da Constituição, que também é

um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, visando dar aos cidadãos acesso

digno de subsistência e melhoria da qualidade de vida. Vejamos o que diz o artigo:

Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa doBrasil:III – erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociaise regionais;

A pobreza é um elemento a ser levado em conta para análise do sistema jurídico nacional,

sempre visando encontrar alternativa de suplantá-la. Num mercado constituído de pessoas pobres, a

proteção deve ser bastante ampla. A erradicação da pobreza e a redução das igualdades é um

subprincípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Não é difícil saber o que é pobreza a partir de um determinado ponto. Não haverá dúvida de

que o efeito desejado pelo comando é, ao menos, de que não haja miseráveis, que pessoas não

passem fome, não durmam ao relento, nem sintam frio por falta de agasalho. Estas situações

certamente estão compreendidas no sentido expresso pobreza ainda que, nesse ponto, os meios de

realizar esse fim, já determinado, isto é, as condutas necessárias para atingí-lo possam ser bastante

diversificadas.

É natural que haja diferentes concepções do que significa a dignidade e de como ela pode ser

alcançada, entretanto, se a sociedade não for capaz de reconhecer a partir de que ponto as pessoas se

encontram em uma situação indigna. Isto é, se não houver consenso a respeito do conteúdo mínimo

de dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o Princípio da

dignidade da pessoa humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo sem

significado correspondente. Se não é possível vislumbrar a indignidade em nenhuma situação, ou

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Page 35: A subjetividade como mercadoria

43

todos os indivíduos desfrutam de uma vida digna ou simplesmente não se conhece mais a noção de

dignidade73.

Para Barcellos, um quadro com essa aparência, pouco poderá fazer o Direito por uma

sociedade que tenha deixado de acreditar na igualdade de todo ser humano e em sua dignidade

essencial. Não haverá remédio para esse mal na farmacologia jurídica74.

Outro aspecto importante da Constituição é o Título que trata dos Direitos e Garantias

Fundamentais, direitos esses que nasceram para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela

Constituição, sem, contudo, desconhecer a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de

que se opere dentro dos limites impostos pelo direito. Refere-se ao Princípio da Isonomia, igualdade

de todos. Vide o art. 5º – dos direitos e deveres individuais e coletivos:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País ainviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e àpropriedade, nos seguintes termos:XXXII – O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

O artigo 5º dita um rol de direitos e deveres que são assegurados ao cidadão, mas este artigo

tem como base o Princípio da Isonomia de dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais,

na medida de sua desigualdade. Como dizia Rui Barbosa75: “A democracia não é exatamente o

regime político que se caracteriza pela plena igualdade de todos perante a lei, mas sim pelo

tratamento desigual aos desiguais”. Essa fórmula é muito difícil de ser aplicada, na medida em que a

desigualdade não surge tão facilmente. Entretanto, devem-se seguir todos os esforços possíveis a fim

de obter a igualdade como resultado prático de seu mister.

Nota-se que neste artigo, no inciso XXXII, a Constituição passou a determinar a criação de

uma lei para a proteção do consumidor diante da realidade social. A passagem da sociedade

tradicional para a sociedade de massa, a Revolução Industrial, a globalização, ou seja, com todo esse

processo de crescimento econômico não havia legislação específica para atender às demandas das

questões ligadas ao consumo.

73 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoahumana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 229.74 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoahumana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 229.75 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Forense Universitária, Biblioteca Jurídica, 7 Ed., Revista eAmpliada, 2001. p. 55.

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Page 36: A subjetividade como mercadoria

44

O título do artigo 170 da Constituição Federal abrange o tema da ordem econômica e

financeira e determina:

A ordem econômica, fundada na valoração do trabalho humano e na livreiniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme osditames da justiça social, observados os seguintes princípios:V – defesa do consumidor;

Mais uma vez, ao disciplinar sobre a ordem econômica e social, o legislador a fez

preocupando-se com a nova realidade da relação consumerista. O mercado de consumo aberto à

exploração não pertence ao explorador por mais que se fale em livre iniciativa. Isso decorre das

garantias constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção

de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum, tudo fundado no princípio

máximo da garantia da dignidade da pessoa humana.

Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores

sociais e na cidadania, o que está se pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num

mercado, numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social,

porque da sociedade que se trata.

O artigo 18 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que irá impulsionar o Poder

Legislativo a criar o Código de Defesa do Consumidor, determinou que: “O Congresso Nacional,

dentro de 120 (cento e vinte) dias da promulgação da Constituição, elaborará o Código de Defesa do

Consumidor”.

Apenas em 11 de setembro de 1990 foi elaborada, pelo Poder Legislativo e sancionada pelo

Presidente da República, a Lei n. 8.078, conhecida como o Código de Defesa do Consumidor,

entrando em vigor em 11 de março de 1991. A partir daí, todas as relações que passassem a envolver

consumo necessitariam de se submeter às normas expressas nessa lei.

2.2 – DAS LEGISLAÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS:

Até então, os casos de superendividamento eram tratados com base nas legislações

infraconstitucionais. Silvio Javier Battello76 fez uma análise evolutiva do fato dando título ao seu

trabalho (in)justiça dos endividados brasileiros.

76 apud Marques, Cláudia Lima, Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 211.

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Page 37: A subjetividade como mercadoria

45

O autor descreveu o desenvolvimento histórico do tratamento dado ao endividado civil em

tudo aquilo que seja relevante para o estudo da realidade brasileira. Neste trabalho foi analisado o

tema a partir do Código Civil de 1916, que teve como base a tradição privatista, absolutamente

inadequada para entender a sociedade de massa do século XX. As bases jurídicas existentes estão

ligadas ao liberalismo econômico e às grandes codificações que se iniciaram com o Código de

Napoleão de 1804.

Ainda no século XIX, a insuficiência legislativa brasileira em matéria civil e especificamente

para a insolvência do devedor não comerciante era notória. Ao contrair uma dívida, o devedor

assume para si uma responsabilidade, devidamente respaldada pela potência patrimonial de seus

bens móveis e imóveis. Enquanto o universo patrimonial responder pelas obrigações assumidas, não

há que se falar em insolvência civil. Todavia, ressalte-se que referido patrimônio deve ser

necessariamente, livre de qualquer constrição judicial e não afeto ao instituto da impenhorabilidade.

Nesse passo relevante transcrevemos a lição de Humberto Theodoro Júnior (1998):

... pouco importa, então, a existência de um patrimônio vultoso e até mesmosuperior às dívidas, se os bens que os compõem são impenhoráveis pela suaprópria condição jurídica (Código de Processo Civil, artigo 649). Neste caso,a existência de bens impenhoráveis ou gravados coloca o devedor em estadode insolvabilidade, pois de nada adiantam ao credor quirografário77.

Somente em 1973, com o Código de Processo Civil, os endividados passaram a ter um

tratamento, pelo menos em parte, aos do comerciante, pois se instituiu no Título IV, Livro II, a

“execução por quantia certa contra devedor insolvente”, permitindo, assim a execução de uma

verdadeira falência civil, ficando assim pela primeira vez superado o tratamento discriminatório

dado aos não-comerciantes.

Para o Direito, diversas foram às causas para o superendividamento, uma delas oriundas dos

excessivos juros contratuais. A usura é vício ocorrente em todos os contratos comutativos, sempre

que, pelo rompimento da comutatividade, houver o enriquecimento de uma parte à custa do

empobrecimento da outra.

Neste sentido temos o ensinamento do jurista Orlando Gomes78:

A usura, sob todas as suas formas, está proibida. É o mútuo um dos contratosmais propícios a essa prática, hoje punível. Até certo ponto vigorou oprincípio da liberdade da estipulação dos juros. Os abusos cometidos

77 Theodoro Júnior, Humberto. A Insolvência Civil: Execução por quantia certa contra devedor insolvente. 4ªEd., Rio de Janeiro: Forense, 1998. p 46.78 Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 15ª ed., 1995, p. 321.

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Page 38: A subjetividade como mercadoria

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inspiraram a política legislativa de repressão à usura, através de medidas,dentre as quais se salientam a limitação das taxas dos juros convencionadose a proibição do anatocismo ou capitalização dos juros. Funda-se acondenação à usura no interesse social de proibir que se prevaleça alguémdas circunstâncias fortuitas para tirar proveito anormal. O abuso traz comoconsequência a lesão, que é o prejuízo pecuniário nas relações jurídicas, deuma das partes em proveito da outra parte.

A proteção da lesão está prevista na Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXV: “A lei

não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O Decreto nº. 22.626 de

07.04.33 chamado “Lei da Usura”. É notório que o anatocismo é uma realidade ainda nos dias de

hoje e este fator pode ser gerador de parcela de consumidores superendividados.

O Código Civil de 1916, mesmo entrando em vigor no século XX, obedece às ideias do

século anterior. Os pressupostos do pensamento liberal aparecem no sistema jurídico codificado

como foi estabelecido no Código Civil de 1916. O que destacou, dentre os vários pontos de

influência do liberalismo foi a chamada autonomia da vontade, a liberdade de contratar e fixar

cláusulas, o pacta sunt servanda, etc.

A nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falência de 2005 não tratou do assunto. A

deficiência legislativa para a realidade social brasileira é preocupante.

Entretanto, os operadores do direito têm buscado no Código de Defesa do Consumidor certo

amparo ao hipossuficiente, assim como na doutrina e na jurisprudência. Desta forma, faz-se

necessário compreender o que é este Código e as bases que podem proteger os consumidores

superendividados.

Antes de percorremos as normas do Código de Defesa do Consumidor situaremos como o

direito vem enfrentando o fenômeno em massa do superendividamento.

3 – O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor chegou muito atrasado para a defesa do consumidor.

Passou-se um século inteiro aplicando as relações de consumo o Código Civil, lei que entrou em

vigor em 1917, fundada na tradição do direito civil europeu do século anterior. No entanto, durante

praticamente todo século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para

resolver os problemas de consumo que surgiam e, por isso, o fizemos de forma equivocada.

A partir do período Pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional das

metrópoles, gerou-se aumento das demandas de produtos e, portanto, uma possibilidade de aumento

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Page 39: A subjetividade como mercadoria

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da oferta. A indústria, em geral, passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas.

Passou-se a pensar num modelo capaz de entregar, para um público maior, mais produtos e serviços.

Para isso, criou-se a chamada produção em série, “standartização” da produção, a homogeneização

da produção. Essa produção possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme

da oferta, atingindo, então, uma camada mais larga de pessoas. Este modelo de produção é um

modelo que deu certo, veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX. A partir da

Primeira Guerra Mundial teve um incremento e na Segunda Guerra Mundial se solidificou com a

sociedade de massa.

Nota-se que em 1890, nos EUA, país que domina o planeta do ponto de vista do capitalismo

contemporâneo, a proteção ao consumidor havia começado com a Lei Shermann, que é a Lei

Antitruste Americana, isso há um século antes do nosso Código de Defesa do Consumidor, numa

sociedade que se construía como uma sociedade capitalista de massa, já se tinha uma lei de proteção

ao consumidor.

O Código de proteção ao Consumidor Brasileiro trouxe um regramento de alta proteção ao

consumidor na sociedade capitalista contemporânea, com suas regras específicas contratuais,

direitos básicos do consumidor, a qualidade do produto ou serviço, da prevenção e da reparação dos

danos, da responsabilidade pelo fato ou vício do produto ou serviço, das práticas comerciais, a

oferta, a publicidade, das práticas abusivas, da proteção contratual, dos contratos de adesão, entre

outras.

Suas normas, de ordem pública, isto é, a tutela desses direitos, constituem preceito

obrigatório, de sorte que o juiz deve apreciar de ofício qualquer questão relativa à relação de

consumo, independente do requerimento das partes, ou seja, prevalecerá sobre todas as demais

normas anteriores que com ela colidirem. Tal ocorre em razão do caráter social da norma, alicerçada

a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – a dignidade da pessoa humana.

No Brasil, antes do Código de Defesa do Consumidor, havia um esforço da jurisprudência no

sentido de mitigar o rigor do nosso Código Civil e o apego desconhecido da doutrina a certos

princípios que, diante da sociedade de produção e consumo em massa, gritavam por reforma.

Entretanto, com a sua entrada no ordenamento jurídico, os operadores do direito têm buscado nesta

lei, o amparo ao superendividado, assim como na doutrina e na jurisprudência.

O Código de Defesa do Consumidor iniciou seu artigo definindo os sujeitos da relação

processual – consumidor e fornecedor. Em conformidade ao tema do trabalho superendividamento,

mencionaremos quem é o consumidor direto, mostrando apenas que há uma extensão neste conceito,

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Page 40: A subjetividade como mercadoria

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mas citaremos apenas o descrito no artigo 2: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que

adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.

Para ser consumidor, o Código diz que tem que haver a aquisição do produto ou serviço e o

sujeito deve adquiri-lo como destinatário final. Se quem adquiriu o fez para o ciclo de produção, não

será considerado consumidor. Essa aquisição pode ser onerosa ou gratuita e a utilização estende-se a

quem utiliza e não tenha adquirido.

O Código, quando descreve o consumidor, estende à Pessoa Jurídica, dizendo que esta pode

ser consumidora em determinada situação, entretanto, neste trabalho, a pesquisa não foi estendida

para as Pessoas Jurídicas. Só a título de conhecimento, Pessoa Jurídica pode ser consumidora, desde

que não adquira ou o utilize para seu ciclo de produção. Referindo-se consumidor, Pessoa Jurídica

terá, também, que adquirir, em caráter de destinatária final do bem ou serviço adquirido.

O Código também coloca como consumidor a coletividade de pessoas e as vítimas de

acidente de consumo, mesmo que não possam ser identificadas e desde que tenham de alguma

maneira, participado da relação de consumo. Apenas citamos os artigos 29 e 17 para demonstrar a

extensão que o Código trouxe em seu bojo de quem considera consumidores, vejamos:

Artigo 17 - Para efeito dessa Seção, equiparam-se aos consumidores todas asvítimas do evento.

São aquelas que mesmo não tendo sido ainda consumidoras diretas, foram atingidas peloevento danoso.

Artigo 29 – Para os fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se aosconsumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticasnele previstas.

Deste ponto em diante, descreveremos artigos do Código de Defesa do Consumidor que são

bases para o amparo dos sujeitos superendividados.

No capítulo II, o Código trata da Política Nacional de Relação de Consumo, vejamos o artigo

4:

A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo oatendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade,saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria desua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações deconsumo, atendidos os seguintes princípios:

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Page 41: A subjetividade como mercadoria

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I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado deconsumo;IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aosseus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

Veja que, como Política Nacional das Relações de Consumo, o Código reconhece a

vulnerabilidade do consumidor e a necessidade da educação para um consumo consciente, o direito

de informação para a melhoria da relação entre consumidores e fornecedores.

O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é a primeira medida de realização da

isonomia garantida constitucionalmente. Isto significa que o consumidor é a parte mais fraca da

relação de consumo. Essa fragilidade é real e concreta e decorre de dois aspectos; um de ordem

técnica e outro de cunho econômico. O primeiro aspecto está ligado aos meios de produção, cujo

conhecimento é monopólio do fornecedor. O consumidor não dispõe de controle sobre os bens de

produção e, por conseguinte, deve se submeter ao poder dos titulares destes. É o fornecedor que

escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo

que é produzido. A escolha do consumidor já nasce reduzida. O consumidor só pode optar por

aquilo que existe e foi oferecido no mercado. A oferta é decidida unilateralmente pelo fornecedor,

visando seus interesses empresariais, que são, por evidente, a obtenção de lucro. E o segundo

aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor

tem em relação ao consumidor. É fato que há consumidores com boa capacidade econômica, às

vezes até superior a pequenos fornecedores. Com o reconhecimento da vulnerabilidade, o Código

visa colocar em pé de igualdade consumidor e fornecedor.

É exatamente por isso que, dentre os direitos básicos do consumidor, está a facilitação de seu

acesso aos instrumentos de defesa, notadamente no âmbito coletivo, com o estabelecimento da

responsabilidade objetiva, aliada a inversão do ônus da prova. Tudo isso é para dar igualdade de

tratamento e equilíbrio às partes.

E como instrumento de ação, o artigo 5º dita, em seus incisos, formas de acesso do

consumidor à proteção de seus direitos. O Poder Público, visando dar cabal cumprimento à Política

Nacional das Relações de Consumo, estabelece os seguintes instrumentos:

Artigo 5º – Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo,contará o Poder Público com os seguintes instrumentos, entre outros:I – manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidorcarente;

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II – instituição de Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, noâmbito do Ministério Público;III – criação de delegacia de Polícia especializada no atendimento, deconsumidores vítimas de infrações penais de consumo;IV – criação de Juizado Especial de Pequenas Causas e Varas Especializadaspara a solução de litígio de consumo;V – concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações deDefesa do Consumidor;

Trata-se de uma “filosofia de defesa do consumidor” 79 que se funda, basicamente, em uma

diretriz que tem como alvo as boas relações de consumo. Tais instrumentos não são exclusivos uns

com os demais, mas alternativos, encarados como um leque de opções, que o consumidor deve

sempre ter em mãos e escolher o que esteja mais adequado com sua necessidade e em decorrência de

um impasse verificado em dada relação de consumo.

No caso da “assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor carente” funda-se no

mandamento Constitucional, previsto no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República,

segundo o qual “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem

insuficiência de recurso”.

E como Direito Básico do Consumidor, o artigo 6º elenca um rol de direitos. O legislador

procura proteger os mais fracos contra os mais poderosos. Hoje em dia é direito do consumidor: a

saúde, a segurança, o direito de defender-se contra publicidade enganosa e abusiva, o direito de

exigir as quantidades e qualidades prometidas e pactuadas; o direito de informação sobre produtos e

serviços e suas características; sobre o conteúdo dos contratos e a respeito do meio de proteção e

defesa; direito à liberdade de escolha e a igualdade de contratação; direito de intervir na fixação do

conteúdo do contrato; direito de não se submeter às cláusulas abusivas; o direito de reclamar

judicialmente pelo descumprimento ou cumprimento parcial ou defeituoso dos contratos; o direito a

indenização pelos danos e prejuízos sofridos, etc. Veja o que determina o artigo 6:

São direitos básicos do consumidor:I – a proteção à vida, saúde e segurança contra os riscos provocados porpráticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ounocivos;II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos eserviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

79 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Forense Universitária Biblioteca Jurídica, 7 Ed. 2001, p. 93.

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Page 43: A subjetividade como mercadoria

51

III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,com especificação correta de quantidade, características, composição,qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodoscomerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulasabusivas ou impostas no fornecimento de produto e serviço;V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestaçõesdesproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que astornem excessivamente onerosos;VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,individuais e coletivo e difusos;VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vista àprevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais,coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnicaaos necessitados;VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão doônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, forverossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regrasordinárias de experiência;IX – vetado;X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;

Este artigo está em consonância com a intangibilidade da dignidade da pessoa humana. Com

as condições expostas neste artigo, o consumidor passa a poder exercer um direito maior do que o

imposto pelo fornecedor, visando, desta forma, o equilíbrio dessa relação.

Passaremos agora a descrever sobre a responsabilidade objetiva, que trouxe maior

responsabilidade ao fornecedor face à Teoria do Risco de seu empreendimento.

O Código Civil de 1916 era essencialmente subjetivista, pois todo seu sistema estava

fundado na cláusula geral do artigo 159 – culpa provada. A ideia de culpa está visceralmente ligada

à responsabilidade, por isso que, de regra, ninguém pode merecer censura ou juízo de reprovação

sem que tenha faltado com o dever de cautela em seu agir. Daí ser a culpa, de acordo com a teoria

clássica, o principal pressuposto da responsabilidade civil subjetiva. Neste caso, a vítima só teria

reparação se provasse a culpa do agente, o que nem sempre é possível na sociedade moderna.

A abolição do elemento subjetivo da culpa na aferição da responsabilidade não significa

exclusão dos demais pressupostos, a saber: dano, defeito do produto, bem como a relação de

causalidade entre ambos. Juntamente com a responsabilidade objetiva está o pressuposto da boa-fé

objetiva, pois as partes devem ter uma conduta adequada, correta, leal e honesta nas relações sociais.

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Page 44: A subjetividade como mercadoria

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A boa-fé representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social.

As partes devem agir com lealdade e confiança recíproca.

A boa-fé é necessária e essencial na relação consumerista, enfocando a subjetiva para

expressar sinônimo de sinceridade, de franqueza e mais largamente de lealdade, opondo-se a má-fé,

ao dolo, ao embuste ou a fraude. Por outro lado, no aspecto objetivo, pode-se fazer dela o

fundamento geral de um dever de assistência, de colaboração, de cooperação, de ajuda mútua.

Aplica-se na relação de consumo a responsabilidade objetiva, conforme se percebe no artigo

12 e 14:

Artigo 12 – O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro eo importador respondem, independente da existência de culpa, pelareparação dos danos causados aos consumidores por defeito decorrente deprojeto, fabricação, construção, montagem, formulas, manipulação,apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como porinformações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.Artigo 14 – O fornecedor de serviço responde, independente da existência deculpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitosrelativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientesou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Independente da existência de culpa, haverá obrigação de reparar o dano quando observado o

nexo de causalidade entre o fato e o dano, aplicando a responsabilidade objetiva.

3.1 - DAS PRÁTICAS COMERCIAIS: DA OFERTA E DA PUBLICIDADE

A Constituição Federal, no capítulo da comunicação social (inciso II do § 3º do artigo 220),

referiu-se à publicidade de produtos e serviços e suas práticas. Essa garantia é um verdadeiro

corolário da norma prevista no artigo 5º, inciso IX, que consagra a liberdade de expressão da

atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou

licença. O que se pretende proteger é o meio pelo qual o direito individual constitucionalmente

garantido será difundido, por intermédio dos meios de comunicação de massa. Vejamos:

Artigo 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e ainformação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquerrestrição, observado o disposto nesta Constituição.§ 3º – Compete à Lei Federal:Inciso II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família apossibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e

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televisão que contrariem o disposto no artigo 221 bem como da propagandade produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meioambiente.

Outro ponto que merece destaque é a oferta lançada no mercado de consumo. Dentre as

várias características desse modelo, o que mais se destaca é o fato de o produtor pensar e decidir

fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de

pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto e, depois, produzi-lo em série.

Esse modelo de produção industrial pressupõe planejamento estratégico unilateral do

fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador de serviços, etc. Esse planejamento tinha que

vir acompanhado de um modelo contratual. Assim, já no começo do século XX, o contrato era

planejado da mesma forma que a produção.

No direito privado há um convite à oferta; no direito do consumidor, a oferta vincula o

ofertante que fica obrigado a cumpri-la, ou seja, toda oferta relativa a produto e/ou serviço vincula o

fornecedor ofertante, obrigando o fornecimento do que oferecer.

A fase pré-contratual, não obstante o compromisso com ânimo definitivo, pode produzir

efeitos jurídicos quando se discute futura relação jurídica. Assim, a fragilidade do consumidor

manifesta-se com maior destaque em três momentos principais de sua existência no mercado: antes,

durante e após a contratação. Toda a vulnerabilidade do consumidor decorre direta ou indiretamente

do empreendimento contratual e toda proteção é ofertada na direção do contrato.

Vejamos o artigo 30:

Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada porqualquer forma ou meio de comunicação com relação a produto e serviçosoferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer, veicular ou delase utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

A oferta deve ter informação clara e precisa, quanto mais for evidente melhor o consumidor

exerce a sua livre escolha. Vejamos o artigo abaixo:

Artigo 31 – A oferta e apresentação de produtos ou serviços devemassegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em linguagemportuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição,preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem comosobre os riscos que apresentam à saúde e à segurança dos consumidores.

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Em caso de descumprimento da oferta, o consumidor pode exigi-la por meio de execução

específica, forçada da obrigação de fazer, conforme artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor:

Artigo 35 – Se o fornecedor de produto ou serviço recusar o cumprimento àoferta, a apresentação ou publicidade, o consumidor poderá,alternativamente e à sua livre escolha;I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta,apresentação ou publicidade;II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmenteantecipada, monetariamente atualizada e a perdas e danos;

O artigo 36 e 37 o Código de Defesa do Consumidor regulamentou sobre as propagandas,

inclusive expondo o que é uma propaganda enganosa e abusiva.

Artigo 36 – A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor,fácil e imediatamente, a identifique como tal.Artigo 37 – É proibida toda publicidade enganosa e abusiva:§ 1º – É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação decaráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outromodo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor arespeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,origem e preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.§ 2º – É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquernatureza, a que incite a violência, explore o medo ou a superstição, seaproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeitevalores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a secomportar de forma prejudicial ou perigosa à saúde ou segurança.

Ato contínuo, o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária é que declara que

seus preceitos têm de ser respeitados por todos que estiverem envolvidos na atividade publicitária,

tais como anunciantes, agência de publicidade, o veículo de divulgação, o publicitário, o jornalista e

qualquer outro profissional de comunicação envolvido no processo publicitário. Abaixo, seguem

alguns artigos que disciplinam uma publicidade, constantes deste Código regulamentador:

Artigo 1º – Todo anúncio deve ser respeitador e conformar-se às leis do país;deve, ainda, ser honesto e verdadeiro.Artigo 2º – Todo anúncio deve ser preparado com o devido senso deresponsabilidade social, evitando acentuar, de forma depreciativa,diferenciações sociais decorrentes do maior ou menor poder aquisitivo dosgrupos a que se destina ou que possa eventualmente atingir.

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55

Artigo 3º – Todo anúncio deve ter presente a responsabilidade doAnunciante, da Agência de Publicidade e do Veículo de Divulgação junto aoConsumidor.Artigo 4º – Todo anúncio deve respeitar os princípios de leal concorrência,geralmente aceitos no mundo dos negócios.Artigo 5º – Nenhum anúncio deve denegrir a atividade publicitária oudesmerecer a confiança do público nos serviços que a publicidade presta àeconomia como um todo e ao público em particular.Artigo 6º – Toda publicidade deve estar em consonância com os objetivos dodesenvolvimento econômico, da educação e da cultura nacionais.Artigo 7º – De vez que a publicidade exerce forte influência de ordemcultural sobre grandes massas da população, este Código recomenda que osanúncios sejam criados e produzidos por Agências e Profissionais sediadosno país – salvo impossibilidade devidamente comprovada e, ainda, que todapublicidade seja agenciada por empresa aqui estabelecida.Artigo 8º – O principal objetivo deste Código é a regulamentação dasnormas éticas aplicáveis à publicidade e propaganda, assim entendidas comoatividades destinadas a estimular o consumo de bens e serviços, bem comopromover instituições, conceitos ou ideias.

Diante das condições legais para oferta, publicidade e propaganda de produto e serviço são

notórias o forte propósito alienatório com objetivo, condicionando o consumidor a adquirir, ter para

ser, sem ao menos despertar a este a sua responsabilidade na aquisição e uma educação para um

consumo consciente. O marketing é um fator de manipulação, ainda mais quando estamos diante de

sujeitos alienados.

Aquele que cede às demandas do mercado esquece de tal maneira o desejo que muitas vezes

acaba precisando de um analista para se separar dessa demanda. Como a publicidade não consegue

vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma dos prazeres: tome esse

refrigerante (recentemente uma empresa de refrigerante divulgou “tome felicidade”), vestir esse

tênis, usar essa camisa, comprar esse carro, “com isso você chega lá”, vá adquirindo ...

A Revista Le Monde80 destacou em sua reportagem, dois objetivos básicos da publicidade:

informar que determinado produto ou serviço existe com tais e tais qualidades e convencer o virtual

consumidor a adquiri-lo. O segundo é o mais importante e é nele que especialistas de marketing

queimam as pestanas. Mas vale notar que o primeiro, não raramente limita-se à mera informação de

que um produto existe, pois nada se diz respeito às suas qualidades.

80 Le Monde Diplomatique Brasil, Dezembro de 2008. Consumismo Infantil. Pesquisa realizada por Yves de LaTaille, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, p. 4.

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56

Pode-se esperar de um adulto que se tenha recurso intelectual e afetivo para resistir à

sedução publicitária, notadamente quando essas fogem totalmente a qualquer verossimilhança com a

vida real? Mas qual será o poder de resistência de um adulto a demanda?

Há, de certa forma, carência de critérios próprios para avaliar se cada objeto corresponde ao

que realmente se deseja; as vontades costumam ser fugazes e, logo, facilmente dirigidas por

especialistas em sedução. Aquilo que é intensamente querido num dado momento logo cai no

esquecimento trocando por outra coisa eleita como alvo prioritário do desejo momentâneo.

Na verdade, existe um verdadeiro exército simbólico que adentra as defesas psíquicas no

intuito de convencê-las a comprar isso ou aquilo. A educação para o consumo deveria ser

primordial. Preparar os consumidores para serem conscientes e mostrar sua responsabilidade na

aquisição. Fazer paulatinamente com que os sujeitos compreendam as relações de consumo, trabalho

e economia, para terem real consciência do valor das mercadorias e, também, para terem consciência

dos graves problemas de distribuição de renda, que dão o luxo a poucos e o lixo a muitos.

Mesmo diante de preceitos legais, o consumidor é atropelado por condicionamentos

irracionais, pois o objetivo maior sempre será o crescimento econômico.

3.2 - DAS PRÁTICAS ABUSIVAS

A lei apresentou um rol de condutas que é exemplificativo por apresentarem uma série de

ações, condutas ou cláusulas contratuais que violem direitos do consumidor. Essas práticas estão

expostas no artigo 39:

É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento deoutro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida desuas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos ecostumes;III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquerproduto, ou fornecer qualquer serviço;IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vistasua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seusprodutos ou serviços;V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;VI – executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorizaçãoexpressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anterioresentre as partes;

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VII – repassar informação depreciativa referente a ato praticado peloconsumidor no exercício de seus direitos;VIII – colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço emdesacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, senormas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de NormasTécnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional deMetrologia, Normalização e Qualidade Industrial – CONMETRO;IX – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação oudeixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério;X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;XI– aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal oucontratualmente estabelecido; inciso XI com redação dada pela MedidaProvisória nº. 1.890-63, de 29 de junho de 1999.XII – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação oudeixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério.

As práticas acima expostas são diariamente realizadas por empresas, daí a norma vir para

proteção do consumidor que fica a mercê das práticas comerciais. Essas práticas fazem com que

consumidores sejam expostos diariamente e, em contrapartida, não há uma educação para o

consumo capaz de esclarecer, informar e educar para um consumo consciente.

3.3 - DA PROTEÇÃO CONTRATUAL

Os contratos de adesão, em particular, podem se tornar instrumentos eficazes nas mãos de

senhores feudais todo poderosos da indústria e do comércio, permitindo-lhes impor sua própria nova

ordem feudal e subjugando um grande número de vassalos.

O Instituto clássico de contenção dos abusos, criados pelo princípio da autonomia da vontade

não amparavam, em absoluto, o consumidor. Na fase da sociedade pessoal, antes do surgimento da

sociedade de consumo, na medida em que, de regra, só uma pequena parcela da população detinha

os meios de produção, é evidente que só uns poucos, de fato, contratavam repetidamente. E, para

esta minoria, os instrumentos tradicionais se mostravam eficazes, mesmo que não fossem para

impedir, mas ao menos para reparar os vícios da liberdade contratual.

A liberdade contratual, realmente deu azo a inúmeros abusos relacionados com o

discernimento do contratante débil, ora eram percalços oriundos da liberdade plena de um dos

contratantes e da ausência de liberdade de outro. Tudo a provocar discrepância entre a vontade real e

a vontade declarada do consumidor.

Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro,

bancário, a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e

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distribui milhões de vezes. Esse padrão passa a ser o modelo contratual que supõe que aquele que

produz um produto ou um serviço de massa, planeja um contrato de massa que veio a ser chamado

na Lei n. 8.078 de contrato de adesão, que, no Código, passou a ser regulado no artigo 54. Ele é de

adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir, ele não discute

cláusula nenhuma.

Com o aparecimento da sociedade de massa os partícipes no mercado se multiplicaram e os

contratos explodiram em quantidade. Na sociedade moderna o contrato deixou de ser um privilégio

da minoria e incorporou-se ao dia a dia do cidadão comum, em especial do consumidor.

Os contratos configuram verdadeiros negócios jurídicos, pois dependem do querer humano e

o consenso de vontade das partes, mas os efeitos a serem por ele produzidos serão aqueles eleitos

por quem o pratica.

O elemento básico que caracterizará a concepção tradicional do contrato, até os nossos dias,

é a vontade livre do indivíduo, definida, criando direitos e obrigações protegidos e reconhecidos

pelo Direito, daí dizer que está ligada a autonomia da vontade e ao seu reflexo da liberdade de

contratar, para enfim, tornar-se este vinculante e obrigatório. Somente a vontade livre e real isenta

de vícios ou defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigação e de direitos.

Assim, a função da ciência do Direito será a de proteger a vontade criadora e de assegurar a

realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes.

A Lei n. 8.078 rompe com o princípio do pacta sunt servanda ao reconhecer que, em matéria

de relação de consumo, vige a regra da oferta que vincula e os contratos são elaborados

unilateralmente ou nem sequer são apresentados. Vejamos o que falam os artigos da proteção

contratual:

Artigo 46 – Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarãoos consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomarconhecimento prévio de seu conteúdo ou se os respectivos instrumentosforem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido ealcance.Art. 47 – As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira maisfavorável ao consumidor.Art. 48 – As declarações de vontade constantes de escritos particulares,recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam ofornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do artigo 84e parágrafos.

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Diante das práticas abusivas geradas na contratação, o Código de Defesa do Consumidor

reconhece as cláusulas abusivas eivadas de nulidades absolutas de pleno direito, fundadas no seu

artigo 1º que estabelece que as normas que regulam as relações de consumo são de ordem pública e

interesse social. Vejamos o rol do artigo 51.

São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas aofornecimento de produtos e serviços que:I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedorpor vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquemrenúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre ofornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá serlimitada, em situações justificáveis;II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, noscasos previstos neste Código;III – transfiram responsabilidades a terceiros;IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem oconsumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;V – (Vetado.);VI – estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem;VIII – imponham representante para concluir ou realizar outro negóciojurídico pelo consumidor;IX – deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, emboraobrigando o consumidor;X – permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço demaneira unilateral;XI – autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem queigual direito seja conferido ao consumidor;XII – obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de suaobrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;XIII – autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou aqualidade do contrato, após sua celebração;XIV – infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.XVI – possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitoriasnecessárias.§ 1º – Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;II – restrinjam direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza docontrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;

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III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-sea natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outrascircunstâncias peculiares ao caso.§ 2º – A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato,exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrerônus excessivo a qualquer das partes.§ 3º – (Vetado.)§ 4º – É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o representerequerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para serdeclarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto nesteCódigo ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos eobrigações das partes.

Por serem nulas de pleno direito, há uma prerrogativa do consumidor de requerer em juízo

sua exclusão em alguns casos específicos.

O que se vê comumente é a aplicação de cláusulas nulas de pleno direito nos contratos de

adesão e o pior, muitos consumidores são “vítimas”, pois são facilmente seduzidos, passando a se

comprometerem com o que ali fica estipulado, sendo condicionado a uma obrigatoriedade do

cumprimento do contrato até seu termo final, mesmo que esteja eivado de vício de consentimento e

de informação.

3.4 - DO CONTRATO DE ADESÃO E DE CRÉDITO

Nos contratos de consumo, uma característica peculiar é a adesão. Não significa

manifestação de vontade ou decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas

contratuais. Neste tipo de contrato não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt

servanda. Não há acerto prévio entre as partes, discussão de cláusulas e redação de comum acordo.

O artigo 54 disciplina sobre os Contratos de Adesão:

Artigo 54 – Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sidoaprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelofornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir oumodificar substancialmente seu conteúdo.§ 1º – A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza deadesão do contrato.§ 2º – Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde quealternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no §2º do artigo anterior.

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§ 3º – Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros ecom caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensãopelo consumidor.§ 4º – As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidordeverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácilcompreensão.§ 5º – (Vetado.)

O crédito vem sendo considerado pelos autores do Direito como o vilão do

superendividamento, sendo o responsável pelos crescentes casos que surgem a cada dia. No começo

do século XX, os Estados Unidos partiram vagarosamente no caminho para o superendividamento,

por meio do crédito de venda parcelada. Da mesma maneira a Europa começou a passar pelo mesmo

problema. Os consumidores ficaram amplamente entregues aos seus próprios dispositivos na escolha

do quantum de seus débitos.

Nos primeiros vinte e cinco anos do século XX, uma revisão das leis da Usura e o

crescimento da venda de mercadorias parceladas aos consumidores fizeram do crédito ao

consumidor um conceito aceitável economicamente e socialmente nos Estados Unidos da América.

Na Europa, as restrições diminuíram a onda de empréstimos ao consumidor, que crescia nos Estados

Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.

A economia americana cedo compreendeu os efeitos positivos do crédito aos consumidores

no plano macroeconômico, pelo que baseou grande parte de seu crescimento na expansão do crédito

a particulares. Os Estados Unidos se tornaram uma grande potência mundial, no século XX, por

causa de sua sociedade de consumo, ou seja, de uma sociedade caracterizada pela aquisição e

utilização individuais de bens produzidos em massa.

O crédito é uma operação que permite a uma pessoa obter imediatamente uma prestação que

será paga mais tarde. Pode ser objeto dessa prestação uma soma em dinheiro, uma coisa ou um

serviço. Pouco importa que a prestação seja obtida por meio de um empréstimo, de uma venda, de

uma locação ou de um outro contrato. O que é essencial, o que distingue a operação de crédito de

uma operação à vista é o fracionamento no tempo. O fornecedor do crédito aceita esperar, um certo

tempo, para exigir o pagamento de seu credor.

A incitação ao crédito e ao superendividamento caracteriza a sociedade de consumo atual em

todos os sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica a internacionalidade dos problemas

daí decorrentes. Trata-se de um sistema que foi se impondo a tal ponto que, quem não pode ter

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acesso a ele, encontra-se praticamente impossibilitado ou, pelo menos, com sérias dificuldades para

melhorar seu conforto e desfrutar de bens e serviços cada vez mais generalizados.

A abertura do mercado de crédito ao consumidor introduziu um frenesi de competição entre

os fornecedores deste produto altamente rentável. A intensa pressão competitiva forçou as empresas

a fazer propaganda da estrutura de seus produtos para tirar vantagem – consciente ou inconsciente –

das poderosas forças competitivas, da parcialidade psicológica e da fraqueza de seus consumidores.

Para isto, há uma necessidade em conhecer o desejo dos consumidores ativos e como aliciá-

los, tornando-os fiéis aos produtos e serviços colocados no mercado de consumo. O consumo atual

preenche uma dupla função do ponto de vista da visão capitalista: satisfação de necessidades e

realização de desejos. Então, a publicidade passou a ser a aliada nesse crescimento econômico por

operar com o “desejo” do sujeito, na incitação ao consumo desenfreado. A fidelidade aos seus

produtos para que a venda não cesse de aumentar não mede a subjetividade do sujeito. O que

importa para esse imperativo capitalista é vender, sem medir os fins que possa levar ao sujeito.

Deve-se, contudo, destacar a importância do crédito ao consumo e os seus efeitos positivos,

pois permitem uma melhora no nível de vida da população, além de impulsionar o desenvolvimento

da atividade industrial.

Neste contexto, o crédito aos consumidores é apresentado como contribuição para a

realização pessoal, expressa simbolicamente por um nível de vida melhorado. Simultaneamente,

permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de participação social,

distinta do sistema eleitoral e político.

O crédito passou a ser uma constante no primeiro ciclo de vida das famílias, quando estas

precedem à aquisição de equipamento indispensável à sua autonomia familiar e econômica, como

casa, automóvel, eletrodoméstico, mobiliário, computador. A aquisição de bens através do recurso

do crédito é o resultado de uma expansão e densificação das necessidades e das práticas de

consumo.

Claudia Lima Marques considera como a causa do superendividamento a facilitação ao

crédito. Frisa um fato que é realmente passível de acontecer: são os tão comuns casos dos riscos de

sobrevir um acontecimento da vida do devedor que o impeça de continuar a cumprir os seus

compromissos financeiros. Esse é o risco da expansão desse crescimento econômico e a facilitação

do crédito.

Se há diferença social é necessário atentar para um tratamento de forma humanizada,

atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana. Consumidores são hipossuficientes e

vulneráveis de conhecimentos sobre a vastidão de produtos, serviços e contratação, necessitando de

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uma proteção legal. O marketing deve ser consciente. A Política Nacional das Relações de consumo

devem massificar trabalhos em prol de uma educação para um consumo consciente.

4 – ENTENDIMENTO SOBRE O SUPERENDIVIDADO

Os artigos citados até agora estão diretamente ligados ao consumidor superendividados, ou

seja, para sua proteção nas práticas de consumo. Agora vamos ver como vem sendo dado o

tratamento aos superendividados, que buscam no Judiciário um caminho para voltar a exercer sua

cidadania e dignidade.

Para atender a demanda dos superendividados, o dever de cooperação visa evitar ruína nos

contratos cativos de longa duração, o que vale é a renegociação e atuação cooperativa nos

agravantes casos de inadimplência. A imposição do princípio da boa-fé objetiva às relações de

crédito com consumidores, leva à existência de um dever de cooperação dos fornecedores para

evitar a ruína dos consumidores.

No direito brasileiro, em face do Código de Defesa do Consumidor, parece ser possível

considerar a existência do dever de renegociação a favor do consumidor, pois tanto o artigo 6º,

inciso V, menciona o direito do consumidor de pedir a modificação do contrato em caso de

onerosidade excessiva, quanto os artigos 52 e 53 mencionam o direito à informação, ao pagamento

antecipado e à devolução das quantias pagas.

Logo, dizem Marques e Cavallazzi 81, parece possível também no Brasil requerer a

antecipação dessa modificação e a cooperação do parceiro-fornecedor (dever de renegociação) para

a readaptação do contrato (princípio da boa-fé do artigo 4º, inciso III do CDC) e a sua manutenção

(artigo 51, § 2º do CDC).

Marques e Cavallazzi fizeram uma comparação com a doutrina alemã sobre o direito geral de

denúncia dos contratos cativos de longa duração que levam a parte mais fraca à ruína. Semelhante

direito poderia efetivamente ser extraído no ordenamento jurídico brasileiro com base nos artigos 6º,

inciso V e 53 do CDC, de forma a evitar a morte do consumidor e resolver, mesmo que de forma

indireta, os muitos problemas do superendividamento no país.

O direito de rescindir o contrato, mesmo inadimplente, é excepcional e só pode ser

concedido à parte mais fraca, o consumidor, como se retira dos artigos 54, § 2º, 51, inciso XI e § 2º,

52, § 2º, 53 e 6º, inciso V do CDC.

81 Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 269.

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Concluíram Marques e Cavallazzi que, se o consumidor no sistema do Código de Defesa do

Consumidor tem direito material à devolução razoável da parcelas pagas (artigo 53); tem direito de

escolher continuar a relação ou rescindí-la (artigo 54, § 2º, 51, inciso XI), tem o direito de requerer

ao juiz que modifique as cláusulas excessivamente onerosas por fatos supervenientes (artigo 6º,

inciso V) e o sistema determina a continuação dos contratos (artigo 51, § 2º), logo parece que o

consumidor tem o direito de propor a ação de rescisão e restituição das importâncias pagas, mesmo

que inadimplente ou em mora.

5 – JURISPRUDÊNCIAS

A jurisprudência do STJ tem sido sensível às causas de consumidores superendividados,

mesmo que já em estado de inadimplência, conseguem rescindir os contratos cativos de longa

duração, de forma a evitar sua ruína ou um superendividamento definitivo. Assim, desenvolveu-se

toda uma jurisprudência sobre o controle de dívidas novadas, pagas e confessadas, depois de

sumulada.

A Súmula 286 do STJ afirma: “A renegociação do contrato bancário ou a confissão de dívida

não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”. A

Súmula 300 do STJ trata do tema e toma posição contrária aos interesses dos consumidores: “O

instrumento de confissão de dívida, ainda que originário de contrato de abertura de crédito, constitui

título executivo extrajudicial”.

A jurisprudência brasileira está consciente, ainda mais depois da entrada em vigor do Código

Civil de 2002, da função social dos contratos de consumo e da necessidade de tratar diferentemente

os contratos cativos de longa duração, como os de crédito e financiamento visando a aquisição de

produtos e serviços de consumo.

Frisou também a teoria do adimplemento substancial que reforça a ideia de que cabe apenas

ao consumidor rescindir o contrato ou mantê-lo e que a melhor conduta do fornecedor é renegociar

seus termos ou cooperar para que o consumidor possa adimpli-lo82. A ideia principal é possibilitar a

purga da mora pelo consumidor, isto é, que de inadimplente torne-se ele, com cooperação e boa-fé

do fornecedor, adimplente.

82 Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 274.

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Quanto ao concurso de credores previsto nos artigos 711 a 713 do CPC/1973, tal hierarquia

de credores tem como fim facilitar que os credores sejam pagos e não que o devedor, pessoa física,

alcance condição de pagar, assim como privilegia as garantias. Veja o que diz os referidos artigos,

localizados no Código de Processo Civil na Seção II, que trata do pagamento ao credor:

Artigo 711 – Concorrendo vários credores, o dinheiro ser-lhe-á distribuído eentregue consoante a ordem das respectivas prelações; não havendo títulolegal à preferência, receberá em primeiro lugar o credor que promoveu aexecução, cabendo aos demais concorrentes direito sobre a importânciarestante, observada a anterioridade de casa penhora.Artigo 713 – Findo o debate, o juiz proferirá a sentença.

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro realmente impõe a transparência (artigo 4º,

caput), o princípio da boa-fé objetiva (artigo 4, inciso III) e a ativa proteção do consumidor com

base na boa-fé de condutas (artigo 51, inciso IV e § 1º) e na interpretação dos contratos conforme a

confiança despertada (artigo 30, 34, 35, 47 e 48 do CDC).

Da mesma forma, o novo Código Civil cria deveres com base na boa-fé (artigo 422), impõe

limites (artigo 187) e uma interpretação guiada por essa boa-fé objetiva (artigo 113).

Artigo 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão docontrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, aoexercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fimeconômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.Artigo 113 – Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Indiscutível que a boa-fé, a do Código de Defesa do Consumidor e a do Código Civil de

2002, aplica-se aos contratos de financiamento de cartão de crédito, de pagamento parcelado com

crédito anexo e de crédito ao consumidor.

Em matéria de financiamento e crédito ao consumidor, a informação faz parte da

transparência mínima. Toda informação deve ser fornecida ao consumidor de forma completa e

clara antes da celebração do contrato, de modo que lhe permita prévia análise antes de se obrigar. E

continua, assim terá condições de determinar o custo do crédito, comparar as vantagens e

desvantagens em relação ao pagamento à vista ou em relação ao custo de outros financiamentos

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oferecidos no mercado83. No entanto, usam-se as condições de pagamento como forma de atrair

novos clientes num ambiente competitivo, bem como para desenvolver uma relação comercial de

longo prazo com os atuais clientes. Estão obrigados não somente a informar como também a

aconselhar o consumidor, evitando que assuma um crédito que não terá condições de pagar.

Hoje a primeira opção para evitar a ruína do parceiro contratual de boa-fé que sofre um

acidente da vida seria permitir a rescisão ou o fim do vínculo a favor do inadimplemento mais

vulnerável. Assim, dizem Marques e Cavallazzi, beneficiamos o inadimplente consumidor pessoa

física, evitando que aquela dívida se torne uma dívida impagável, dívidas de escravidão, evitando

assim o superendividamento.

O artigo 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor prevê a nulidade absoluta das

cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor

em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”. A boa-fé objetiva

é um parâmetro objetivo e genérico geral de atuação do homem médio, do bom pai de família que

agira de maneira normal e razoável naquela situação analisada. O julgador valora a atuação,

decidindo se está ultrapassando ou não a razoabilidade, os limites impostos por esta boa-fé objetiva

qualificada, que é a de consumo.

Há uma função de correção e de adaptação em caso de mudança das circunstâncias, a

permitir que o julgador adapte e modifique os conteúdos do contrato para que o vínculo permaneça

apesar da quebra da base objetiva do negócio 84.

Outro ponto de relevância para Marques e Cavallazzi85, em caso de prevenção é a

informação detalhada ao consumidor, oriunda de um dever de boa-fé das partes contratantes, de

informar e esclarecer o leigo sobre os riscos do crédito e o comprometimento futuro de sua renda.

No artigo 52 do CDC, o fornecedor deverá informar prévia e adequadamente o consumidor

sobre todos os elementos do contrato de crédito antes de concluí-lo, em especial o preço, as

condições, montante de juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações bem como a

soma total a pagar com ou sem financiamento.

6 – ESTUDOS NA ÁREA DO DIREITO

83 Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 198.84 Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 281.85 Ibidem, p. 286.

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Neste item do trabalho foi colocada a descrição do fenômeno por alguns autores. Isso nos

mostrará como os estudiosos vêm se posicionando frente ao fenômeno.

Iniciaremos por Catarina Frade e Sara Magalhães86 e o desenvolvimento de sua pesquisa no

livro “Direito do consumidor superendividado”, onde abordaram o Sobreendividamento, a outra face

do crédito, com estudo de direito comparado.

As autoras consideraram que o consumo atual preenche uma dupla função: satisfação de

necessidades e realização de desejos. Apontaram que o crédito aos consumidores contribui para a

realização pessoal e expressa, simbolicamente, um nível de vida melhorado. Simultaneamente, a

concessão do crédito permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de

participação social, distintas do sistema eleitoral e político, dando origem ao que Cross designa por

“democracia do gasto” 87.

A aquisição de bens através do recurso do crédito resulta de uma expansão e densificação das

necessidades e das práticas de consumo. O crédito está hoje fortemente associado a esses novos

padrões de consumo, que resultam das interações das necessidades individuais com o meio social.

A adoção de determinadas práticas de consumo está relacionada com as percepções, que os

indivíduos têm acerca do que é ou não valorizado pelo grupo social no qual eles acreditam ou

aspiram estar incluídos. Os indivíduos fazem, possuem e adquirem aquilo que é entendido como

adequado a fazer, ter ou comprar pelos outros com os quais cada indivíduo se identifica. Assim, o

comportamento dos outros constitui um termo de comparação, informando ao sujeito sobre o que

deve ou não ser feito, ajudando-o a decidir.

Na vivência social dos indivíduos, esses consumos podem assumir-se como centrais. De um

ponto de vista subjetivo, a sua não realização pode acarretar prejuízos relacionados, por exemplo,

com a não inclusão num círculo social com repercussões diretas no bem-estar psicológico. Assim,

um indivíduo que se encontre inserido num contexto social em que a manifestação de bens materiais

seja valorizada e não tiver recursos suficientes que lhe permitam a aquisição desse tipo de bens,

encontra no crédito uma via para alcançar esse reconhecimento social.

No entanto, há sempre o risco de algo correr mal, de sobrevir um acontecimento na vida de

um devedor que o impeça de continuar a cumprir os seus compromissos financeiros. Nesta situação,

o sobreendividamento ou insolvência torna-se inevitável.

86 Ibidem, p. 287.87 Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado:Supeendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 24.

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68

Para as autoras, a gestão desse novo risco representa um desafio regulatório que tem forçado

vários sistemas jurídicos europeus não só a adotar um conjunto de medidas de prevenção e de

tratamento, mas, também, uma regulação eficaz que não pode prescindir de uma avaliação profunda

do problema.

Silvio Javier Battello88 faz uma comparação empírica: a oferta do crédito para o consumo

aumentou significativamente, assim como os prazos para o pagamento dos empréstimos ou

financiamento de bens. Em qualquer jornal do Brasil, encontraremos oferta de produtos, tais como

casas, carro, cursos de capacitação, computadores, eletrodomésticos, etc., e tudo para ser pago em

suaves parcelas de 6, 12 ou 24 meses. Hoje se fala em ainda mais parcelas, “mais facilidades para

aquisição”.

Essa situação facilita o superendividamento, colocando o consumidor à beira da exclusão

social. Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor

deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços da primeira

necessidade, créditos hipotecários, carros, móveis, etc. e, inclusive, decorrentes do abusivo e

incorreto uso do cartão de crédito. Somam-se, ainda, causas não econômicas, tais como falta de

informação e educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas.

Geraldo de Faria Martins da Costa, autor do livro “Superendividamento – a proteção do

Consumidor de Crédito em Direito Comparado Brasileiro e Francês”, também participou desse

trabalho falando sobre Superendividamento: solidariedade e boa-fé.

A informação e o respeito ao consumidor devem vir na frente, mas não é isso que acontece,

pois o ato do consumismo contribui enormemente para o crescimento econômico do país. Por

exemplo, no Brasil, as ofertas de crédito, em geral, omitem a informação sobre a taxa efetiva anual

de juros (artigo 52, inciso II do CDC), o que é abusivo e eivado de omissão ao consumidor.

O autor se baseou no Direito Comparado, especialmente no Direito Francês, normas

específicas que irão proteger o consumidor contra os graves perigos do crédito ao consumo. Citou a

Lei francesa mais importante sobre a proteção do consumidor de crédito n. 78-22, de 10.01.1978,

denominada Loi Scrivener que constitui uma verdadeira carta de crédito ao consumidor.

Com base no Direito Francês, descreveu a luta contra a exclusão social. Como modelo de

referência para uma legislação específica como necessária ao Brasil direcionada aos

superendividados, destacou regras específicas da legislação francesa, como instituição de prazo

obrigatório de reflexão de sete dias, acompanhado da adoção de um formalismo protetor da oferta de

88 Ibidem,p. 26.

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Page 61: A subjetividade como mercadoria

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crédito, que deve ser escrita em formulários-tipos destacáveis para facilitar o exercício do direito de

comparação e escolha e retratação, ou seja, o consumidor recebe as ofertas por escrito contendo

informações sobre a identidade do credor, sobre o produto financiado, o preço total a pagar com

financiamento, o preço à vista, sobre a taxa anual efetiva global (TAEG) do crédito e sobre o

montante e o número das prestações; a interdependência do contrato de consumo principal e do

contrato de crédito é instituída por lei, ou seja, a expectativa legítima do consumidor é protegida,

levando-se em conta a unidade econômica da operação, pois ele adere, muitas vezes sem saber, a um

conjunto de contratos organizados pelos profissionais – vendedor e organismos financeiros; além

disso, o regime de proteção do devedor é estendido ao fiador de maneira peculiar pelo direito

francês.

Em 1989, a Loi Neiertz instituiu um regime para disciplinar a situação do

superendividamento, criando comissões compostas por representantes do Estado, cuja finalidade é

conciliar o devedor, pessoa física, em situação de superendividamento com o conjunto de seus

credores, visando a elaboração de um plano de pagamento das dívidas, podendo conter

reescalonamento dos pagamentos, remissão de dívida, redução ou supressão de taxas de juros,

consolidação ou substituição de garantias. O plano pode estabelecer a obrigação do devedor em

abster-se de atos que agravem sua insolvabilidade. A comissão pode solicitar ao juiz competente a

suspensão de ações de execução. Não sendo a conciliação bem sucedida, a comissão elaborará

recomendações de medidas que podem ir até a remissão da dívida, considerando-se que, em

princípio, os fornecedores de crédito devem ser prudentes e vigilantes na concessão dos

empréstimos.

O regime francês não parou de evoluir mediante várias reformas legislativas provocadas pela

realidade social. Na reforma de 1995, o legislador percebeu que, mais do que regulamentar o

problema, era preciso cuidar do superendividado, passando a ser titulado de “tratamento das

situações de superendividamento”, o título específico do Code de la consommation, além de

modificar a dinâmica dos procedimentos.

E, mais adiante, a reforma mais importante foi a trazida no bojo da lei de luta contra as

exclusões. A alínea 1 de seu artigo declara:

... a luta contra as exclusões é imperativo nacional fundado sobre o respeitoda igual dignidade de todos os seres humanos e uma propriedade dosconjuntos das políticas públicas da nação. A ligação da luta contra asexclusões ao princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana marcauma nítida opção em favor de uma concepção larga da humanidade dohomem. O ser humano supõe não estar alojado de maneira semelhante a um

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Page 62: A subjetividade como mercadoria

70

animal, pode se vestir, se alimentar, se cuidar bem, pode comunicar, fundarsua família, educar seus filhos, posto que a necessidade de defender ahumanidade do homem constitui doravante uma exigência jurídica específicae explícita, esta salvaguarda deve concernir tudo o que faz com que umaexistência seja humana.

A invocação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana justifica as qualidades de

imperativo nacional e de prioridade do conjunto das políticas públicas atribuídas à luta contra as

exclusões. A defesa da humanidade do homem constitui, por essência, um projeto coletivo, pois a

dignidade concerne cada um no que ele tem de mais essencial e mais comum com os outros homens.

Por isso, a lei atribui aos atores sociais, públicos e privados, empresas, organizações profissionais,

aos cidadãos, a missão de contribuir na luta contra as exclusões.

Bottello considerou importante, no modelo francês, a obrigação de informar e aconselhar,

verbos que se baseiam na confiança necessária depositada pelo consumidor no profissional que

detém os conhecimentos técnicos da operação de crédito ofertada, sendo que duas características

marcam o correto cumprimento desses deveres anexos à veracidade e à lealdade. É, por isso, que a

todo fornecedor de crédito é imposta uma obrigação primária de não enganar o consumidor.

O fornecedor de crédito deve não somente transmitir as informações de alta tenacidade que

ele possui. Deve, também, proceder a um trabalho de exploração prévia das informações primárias,

a fim de obter um produto final utilizável pelo credor das informações. As informações tratadas

devem ser oferecidas de forma didática, facilmente compreensível pelo não-profissional.

Em relação à obrigação de renegociar a dívida, Bottello acompanha Claudia Lima Marques,

que diz que no Direito Brasileiro, em face do CDC parece também ser possível considerar-se a

existência deste dever de renegociação a favor do consumidor, pois tanto o artigo 6, inciso V,

menciona o Direito do Consumidor de pedir a modificação do contrato em caso de onerosidade

excessiva, quanto nos artigos 52 e 53 menciona o direito de informação ao pagamento antecipado e

devolução de quantias pagas. Logo, há possibilidade no Brasil de requerer a antecipação desta

modificação e cooperação do parceiro fornecedor para readaptação do contrato e sua manutenção.

A jurisprudência do STJ tem sido sensível a esta necessidade subjetiva do consumidor,

mesmo que já em estado de inadimplência, de conseguir rescindir o contrato cativo de longa

duração, de forma a evitar sua ruína ou o superendividamento definitivo, em especial em contratos

de compromissos de compra e venda de imóveis89.

89 Marques, Claudia Lima. Prefácio. In: Costa, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento – A proteçãodo consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: RT, 2002. p. 23-24.

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Page 63: A subjetividade como mercadoria

71

Se observar o fato por um ângulo individualista, a questão do consumidor superendividado é

tida como um problema pessoal e até moral muitas vezes. Ou seja, por causas pessoais, internas, o

consumidor não pagou em tempo hábil a sua dívida. Ele deve ser uma pessoa descontrolada, um

esbanjador, dissipador, gastador, um perdulário ou um mau caráter. A solução para o problema é

simplesmente a execução.

É muito fácil esquecer que o produto ou serviço e o próprio crédito, utilizado como

argumento publicitário, foram ofertados por meio de poderosos aparatos de marketing. Recentes

publicidades veiculadas nacionalmente pela televisão, pelos jornais e revistas de grande circulação,

oferecem crédito aos aposentados através do crédito consignado, pensionistas do INSS, servidores

públicos, que concorrem a sorteios de “casas com carro na garagem”.

Concluindo, Bottello considera que o problema social do superendividamento chega forte

nos tribunais brasileiros, especialmente no TJRJ. O fato trata de questão humanitária e diz respeito à

dignidade da pessoa do consumidor.

Em continuidade à pesquisa, trouxe o trabalho realizado pelas Juízas, Clarissa Costa de Lima

e Karen Rick Danilevicz Bertoncello, através de um Projeto Piloto, onde abordaram o tratamento do

crédito ao consumidor na América Latina90. Para elas, o crédito também foi o tema central da

pesquisa, como causa do superendividamento.

A incitação ao crédito e ao endividamento caracteriza a sociedade de consumo atual em

todos os seus sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica a internacionalidade dos

problemas daí decorrentes.

Reconhecem a importância do crédito ao consumo e seus efeitos positivos, pois permite

melhorar o nível de vida da população, além de impulsionar o desenvolvimento da atividade

industrial, o que tem convertido num direito social semelhante ao acesso a empregos, moradia,

serviços médicos, entre outros, mas observa o lado negativo do crédito, destacando os problemas de

ordem social, aumento da exclusão dos mais pobres e econômicos, aumento da inadimplência, taxa

de juros, se o fato da legislação não destinar uma proteção especial ao consumidor vulnerável.

Acrescentaram, ainda, que o consumidor pode ter mais afinidade com os desejos e

necessidades do que propriamente com a vontade de consumir.

A livre escolha do consumidor está submetida a uma certa pressão, na medida em que o

crédito ao consumo, por sua virtualidade em diferir o pagamento, age como um meio de seduzir o

consumidor. Os próprios fornecedores utilizam as condições de pagamento como forma de atrair

90 Trabalho apresentado no 10º Congresso Internacional de Derecho Del Consumidor, Lima, Peru.

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Page 64: A subjetividade como mercadoria

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novos clientes num ambiente competitivo, bem como para desenvolver uma relação comercial de

longo prazo com os atuais clientes. Desta forma, estão obrigados não somente a informar como,

também, aconselhar o consumidor, evitando com que assuma um crédito que não terá condição de

reembolsar, o que de fato não acontece.

Embora se possa afirmar que as leis de proteção ao consumidor constituam um avanço

inequívoco na defesa de seus interesses, a realidade demonstra sua ineficácia para conter o

crescimento do número de consumidores superendividados que, em razão das mais variadas causas,

não têm condição de reembolsar o crédito contraído.

A própria visão econômica sobre a preservação do funcionamento eficaz do mercado

perpassa pela garantia desempenhada pelo direito do consumidor ao assegurar que este expresse

suas escolhas de forma livre e clara, a partir do fornecimento de informação precisa e exata do bem

ou serviço objeto da contratação. Não é suficiente que o fornecedor passe a informação mínima

exigida pela lei, é necessário que avalie o máximo de informações absorvíveis pelo consumidor de

crédito e o limite e número de cláusulas no contrato, uma vez que a desinformação também pode

resultar da falta de clareza no conteúdo ou da multiplicidade de informações prestadas.

O desenvolvimento da informação e da autonomia da vontade é imprescindível para

assegurar a integridade do consentimento do consumidor e, consequentemente, prevenirem o

superendividamento.

Essa dimensão socioeconômica do superendividamento identifica que a manutenção do

mercado, com a crescente produção de bens de serviço e de informação, dependerá da saúde

financeira deste consumidor e de sua reinserção no ciclo de produção, o que só é possível por meio

da tutela jurídica específica destinada a prevenir e a solucionar as situações de endividamento.

As magistradas foram precursoras no Projeto Piloto de tratamento da situação do

Superendividamento de Consumidores, que prevê a conciliação por meio da justiça entre

consumidores inadimplentes e credores. O projeto tem por objetivo a reinserção social do

consumidor superendividado ao encontrar uma solução alternativa para problemas atuais e fazer

cumprir o que está previsto na Constituição Federal, no que se refere à busca de uma sociedade justa

e solidária. O devedor precisa encontrar apoio para ser reinserido na sociedade, diz a juíza Karen

Bertoncello.

Baseado no modelo francês, as magistradas traçaram bases para a sua execução: o

diagnóstico feito por meio de uma pesquisa respondida em formulário obrigatório e a prevenção e

tratamento do problema. O devedor que se propõe a participar do projeto precisa responder com

veracidade as questões que constam no formulário, tem de participar de uma audiência coletiva e

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Page 65: A subjetividade como mercadoria

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assumir o compromisso, em caso de conciliação, a não voltar a comprometer a renda familiar com

novas dívidas. Isso porque, uma vez que faça o novo parcelamento, o nome é automaticamente

retirado dos órgãos de restrição ao crédito. Para tanto, o consumidor superendividado participa de

uma conciliação paraprocessual ou processual, obtida em audiência de renegociação da totalidade de

seus credores.

As audiências conjuntas com os credores têm surtido resultados positivos, pois os credores

tomam consciência do nível de endividamento de seus devedores e acabam sensibilizando-se para a

realização de acordos, pois o credor vê com bons olhos o esforço do consumidor ao tentar negociar

suas dívidas para honrar seus compromissos. As audiências são presididas pelo juiz de Direito, que

renegocia com cada credor, na mesma solenidade, a partir das condições pessoais do

superendividado e respeitando a preservação de seu mínimo vital.

Numa segunda fase do projeto, contempla-se a criação de oficinas de educação ao crédito, a

serem realizadas através de parcerias entre o Centro de Pesquisa de Direito do Consumidor da

AJURIS, coordenado pelas subscritoras deste relatório e o Núcleo sobre o Superendividamento o

PPGDir da UFRGS, coordenado pela Profª Claudia Lima Marques.

A oficina tem caráter interdisciplinar porque envolverá as áreas do direito, educação,

informática, psicologia, economia e serviço social e terá como público alvo os consumidores que

recorrerem ao tratamento do superendividamento, bem como seus familiares, a fim de prevenir os

efeitos nefastos deste fenômeno de exclusão social e capacitá-los como “agentes de consumo

consciente”.

O trabalho realizado por Claudia Lima Marques e Rosangela Lunardelli Cavallazzi foi

analisar o tema do superendividamento e do crescente crédito ao consumidor de forma isenta, como

ele está situado em nossa sociedade, um fenômeno social e jurídico importante, que pode ou não ser

consequência de políticas públicas e da mudança dos mercados financeiros, que levam à chamada

“democratização do crédito” e à consolidação de uma “sociedade do endividamento” também no

Brasil.

Os indivíduos fazem, possuem e adquirem aquilo que é entendido como adequado fazer, ter

ou comprar pelos outros com os quais cada indivíduo se identifica. Assim, o comportamento dos

outros constitui um termo de comparação para o indivíduo, informando-o sobre o que deve ou não

ser feito, ajudando-o a decidir91. Certos tipos de consumo não podem ser descontextualizados ou

mesmo conotados como supérfluos na medida em que não constam da lista das prioridades

91 Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 25.

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Page 66: A subjetividade como mercadoria

74

orgânicas elementares do indivíduo. Na vivência social dos indivíduos, esse consumo pode assumir

um lugar central. De um ponto de vista subjetivo, a sua não realização pode acarretar prejuízos

relacionados, por exemplo, com a não inclusão num círculo social com repercussão direta no bem

estar psicológico. Assim, um indivíduo que se encontre inserido num contexto social em que a

manifestação de bens materiais seja valorizada e não tiver recursos suficientes que lhe permitam a

aquisição desse tipo de bens, encontra no crédito uma via para alcançar esse reconhecimento social.

A autora abordou em um item do seu trabalho os valores, atitudes e comportamentos dos

superendividados e aí nos foi possível perceber a aplicabilidade da Psicanálise. Colocou que os

padrões de consumo dos superendividados refletem um estilo de vida predominantemente urbano,

onde uma enorme acessibilidade a diversos tipos de bens e serviços se combina com uma pressão

social forte no sentido da sua aquisição. A proximidade e a proliferação dos locais de compra

também exercem um efeito de atração e sedução dos consumidores, funcionando como incentivo à

aquisição continuada e à produção de novas necessidades92.

As autoras ouviram alguns sujeitos superendividados, e a impressão que ficou no discurso de

todos os entrevistados foi uma enorme confusão e falta de clareza discursiva, combinada com uma

certa apatia na voz e nos movimentos, choro frequente e uma expressão de cansaço e desânimo.

Quase todos procuravam justificar-se, evidenciando claramente sentimentos de culpa e de vergonha.

Esses sentimentos, porém, surgiram no meio de uma convicção mais ou menos consolidada de que

tinham o direito a serem ajudados porque nunca procuraram defraudar ninguém, nomeadamente os

credores93.

Observou a notória dificuldade encontrada em precisar datas da contratação do crédito e

valores, tornava-se difícil compreender a sequência cronológica e a lógica causal entre os vários

acontecimentos pessoais e o momento econômico-financeiro, pois muitos sobreendividados eram

incapazes de ter essa leitura estruturada. Tudo parecia vago, distante, intemporal e de contornos

imprecisos. A generalidade dos sobreendividados mostrava, por isso, uma enorme fragilidade

emocional e uma oscilação notável entre desalento e sentimento de fracasso, por um lado, e uma

certa esperança de recuperação da normalidade e do controle, por outro. Uma segunda constatação é

a de culpa e da vergonha que sentem em relação aos filhos. Essa culpa resultante de uma sensação

de fracasso na liderança de uma vida familiar estável e equilibrada, o que até pode resultar em

separação.

92 Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado:Superendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 26.93 Ibidem, p. 27.

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Diante desse diagnóstico, algumas estratégias para enfrentamento do problema são colocadas

pelas autoras para lidar como superendividamento, que são: auto-mobilização, que parte da

iniciativa do indivíduo; mobilização solidária, pedido de ajuda a rede de familiares e a mobilização

institucional, onde os indivíduos procuram a proteção estatal para ultrapassar esta fase na história de

sua vida.

Esses incidentes levam os diversos problemas sociais do sujeito, que pode resultar de falta de

atenção no trabalho, preocupações diárias na busca de solução dos problemas, desemprego,

instabilidade na relação familiar, etc.

Mesmo que, por vezes, muitos procurem transferir toda a responsabilidade da situação para

terceiros – credores, Estado, sociedade, empregadores, mercado – é a si que acabam por atribuir a

culpa principal, ainda que o façam de forma velada e inconsciente.

A psicanálise poderia contribuir esclarecendo melhor como o modelo capitalista do consumo

compulsivo afeta as subjetividades. Que relação poderia se estabelecer entre a dívida, necessidade,

demanda e desejo, que são noções de psicanálise? O Direito menciona “dignidade da pessoa

humana”, o “ser humano”, a “pessoa”, a “personalidade”, o “cidadão”, etc. Que relação há entre

estas expressões e o sujeito da psicanálise?

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76

CAPITULO III – A PSICANÁLISE E A ÉTICA DO DESEJO

Este capítulo busca evidenciar a contribuição da Psicanálise para uma crítica da sociedade de

consumo, tendo em vista sua repercussão sobre a subjetividade.

Na primeira parte, trazemos uma exposição sobre a razão cartesiana; em seguida, falamos de

Freud e a desconstrução de sua lógica com uma outra, a do inconsciente. No segundo item,

iniciaremos com o “retorno” de Lacan a Freud, particularmente com a noção de inconsciente, para

no logo em seguida trazermos as noções de necessidade, demanda e desejo, cruciais para este

trabalho.

Assim, abordaremos o sujeito na concepção da psicanálise e a ética do desejo. Julgamos que

estas ideias podem favorecer uma melhor compreensão do superendividamento no capitalismo, tanto

do lado da sociedade que “força” o consumo, como do lado do consumidor que fica assujeitado à

sua demanda.

1 – FREUD E A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE

Conhecer a natureza dos homens e do Universo foi uma das manifestações do desejo de

Descartes. Ainda jovem, percebeu, através dos conhecimentos adquiridos ao longo de seus estudos,

que havia ali uma cultura sem fundamentos, vazia de interesses para a vida.

Seu objetivo passou, então, a ser o de procurar por um conhecimento que ele podia encontrar

dentro de si mesmo, fundado na capacidade humana de pensar que, como acreditava, desprezava os

sentidos.

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77

Estava convencido de que a razão seria o único meio de se chegar a um conhecimento

seguro. Não se poderia confiar sempre no que se lê nos livros e artigos e não se poderia confiar,

principalmente, no que os nossos sentidos nos dizem. A razão seria a única fonte segura de

conhecimento.

Passou a ter a missão de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras,

construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade e feito de certezas racionais94.

Foi então que Descartes iniciou na matemática, que exibia uma construção sólida e clara, que

a todos se impunha como força de demonstrações incontestáveis e acaba por atravessar incólume a

crise de pensamentos instaurados pelos novos ventos da Renascença.

Para se chegar a um conhecimento seguro sobre a natureza da vida, sua primeira afirmativa é

que o nosso ponto de partida deveria ser duvidar de tudo. Não podíamos confiar nem mesmo no que

nos diziam os nossos sentidos. Afinal, podia ser que eles nos enganassem o tempo todo.

Assim, passa a duvidar até mesmo das ideias claras e distintas que o espírito

espontaneamente admite como evidentes, o que Descartes chamou de “gênio maligno”. Da dúvida

permitiu extrair um núcleo de certeza: se duvido, penso.

Se da máxima incerteza desponta uma primeira certeza – “Se duvido, penso” – esta é ainda,

uma certeza a respeito da própria subjetividade – “penso”. Esta dinâmica leva ao “Cogito: Penso,

logo existo” 95. Surge assim, depois da dúvida, uma primeira certeza sobre um existente – “existo”.

Toda existência do Eu aparece clara como absolutamente dependente do pensamento: “Se

deixasse de pensar, deixaria totalmente de existir”.

A enorme importância do Cogito na construção do cartesianismo é de duplo sentido: por um

lado, tudo o que for afirmado deverá ser feito como a evidência plena do tipo “penso, existo”. Por

outro lado, o Cogito significa o encontro pelo pensamento de algo que subsiste. O desdobramento

natural do “penso, logo existo” é: existo como coisa pensante. Do pensamento ao ser que pensa,

chega-se à distinção entre a subjetividade e a objetividade96.

Ele não apenas entende que é um Eu pensante, mas entende, ao mesmo tempo, que este Eu

pensante é mais real do que o mundo físico que percebemos através de nossos sentidos.

94 Descartes, René. Os pensadores. Editora Nova Cultura Ltda., uma divisão do Círculo do Livro Ltda. FundadorVictor Civita (1907-1990), 1996, p. 5.95 Descartes, René. Os pensadores Descartes. Editora Nova Cultura Ltda., uma divisão do Círculo do Livro Ltda.Fundador Victor Civita (1907-1990), 1996, p. 17.96 Gerbase, Jairo. Os paradigmas da Psicanálise.1a ed. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico,2008, p. 10.

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78

Mais tarde, Freud dirá que a dúvida de Descartes assinala a presença da formação do

inconsciente. É nesse lugar da resistência da qual a dúvida é o índice que se manifesta o sujeito, ou

seja, no campo do inconsciente como pensamento ausente97.

Em continuidade, para Descartes, a noção de um ser perfeito deveria vir de outro ser perfeito,

a existência de Deus. Então, procura provar a existência de Deus como fundamento da objetividade.

Para Descartes a existência de Deus é algo tão evidente quanto o fato de que alguém que pensa ser

“um ser”.

Surgirá essa ideia porque Deus existiria e justificaria sua existência na mente humana,

passando a mostrar a relação res infinita (Deus) e a res cogitans (o pensamento). A bondade de

Deus impede a sustentação da hipótese do “gênio maligno” e justifica o otimismo científico e a

própria crença na razão.

Pela primeira vez na filosofia, o discurso do saber se volta para o agente do saber, permitindo

tomá-lo, ele próprio, como questão de saber. Não se tratava apenas de situar os seres, de pensá-los

através de uma ontologia, de uma metafísica, mas de colocar em questão o próprio pensar sobre o

ser, que se torna, assim, também pensável98.

Para Elia, a aparição do sujeito no cenário do pensamento se fez através da angústia e da

incerteza em relação ao que se dera até então como um mundo mais ou menos compreensível para o

entendimento do homem. Não se trata de afirmar que não tenha havido crises no pensamento até

esse momento, mas de saber discernir a magnitude dessa crise em particular – o advento da ciência

moderna e sua separação da filosofia – e fazer a verificação precisa de seu valor de corte maior:

Descartes inaugurou um tempo moderno, ou seja, a descoberta da certeza de si, de uma consciência

reflexiva.

A humanidade precisaria esperar mais três séculos por Freud e a Psicanálise para dispor de

elementos que lhe permitissem entender a relação entre essas duas formas de emergência: a do

sujeito e a da angústia, a ponto de poder enunciar que essa relação é de equivalência: a emergência

da angústia e a emergência do sujeito99.

Na pesquisa e trabalho analítico desenvolvido, Freud descobriu que o homem é regido por

forças que escapam a consciência, algo que diferencia o ser humano da espécie animal, descobriu o

inconsciente.

97 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,p. 12.98 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 13.99 Ibidem.

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79

O inconsciente acha-se numa relação de distanciamento essencial com o fenômeno da

consciência e esse distanciamento deve ser marcado no nível da subjetividade. Mas a subjetividade

daquele que procura conhecer é a consciência. E é difícil ver como o inconsciente poderia, nessas

condições, dar-se numa evidência100.

Daí descentrar a razão: a existência do pensamento inconsciente, operando continuamente,

redimensiona de modo radical o Cogito cartesiano. Como sustentar que “penso, logo sou”, se há

algo que pensa em mim e, mais do que isso, trama à minha revelia? Logo, eu não penso e sim sou

pensado...?, ou seja, o inconsciente é a Outra cena que revela que o ser humano não possui domínio

de si mesmo101?

Para Descartes o pensamento define, portanto, o ser substancializando o sujeito; para a

psicanálise o sujeito não tem substância e seu ser está fora do suposto pensamento consciente – lá

onde se encontra a pulsão sexual, articulação da pulsão com o registro do significante102, lembrança

apagada, significante que falta, vazio de representação onde se manifesta o desejo. O Inconsciente

nos ensina a seguinte proposição: penso logo desejo, pois a cogitação inconsciente presentifica o

desejo sexual, indestrutível, inominável, sempre desejo de outra coisa, mas o pensamento não o

define pois não há representação própria para o desejo, já que o sujeito não tem substância, é vazio,

falta, se não deixaria de ser desejo103.

Para a filosofia cartesiana, o sujeito é uno, inteiro, identificável, enquanto para a psicanálise

não é identificável, mas sujeito a identificação, estando longe de ser unificado.

Se os procedimentos cartesiano e freudiano convergem no sentido de definir o sujeito pela

razão, eles divergem em relação à substância: para Descartes, o sujeito é uma coisa pensante,

enquanto que, para a Psicanálise, o sujeito, sem substância, manifesta-se na hesitação, na dúvida

entre isto e aquilo. Descartes parte do pensamento e chega à existência; Freud parte do pensamento

inconsciente e chega ao desejo104.

Segundo Bruce Fink105, o sujeito sob o enfoque de Lacan, pode “ter” pensamentos ou ser,

mas nunca ambos ao mesmo tempo. Ele é forçado a escolher um ou outro, virando ao avesso o

100 Juranville, Alain. Lacan e a Filosofia. Jorge Zahar,, Campo Freudiano no Brasil, Rio de Janeiro, p. 21.101 Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:Jorge, Zahar, 2005, p. 7.102 Lacan, Jaques. Os quarto conceitos fundamentais da Psicanálise. Seminário 11 (1963-64). Rio de Janeiro.Jorge Zahar Editora, 1997.103 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2008, p. 13.104 Ibidem, p. 14.105 Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 65.

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Page 72: A subjetividade como mercadoria

80

sujeito de Descartes, isto porque, do ponto de vista de Lacan sobre o pensamento, assim como o de

Freud, gira em torno do pensamento inconsciente, não do consciente estudado por Descartes, o

filósofo. O pensamento consciente está ligado à racionalização.

O sujeito de Descartes é visto como o senhor de seu próprio pensamento, sendo o autor de

suas próprias ideias e, portanto, não teme afirmar “Eu penso”. Esse sujeito cartesiano é caracterizado

pelo que Lacan chama de “falso ser” no Seminário 15106, o pensamento do Eu é mera racionalização

consciente. Já o Cogito lacaniano opõe o “penso onde não sou” do sujeito do inconsciente ao “sou

onde não penso” fora do significante, lá onde o sujeito busca seu ser para-além da linguagem107.

O termo “inconsciente”, quando empregado antes de Freud, era utilizado para identificar

aquilo que não era consciente, mas jamais para designar um sistema psíquico distinto dos demais e

dotado de atividade própria.

Freud deu ao termo inconsciente um sentido novo, legitimado com base em suas teorias, isto

é, através de observações do que “tropeça”, escapa, cambaleia, falha em todos nós, quebrando, de

uma maneira incompreensível, a continuidade lógica do pensamento e dos comportamentos da vida

cotidiana. Isto pode ser observado através de manifestações vindas dos lapsos, atos falhos, sonhos,

esquecimentos e do sintoma. Todos obedecem a processos lógicos da linguagem, mas de uma outra

lógica que não a cartesiana.

O texto “O Inconsciente” (1915) assinala que é nas lacunas das manifestações conscientes

que temos de procurar o caminho do inconsciente. Falar do inconsciente freudiano é apontar o que

ele não é, ou então marcar a sua diferença com relação àquela concepção subjetiva dominante até

Freud.

A presunção de uma dimensão psíquica inconsciente mostra-se ainda mais justificada, na

medida em que os dados lacunares da consciência supõem um mais-além psíquico capaz de explicá-

lo.

Longe de serem totalmente explicitados pela lógica da racionalidade psicológica, os atos

conscientes permanecem em Freud, como que animados por outras iniciativas latentes não

imediatamente identificadas por pensamentos, cuja origem e elaboração permanecem desconhecidas

porque nos são ocultas. Essas hipóteses sobre o inconsciente também permitem compreender certos

processos patológicos irracionais, tão frequentes quanto cotidianos, ligados à existência do sujeito.

106 Apud Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 65.107 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2008, p. 15.

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Page 73: A subjetividade como mercadoria

81

Desta forma, Freud propõe a constituição do aparelho psíquico por um processo de

estratificação. O material se rearranja de tempos em tempos e naturalmente, como uma

complexidade da constituição do sujeito que, de pequeno animalzinho humano, pode vir a se tornar

sujeito do inconsciente. Poder vir a se tornar um sujeito implica não um destino certo, mas uma

conquista na organização do aparelho psíquico.

O inconsciente para Freud é constituído de linguagem e pulsões. A representação seria aquilo

que do objeto vem se inscrever nos “sistemas mnêmicos”. A representação é organizada segundo as

possibilidades dos significantes enquanto tal108.

A representação para Freud é linguagem, supõe relação com o outro na e pela linguagem e

através dela. Este pensamento remete ao que Lacan define como “o lugar do Outro” – O grande

Outro – definido como sistema de elementos significantes ao qual o sujeito é submetido desde o

começo.

Através da experiência Psicanalítica, uma vez colocada em operação com a instalação do

dispositivo freudiano da associação livre, produzem-se as condições de emergência do sujeito do

inconsciente, justamente através da repetição na fala e da transferência com o analista e criou-se as

condições de produção da chamada formação do inconsciente – atos falhos, lapsos, sonhos, sintoma

e chistes – modalidade de emergência do sujeito109, sendo a palavra o veículo de acesso ao

inconsciente.

Como veremos mais adiante, para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem,

daí destacarmos a importância da palavra. É por meio da palavra que temos acesso à formação do

inconsciente. Toda palavra carrega em si uma intenção inconsciente.

Conforme Elia, desqualificar a fala do sujeito equivale, portanto, a criar as condições de

desqualificação, de ausência de qualidades, que pavimentam as vias de acesso ao inconsciente pela

fala, pelo discurso concreto do sujeito. Desqualificar a fala do sujeito é equivalente a “qualificar” o

sujeito do inconsciente como “um sujeito sem qualidades” e esta é a única forma de se criar um

acesso, precisamente pela via da fala, para que o sujeito do inconsciente possa emergir através dela.

Daí o uso da palavra de modo a que esta se torne a via de acesso à cena do inconsciente, na qual o

sujeito “sem qualidades” poderá emergir. As qualidades são geradoras de seus sintomas, que são

decifrados num trabalho de análise.

108 Apud Jacques, Lacan. Seminário 7, 1991, p.80. Borges, Sonia. O quebra cabeça. A alfabetização depois deLacan. Ed. da UCG, p.104.109 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 16.

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Page 74: A subjetividade como mercadoria

82

O sonho, o chiste, a piada, o lapso, o esquecimento de nome, o ato falho, o sintoma têm em

comum proverem do mesmo lugar, a saber, dessa parte do discurso que falta à disposição do sujeito

para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente110.

O que interessa à Psicanálise é o fato de que o homem fala. Ele não tem acesso direto a seus

objetos; ele encontra, de preferência, sua satisfação nas entrelinhas, na própria cadeia significante,

nos lapsos, atos falhos, sintomas, etc. Há um sujeito barrado pelo fato de que fala que se vê

representado por um significante junto a outro significante, o que não acontece sem a queda de um

objeto111. E para compreensão destes conceitos será necessário entender como se operam os

indicativos da formação do inconsciente: atos falhos, chiste, sonho e sintoma.

Os atos falhos apresentam-se sob a forma de lapso, falsa leitura, falsa audição, incapacidade

de encontrar um objeto, perdas, certos erros. Trata-se de um ato em que o corpo está em jogo num

dado instante ou de um ato de fala ou escrita substituído por outro; assim, substituídos, desviados ou

invertidos, omitidos, esses atos têm duplamente uma função de linguagem: assinala em primeiro

lugar a revelação de um desejo inconsciente e, ao mesmo tempo, atestam um inconsciente

estruturado como uma linguagem (condensação e deslocamento, metáfora e metonímia) e podem,

portanto, ser decifrados como uma mensagem.

O ato falho tem um papel decisivo em relação a certas representações capazes de perturbar o

equilíbrio psíquico do sujeito. Um exemplo de ato falho: uma jovem, ao conversar com suas amigas

sobre o quanto custava fazer as unhas no local onde residia disse: “Ah, lá com apenas dez reais se

faz pai e mãe”. Houve um tropeço linguístico. O que deveria ter sido dito era pé e mão.

Algumas falhas no dizer parecem indiciar o momento exato de sua enunciação, algo da

ordem do “desejo”, da subjetividade de seu enunciador que queria dizer uma coisa, mas acaba

dizendo outra. Uma divisão cuja enunciação pode ser facilmente nomeada como “ato falho”, uma

fala tropeçada, truncada que, a despeito das intenções do sujeito, vem de um Outro lugar, do lugar

de um sujeito constitutivamente clivado e heterogêneo.

A psicanálise se interessa precisamente pelo tropeço naquilo que ele pode revelar do desejo

do sujeito inconsciente. Então, se a fala pode trazer à tona esse sujeito, que se esconde pela via do

recalque, nada mais justo do que buscar no funcionamento da linguagem a expressão de sua

manifestação.

110 Dicionário de Psicanálise, Roland Chemama, p. 81. J. Lacan, Escritos, 1965.111 Ricardo Goldemberg (org) André Soulix. [et al] tradução Telma Correa Nóbrega Queiroz, RicardoGoldemberg e Marcela Antero. Goza! Capitalismo, globalização e Psicanálise. Salvador, BA. A’lgama, 1977, p. 31.

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Page 75: A subjetividade como mercadoria

83

A título de esclarecimento, Garcia-Rosa112 explica o recalque, dizendo que um determinado

processo mental pertencente ao Inconsciente procura acesso à consciência em busca de satisfação.

No entanto, a censura que opera na passagem do Inconsciente para o Pré-consciente/Consciente

opõe-se violentamente a esse propósito, pois a satisfação do desejo inconsciente, que em si mesma

provocaria prazer, provocaria também desprazer relativo às exigências do Pré-

Consciente/Consciente. Por essa razão, o desejo tem de permanecer inconsciente, podendo retornar

sob a forma de sintoma.

No chiste há uma relação combinatória com o humor. Pode-se tornar tolerável a verdade

inconsciente que nele se revela. Serve até de descarga preliminar de prazer, captando e desviando a

alteração consciente. O efeito do chiste leva a isolar o automatismo psíquico Pré-consciente do

Inconsciente que, com a autorização do sujeito, ao qual tem que consentir com o chiste para que ele

exista, se confessa aí como verdade a se calar.

O chiste emana a diferença de investimento liberado quando duas representações são

comparadas; esse excedente vai, então, se ligar ao que nos havia feito perder a experiência da

realidade. É preciso, ainda, haver simetria entre, de um lado, o dispêndio psíquico requerido para

uma representação e, de outro, o conteúdo representado. Há em cena a armadilha do desejo, a ilusão

de uma solidez imaginária que possa, não obstante, responder a demanda.

O sonho é a via régia para o inconsciente, pois representa a realização de um desejo

recalcado. Se um desejo foi expulso da consciência, no sonho ele só pode reaparecer sob a forma de

disfarce, o que faz com que o sujeito não reconheça o que não quer saber. Uma linguagem cifrada

exige decifração e não visa comunicar nada a ninguém113.

No sonho referimos-nos a algo inteiramente diferente: a fantasia, própria do estado de vigília,

ou ainda, um desejo consciente, por vezes a uma utopia, desvaneio, ilusão, desejo. Trata-se de uma

experiência singular e, como tal, irreproduzível, ainda que certos roteiros ou conteúdos oníricos se

repitam no curso de um longo período, ou mesmo, ao longo de uma vida.

Os sonhos podem ser contados, esquecidos, reconstituídos. Eles acontecem ao sonhador

como acontecem ao indivíduo desperto, com múltiplos eventos que o impressionam, que o abalam e

que modificam mais ou menos o curso de sua existência. Podemos ter a tentação de interromper aí o

paralelo e de opor, quanto ao resto, a irrealidade dos episódios oníricos à realidade das experiências

112 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Jorge Zahar, 8 Ed. Rio de Janeiro, p. 91.113 Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:Jorge, Zahar, 2005, p. 23.

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Page 76: A subjetividade como mercadoria

84

que se ordenam numa história individual, material e socialmente situada. Os únicos pontos comuns

se resumiriam, então, no caráter singular, memorável e relatável desses acontecimentos passados.

Trata-se de uma efetividade do acontecimento, bem diferente daquela do pensamento ou do

sentimento presente, daquela da fala viva que evolui ao se endereçar ao outro e mesmo daquela que

reconhecemos nessas cenas íntimas, imprecisamente chamadas de sonhos ou fantasias diurnas.

O sonho está no limite entre o psíquico e o somático, numa região cotidianamente

atravessada, em que se efetua a retirada dos investimentos – Pré-consciente e Consciente – de todas

as representações de objeto, para que se bloqueie o sistema de referências que, no estado de vigília,

põe em conexão o corpo vivo e o mundo ambiente.

Freud observa que o sonho nos mostra o homem, na medida em que ele não dorme, mas,

apesar disso, ele não pode deixar de nos revelar, ao mesmo tempo, característica do próprio sonho.

Essa ideia de um sonhador que não dorme, quando precisa justamente dormir para sonhar e quando

se supõe que seu Eu deseje antes de tudo prolongar seu sono, servindo-se do sonho como guardião

contra os assaltos pulsionais que o poderiam interromper.

Há um trabalho a ser feito pelo mecanismo do sonho, que são os mesmos que regem o

funcionamento do inconsciente: condensação e deslocamento. A função é distorcer o desejo

recalcado, burlando desta forma a censura114.

A condensação tem como principal atributo a síntese. Eis o motivo de Freud chamar

atenção para o fato de que os sonhos apresentam-se breves, concisos e lacônicos em comparação

com a série de pensamentos oníricos revelados em sua interpretação. O relato de um sonho de

apenas um parágrafo pode ter várias páginas de interpretação. O deslocamento se caracteriza por

uma transferência de intensidades psíquicas. Um elemento sem valor psíquico retira a atenção de

outro verdadeiramente importante em relação ao desejo do sujeito115.

O inconsciente é uma instância que trabalha em nós, produzindo seus efeitos. Como

exemplo disso, podemos dizer que, para a consciência, um charuto só pode ser um charuto. Sua

lógica de funcionamento não admite facilmente que possamos conceber que o charuto seja um

guarda-chuva, pois existe uma incompatibilidade entre essas idéias. Do ponto de vista do trabalho

inconsciente, uma ideia pode associar-se a outra, transferindo-lhe a sua carga representacional, de

modo que se pode sonhar que um charuto é um guarda-chuva, pois não há contradição, nem

negação, nem tempo na lógica inconsciente.

114 Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:Jorge, Zahar Ed., 2005, p. 23.115 Ibidem, p. 24.

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Page 77: A subjetividade como mercadoria

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O sintoma foi a primeira formação do inconsciente a ser descoberta por Freud, que se viu

diante de um enigma moderno por excelência – o poder da fala. Freud começou pelo sintoma,

especulando a seu respeito, à maneira de um filósofo. Daí viu-se diante de um enigma moderno por

excelência em sua época, a histeria, o limite do poder da fala e, portanto, da captação de si mesmo e

do objeto.

Em “O mal-estar na cultura”, Freud destaca a incapacidade do homem de ter acesso a uma

sexualidade que seja menos incerta, ambígua e conflituosa. O lugar do sintoma se vê assim

deslocado para interagir a respeito das condições gerais de nosso acesso ao sexo116.

Se o inconsciente é efeito de linguagem e o tratamento não dispõe de outros meios além dos

da fala, convém reconhecer as propriedades físicas da linguagem e o poder de determinar nosso

destino, sintomático em todos os casos.

Não se deve atacar o sintoma, mas abordá-lo como uma manifestação subjetiva, o que

significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado e decifrado, fazendo aí emergir um sujeito.

Tratar o sintoma é fazer com que ele se transforme no sentido temporal para o próprio

sujeito, no intuito de deixar de ser sintoma do momento, de se concluir em sua incapacidade de lidar

de outra forma com o gozo para transformar-se em um enigma do tempo para compreender, ou seja,

transformar sintoma resposta em sintoma pergunta.

A tendência psicanalítica presente desde Freud de operar no ponto exato de contato entre

estruturas da subjetividade e modos de interação social é exigência resultante da certeza de que um

campo é sempre exposição sintomática do outro e de que, se a cura sempre obedece à

particularidade do caso, ela não pode, no entanto, deixar de levar o sujeito a reconfigurar seus

vínculos com a ordem sócio-simbólica117.

O sintoma pretende dizer a verdade que o constitui e, em consequência, a ação a operar

consiste em acolher essa “verdade que quer dizer-se”118, que pretende articular-se na palavra, sua

única possibilidade. O sintoma exige um trabalho, pois não está dado que o sintoma possa dizer, de

fato, a dita verdade. Há que lhe extrair os restos da verdade que escapam ao saber e falam no

sintoma.

Desde a psicanálise, ao menos lacaniana, os sintomas contemporâneos desvelam igualmente

hoje, que o enigma para o ser humano segue sendo seu ser de desejo, efeitos de seu ser de

116 Kaufmann, Pierre .Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Por, 1996, p. 478.117 http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi118.htm?200929.118 Lacan, Jacques. Seminário 16: De otro al outro. Clase 4. Encontro Internancional Paris, 2006, p. 63.

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Page 78: A subjetividade como mercadoria

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linguagem, condições que articulam a diferença entre a demanda de amor e a satisfação via objeto

de desejo119.

Segundo Safatle120, nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de uma análise das

disposições subjetivas que implicam na compreensão da maneira com que os sujeitos investem

libidinalmente os vínculos sociais mobilizando, com isso, representações imaginárias e expectativas

de satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações normativas que

visam racionalizar tais vínculos.

O desejo é sempre enigmático e por isso mesmo ele apela ao saber, constituindo, assim, o

sujeito articulado a um desejo de saber121.

O inconsciente é uma lei de articulação da linguagem e não a coisa ou o lugar onde essa

articulação se dá. O que define, portanto, o inconsciente não são os seus conteúdos, mas o modo

segundo o qual ele opera, impondo a esses conteúdos uma determinada forma.

O inconsciente é uma lei de articulação da linguagem e não a coisa ou o lugar onde essa

articulação se dá. O que define, portanto, o inconsciente não são os seus conteúdos, mas o modo

segundo o qual ele opera, impondo a esses conteúdos uma determinada forma.

Desta forma, o sujeito sente-se como que atropelado por um outro sujeito que ele

desconhece, mas que se impõe à sua fala, produzindo trocas de nomes e esquecimentos cujo sentido

lhe escapa.

Em relação a essa duplicidade de sujeitos, Freud declara, na introdução de seu artigo sobre o

inconsciente, que “todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei ligar ao

resto de minha vida mental devem ser julgados como se pertencessem a outrem122”.

Esse outro sujeito é o sujeito do inconsciente, do qual temos algumas indicações seguras se

observarmos os fenômenos lacunares acima referidos. E que é construído na medida em que está

engajado num jogo de símbolos, num mundo simbólico, onde o homem é um sujeito descentrado.

De fato, só há o inconsciente se houver o simbólico. O recalcamento produz o inconsciente e

isso só ocorre por exigência do simbólico. O acesso ao simbólico é, portanto, a condição para a

constituição do inconsciente e, evidentemente, também do Consciente. É através do simbólico que o

119 Ibidem, p. 64.120 http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi118.htm?200929.121 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.,2008, p. 19.122 Sigmund, Freud. O inconsciente (1915), in ESB, Rio de Janeiro, Imago, Vol. XIV, 1975, p. 195.

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Page 79: A subjetividade como mercadoria

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indivíduo constitui seus modos de objetivação, sua percepção, seu discurso. O simbólico é o

mediador da realidade e, ao mesmo tempo, o que constitui o indivíduo como humano123.

Nota-se que, como já descrevemos, Inconsciente e Consciente se formam por efeito de um

mesmo ato e não o segundo como um epifenômeno do primeiro. É a aquisição da linguagem que

permite o acesso ao simbólico e a consequente clivagem da subjetividade.

Toda produção do campo do sentido é da ordem simbólica, seja ela falada ou não. Um gesto,

uma expressão do rosto, do corpo, uma dança, um desenho, tanto quanto uma narrativa oral são

produções simbólicas, regidas pelo significante, e assim, ditas verbais, por estarem na dependência

do significante e não por serem expressas na via oral124.

Segundo Elia, de todas as formas pelas quais a estrutura simbólica, significante, da

linguagem pode se atualizar em um ser falante, a fala é a única que permite, por seu modo

encadeado, como discurso desdobrado no tempo em uma sequência de palavras, que o plano

significante seja destacável da significação.

Pode-se dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, por elementos

materiais simbólicos. Os significantes são engendradores do sentido, que não portam em si o sentido

constituído, mas que se definem como constituintes do sentido, daí dizer, significante o que faz

significar125.

Cada sistema possui uma estrutura própria, de tal modo que as características que

encontramos em um deles não são encontradas no outro. Cada um dos sistemas possui um modo

próprio de funcionamento que Freud denominou processo primário e processo secundário.

O processo primário (sistema Ics) é caracterizado por dois mecanismos básicos, como dito

anteriormente, que são o deslocamento e a condensação. No processo primário, a energia psíquica

tende a se escoar livremente, passando de uma representação para outra, procurando a descarga da

maneira mais rápida e direta possível, enquanto no processo secundário (Pcs/Cs) essa descarga é

retardada de maneira a possibilitar um escoamento controlado126.

Isso faz com que, no processo secundário, as representações sejam investidas de forma mais

estável, enquanto no processo primário há um deslizar contínuo do investimento de uma

representação para a outra, o que lhe confere o caráter aparentemente absurdo que se manifesta, por

123 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 8 Ed., p. 184.124 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 22.125 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 23.126 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 8 Ed., p. 182.

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exemplo, nos sonhos. A condensação e o deslocamento não são apenas mecanismos da elaboração

onírica, mas sim os “marcos distintivos do assim denominado processo psíquico primário127”.

Os processos primário e secundário são, ainda, respectivamente, correlativos do princípio de

prazer e do princípio de realidade, isto é, enquanto os processos Ics procuram a satisfação pelo

caminho mais curto e direto, os processos Cs, regulados pelo princípio de realidade, são obrigados a

desvios e adiamentos na procura de satisfação.

Freud assinala, ainda, como característica do sistema Ics a ausência da temporalidade. O

inconsciente é intemporal, seus conteúdos não somente não estão ordenados no tempo, como não

sofrem a ação desgastante deste. A temporalidade é exclusiva do sistema Pcs/Cs128.

É o próprio inconsciente que é estruturado, segundo os mecanismos da condensação e do

deslocamento, mecanismo esses que Lacan, seguindo Jakobson, vai interpretar como análogos às

figuras linguísticas da metáfora e da metonímia, para firmar em seguida que “o inconsciente é

estruturado como uma linguagem”.

No item seguinte, veremos como estas ideias são desenvolvidas por Lacan, tendo em vista

abordar o desejo como análogo ao sujeito no campo da Psicanálise.

2 - O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM

Neste capítulo, destacaremos, inicialmente, a ideia lacaniana de inconsciente estruturado

como uma linguagem. Estas ideias servirão de suporte para introduzirmos o pensamento de Lacan

sobre a relação necessidade, demanda e desejo, tema central do trabalho.

Lacan teve como ponto central de seu pensamento ser o simbólico o que concede o papel de

constituinte do sujeito humano. Como já comentamos anteriormente, a função simbólica é aquela

através da qual o indivíduo constitui seus modos de objetivação, sua percepção, seu discurso. O

simbólico é o mediador da construção da realidade e, ao mesmo tempo, o que constitui o indivíduo

como indivíduo humano129.

Este ponto é fundamental, pois Lacan, em seus estudos, dá ênfase à importância da

linguagem como lugar de acesso do homem ao simbólico, possibilitando-lhe conferir ao mundo um

universo de significações. Para melhor compreender a constituição do sujeito, precisamos adentrar

127 Freud, Sigmund. “A dinâmica da transferência” (1912). ESB. Vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, 1976.128 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente,Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 8 Ed. p. 183.129 Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 8 Ed. , p. 184.

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Page 81: A subjetividade como mercadoria

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ao estudo que Lacan fez, buscando na Lingüística a base de sua fundamentação de que o

Inconsciente é estruturado como linguagem.

Fato notório, o bebê quando nasce é intermediado pela linguagem, para que possa manter sua

existência. Não é possível o ser falante experimentar a realidade fora do campo da linguagem.

A linguagem teria para o homem a mesma função que tem uma ponte a ligar dois pontos

separados por um abismo. Haveria uma falha constitutiva a separar o homem do mundo e a

linguagem seria responsável por tentar superar. Desta forma, compreende-se a linguagem como

fundadora da realidade do inconsciente.

Uma das fontes teóricas do pensamento de Lacan sobre o inconsciente é a Linguística de

Ferdinand de Saussure, tal como foi exposta por seus alunos sob o título de “Curso de Linguística

Geral(1969)130”. Uma das decorrências das reflexões do eminente linguista acerca da noção de

língua é que ela é um sistema de relações.

Veremos adiante o pensamento de Saussure e a base de fundamentação de Lacan para se

chegar à conclusão de que “o Inconsciente é estruturado como linguagem”. A maioria de nós,

falantes, não imagina que, sempre que falamos, todo um sistema entra em funcionamento. Segundo

Saussure, a língua é um sistema particular, cujas unidades são constituídas a partir das relações e

não o inverso; relações que, ao serem estabelecidas, produzem unidades linguísticas, logo, a questão

é saber o que mobiliza essas relações e como elas podem produzir sentido.

A linguagem é tradicionalmente concebida como constituída de signos que exprimem

significações na medida em que a significação e o signo estão intrinsecamente ligados ao mundo131.

A ideia central de Saussure, com a qual funda a Linguística é o conceito de signo como uma

unidade composta de duas partes, tal como uma moeda é composta de cara e coroa: o significado e o

significante.

Para Saussure, o signo não é a união de uma coisa e um nome, mas união de um conceito e

uma imagem acústica (ou impressão psíquica do som), ou seja, Saussure chamou as unidades

linguísticas de signo, os quais são formados pela associação do significado com o significante, não

sendo apreensíveis fora desse sistema, o que significa dizer que os signos só têm existência por meio

da relação recíproca que mantém entre si, donde provém a possibilidade de significação. Saussure,

então, aponta os dois Princípios referentes ao signo Linguístico: Arbitrariedade e Linearidade132.

130 Ibidem, p. 184.131 Juranville, Alain. Lacan e a Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Campo Freudiano do Brasil, p. 22.132 Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 184.

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Na arbitragem do signo inexiste relação de necessidade entre um significado e um

significante. Não há nada que una, de maneira necessária, o significado árvore à sequência de sons

que lhe serve de significante. O mesmo significado árvore pode ser representado pelo significante

arbor, arbre, tree ou baum. Não se deve levar a supor que ele dependa da livre escolha de quem

fala, mas sim que ele é imotivado, que não mantenha nenhum laço natural com a realidade.

Na linearidade do significante, Saussurre coloca que, por oposição aos significantes visuais,

que podem se organizar simultaneamente em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem

apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro, formando uma cadeia. Ao

apontar o significante sobre o significado, tem-se a ideia isolada das coisas, mas Saussure

acrescentar a isto a noção de valor quando destaca que o signo tem relação com outros signos da

língua.

A significação do signo não se esgota no isolamento dessa relação, ela também é função da

relação que o signo mantém com os outros signos da língua. É, a esse outro aspecto do signo, que

Saussure se refere quando coloca o conceito de valor, introduzindo uma nova dimensão no signo

linguístico, deixando de ser visto apenas como uma relação entre significado e significante e passa a

ser considerado também como um termo no interior de um sistema, como a significação resultante

da relação entre significado e significante indicada por uma flecha vertical133. Assim, o valor de

qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia.

A noção de valor, que implica a de relação, é proposta por Saussure para explicar de que

forma organizam-se as unidades linguísticas no sistema.

É na composição do sistema de linguagem que se constituirá o valor de um signo numa

cadeia de significantes para se obter a significação, não só privilegiando o significante em

detrimento do significado, mas, também, fazendo questão de diferenciar o significante da imagem

acústica, colocando que o significante em sua essência não é, de modo algum, fônico, mas sim

incorpóreo, constituído não por sua substância material, mas unicamente pelas diferenças que

separam sua imagem acústica de todas as outras134. E é a posição do signo no sistema de linguagem

que vai constituir o valor dele como um elemento de significação.

Ao introduzir a noção de valor, Saussure não faz dela o elemento constituinte central da

significação, nem tampouco elimina a relação isolada entre o significado e significante. Para ele,

apesar da significação, local de um elemento numa frase, ser dada pela sua relação com outros

133 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 185.134 Saussure, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral; organizado pro Chares Bally e Albert Sechehager.Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix. p. 137/8.

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Page 83: A subjetividade como mercadoria

91

elementos desta, a relação significado e significante continua a gozar de relativa autonomia, tal

como é indicada pela elipse que cerca o algoritmo inicial.

Independentemente do peso dado à noção de valor, numa frase correlacionada entre

significante e significado, sempre haverá a autonomia destes.

A resultante disso é que o sentido ou qualquer unidade de significação é obtido sempre “só

depois”, isto é, o valor se fixa a posteriori, a partir dos operadores metonímico e metafórico que

mobilizam significantes, dando a eles valores muitas vezes insuspeitados para o próprio sujeito. Isso

exige que a noção de signo linguístico, tal como proposto por Saussure seja reinterpretada e é o que

Lacan faz.

Lacan recorre à categoria do significante – imagem material acústica – de Saussure, a qual se

associa conceito – ideia – como significado, na constituição do signo linguístico composto de duas

partes, significante e significado.

Assim, buscou na Linguística de Saussure a fonte de seus estudos, mas o fez de forma

diferenciada do próprio autor, colocando que o significante é que se sobrepõe ao significado. Ao

subverter essa associação – significante/significado – Lacan confere a primazia ao primeiro –

significante – na produção do segundo, onde significante prevalece sobre o significado que lhe é

secundário e se produz somente a partir da articulação dos significantes. Procedendo assim, Lacan

encontra o suporte metodológico necessário para uma teoria do Inconsciente.

Garcia-Rosa, com base no texto “A instância da letra no inconsciente”, diz que Lacan declara

que o momento constituinte de uma ciência é analisado por um algoritmo e que, no caso da

Linguística, esse algoritmo é S/s, onde “S” é o Significante e “s” o significado, ambos separados

pela barra.

Se para Saussure o signo continua uma unidade formada pelo significado e pelo Significante,

marcado pelo caráter indissolúvel de suas partes componentes, para Lacan, a barra indica duas

ordens distintas, interpondo-se entre ambas uma barreira resistente à significação. Assim, ficou

quebrada a unidade do signo defendida por Saussure. A cadeia Significante é ela própria, a

produtora dos significados. E é ela que vai fornecer o substrato topológico ao signo lacaniano,

impondo que nenhum Significante possa pensar fora de sua relação com os demais.

Se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados, cada uma delas

teria, de uma língua para a outra, correspondentes exatos para o sentido, mas não ocorre assim135.

135 Saussure, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral; organizado pro Chares Bally e Albert Sechehager.Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix. p. 135.

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Page 84: A subjetividade como mercadoria

92

O que faz parte da própria estrutura do Significante é a conexão com outros Significantes

formando uma cadeia: o Significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um

discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame. Só

pode haver articulação entre os Significantes porque eles podem ser reduzidos a puros elementos

diferenciais.

Vejamos um exemplo para observar como o valor de um termo somente se estabelece ao

término de uma proferição: “há cinco velas... no mar... do meu solitário... coração”. Não é difícil

observar que o sentido de “vela” fica em suspenso até que se pontue o que se está dizendo. Isto é, ao

fechar o enunciado como o “coração”, a palavra “vela”, que poderia ser “vela de aniversário”, “vela

de carro”, “vela de barco”, passa a valer “morte” ou “perda” de entes queridos.

Essa relação passa a ser nomeada por Lacan de operação metonímia, em virtude de seu

caráter de contiguidade, marcado tanto pela linearidade, quanto pelo “efeito retroativo”, impedindo

que tomemos a palavra “vela” como tendo um único significado ou um sentido previamente

estabelecido antes de sua proferição.

A ordem do significado é efeito da cadeia do Significante e, justamente por isto, é na cadeia

do Significante que o sentido insiste. A significação não está, portanto, em nenhum elemento

particular da cadeia.

Mas, o deslizamento incessante do significado sob o significante, por ação do inconsciente,

não quer dizer que não haja a prevalência de um sentido em jogo. Lacan faz questão de pontuar que

seria um erro pensar que a significação reina irrestritamente para-além, pois o Significante, por sua

natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão.

É precisamente no significável que se engendra a paixão pelo significado. A fascinação por

certas metáforas cristaliza o sentido, emperrando o deslocamento metonímico dos Significantes na

cadeia.

Segundo Lacan, do congelamento do Significante nasce não só a paixão pelo sentido que,

inevitavelmente, surge sob a forma de um bem como ideal, mas também o aprisionamento do sujeito

retirado desse sentido cristalizado, obstaculizando o processo de significação e a posição deste em

relação ao desejo.

A articulação Significante não se produz sozinha, é necessário que haja um sujeito. O

Significante só pode passar para o plano da significação porque há um sujeito operando a cadeia do

Significante.

Saussure, destacando significado do significante, considera que haverá uma relação

biunívoca e isolada dos signos, ou seja, a relação biunívoca entre significante e significado irá

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Page 85: A subjetividade como mercadoria

93

procurar as leis que dariam conta da articulação entre duas instâncias e, se nada incorrer, a

arbitrariedade passa a ser um dos princípios que rege o signo linguístico. Lacan diferencia desse

posicionamento, afirmando que a oposição entre os significantes é que produzirá a diferenciação

entre os significados, destacando que o significante não tem por função representar o significado,

mas que ele precede e determina o significado.

Garcia-Rosa destaca claramente a retomada de Lacan no campo da linguística para definir de

forma mais precisa e possível o sujeito. Percebe que o conjunto de significantes usados na fala oral e

escrita não dá conta de todas as partes do discurso. Existe uma variedade enorme de formas para se

dizer a mesma coisa. Após as digressões gramaticais em torno do discurso, Lacan percebe que o

sujeito do enunciado é o sujeito consciente do enunciado.

Quando falamos, dizemos mais do que pensamos dizer. Existe no que dizemos um sentido

manifesto e um latente, ou seja, nas entrelinhas do que falamos insiste um sentido Outro, indicando

a existência de um saber estranho e familiar.

Segundo Elia136, a fala, por ser uma cadeia de palavras, permite que se opere o divórcio entre

significante e significado, necessário para evidenciar a primazia material do esqueleto significante

sobre o revestimento muscular que são as significações produzidas pelo primeiro. Esse divórcio

evidencia que significante e significado não vieram ao mundo casados, e que sequer se casaram, mas

que é no interjogo de significantes que os significados se produzem.

Lacan dá aos conceitos da linguística um significado, a partir da indicação de Freud ao tomar

os sonhos como um texto. O significante, na versão de Lacan, remete sempre a outro significante,

em cujo intervalo se localiza o sujeito. A ideia é a de que o significante representa o sujeito do

inconsciente para outro significante, sendo que o sujeito não se apresenta na própria cadeia

significante ou discurso manifesto, e sim nos intervalos dessa cadeia, sentido latente para Freud.

Para Lacan, o inconsciente não é uma instância, mas um discurso divorciado do consciente.

O sujeito fica caracterizado pela relação da cadeia de significantes, contrapondo um ao outro

significante, sendo considerado um ser de letra, um sujeito da linguagem esvaziada de substância

psicológica.

Apliquemos a essas condições estruturais o processo de constituição do sujeito para que

possamos recorrer à situação concreta, através da qual o ser humano chega ao mundo e se insere na

ordem humana que o espera, que não apenas precede sua chegada, como também terá criado as

condições de possibilidade de sua inserção nesta ordem.

136 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 22.

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Para a Psicanálise, o sujeito só pode se constituir em um ser que pertence à espécie humana

pela entrada em uma ordem social a partir da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos. Sem

isso, ele não só não se tornará humano como tampouco se manterá vivo. Sem a ordem familiar e

social, o ser da espécie humana morrerá.

Assim, o inconsciente emerge nas palavras estruturadas como linguagem.

3 - NECESSIDADE, DEMANDA E DESEJO

O desejo é um dos pontos centrais da Teoria Psicanalítica e ele não tem nada haver com a

questão da necessidade, sentido que habitualmente utilizamos.

A necessidade, tal como o desejo, implica em uma tensão interna que impele o organismo

numa determinada direção. A diferença fundamental entre ambos está pautada no fato de a

necessidade ser uma tensão de ordem física, biológica que encontra sua satisfação através de uma

ação específica que permite a redução desta tensão, enquanto que o desejo implica uma relação com

um objeto para sempre perdido.

A necessidade implica satisfação; o desejo jamais é satisfeito. O desejo pode realizar-se em

objetos, mas não se satisfaz com esses objetos. O desejo implica um desvio ou uma perversão da

ordem natural, o que torna impossível sua compreensão a partir de uma redução à ordem biológica.

Garcia-Rosa137 explica que a relação do desejo com o objeto é, na Teoria Psicanalítica,

diferente em tudo daquela que caracteriza a relação da necessidade com o objeto numa teoria

biológica. O objeto do desejo é uma falta e não algo que propiciará uma satisfação. Ele é marcado

por uma perversidade essencial que consiste no gozo do desejo enquanto desejo. A estrutura do

desejo implica essencialmente nessa inacessibilidade do objeto e é precisamente isso que o torna

indestrutível.

Freud nos fala do modelo de constituição do desejo com base na primeira experiência de

satisfação. Um bebê recém-nascido, premido pela fome, chora, esperneia e agita os braços numa

tentativa inútil de afastar o estímulo causador da insatisfação. Neste momento inaugura a sua

existência. A intervenção da mãe oferecendo-lhe o seio tem como efeito a redução da tensão,

decorrente da necessidade e uma consequente experiência de satisfação. Daí por diante, uma

imagem mnêmica permanecerá associada ao traço de memória da excitação produzida pela

necessidade, de tal forma que, na vez seguinte em que essa necessidade emerge, surgirá

137 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 145. ApudSigmud, Freud. A interpretação dos sonhos (1900), in ESB, Vol. IV e V, Ed. Imago, Rio de Janeiro, p. 602.

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Page 87: A subjetividade como mercadoria

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imediatamente um impulso psíquico que procurará recatexias à imagem mnemônica da percepção e

reevocará a própria percepção, isto é, restabelecerá a situação de satisfação original. Um impulso

dessa espécie é o que chamamos de desejo138.

O que caracteriza esse desejo para Freud é esse impulso para produzir alucinatoriamente uma

satisfação original, isto é, um retorno a algo que já não é mais um objeto perdido e cuja presença é

marcada pela falta, daí dizer que o desejo é a presença de uma ausência, a nostalgia do objeto

perdido.

A Psicanálise pensa o sujeito em sua raiz como social, ou seja, a constituição do sujeito está

totalmente atravessada pelo social sendo essencial para a constituição do sujeito do inconsciente.

Segundo Elia139, quando um bebê aparece na cena do mundo, o primeiro fato a se considerar

como ponto prévio de seu percurso na direção de se tornar um sujeito é que ele é um locus de uma

imperiosa necessidade de sobrevivência.

Muito antes de o bebê nascer, ou seja, de um ser humano surgir na cena do mundo com a

possibilidade de se tornar um sujeito, o campo em que ele aparecerá já se encontra estruturado,

constituído, ordenado.

O sujeito só pode se constituir em um ser que pertence à espécie humana ao entrar numa

ordem social a partir da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos. Sem isso ele não só se

tornará humano como tampouco se manterá vivo. A essa condição Freud deu o nome de desamparo

fundamental do ser humano, que exige a intervenção de um adulto próximo que perpetre uma ação

específica, necessária à sobrevivência do ser humano desamparado.

Mas, a necessidade é uma condição animal, do plano natural, biológico. Ao encontrar a

satisfação, através de uma ação específica que impele o organismo numa determinada direção, há

uma baixa da tensão que gerou a necessidade. Nenhum ser humano tem a possibilidade de

experimentá-la como tal. Não é possível o ser falante experimentar a realidade fora do campo da

linguagem, ou seja, o que quer que seja a necessidade ela só pode ser experimentada pelo sujeito

fragmentada pelo Significante.

Para a Psicanálise, a necessidade não faz parte da história do sujeito, este tempo da

necessidade é mítico. Se nascemos com necessidades, nunca a experimentamos pura ou diretamente,

138 Ibidem, p. 602.139 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 44.

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Page 88: A subjetividade como mercadoria

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ou seja, sem a mediação da linguagem140. Não se reconduz o sujeito ao plano do inatismo pelo viés

de suas necessidades vitais. Quando o bebê nasce já há a intermediação da linguagem para atender a

ação específica de sobrevivência a fim de que ele mantenha sua existência.

A psicanálise não desconsidera que tenhamos um organismo e que este é regido por leis

naturais e biológicas, nem afirma que as vicissitudes deste organismo não afetam o sujeito. No

entanto, a experiência que temos do nosso organismo, de suas exigências, proezas, debilidades ou

doenças, nós só a temos através do campo da significação, do sentido, ou seja, pelo fato de que, por

sermos falantes, somos marcados pela linguagem, pelo significante, mesmo no mais extremo nível

de intimidade que possamos estabelecer com nosso órgão e com nosso corpo.

Incidentalmente, a mediação do significante faz com que experimentemos nossa condição

orgânica não como um todo, não no peso de uma unidade vital, em bloco, mas por fragmentos,

pedaços, com os quais sonhamos, imaginamos, fantasiamos, enfim, representamos para nós mesmos.

Contudo, esta condição de necessidade, mesmo excluída do processo de sua constituição,

deixará marcas no sujeito. Não diretamente como dissemos, mas como uma herança a ser retomada

posteriormente e ressignificada pelo sujeito, fazendo uso do significante por isso.

O sujeito vive num mundo em que suas necessidades são reduzidas ao valor de troca. O seio

e o excremento, como objetos de necessidade, entram no jogo da linguagem não como objetos e sim

como significantes: eles são “objetos significantes”.

Mas nem tudo está dentro dos significantes: o que está “alienado as necessidades, constitui

recalque originário por não poder hipoteticamente articular-se na demanda, aparecendo, porém, num

rebento, que é aquilo que se apresenta no homem com o desejo141”.

Tem-se, assim, a indicação do desejo fora do significante. E Lacan dá a seguinte imagem

dessa relação: “o desejo se esboça na margem onde a demanda se rasga da necessidade142”.

Conclui-se, desta forma, que quando o sujeito nasce ele perde a essência da necessidade pela

introdução do Significante que atende sua demanda de sobrevivência.

A satisfação da necessidade vital de sobrevivência é perdida como natural, com a introdução

da linguagem. Há o registro da representação dessa experiência, onde o objeto da necessidade passa

a objeto de desejo. O psiquismo procura reencontrar o objeto como foi registrado. Essa busca é o

desejo.

140 Ibidem, p. 45.141 Lacan, Jacques. A significação do falo. Escritos, 1998, p. 697.142 Lacan, Jacques. A direção do tratamento e os Princípios de seu poder. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988, p. 828.

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Page 89: A subjetividade como mercadoria

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Freud demarcou o surgimento do sujeito em sua dependência do Outro e da linguagem. A

mãe ocupa este lugar do Outro e representa a cultura e ainda exerce a função de despertar seus

desejos. Já Lacan propõe a categoria de Outro para designar não apenas o adulto próximo de que

fala Freud, mas também a ordem que este adulto encarna para o ser recém-aparecido na cena de um

mundo já humano, social e cultural143.

Para Elia, este Outro designa a função de cuidar do bebê e também toda uma ordem

simbólica que a mãe introduz no seu ato de cuidar. O Outro é o esqueleto material e simbólico dessa

ordem, sua estrutura significante, o que permite, portanto, dizer que a ordem do Outro, que a mãe

encarna para o bebê, é uma ordem significante e não significativa144.

O que chega ao bebê é um conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes –

introduzidas pelo Outro materno, que suscitarão, no corpo do bebê, um ato de resposta que se chama

sujeito.

Assim, Freud passou a considerar as relações que um indivíduo tem com o Outro como

fenômeno social, reconhecendo este Outro como peça fundamental na constituição da subjetividade,

uma vez que acumula a função de transmitir a cultura e a linguagem que o determina

simbolicamente. E é este primeiro Outro que constitui o sujeito e o insere no campo social. Freud

afirma que o indivíduo irá se posicionar de acordo com as leis que o marcam.

Conforme Quinet145, o desejo do homem é constituído, formado, a partir e através do desejo

do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro”, assim já dizia Lacan. Este é um tema

hegeliano que Lacan tomou emprestado da leitura de Kojève da Fenomenologia do Espírito,

sobretudo da dialética do senhor e do escravo, no que diz respeito a teoria do desejo.

Antes de adentrarmos ao desejo sob o enfoque dado pela psicanálise, veremos a concepção

da fenomenologia hegeliana no livro “Freud e o Inconsciente” de Garcia-Rosa.

Fenomenologia hegeliana nada mais é do que a descrição que tem a historia do homem

seguida pela consciência até chegar a autoconsciência.

Num primeiro momento, o homem é consciente, ou seja, consciência do mundo exterior. Em

seguida, o homem aparece como um para-si, autoconsciência, ou seja, consciência de si mesmo e

também consciência do outro como um para-si. É na realização entre dois para-si que o desejo se

143 Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 39.144 Ibidem, p. 40.145 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2008, p. 91.

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constitui como desejo humano. Num terceiro momento, vem a razão: o homem como em-si e para-

si146.

O que interessa para a explicação do desejo em Hegel é a passagem da consciência para a

autoconsciência, passagem esta feita pelo Desejo.

Essa consciência é a maneira de interação do homem no mundo exterior. A certeza que essa

consciência oferece não é a verdade, é abstrata na medida em que nem mesmo constitui ainda um

sujeito. O que se revela é o objeto e não o sujeito147.

O sujeito surgirá somente a partir do desejo. É pela ação de assimilar o objeto que o homem

se vê como oposto ao mundo exterior.

O desejo é um vazio que será preenchido pela transformação e assimilação do objeto.

Se o desejo estiver voltado para um objeto natural, uma coisa, o Eu produzido por sua

satisfação jamais se constituirá como autoconsciência, permanecerá ao nível de um sentimento de

si148.

O desejo só será humano quando se dirigir para um objeto não-natural, caso contrário, ele

permanecerá sendo um desejo natural e o Eu continuará também sendo natural, isto é, animal149.

Assim sendo, para que o desejo se torne humano, ele só pode ter por objeto um outro desejo,

conforme reconhecido por Lacan.

Desejar o desejo do outro, eis o que caracteriza o Eu como Eu humano. O desejo humano

pode desejar um objeto desde que este objeto esteja mediatizado pelo desejo do Outro.

Todo desejo humano é um desejo de valor. O que o desejo humano deseja é ser reconhecido

como desejo e para que o outro reconheça meu desejo, ele tem de se submeter aos valores que meu

desejo representa, ou seja, só posso afirmar o meu desejo na medida em que nego o desejo do outro

e tento impor a este outro meu próprio desejo. Ocorre que este outro, enquanto desejo humano,

também procura fazer o mesmo comigo150.

O encontro de dois desejos é o confronto de duas afirmações que procuram através da

negação do outro (transformação e assimilação) o reconhecimento.

Trata-se assim, de uma luta na qual um dos dois desejos terá de ser destruído, pois

reconhecer o desejo do outro é fazer seu o valor que o desejo do outro representa. Nessa luta cada

146 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 140.147 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 141.148 Ibidem, p. 142.149 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 142.150 Ibidem, p. 144.

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um dos indivíduos arrisca a própria vida pelo reconhecimento, todavia, os adversários precisam

permanecer vivos. A morte tornaria impossível o reconhecimento151.

Assim, para que o vencedor seja reconhecido pelo outro, é imprescindível que o outro

permaneça vivo. Isso só é possível se o perdedor, não querendo morrer, aceita ser submetido e,

nessa medida, reconheça o vencedor como seu Senhor, reconhecendo-se a si mesmo como

Escravo152.

O desejo (inconsciente) revelou que a razão é menos poderosa do que se suponha, pois a

consciência é, em grande parte, dirigida e controlada nas forças profundas e desconhecidas. Essa

noção pôs em dúvida a crença na qual a verdade habita a consciência.

Freud acentua: “A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor da sua

própria casa, mas também esta reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas

daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica”153.

Conforme Garcia-Roza, o homem como consciência é dotado de um “desejo”. Esse “desejo”

importa reconhecimento que leva a uma ação que dará origem a autoconsciência. Antes de ter

constituído o Eu através da palavra, a autoconsciência estava instalada na certeza do cogito. Essa

certeza é subjetiva e se ela não quiser permanecer prisioneira da própria subjetividade, necessitará

objetivar-se pelo reconhecimento154.

A autoconsciência só existe enquanto reconhecida, daí a luta que vai caracterizar a chamada

“dialética” do senhor e do escravo.

Este desejo é formulado inicialmente em termos de desejo de reconhecimento pelo outro,

como vimos, na dialética do senhor e do escravo. Foi um apólogo construído por Hegel para ilustrar

como o homem, definido pela consciência que tem de si mesmo, se constitui, como é estabelecida a

dissimetria entre o Senhor e o Escravo e como se daria a saída dessa situação155.

Quinet escreveu de forma clara essa concepção no qual buscamos para esclarecer a formação

do desejo. A dependência do sujeito em relação ao outro é encontrada desde a primeira fase da

dialética do senhor e do escravo que, de fato, se chama “independência e dependência da

consciência de si; dominação e servidão”. A consciência de si é em si e é para si, quando e porque

151 Ibidem, p. 143.152 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 143.153 Freud, Sigmund. Em As cinco lições sobre a Psicanálise, vol. XVI, das obras completas, Rio de Janeiro,Imago, 1988, p. 15.154 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 143.155 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,2008, p. 91.

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ela é em si e para si para uma outra consciência de si, isto é, ela só existe (ou é) enquanto ser

reconhecido, conforme vimos anteriormente156.

O homem contemplando uma coisa, um objeto, é absorvido pela coisa e se esquece, ele não

pensa nem em seu ato de contemplar nem em seu eu. Ele pensa na coisa e não esta ai para dizer

“eu”, pois a contemplação revela o objeto, mas não o próprio sujeito. O que chama o sujeito a si

mesmo, fazendo-o sair dessa contemplação é o desejo que para Hegel é um desejo consciente que

lhe permite designar-se como um sujeito dentro desse ato de contemplação da coisa.

Quinet fazendo um contraponto com a diferenciação entre desejo e necessidade, explica que:

o desejo animal ou natural é algo que equivale à necessidade, na medida em que o desejo animal é o

desejo da coisa, conferindo-lhe o sentimento de si. O desejo da coisa é necessário, mas não

suficiente para constituir o que é propriamente humano, que não é o sentimento de si, mas a

consciência de si. O eu animal tem o desejo imediato da coisa e este o leva a satisfazê-lo pela

negação da própria coisa, ele nega a coisa destruindo-a, por exemplo, comendo-a.

O desejo, para que seja humano, deve incidir sobre um objeto que não seja um objeto natural

e sim um objeto que ultrapasse a realidade dada. Segundo Hegel, a única coisa que ultrapassa a

realidade humana é o desejo, pois o desejo, antes mesmo da satisfação, é um vazio, um vazio irreal,

um nada revelado157.

O desejo humano, para se constituir como tal, é um desejo que incide sobre um objeto. O

“desejo” animal incide sobre um objeto, sobre a coisa e o desejo humano incide sobre um outro

desejo. É um desejo de desejo. O desejo que incide de forma imediata sobre um objeto natural só se

torna humano quando é mediatizado pelo desejo do Outro. Tanto o “desejo” animal quanto o desejo

humano tendem a se satisfazer, porém o desejo humano se nutre de desejos e o “desejo” animal de

objetos da realidade158.

Todos os desejos animais se detêm diante de um desejo humano que só é averiguado

enquanto tal quando o sujeito arrisca a sua vida em função do seu desejo. Trata-se de uma luta de

prestígio com o outro em vista do reconhecimento de seu desejo, o que leva o humano a arriscar a

própria vida. O resultado dessa luta introduz na dialética da constituição da consciência de si a

dissimetria entre o senhor e o escravo: o senhor é o senhor porque arriscou a sua vida e o escravo

não159.

156 Ibidem157 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2008, p. 92.158 Ibidem.159 Ibidem.

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Assim, desejar um desejo é querer deter o valor desejado pelo desejo do outro. Desejar o

desejo do outro é desejar que o valor que sou ou que represento seja o valor desejado pelo outro.

Quero que ele reconheça meu valor como se fosse o seu; quero que ele reconheça o meu valor como

um valor seu; quero que ele me reconheça como um valor autônomo. Todo desejo humano para

Hegel é, portanto, desejo de reconhecimento. O desejo humano é gerador da consciência de si e o é

em função desse desejo de reconhecimento160.

A diferença entre Hegel e Lacan no que diz respeito ao desejo é que, se para Hegel o desejo

do homem é o desejo do outro (com minúscula), para Lacan o desejo do homem é o desejo do Outro

(com maiúscula). Em Hegel, meu desejo depende do outro como desejante e como consciência,

estando, como desejo interessado numa luta de prestígio com o outro para ser por ele reconhecido.

Para Hegel, o outro é aquele que esta presente e que me vê e contra quem eu luto. Para Lacan, o

Outro se apresenta como inconsistência e inconsciência. O inconsciente é o discurso do Outro. É

justamente por existir uma falta inscrita no Outro que o Outro diz respeito ao desejo do sujeito, pois

é ao nível do que falta no Outro que sou levado a buscar aquilo que me falta, o que me falta como

objeto do meu desejo. O Outro para Lacan é o lugar de significantes, mas também o lugar onde se

institui o Outro da falta, pois falta o significante que o definiria como uma totalidade161.

O inconsciente como discurso do Outro é constituído pela cadeia significante por onde

circula o desejo inconsciente; esse Outro é o lugar da fala, da Outra Cena, segundo Freud162.

No que diz respeito à função do reconhecimento em relação ao desejo, Lacan o articula ao

nível da fala, na dimensão em que o desejo do sujeito é autêntico no plano simbólico. No seminário

1, em relação ao registro simbólico, o desejo é situado como devendo ser reconhecido e nomeado,

ou seja, ele pode ser dito como desejo de alguma coisa. No seminário 2, apesar de encontrarmos a

função do reconhecimento ligada ao desejo, Lacan aponta que o “desejo é desejo de nada, é desejo

de nada nomeável”. Por trás daquilo que se pode nomear do desejo, encontra-se o que há de mais

inominável: a morte, que aparece então como o que do desejo não tem nome163.

Desta forma, Quinet escreveu em seu livro “A descoberta do inconsciente: do desejo ao

sintoma”, de forma bem clara a concepção que Lacan buscou da teoria do desejo em Hegel, o que

nos permitiu encontrar no ensino de Lacan a função de reconhecimento ligada inicialmente ao

160 Ibidem.161 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,p. 92.162 Ibidem163 Ibidem, p. 94.

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Page 94: A subjetividade como mercadoria

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desejo dentro de uma concepção hegeliana. Mas tarde ela passou a dar lugar ao desejo de

reconhecimento como uma modalidade de demanda, como veremos adiante.

Lacan desvinculará completamente o desejo da função de reconhecimento, pois o desejo não

pede para ser reconhecido nem o sujeito quer reconhecer o desejo, este pode ser apreendido apenas

na interpretação. O desejo está sempre em alteridade em relação ao sujeito, furtando-se, esquivando-

se, pois se encontra no lugar do Outro.

Para Sadala164, a entrada do sujeito na cultura é efeito do estabelecimento de uma lei

simbólica que o constitui o sujeito do desejo. O sujeito da psicanálise não é natural, é uma

construção, que, segundo a autora, se faz através das articulações com o social. E o que caracteriza o

desejo é a presença de uma ausência. O desejo é o objeto perdido. O desejo requer o ato constitutivo

do sujeito para se fazer como falta. É a falta fundante deste, um “buraco” em nossa alma. Essa falta

é que nos faz sujeito da cultura. Carregamos o vazio da natureza assassinada.

O sujeito é desejo. A existência do sujeito é correlativa à insistência da cadeia significante do

Inconsciente, porém como exterior a ela: é uma ex-sistência. Desejo, logo ex-sisto.

No texto A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud desvela as leis do Inconsciente, fazendo

emergir o sujeito do desejo como sujeito determinado pelas leis da linguagem, ou seja, por leis em

que as palavras são tratadas como sinais sonoros, significantes, sem significados, por onde desliza o

desejo. O significado dela, na verdade, o desejo, tão fugaz quanto ao sujeito que aí se manifesta. O

sintoma nos indica que o passado é atual e o desejo eterno dói165.

O sintoma, portanto, é uma metáfora onde se presentifica a articulação da lei como desejo,

desejo que aí se manifesta em suas impossibilidades. Lá onde está o sintoma, está o sujeito166.

O sujeito da psicanálise é trágico porque está marcada pela determinação a que está

submetido e que torna seu destino inelutável, preso às suas determinações e está a elas condenado,

mesmo no exercício da sua liberdade que é a insistência no seu desejo.

Lacan diz que o trágico do sujeito é que, na exigência ética de não ceder de seu desejo, de

não aceitar abrir mão dele, ele acaba sempre traído, não cede, malgrado à traição, e segue solitário

até a morte, não se dobrando ao bem-estar egoico ou ao princípio do prazer167.

164 Sadala, M.G.S. No avesso da comun(ic)ação – para uma ética do dizer. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2001. Tese(Doutorado em Comunicação) Universidade Federal do Rio de Janeiro.165 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,, 2008,p. 16-7.166 Ibidem, p. 19.167 Pacheco, Orlandina Mc de Assis. Sujeito e Singularidade. Ascensão, crise e recuperação do sujeito. 1ª ed. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 72.

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Page 95: A subjetividade como mercadoria

103

O sujeito é dividido entre o eu e o inconsciente, entre um sentido inevitavelmente falso e o

funcionamento automático da linguagem, cadeia significante no inconsciente168. O sujeito para a

Psicanálise é essa lembrança apagada, esse significante que falta, esse vazio de representação em

que se manifesta o desejo, ou seja, não há representação própria para o desejo169.

O desejo é o resto da operação de subtração da demanda à necessidade. É articulado no

inconsciente e por isso não é articulável pelo sujeito. O objeto da causa do desejo é o objeto a –

faltoso – que impulsionará o sujeito para buscar sua satisfação (irrealizável).

Segundo Garcia-Roza, o sujeito não tem substância, não é o eu, aquilo que apresento ao

outro. O que o sujeito apresenta é seu eu-ideal, auto-retrato pintado, segundo as línguas mestras das

ideias daqueles que constituíram os Outros primordiais em sua existência. Imagem pintada com as

tintas do desejo dos ancestrais, que vão compor os matizes de seu eu pela via da linguagem,

constituindo, assim, o eu como um retrato falado170.

No livro “A descoberta do inconsciente: do sintoma ao desejo”, Quinet coloca que o sujeito

não é o homem, e sim a mente suscetível de estar doente ou saudável. A existência do sujeito é

correlativa à insistência da cadeia significantes do inconsciente171.

No campo da Psicanálise, o desejo portanto, não é o mesmo entendido pela biologia, não o é

como satisfação de uma necessidade, mas um desejo desnaturalizado e lançado na ordem simbólica.

E ele só pode ser pensado na sua relação com o desejo do Outro, e aquilo para o qual ele aponta não

é objeto empiricamente considerado, mas uma falta172.

Elia chama atenção para o fato de que só por uma falta no nível do ser, do ser vivo natural,

que o sujeito tem a condição de emergir como tal. Isto significa que esta falta fundadora do sujeito

não se produz por si mesmo ou por algum processo natural e tampouco cultural, já que a cultura

carece tanto quanto o sujeito de uma teoria que possa explicar, no plano estrutural, sua constituição

e seus processos, mas requer falta. Trata-se de uma condição que comporta algo de paradoxal: a

falta é fundante do sujeito, mas, em contrapartida, requer o ato do sujeito para se fundar como falta.

Só há falta no nível do ser se houver sujeito e, concomitantemente, o sujeito é correlato ativo da

falta. E é esta falta o que nos faz sujeitos da cultura173.

168 Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 1998, p. 67.169 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,p. 13.170 Ibidem, p. 15.171 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,p. 16.172 Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1999. p. 139.173 Elia, Luciano. O Conceito de sujeito. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 49.

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Page 96: A subjetividade como mercadoria

104

A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem leis e comporta desejos sobre o

qual nem sempre o sujeito quer saber174. Esse desejo, portanto, alçado à categoria de referencial

central da teoria psicanalítica, nada tem a ver com a concepção naturalista ou biológica de

necessidade.

A própria variabilidade do objeto já assinala o seu caráter de representante do objeto perdido.

O objeto do desejo não é uma coisa concreta que se oferece ao sujeito, ele não é da ordem das

coisas, mas da ordem do simbólico. O desejo desliza por contiguidade numa série interminável, na

qual cada objeto funciona como significante para um significado que, ao ser atingido, transforma-se

em novo significante e, assim sucessivamente, numa procura que nunca terá um fim porque o objeto

último a ser encontrado é o objeto perdido para sempre. Toda satisfação obtida coloca

imediatamente uma insatisfação, que mantém o deslizamento constante do desejo nessa rede sem

fim de significantes175.

O desejo, com efeito, se coloca de objeto em objeto sem nenhum respeito pelo que seria uma

orientação “natural”. E, mesmo se Freud isola alguns termos que serão investidos de um valor

particular para o sujeito, estes, a nível inconsciente, podem se equivaler. O desejo é inconsciente e

não pode ser controlado176.

A demanda do sujeito provém do Outro, sendo datada do lugar do Outro, lugar originalmente

ocupado pela mãe e o desejo é articulado através da demanda, transparecendo na enunciação dos

significantes.

A demanda é portanto aquilo que se enuncia na cadeia de significantes, onde se articula o

desejo como efeito metonímico, na medida em que este passa de um para um outro significante

rolando como um dado lançado na fala. De palavra em palavra temos o desejo como efeito

metonímico da demanda177.

Não há sujeito único, unidade original e fonte irredutível do desejo, que se desconhecem em

parte, mas dois sujeitos: o sujeito do enunciado e o da enunciação. O sujeito do enunciado é o

sujeito social, portanto do discurso manifesto, sujeito às leis do processo secundário, porém

desconhecedor do sujeito da enunciação e do conteúdo da mensagem. O sujeito da enunciação é, por

174 Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.21.175 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 145.176 Goldemberg , Ricardo. Goza! Capitalismo, globalização e Psicanálise. Salvador: A’lgama, 1977, p. 27.177 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,2008, p. 96.

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Page 97: A subjetividade como mercadoria

105

sua vez, excêntrico em relação ao sujeito do enunciado. Ele não é expresso ou significado no

enunciado, mas recalcado e inconsciente178.

São, portanto, dois sujeitos que estão em jogo: aquele que enuncia a mensagem (sujeito do

enunciado) e aquele outro ligado aos elementos significantes do inconsciente (sujeito da

enunciação), excêntrico em relação ao primeiro. A prática psicanalítica se propõe a tornar explícito

o sujeito da enunciação, partindo do sujeito do enunciado. Por quê? Porque se trata da emergência

do sujeito que não cede de seu desejo.

Assim, a demanda está para o enunciado como o desejo está para enunciação. O enunciado

de uma fala é da ordem da demanda, mas é em sua enunciação, na modalização do dito, sua

entonação, suas pausas, sua cadência, sua rapidez ou sua lentidão, na ênfase ou na elipse de suas

palavras que rola o desejo179.

A demanda de sarar, a demanda de interpretação, do que fazer, enfim, todas as demandas

desse tipo, que são demandas de alguma coisa, referem-se estruturalmente à demanda intransitiva,

que no fundo é uma demanda de amor. A demanda é incondicional, não trazendo nenhuma

possibilidade de negociação, nem admitindo condição alguma e tampouco comporta um objeto,

como é o caso da necessidade. É demanda de presença ou de ausência, como podemos verificar na

relação primordial do sujeito com a mãe, pois esta, no lugar do Outro, tem o privilégio de satisfazer

as necessidades e também de privar delas as crianças. A demanda que a criança faz ao Outro

materno se situa o nível daquilo que o Outro não tem, isto é, do seu amor, na medida em que “amar

é dar o que não se tem”, segundo definição de Lacan. Quando a mãe dá aquilo que tem, aquilo que

pode oferecer não se trata de prova de amor, ou seja, trata-se efetivamente de demanda de amor por

onde circula o desejo como desejo de outra coisa180.

Desta forma, a demanda do sujeito se constitui, portanto, a partir da demanda ao Outro e da

demanda do Outro. Essa demanda do Outro é incondicional e o sujeito diante dela se vê assujeitado.

O desejo, mais propriamente, a ética do desejo, é o que vai permitir ao sujeito destacar-se, desligar-

se do Outro, ele derruba o incondicional da demanda do Outro, o desejo é portanto uma defesa

contra a demanda do Outro, e que demanda é esta? É a de que o sujeito lhe dê o complemento que

178 Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Ed. Jorge Zahar, 8 Ed. Rio de Janeiro, 1999, p. 150.179 Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2008, p. 90.180 Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,2008, p. 96.

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Page 98: A subjetividade como mercadoria

106

lhe falta, o falo181. E de que se trata no capitalismo como vimos no primeiro capítulo, de tratar a

subjetividade como mercadoria.

Veja-se que numa análise não se trata de saber o que o sujeito demanda, mas sua relação com

a demanda inconsciente do Outro, sendo que o desejo, por ser vinculado à lei, é aquilo pelo qual o

sujeito se situa em relação a ela podendo inclusive dizer-lhe não. O desejo se apóia na lei que o

constitui e com a qual está estruturalmente associado para derrubar o incondicional da demanda do

Outro, colocando-se, para o sujeito, como condição absoluta.

Lacan, sobre a relação da demanda do sujeito, diz: “o que esta em questão nada mais é que a

emergência da manifestação do desejo do sujeito” (...) “A demanda não é explícita”(...) “Ela é oculta

para o sujeito, ela é como algo que deve ser interpretado. É aí que reside a ambiguidade”182.

O querer da demanda nos apresenta um sujeito, o sujeito desejante.

Segundo Quinet, apesar de não se inscrever no significante, o desejo só pode ser inferido a

partir da demanda, que se manifesta em cada fala. E esta, na medida em que é constituída pelos

significantes emitidos pelo sujeito, tem apenas um significado: o desejo, que é causado pelo objeto

a. Trata-se do desejo como vetor, que se presentifica articulado através dos significantes da

demanda.

4 – ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO OU É POSSÍVEL RESISTIR AO CONSUMISMO?

Lacan avança na teoria do desejo elaborando as noções de alienação e separação. O desejo

freudiano, assinalado por Lacan, é de que ele escapa à síntese do Eu. O Eu não é uma realidade

original, fonte substancial do desejo, mas algo que emerge a partir de um determinado momento

como operador das resistências e somente podendo ser pensado por referência a um Outro. O Eu não

pode ser pensado de forma unitária, nem tampouco pode ser identificado ao sujeito; ele é um termo

verbal cujo uso é apreendido numa certa referência ao Outro, como escreveu Lacan. O Eu surge

somente através da linguagem e por referência ao Tu. Ele é caracterizado por um desconhecimento

dos desejos do sujeito e não aquilo que se apresenta como fonte última dos desejos183. É por

referência ao Outro que o sujeito se constitui como um Eu184.

Nessa primeira fase de constituição do desejo, ele ainda não se reconhece como tal. É no

Outro ou pelo Outro que esse reconhecimento vai se fazer numa relação dual especular que o aliena

181 Ibidem, p. 97.182 Lacan, Jacques. Livro 8. A transferência. 1960/61, p. 198.183 Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 146.184 Ibidem, p. 205.

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Page 99: A subjetividade como mercadoria

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nesse Outro, ou seja, na relação do sujeito com o Outro, interferindo na subjetividade do sujeito. O

destino do ser falante é se alienar ao outro. A separação dessa alienação requer o ato de

esclarecimento e vontade.

De um lado o sujeito está dividido e do outro há a cadeia significante. O outro não é nada a

não ser significante e o sujeito precisa entrar nessa cadeia para se constituir, alienando-se.

A relação do sujeito com o Outro é trazer dele significante. O significante é o que apresenta

o sujeito para outro significante. O sujeito petrifica num significante ou desliza nos sentidos, o que

está ligado à condição humana de vacilação, que é a nossa tragédia. Desde sempre somos alienados

à linguagem, passando a ser sujeito dividido, que é e não é ao mesmo tempo e que fala e desfala o

tempo todo.

No momento em que o sujeito se identifica com um significante, petrifica-o, alienando-o. Ele

se associa a este significante e segue sua vida toda alienado a ele. Petrificado, o sujeito perde a

oportunidade de ter outros significantes, o que seria necessário despetrificar para fazer deslizar os

sentidos. Sempre haverá uma possibilidade de escolha do sujeito, ou seja, sua responsabilização.

Como vimos, pelo fato do sujeito nascer no campo do Outro, este nascerá com significante e

será dividido. O sujeito do inconsciente esta sobre este significante que desenvolve suas redes,

cadeias e sua história.

Para Lacan, o sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que

apenas aparecido, se coaduna em significantes185.

E nesse caminho, é preciso que o Outro organize e ordene o mundo imaginário no qual o

sujeito se aliena para remetê-lo a ordem simbólica. Através do Outro da linguagem se dará a

identificação do sujeito sendo-lhe permitido, desta forma, incluir-se na ordem simbólica. Alienar-se

no significante é a única maneira de entrarmos no mundo.

Podemos dizer que a alienação consiste na causa do sujeito pelo desejo do Outro que

precedeu seu nascimento. Na alienação, há uma “escolha forçada” que descarta o ser para o sujeito,

instituindo em seu lugar a ordem simbólica e relegando o sujeito a mera existência como um

marcador de lugar dentro dessa ordem. Não é isto que o consumismo denuncia?

A alienação reside nessa entrada no campo do Outro. O significante advém do campo do

Outro e marca o sujeito, mas o sujeito marcado pelo significante, petrificado sob o significante.

Assim, ou você é representado pelo significante ou você não é sujeito.

185 O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 194.

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Page 100: A subjetividade como mercadoria

108

O sujeito petrificado pelo significante é um sujeito que não faz qualquer pergunta. A

definição mais simples de um sujeito petrificado é a daquele que não se questiona sobre si mesmo.

Recusa-se mesmo a pensar sobre si.

Colette Soler, nos explica em seu artigo “O sujeito e o Outro”:

“O Outro precede o sujeito como lugar da linguagem – o Outro que fala

precede o sujeito e fala sobre o sujeito antes de seu nascimento. Assim, o

Outro é a primeira causa do sujeito. O sujeito não é uma substância; o

sujeito é um efeito de significante. O fato de não existir sujeito não quer

dizer que não exista nada, porque pode existir um ser vivo, mas este ser

vivo se torna um sujeito somente quando um significante o representa.

Logo, antes do surgimento do significante, o sujeito é nada186”.

O sujeito tem uma só escolha, entre petrificar-se num significante ou deslizar no sentido.

Poderá haver a separação quando terminar a circularidade da relação do sujeito com o

Outro. O sujeito encontra-se no desejo do Outro sua equivalência como sujeito do inconsciente e

descobre que o Outro é barrado, que nele também há falta.

O sujeito encontra uma falta no Outro que ele também tem. Lacan diz que uma falta cobre a

outra187. As dialéticas dos objetos do desejo esta aí, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com

o desejo do Outro.

A separação consiste na tentativa por parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo do

Outro na maneira como ele se manifesta no mundo do sujeito. Este é o ponto da teoria que mais

interessa ao nosso trabalho. Mesmo submetidos aos ditames do capitalismo, à sua força que tudo

invade, é possível se separar?

Na separação há idéias de justaposição de duas faltas. O Outro materno precisa mostrar

algum sinal de incompletude para a separação se concretizar e para o sujeito vir a ser como sujeito

barrado. Tanto o sujeito quanto o Outro estão excluídos. O ser do sujeito deve advir, de certa forma,

de fora, “como conseqüência em nem um, nem outro”188.

O Outro materno aprisiona-se como sujeito desejante, faltante e alienado, ou seja, que

também se sujeitou a ação da divisão da linguagem. O sujeito tenta preencher na separação a falta

do Outro materno, de forma que possa alinhar e conjugar essas duas faltas. Todavia, esse momento é

186 Soler, Colette. O sujeito e o Outro I e II. In: Feldestein, R; Fink, B; Jaanus, M. Para ler o Seminário 11 deLacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 52-57.187 O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 194.188 Ibidem, p. 200.

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Page 101: A subjetividade como mercadoria

109

irrealizável. A criança não poderá monopolizar por completo o espaço do desejo da mãe. O sujeito é

impedido ou barrado de tomar por completo o espaço do desejo.

Segundo Lacan, pela separação o sujeito pensa o ponto fraco da articulação significante, no

que ela é de essência alienante. É no intervalo entre esses dois significantes que aparece o desejo,

estrutura mais radical da cadeia significante é o lugar freqüentado pela metonímia, veículo do

desejo. Daí a metonímia esta ligada a falta-a-ser e remeter a essa divisão do sujeito.

A falta-a-ser é própria da alienação e é reencontrada na operação de separação. É na

separação que intervém a instancia da castração.

A alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a alienação. É um destino

ligado à fala. Mas a separação não é destino, é escolha. A separação é algo que pode ou não estar

presente. Portanto, se há uma generalização do consumismo, isto também deve ser atribuído, parte

da responsabilidade, ao sujeito que se deixa superendividar. Podemos pensar naquele que não se

deixa atrair pelos falsos prazeres do consumismo, como um “sujeito da enunciação”, um sujeito que

tenha voz, que não foi calado pelos interesses vigentes do mercado.

O desejo de reconhecimento é um dos motivos para o sujeito contrair dívidas. Isto porque o

desejo humano, para se constituir enquanto tal, é um desejo que incide sobre um desejo189.

O desejo se apóia na lei que o constitui e com a qual está estruturalmente associado para

derrubar o incondicional da demanda do Outro, colocando-se, para o sujeito, como condição

absoluta.

Lacan chega a identificar essa posição do sujeito em relação à demanda inconsciente com a

posição incestuosa, o sujeito devendo escolher entre a demanda e o desejo, ou seja, entre o ser e o

ter: ser o falo ou entrar na dialética do ter ou não ter. Para não dar aqui o que ele tem (o falo), ele dá

o que não tem: o seu amor. O sujeito tende, portanto, a dar como resposta ao significante da falta no

Outro, promovendo assim sua saída da submissão à demanda do Outro190.

O desejo, ao se apresentar como pergunta, faz surgir para o sujeito algo que o faz questionar-

se, pois o desejo é um enigma, nunca se reduzindo a um objeto, a não ser de forma imaginária.

Nessa série de respostas têm-se os ideais que o sujeito constitui para si – casar, ter filhos, ser

engenheiro, advogado, ser rico, ser inteligente, ser cortês...

189 O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 92.190 Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2008, p. 98.

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Page 102: A subjetividade como mercadoria

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Estas noções – necessidade, demanda e desejo – podem nos ajudar a apreender melhor o que

é o consumismo a que muitos se escravizam, atendendo ao princípio básico da sociedade capitalista,

ou seja, à ordem: “compre”!

No entanto, essas idéias , alienação e separação nos permitem pensar o sujeito que, ainda que

submetido à lógica capitalista que rege o pensamento contemporâneo, pode escapar desta alienação,

ainda que este processo, em um primeiro tempo lhe seja constitutivo.

No Seminário 17, O avesso da Psicanálise, Lacan já nos fala de tais objetos feitos para causar

o desejo nomeando-os de latusas. Este mercado de latusas é uma das causas atuais do mal-estar na

cultura. No entanto, a psicanálise nos ensina que o sujeito pode responder a ele de várias maneiras,

resta-lhe sempre um espaço de escolha que remete a ética do desejo. Há casos de consumo marcado

por um gozo que aprisiona o sujeito numa teia embaraçosa, dentre eles os compradores compulsivos

a que nos referimos e há quem recuse o convite, afrouxando seu laço coma dominação do mercado,

evitando cair na trama do Outro191.

Segundo Sadala192, o consumismo, estatuto de parceiro dos sintomas contemporâneos, pode

ser situado numa dimensão de gozo que toma uma forma particular em cada sujeito. A insistência

em consumir pode, por exemplo, testemunhar a supremacia do ter sobre o ser. O sujeito passa a

querer ter para ser, demonstrando assim, a sua alienação ao desejo do outro.

A insatisfação insuportável resultante do reencontro fracassado com o objeto leva o sujeito a

acreditar na fantasia dos shoppings centers, em busca da satisfação completa. Como diz Lacan em

“O avesso da Psicanálise”, em todas as esquinas, atrás de todas as vitrines encontram-se esses

objetos feitos para causar o desejo. E se o sujeito aceita as ilusões impostas pelo Amo

Contemporâneo, aprisiona-se facilmente às ofertas do consumo193.

A ilusão do consumo fundamenta-se numa forma agradável de cumprir o que é condicionado

pelo mercado como as obrigações sociais, sendo, portanto, opostas à ética da psicanálise – não

ceder de seu desejo. Curar-se do consumismo é curar-se da voz imperativa do Outro. O

consumismo, como sintoma contemporâneo, convoca o sujeito apenas como consumidor e não

como sujeito do desejo194.

191 Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no X Encontrodo campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p. 66.192 Ibidem.193 Ibidem.194 Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no X Encontrodo campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p. 66.

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Page 103: A subjetividade como mercadoria

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Como vimos em Bauman, a sociedade de hoje determina que a liberdade do consumidor diz

respeito a sua satisfação com suas multiplicidades de possibilidades, todavia, o imperativo é de que

a liberdade somente pode durar enquanto permanecer irrealizada.

O valor supremo da sociedade de consumidores é a promessa de uma vida feliz. O consumo

torna-se a medida de uma vida bem sucedida, rompendo com a ética do desejo.

Há, na sociedade de consumo uma promessa de satisfazer o desejo humano. Quanto mais se

anula um sujeito, maior o lucro no mercado.

Não há uma real capacidade de analisar, pensar e questionar. O mercado não se importa com

essa questão. O que interessa é condicionar o cliente a busca da satisfação. O que se pretende é que

os experimentos consumistas tenham sido verdadeiros e totalmente realizados.

Como vimos é exatamente a não-satisfação dos desejos que constitui o verdadeiro volante da

economia para o consumidor. O domínio sobre a realidade da vida dos consumidores é condição

necessária para que a sociedade de consumidores funcione de modo adequado e se mantenha.

E assim, a tutela das situações existenciais, impõe direitos frente aos tribunais, tornando

necessário a reconstrução do ordenamento jurídico civil através de uma definição qualitativa do

valor a vida a ser então considerado.

Conhecer a constituição do desejo, ou seja, a possibilidade de escolha do sujeito, além do

papel que aí exerce o inconsciente, é a contribuição que a Psicanálise pode dar para as pesquisas que

vêm sendo feitas sobre um novo ordenamento jurídico quanto ao superendividamento esclarecer a

questão da demanda pelo consumismo.

Lacan trouxe a ética do desejo como fundamento de um sujeito que não deve se assujeitar as

demandas do mercado e como conscientizar um sujeito face as suas rupturas e diante de uma

sociedade que lhe oferece uma resposta que não terá solução?

A psicanálise oferece ao sujeito o dispositivo analítico que, através da fala, em associação

livre, pode colocar seu desejo em causa, libertando-se das ilusões e apagando os efeitos da

massificação produzida pela máquina do consumo de nosso tempo. A psicanálise aponta na direção

avessa ao consumo, que vem trazendo como consequência, o consumo próprio da subjetividade, ou

seja, a destruição ou o apagamento do desejo do sujeito.

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112

CONCLUSÃO

Em seu texto “O mal-estar na civilização” (1930), Freud aborda inicialmente a questão do

objetivo da vida humana. Apresenta a felicidade como resposta à pergunta sobre o que os homens

pedem da vida e aponta fontes de constante sofrimento para o homem: a hiperpotência da natureza, a

fragilidade de nosso corpo e a infelicidade provocada pelas relações que mantemos com nossos

semelhantes.

Segundo Freud, o ponto de partida de importantes distúrbios patológicos, está no fato de que,

diante da realidade, temos que nos capacitar para a defesa das sensações de desprazer que realmente

sentimos ou pelas quais somos ameaçados. Assim, para desviar certas excitações desagradáveis, o

ego não pode utilizar senão dos métodos que utiliza contra o desprazer oriundo do exterior195.

195 Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio deJaneiro. Imago Ed., 1997, p. 9.

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Page 105: A subjetividade como mercadoria

113

Freud anteviu, assim que a ciência e a tecnologia não são capazes de dar conta do mal-estar

inerente ao homem. De maneira oposta, na busca de garantir o seu domínio sobre a natureza e seu

poder em relação a seus pares, os homens se transformam em novos “deuses”.

Diz Freud: O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? Obter felicidade, querem

ser felizes e assim permanecer? Ou seja, visam ausência de sofrimento e desprazer e por outro lado,

gozam da experiência de intensos sentimentos de prazer196.

E continua dizendo que o que decide o propósito da vida é simplesmente o prazer. O

princípio do prazer domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Nossa

possibilidade de felicidade sempre é registrada por nossa própria constituição.

A satisfação da pulsão equivale para nós à felicidade. Um grande sofrimento surge em nós

caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas demandas197.

Freud conclui, contudo, que o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos

impõe não pode ser realizado, contudo, não devemos, ou seja, na verdade não podemos abandonar

nosso esforço de aproximarmos dessa consecução de uma maneira ou outra. Todo homem tem que

descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo198.

E Freud acrescenta dizendo que qualquer escolha levada ao extremo condena o indivíduo a

ser exposto a perigos que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre

inadequada e assim, a sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade de nossa felicidade

numa só aspiração199 .

A civilização não trouxe a felicidade almejada, como discutimos antes. O progresso

acelerado do capitalismo e suas permanentes atualizações levam o sujeito a viver no imediatismo, na

pressa, na transitoriedade e na imprevisibilidade. Esquece-se das questões fundamentais de sua vida,

principalmente da investigação do seu próprio desejo como uma questão da ética.

A sociedade de consumo e a lógica capitalista, antes de mais nada excluem as diferenças, via

regis da subjetividade. Prometem a felicidade àqueles que seguirem suas normas, sendo a mais

importante delas, o consumismo, através dos quais o sujeito se vê forçado a consumir aquilo que, às

vezes, nem mesmo deseja.

Freud considera “prazer barato” os recursos científicos trazidos pela civilização, pois toda

essa evolução não é capaz de fazer com que possamos sentir confortáveis na civilização atual.

196 Ibidem, p. 24.197 Ibidem, p. 27.198 Ibidem, p.33.199 Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio deJaneiro. Imago Ed., 1997, p. 34.

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Page 106: A subjetividade como mercadoria

114

Por ser a felicidade algo essencialmente subjetivo, o método que devemos utilizar para

examinar as coisas variam subjetivamente de vez que coloca nosso próprio estado mental no lugar

de quaisquer outro por mais desconhecido que eles possam ser200.

Destituído de sua subjetividade, o sujeito se encontra submerso no imperativo da igualdade,

sem espaço para a diferença, promovido pelo discurso da complementaridade que exclui a falta. A

psicanálise argumenta que o sujeito não cessa de buscar o objeto da completude, mas sabe-se que

este é mítico e estará para sempre perdido. Nota-se, então, que o mercado de consumo vale-se desta

condição do sujeito e apresenta de forma crescente seus produtos como objetos capazes de

preencher a falta constitutiva de todo sujeito. São renovados, na atualidade, incessantemente, meios

que supostamente preencham o vazio.

Mas sabemos também que a falta é, por outro lado, o motor para que o sujeito possa

constituir-se como sujeito do desejo.

O sujeito se aliena ao Outro do mercado de consumo e precisa se separar com a introdução

da função do pai que efetuará o corte.

O ideal cultural alienado ao consumo propõe a obturação da falta. O objeto de consumo se

oferece como primeiro objeto de satisfação, como promessa de presença sem corte. A proposta é

oferecer todo tipo de objetos para obturar os buracos de sentidos, seja psicofarmacos, objetos de

consumo, etc.

O Outro como o lugar em que se situa a cadeia significante comanda tudo que vai poder

presentificar o sujeito. Essa ligação do Outro e o sujeito é uma alienação: o sujeito só pode ser

reconhecido no lugar do Outro. Não há meios de definir o sujeito como consciência de si201.

Como foi dito, no próprio momento em que o sujeito se identifica com o significante do

Outro fica petrificado. Por exemplo, um “menino mau” é representado como um “menino mau” em

relação ao ideal de sua mãe. Logo, “menino mau” funciona para o sujeito como uma linha mestra

durante toda a vida deste. Ele é definido como se estivesse morto ou como se lhe faltasse a parte

viva de seu ser que contém seu gozo.

Mas, na primeira falta, quando o sujeito é definido por um significante mestre, uma parte do

sujeito é deixada de fora da definição total. Mesmo que ele seja um “menino mau”, ele também é

outras coisas.

200 Ibidem, p. 40.

201 Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise / Richard Felds-tein, Bruce Fink,Maire Jaanus (orgs.); tradução: Dulce Duque Estrada; revisão técnica: Sandra Grostein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.1997, Alienação e separação, Eric Laurent, p. 35.

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Page 107: A subjetividade como mercadoria

115

Assim, a união do sujeito com o Outro deixa uma perda: se o sujeito tenta encontrar-se no

Outro só pode encontrar-se no Outro como uma parte perdida.

O sujeito é fundamentalmente um objeto do gozo do Outro, e seu primeiro status é ser uma

parte perdida desse Outro. Aquilo que ele foi, como tal, no desejo do Outro, não apenas no nível

simbólico do desejo, mas como substancia real envolvida no gozo é a identificação completa. Ele só

pode tentar recuperá-lo ou identificá-lo dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes202.

O sujeito consumista é alienado ao gozo do Outro. Esse sujeito passa a ser objeto de gozo

desse grande Outro. E se consome, atendendo a demanda do grande Outro. Há uma alienação ao

objeto de gozo do grande Outro.

O consumismo pode ser um sintoma do sujeito que fica alienado a demanda do Outro do

capitalismo. Somente através da análise, até poderá se chegar a esta conclusão sobre o

comportamento compulsivo de determinado sujeito.

O que acontece é que significantes são os objetos, produtos e serviços, criados para

satisfazer um desejo que jamais será satisfeito, ilusão de uma falsa felicidade e impulso na demanda

de repetição de novos significantes impostos pelo mercado capitalista para que o sujeito se sinta

reconhecido, um ciclo vicioso que aliena sua própria subjetividade.

A separação é necessária. Deve haver a vontade do sujeito de tirar-se do outro, de safar-se do

outro, deixar de ser objeto de seu gozo. A separação é o contrário da paixão pela ignorância, vontade

de saber, responsabilizar-se. A presença do desejo na fala é a presença do que falta para se produzir

significados. Através da fala há uma demanda nem sempre identificável.

Para se escapar da função de ser objeto do Outro, a vontade de não ignorar é imprescindível.

Não se pode ignorar que se está no jogo do Outro.

Entre o sujeito e o grande Outro existe uma interseção que é um lugar de falta. O sujeito

experimenta o Outro incompleto pela falta. É este aspecto do pensamento de Lacan que

consideramos de crucial importância para este trabalho, pois nos dá subsídio para nossa reflexão

sobre a alienação dos sujeitos ao Outro - do capitalismo, da propaganda, da ciência... em uma

alienação que leva um indivíduo a se endividar. Quando isso ocorre, o sujeito não distingue mais o

que é necessidade, demanda do Outro ou desejo.

202 Ibidem, p. 44.

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Page 108: A subjetividade como mercadoria

116

Assim, com um cartão de crédito podemos buscar satisfazer incessante e imediatamente

todos os nossos supostos desejos203, permitindo muitas vezes o sujeito se superendividar. Mas a falta

continuará pulsando.

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TOJAL, A. Jornal O Globo dia 29 de setembro de 2008, primeiro caderno, coluna Opiniões.

Trabalho apresentado no 10º Congresso Internacional de Derecho Del Consumidor, Lima, Peru.

PRODUTO

A intenção é desenvolver uma série de pesquisas visando a contribuição da psicanálise ao universo

jurídico diante do fenômeno do superendividamento. Demonstrar a questão do desejo sendo

manipulado pelo mundo capitalista.

Será produzido dois produtos: o primeiro, artigo sobre a subjetividade como mercadoria e o outro

será o desenvolvimento e a publicação de um livro composto por seis capítulos de diversos autores

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Page 112: A subjetividade como mercadoria

120

sobre temas multidisciplinares no formato digital e em papel integrando diversas áreas do

conhecimento.

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