A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIA - o Conceito de Classes Populares_Eunice Ribeiro Durham

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4/6/2014 A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIA http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_07.htm 1/15 A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIA eunice ribeiro durham Introdução Durante toda a última década acumulou-se, no Brasil, um material muito rico, embora heterogêneo e fragmentado, sobre o modo de vida das classes trabalhadoras e da população pobre que habita as grandes cidades (1). Esse material resulta de grande número de pesquisas, muitas das quais realizadas por antropólogos, que abordam os temas mais diversos: a migração, a vida familiar, a situação da mulher, a alimentação, as formas de trabalho, os movimentos sociais e o que se convencionou chamar de estratégias de sobrevivência. A essa heterogeneidade de temas e problemas acrescenta-se a diversidade da própria população estudada. Quase todos os trabalhos, mas especialmente os de cunho mais antropológico, que tendem a isolar como objeto de pesquisa um local ou uma instituição, lidam com uma população muito heterogênea do ponto de vista de sua inserção no mercado de trabalho: operários, trabalhadores por conta própria e biscateiros, empregadas domésticas e pequenos funcionários públicos, empregados de empresas de serviços as mais diversas, trabalhadores domiciliares por tarefa e toda a imensa gama de empregos de baixo prestígio e parca remuneração. E, entretanto, apesar dessa diversidade, a familiaridade com essas pesquisas não pode deixar de revelar, mesmo ao investigador o mais desavisado, uma grande uniformidade no que diz respeito a valores fundamentais, hábitos, gostos e aspirações que parecem caracterizar o conjunto dessa população. Isso não é surpreendente. Podemos, com efeito, supor que as forças sociais que modelam a transformação da sociedade brasileira tendem a produzir, para os setores mais pobres da população urbana, condições de existência muito semelhantes. A uniformização do consumo criada pelo nível salarial, a existência de problemas comuns nas áreas de habitação, saúde, escolarização e acesso ao mercado de trabalho deve promover, nessa população, o desenvolvimento de tipos de sociabilidade, modos de consumo e lazer, padrões de avaliação do mercado de trabalho e formas de percepção da sociedade que lhe são próprias. Em outras palavras, podemos supor que condições de vida semelhante dêem origem a características culturais próprias. A análise das semelhanças remete, portanto, ao universo da cultura. É dessa perspectiva que a heterogeneidade inicial se dissolve. Assim, a diversidade de inserção na estrutura produtiva, se bem que fundamental quando se está a analisar o processo de transformação da sociedade capitalista, assume significado muito diverso quando apreendida da perspectiva dos sujeitos que vivem esse processo. Desse ponto de vista, a imensa gama de ocupações de baixo prestígio e parca remuneração constitui, para a população sem escolaridade e sem qualificação profissional, um mesmo conjunto de opções de trabalho que integram seu horizonte de possibilidades de emprego. A história de vida de cada um e, com muito mais razão, a de diferentes membros de uma mesma família, se constrói a partir de experiências de trabalho diversificadas que ocorrem dentro desse mesmo universo de oportunidades ocupacionais. É por isso que a análise dessas uniformidades e semelhanças, construídas ao nível da cultura, não pode ser realizada a partir dos conceitos que remetem à teoria marxista das classes sociais. O termo "classes populares", de cunho nitidamente descritivo, parece cobrir mais adequadamente esse conjunto simultaneamente diferente e semelhante e indicar que a análise está se processando num nível diverso daquele que é próprio da teoria das classes sociais. Assumindo a perspectiva da cultura, este trabalho possui um duplo objetivo: de um lado, apresenta resultados de uma pesquisa específica, realizada no CEBRAP em 1982 por uma equipe de antropólogos (2), de outro, toma como pano de fundo e referência constante toda a etnografia dispersa, nos diferentes trabalhos produzidos sobre a cidade de São Paulo. Movendo-se nestes dois planos, o artigo procura apresentar uma síntese preliminar que permita organizar com mais clareza os resultados parciais e parcialmente superpostos de todas essas pesquisas que se vêm acumulando ultimamente. Como o objetivo final é, na verdade, analisar o contexto cultural dentro do qual se movem as classes populares, o tema e o objeto da pesquisa aqui apresentada têm um valor estratégico. Trata-se de uma investigação exploratória de três cidades médias do Estado de São Paulo (Rio Claro, Marília e São José dos Campos) (3). O fato da pesquisa não se realizar na metrópole permite o confronto e a comparação com o abundante material existente sobre a cidade de São Paulo e oferece uma certa garantia de estarmos lidando com orientações culturais de larga abrangência e ampla disseminação.

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    http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_07.htm 1/15

    A SOCIEDADE VISTA DAPERIFERIA

    eunice ribeiro durham Introduo

    Durante toda a ltima dcada acumulou-se, no Brasil, um material muito rico, embora heterogneo e fragmentado, sobre o modode vida das classes trabalhadoras e da populao pobre que habita as grandes cidades (1). Esse material resulta de grande nmerode pesquisas, muitas das quais realizadas por antroplogos, que abordam os temas mais diversos: a migrao, a vida familiar, a

    situao da mulher, a alimentao, as formas de trabalho, os movimentos sociais e o que se convencionou chamar de estratgias desobrevivncia. A essa heterogeneidade de temas e problemas acrescenta-se a diversidade da prpria populao estudada. Quase todos os

    trabalhos, mas especialmente os de cunho mais antropolgico, que tendem a isolar como objeto de pesquisa um local ou umainstituio, lidam com uma populao muito heterognea do ponto de vista de sua insero no mercado de trabalho: operrios,trabalhadores por conta prpria e biscateiros, empregadas domsticas e pequenos funcionrios pblicos, empregados de empresas

    de servios as mais diversas, trabalhadores domiciliares por tarefa e toda a imensa gama de empregos de baixo prestgio e parcaremunerao.

    E, entretanto, apesar dessa diversidade, a familiaridade com essas pesquisas no pode deixar de revelar, mesmo ao investigador omais desavisado, uma grande uniformidade no que diz respeito a valores fundamentais, hbitos, gostos e aspiraes que parecem

    caracterizar o conjunto dessa populao. Isso no surpreendente. Podemos, com efeito, supor que as foras sociais que

    modelam a transformao da sociedade brasileira tendem a produzir, para os setores mais pobres da populao urbana, condiesde existncia muito semelhantes. A uniformizao do consumo criada pelo nvel salarial, a existncia de problemas comuns nas

    reas de habitao, sade, escolarizao e acesso ao mercado de trabalho deve promover, nessa populao, o desenvolvimento

    de tipos de sociabilidade, modos de consumo e lazer, padres de avaliao do mercado de trabalho e formas de percepo dasociedade que lhe so prprias. Em outras palavras, podemos supor que condies de vida semelhante dem origem a

    caractersticas culturais prprias.

    A anlise das semelhanas remete, portanto, ao universo da cultura. dessa perspectiva que a heterogeneidade inicial se dissolve.

    Assim, a diversidade de insero na estrutura produtiva, se bem que fundamental quando se est a analisar o processo de

    transformao da sociedade capitalista, assume significado muito diverso quando apreendida da perspectiva dos sujeitos que vivemesse processo. Desse ponto de vista, a imensa gama de ocupaes de baixo prestgio e parca remunerao constitui, para a

    populao sem escolaridade e sem qualificao profissional, um mesmo conjunto de opes de trabalho que integram seu horizontede possibilidades de emprego. A histria de vida de cada um e, com muito mais razo, a de diferentes membros de uma mesma

    famlia, se constri a partir de experincias de trabalho diversificadas que ocorrem dentro desse mesmo universo de oportunidadesocupacionais.

    por isso que a anlise dessas uniformidades e semelhanas, construdas ao nvel da cultura, no pode ser realizada a partir dosconceitos que remetem teoria marxista das classes sociais. O termo "classes populares", de cunho nitidamente descritivo, parececobrir mais adequadamente esse conjunto simultaneamente diferente e semelhante e indicar que a anlise est se processando num

    nvel diverso daquele que prprio da teoria das classes sociais.

    Assumindo a perspectiva da cultura, este trabalho possui um duplo objetivo: de um lado, apresenta resultados de uma pesquisa

    especfica, realizada no CEBRAP em 1982 por uma equipe de antroplogos (2), de outro, toma como pano de fundo e refernciaconstante toda a etnografia dispersa, nos diferentes trabalhos produzidos sobre a cidade de So Paulo. Movendo-se nestesdois planos, o artigo procura apresentar uma sntese preliminar que permita organizar com mais clareza os resultados parciais eparcialmente superpostos de todas essas pesquisas que se vm acumulando ultimamente.

    Como o objetivo final , na verdade, analisar o contexto cultural dentro do qual se movem as classes populares, o tema e o objetoda pesquisa aqui apresentada tm um valor estratgico. Trata-se de uma investigao exploratria de trs cidades mdias do

    Estado de So Paulo (Rio Claro, Marlia e So Jos dos Campos) (3). O fato da pesquisa no se realizar na metrpole permite oconfronto e a comparao com o abundante material existente sobre a cidade de So Paulo e oferece uma certa garantia deestarmos lidando com orientaes culturais de larga abrangncia e ampla disseminao.

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    A escolha da "periferia urbana" como local e tema da investigao merece uma justificao parte. A periferia

    A populao pobre est em toda a parte nas grandes cidades. Habita cortios e casas de cmodos, apropria-se das zonasdeterioradas e subsiste como enclaves nos interstcios dos bairros mais ricos. Mas h um lugar onde se concentra, um espao que

    lhe prprio e onde se constitui a expresso mais clara de seu modo de vida. a chamada periferia. A "periferia" formada pelosbairros mais distantes, mais pobres, menos servidos por transporte e servios pblicos. Obviamente, o fenmeno de formao das periferias urbanas no novo e nem sequer especificamente brasileiro. Em So Paulo,

    onde a vigorosa expanso urbana data do sculo passado e contempornea imigrao estrangeira, a cidade cresciadesordenadamente h j um sculo. Entretanto, a partir da dcada de 50, o crescimento urbano no s aumenta de intensidade masadquire caractersticas especficas que distinguem as novas periferias das antigas fmbrias urbanas.

    Em primeiro lugar, nota-se, a partir dessa poca, os efeitos da macia substituio de trabalhadores estrangeiros por migrantesnacionais. Em segundo lugar, ocorre uma mudana muito radical no modo de solucionar o problema da habitao para os

    trabalhadores. No passado, o problema tendeu a ser resolvido pela iniciativa privada atravs das vilas operrias, da locao decmodos ou de casas: A partir da Segunda Guerra Mundial, entretanto, que presenciou o congelaxnento dos aluguis e aemergncia de uma legislao que protegia o inquilino, esse tipo de investimento deixou de ser lucrativo. Abriu-se, ento, um novo

    negcio, a venda a prestaes de terrenos de baixo valor imobilirio, isto , aqueles distantes ou localizados em reasparticularmente insalubres ou de topografia desfavorvel, de difcil acesso, sem servios pblicos e, freqentemente, sem

    documentao legal.

    Vendeu-se, junto com os lotes, o sonho da casa prpria, que passou a ser aspirao generalizada das classes populares. Seu

    resultado claramente visvel: bairros de ruas irregulares, sem calamento nem iluminao, desprovidos de redes de gua e esgoto,sem escolas e postos de sade, com transporte difcil e caro. As casas construdas aos poucos pelos prprios moradores, parecem

    sempre inacabadas. Todo esse processo j foi amplamente estudado em So Paulo

    A criao desse sistema de moradia popular teve conseqncias imprevistas e nem sempre funcionais do ponto de vista danecessidade de reproduo da fora de trabalho para o capital. A maior parte dessas conseqncias prende-se a dois fenmenos

    inter-relacionados: a segregao e a imobilizao relativas da populao. A propriedade, mesmo ilusria, do terreno e o imenso

    esforo para a construo da casa constituem penosos investimentos a longo prazo - a populao se fixa assim de modorelativamente permanente no local, presa a um projeto interminvel. Por outro lado, como tende a ser semelhante o nvel de

    rendimentos dos que compram os terrenos, cria-se uma uniformidade relativa da populao, segregada pela distncia e pela

    dificuldade do transporte do resto da cidade.

    A uniformidade e a segregao relativas parecem favorecer o desenvolvimento de uma sociabilidade local que distingue essapopulao das camadas mais abastadas. Para estas, as distncias so eliminadas pelo automvel e pelo telefone e a sociabilidade

    se exerce entre parentes e amigos dispersos pela cidade. A casa ou o apartamento, isolados e auto-suficientes, limitam um espao

    social que no complementado pela vizinhana: Na periferia, ao contrrio, a vizinhana e o bairro constituem locais privilegiadospara a formao de redes de sociabilidade.

    H ainda outras implicaes mais diretamente polticas dessa segregao e fixao da populao de baixa renda. As pesquisas

    realizadas com segmentos os mais diferentes, indicam claramente que sua mobilidade espacial e ocupacional orientada em funode um projeto familiar de melhoria de vida. Mas, se esse processo sempre pensado como de responsabilidade individual e ocorre

    todo dentro da dimenso familiar privada, possui entretanto uma contrapartida propriamente social. que a melhoria das condies

    de vida decorre tambm da urbanizao da periferia que permite o acesso, por parte da populao, aos servios pblicos urbanos:o asfaltamento e a iluminao das ruas, a gua encanada e o esgoto, a construo do centro de sade e da escola, a conduo mais

    prxima e mais freqente. nessa esfera especfica do morar que o projeto familiar de mobilidade social passa a ser uma

    referncia coletiva necessria, que provm do confinamento no bairro criado pelo investimento na casa. No s a melhoria dobairro beneficia a todos, mas no pode ser obtida atravs do esforo individual. nesse momento e nesse contexto que a

    populao se torna receptiva a formas de organizao que permitam uma ao conjunta.

    Toda essa dinmica j foi amplamente estudada na cidade de So Paulo. A proliferao das Associaes de Moradores, quereflete a especificidade dessa forma atravs da qual as classes populares se constituem como sujeitos polticos foi ressaltada por

    grande nmero de pesquisadores. Entretanto, os processos propriamente culturais subjacentes a esta movimentao poltica ainda

    no foram suficientemente esclarecidos. Por outro lado, a generalizao desse novo estilo de urbanizao e de ao poltica nascidades do interior do Estado est a exigir uma anlise que no se restrinja cidade de So Paulo e ao espao metropolitano, mas

    abranja centros urbanos menores. S assim se poder avaliar a amplitude, as caractersticas comuns e as variaes desse

    processo.A viso da cidade

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    Nos ncleos urbanos pesquisados, todos de porte mdio, a viso que a populao mais pobre tem da cidade , no conjunto,positiva. Quando se formula uma pergunta muito geral como "O senhor gosta daqui?", ou "O que acha da cidade?", as respostas

    so muito semelhantes e incluem um nmero limitado de padres de referncia.

    As cidades mdias so consideradas boas para se morar porque so simultaneamente limpas e tranqilas. A ausncia de violnciatambm apontada como uma das vantagens, assim como a ausncia de correrias e atropelos. Nesse contexto, est sempre

    presente, implcita ou explicitamente, uma comparao com as grandes cidades, cujo exemplo mais completo sempre a cidade de

    So Paulo. Esta caracterizada negativamente pela poluio, aglomerao, atropelo, violncia, dificuldade de locomoo.

    Como os depoimentos so muito semelhantes, um exemplo bastar para ilustrar o tipo de resposta mais freqente. Diz um moradorde Rio Claro: "Gosto daqui. Se vou numa cidade como Campinas, por exemplo, muito agitado, j no gosto. As cidades grandes

    como So Paulo, Campinas, so agitadas. Em tudo, desde a poluio. Aqui tudo calmo, limpo".

    O conjunto de atributos mobilizados nessa viso comparativa, define a valorizao de um tipo de ordem que constituda pelasuperposio de trs planos: espacial, social e moral.

    Ao lado desses atributos referentes ordem scio-espacial, encontramos um outro que diz respeito presena de "recursos". A

    palavra "recurso" tem um sentido amplo e refere-se, basicamente, oferta de certos servios pblicos: em primeiro lugar,assistncia mdica, mas tambm escolas e transportes. Secundariamente, refere-se presena de equipamentos urbanos como

    gua, luz, esgoto, pavimentao. Finalmente, pode ainda incluir a existncia de um comrcio rico, variado e diversificado. Quando a

    referncia so os "recursos", a comparao se desloca da cidade grande para a cidade pequena ou campo. Dois exemplos serviropara ilustrar este contexto: "Moramos dezesseis anos num lugar do Paran, numa fazenda de caf. Marlia melhor que l, l no

    tem recurso, no acha remdio de graa, a gente que pobre precisa. Aqui ganha leite e remdio no Posto (de Sade)"; "(Rio

    Claro) uma cidade de recurso, quando as crianas ficam doentes fcil. Eu vou para a Santa Casa, para o Pronto-Socorro. Parair para a cidade tem bastante conduo."

    Caracteriza-se assim uma nova oposio:

    Uma terceira referncia constante nos depoimentos diz respeito ordem econmica e se expressa na avaliao da facilidade oudificuldade em se obter bons empregos. Neste contexto, a comparao feita novamente com as cidades maiores e a condio

    desejvel de abundncia de bons empregos sempre associada grande indstria. Assim, Rio Claro e Marlia, apesar de serem

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    consideradas cidades muito boas, tm a desvantagem de oferecerem poucos empregos. Em So Jos, por outro lado, a grandeoferta de empregos emerge sempre como a caracterstica mais positiva da cidade. As grandes cidades industriais como Campinas eSo Paulo, apesar de agitadas, violentas e poludas, so valorizadas pelos empregos que oferecem. Nessa mesma linha de

    consideraes, as cidades pequenas esto ainda em maior desvantagem que as cidades mdias, oferecendo muito menos

    oportunidades de trabalho.

    No conjunto, essa viso da cidade que se poderia chamar de global, que se manifesta nas respostas e perguntas muito gerais, tende

    a se articular atravs da percepo de um eixo que dado pelo continuum rural-urbano. Este eixo, que abrange o campo, a

    cidade pequena, a cidade mdia e a grande metrpole, definido de forma bastante precisa porque, em geral, a populao possuiuma experincia muito prxima e recente de migraes ao longo do continuum que lhe permite, atravs da prpria histria familiar,

    construir os parmetros dessa geografia urbana.

    Ao longo do continuum, as cidades so avaliadas em funo de duas dimenses ou duas ordens de atributos. As duas dimenses

    so muito ntidas e so gerais a toda a populao entrevistada. A primeira, bipartida, diz respeito qualidade do espao urbano

    que deve aliar ordem e tranqilidade com a presena de "recursos" como servios mdicos, escolas, transportes, etc. A segunda se

    refere ordem econmica e se traduz na abundncia ou escassez de empregos bem remunerados, que so sempre associados

    presena ou ausncia de grandes indstrias.

    Em termos da primeira dimenso, a cidade mdia valorizada positivamente em relao a ambos os plos do continuum, por

    combinar satisfatoriamente a tranqilidade com os recursos. O campo e a cidade pequena so mais tranqilos mas no oferecem

    recursos. A cidade grande oferece recursos mas no tranqilidade.

    No que diz respeito segunda dimenso, a oferta de empregos, as cidades maiores so sempre favorecidas. So Jos dos Campos

    aparece como a combinao ideal, pois oferece muitos empregos sem ter destrudo ainda a "tranqilidade" prpria, das cidades

    mdias.

    necessrio enfatizar um pouco a generalidade desse tipo de avaliao. Todas as entrevistas so extraordinariamente consistentesnos critrios que usam para avaliar a cidade, embora possam variar no peso atribudo a um ou outro fator na escolha da cidade

    onde esto residindo ou desejariam residir. Assim, pode-se preferir Rio Claro porque, apesar da dificuldade de emprego,

    apresenta a vantagem de oferecer muitos recursos e ser tranqila. Ao contrrio pode-se optar por uma cidade maior (como

    Campinas ou So Paulo), onde h maiores oportunidades de emprego, apesar da ausncia de ordem e tranqilidade.

    Quando, por outro lado, analisamos os dados acumulados nas pesquisas realizadas sobre So Paulo, encontramos os mesmos

    tipos de referncia (Caldeira, 1984). Na avaliao da cidade, os moradores da periferia paulistana se referem constantemente soportunidade de emprego como a principal vantagem da cidade. Aparecem tambm referncias aos "recursos", mas a valorizao

    menos uniforme, porque esto sempre presentes, a deficincia dos transportes e a ausncia de servios urbanos que caracterizam a

    periferia. A poluio e a violncia so freqentemente citados como problemas da cidade. O que no uniforme em So Paulo, a

    valorizao da calma e tranqilidade. Embora se encontre s vezes a valorizao das cidades menores em funo desses atributos,

    comum tambm o inverso - uma avaliao negativa das demais cidades, por serem "muito paradas" ou "no terem movimento".

    necessrio, entretanto, indicar que essas representaes a respeito da cidade so, em geral, muito sintticas e tendem a se

    resumir em uma ou duas frases com poucas palavras. Ao contrrio, quando o discurso se transfere da cidade para o nvel maisconcreto do bairro, da casa, das perspectivas ocupacionais dos informantes, amplia-se e se enriquece. ao nvel do vivido, das

    condies especficas de moradia e trabalho que as avaliaes da cidade adquirem seu sentido prprio como orientao de vida e

    projeto de ascenso social.

    So esses, portanto, os grandes temas em torno dos quais o discurso se estende e se enriquece: o urbano, traduzido no bairro e na

    casa; o econmico, traduzido no emprego. So essas as questes em torno das quais se estrutura a experincia imediata, as reas

    nas quais os cidados, como sujeitos", assumem posies e tomam decises sobre seu prprio destino e em termos das quaisvisualizam as foras sociais impessoais que aparecem como limites externos (criados de fora) que definem o campo no qual as

    decises so possveis.

    O bairro: a viso do progresso

    Em So Jos dos Campos, Marlia e Rio Claro, como em So Paulo e nas demais cidades brasileiras em crescimento, a

    constituio da periferia um processo constante. A populao mais pobre e os recm-chegados tendem a se localizar nas fmbriasda rea urbanizada, onde a ausncia de servios como luz, gua, iluminao, calamento, esgotos torna o solo mais barato e mais

    acessvel. A se localizam as residncias mais modestas e os aluguis mais baratos. Com o decorrer do tempo h um aumento da

    densidade populacional e a Prefeitura tende a estender os servios pblicos, valorizando os terrenos. As residncias incompletas e

    precrias do incio do povoamento vo sofrendo uma srie de reformas, melhorias e ampliaes. A cidade engole a antiga periferia,

    que se cria numa nova fmbria.

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    Todo esse processo faz parte da experincia de vida da populao, que o assimila como parte das condies "dadas" dentro das

    quais realiza seu planejamento de uma estratgia de sobrevivncia e ascenso social. No conjunto, o processo caracterizado pela

    populao como "progresso da cidade", avaliado positivamente e utilizado como uma das formas de transformao da sociedade

    global que a pode beneficiar diretamente.

    A periferia, vista como processo pelos seus prprios habitantes, implica portanto numa viso diferencial e histrica dos bairros dacidade e a localizao dos habitantes nesse espao correlacionada com sua posio na sociedade e com sua perspectiva de

    melhoria progressiva dessa posio.

    As entrevistas so muito claras a esse respeito

    "Hoje tm umas casas boas, inclusive tem nego rico morando aqui. Tem um professor ali, outro l. No contando as casas

    dos pobres, tm vrias casas bonitas. Mas naquele tempo (incio do loteamento) dava vergonha. Era s maloca" (Rio

    Claro).

    "Antes no tinha luz, comprava gelo para a cerveja e ia ajeitando. Agora j tem luz... Falta luz na rua, calamento,esgoto, mas pelo tempo deste loteamento est adiantado, nos outros, demora mais. O prefeito aqui, a fiscalizao no nos

    atrapalhou nada. Todo mundo fez as suas casinhas e a fiscalizao no atrapalhou. O prefeito tem ateno pelos

    moradores" (So Jos dos Campos).

    Depoimentos muito semelhantes foram obtidos por diversos pesquisadores que trabalharam em So Paulo.

    nessa avaliao do progresso que aparecem nitidamente os aspectos considerados positivos da vida urbana.

    "Este bairro aqui bom. Antes era mais quieto. Agora tem muita gente. Tem casa boa, tem lojinha de roupa, aougue tem

    bastante, tem bastante casa de negcio. Antes no tinha nada. Tinha que ir comprar mais perto do centro. E no tinhanibus, no tinha luz, no tinha gua. gua at hoje, a bem dizer, no tem, porque eles desligam s 7 da manh e svai

    chegar s 4 da tarde, s vezes de noite... Agora deu no rdio que vai ter esgoto. Ento eu acha que vai ter que arrumar a

    gua. Tem que ser. Esgoto sem gua... (Rio Claro).

    O .processo to claro, que facilmente verbalizado e conta como investimento.

    H tambm uma clara hierarquia na avaliao desses "recursos" que corresponde, em geral, ordem em que normalmente so

    atendidos: em primeiro lugar, a luz, sem o que o mesmo que viver no "mato". Em seguida, a gua e o transporte. Depois a escola,

    o comrcio, os postos de sade. Por ltimo o esgoto, o asfalto e a iluminao pblica.

    A populao conta com esse processo. Uma das famlias entrevistadas, em Rio Claro, tinha acabado de construir uma casa na

    periferia mais distante. Mas, como l no tinha luz, alugou a casa, que era melhor, e continuou a morar pagando aluguel numa casa

    pior, mas que tinha luz. Estava esperando a luz "chegar" na casa prpria.

    O lote e a casa: a melhoria de vida

    O processo se inicia pela compra do lote, prossegue com a construo parcelada da casa e o mesmo que se encontra na periferia

    de So Paulo e j foi extensamente analisado nesta cidade.

    Conforme afirmou um dos donos de loteamento perifrico em Rio Claro, o importante para vender que a prestao do lote seja

    menor do que o aluguel de uma casa. "A, para o sujeito j vantagem". Com o que estava gastando com o aluguel, "paga o que

    seu", s arranjar um dinheirinho para construir um barraco, onde mora provisoriamente at poder ir melhorando a moradia, num

    investimento contnuo.

    "Com o dinheirinho que trouxe de Ja paguei a entrada do terreno: Cr$ 30,00. Com o resto, comprei tijolo e telha. Fizestes dois cmodos aqui e entrei dentro. Era baixinho, no tinha altura que est hoje. No tinha piso nem porta.

    Ganhamos uma porta e uns caixes. Com o caixo eu fiza janela. Era um barraco. De tijolo, mas era barraco. Fui

    trabalhando, fui melhorando. Subi a altura. Pagando na base da amizade, da ajuda, mas sem compromisso. (Quer dizer, se

    algum ajudava aqui, quando eu estava folgado ia ajudar ele, mas no tinha obrigao.) Com dois anos consegui deixar

    estes cmodos deste jeito. . Fiz mais um cmodo. Da ficou parecendo uma casinha". (Rio Claro.) (Destaque meu.)

    "Viemos, pagamos. Eu tinha umas tbuas, a gente podia morar no lote, mas no podia construir ainda. Fiz um barraco demadeira, at que o guarda-roupa era a porta da frente. Era junho, era frio, e as paredes era s de coberta. Ficamosali e eu

    meti pau. Trabalhava de dia em construo e de noite e domingo era aqui E ns fomos construindo... Hoje (um ano depois)

    j tem tudo isso construdo (um bar e 5 cmodos). Trabalhou, tem coragem para trabalhar, consegue. Esperar que cair do

    alto no cai mesmo" (So Jos dos Campos)

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    Todos os outros entrevistados, sem exceo, expressaram opinies semelhantes. O geral o relato da construo da casa porfases como o melhor exemplo de que as coisas vo melhorando, devagar e sempre: h progresso, enfim.

    No que diz respeito casa prpria, as declaraes anteriores j indicaram que seu significado ultrapassa bastante o de um local

    seguro para morar. , por um lado, a prova de que possvel ascender; por outro, uma poupana e um investimento. Os

    terrenos valorizam, a casa pode ser ampliada e alguns cmodos alugados para garantir uma renda extra e, no limite, pode ser

    vendida para se realizar um outro projeto: comprar um stio no interior, estabelecer-se por conta prpria.

    A experincia de mais de uma casa no mesmo terreno freqente. A do fundo, normalmente a mais velha e precria, que seprolonga e melhora para a frente, ou vice-versa. Nessas residncias mltiplas, os cmodos so alugados ou cedidos a parentes,

    geralmente, irmos ou filhos.

    O processo todo muito penoso e freqentemente exige o esforo prolongado de toda a famlia. Os filhos empregados ajudam o

    pai, vo casando e ficando, continuando a pagar, ampliando mais um ou dois cmodos separados para a nova famlia. Maspropriedade coletiva sempre cria problemas. Com a morte dos pais, os problemas de diviso da herana so fonte de muitosconflitos.

    O processo, portanto, no tem fim. Assim que termina a dolorosa via crucis do pagamento do terreno e da construo da casa

    dos pais, recoloca-se a necessidade de comear tudo outra vez para os filhos. A esperana que os filhos j estejam melhor devida, tendo estudado e arrumado emprego melhor, podendo comear de um patamar um pouco mais alto. Quem consegue realizar

    esta esperana, tendo empregado nela toda a sua juventude e maturidade considera que, na verdade, venceu na vida. O mesmoprocesso e as mesmas avaliaes so encontradas tanto em So Paulo como nas demais cidades investigadas.

    H, portanto, em todo esse conjunto to consistente de avaliaes sobre a cidade, o bairro e a casa, uma orientao bsica comum- o projeto de melhoria de vida. A crena na viabilidade desse projeto se apia na crena no progresso. A experincia das

    transformaes por que est passando a sociedade brasileira vista, em geral, de modo positivo, implicando numa abertura daspossibilidades de melhoria de vida da populao que pode aproveitar-se delas atravs do esforo. Essa experincia do progresso

    a experincia urbanizao, pensada como um processo, concretizado na histria de vida, de acesso crescente a recursos urbanos:morar em casa prpria, em local asfaltado, iluminado, com gua, esgoto e conduo, perto de escolas e postos de sade.

    Toda essa construo de um modelo de vida decente e confortvel, que orienta os julgamentos da populao sobre a sociedade eo lugar que nela ocupam est, entretanto, intimamente vinculada a uma valorizao da propriedade - no dos meios de produo,

    mas do espao onde se desenrola sua vida, a casa. Nesse sentido que se pode dizer que a propriedade valorizada duplamenteprivada: na forma jurdica e no objeto a que se refere (4).

    O emprego

    Como fica muito claro na exposio anterior, a populao sente que se beneficia das vantagens da cidade no apenas na medidaem que utiliza os "recursos" mas principalmente na medida em que se torna proprietria de uma casa e o bairro onde mora

    "progride" e recebe melhoramentos. Mas tudo isso constitui apenas uma dimenso da cidade, porque a prpria permanncia no local e a utilizao dos recursos urbanos

    depende de conseguirem um emprego. O problema do emprego est sempre presente e o discurso sobre esta questo o maisarticulado, o mais extenso e o mais uniforme. Na representao da populao de Marlia e Rio Claro o problema do empregoaparece nitidamente associado ao do crescimento da populao.

    Os habitantes mais antigos tm uma viso "histrica" do problema:

    "Eu acho a cidade boa, mas acho que tem pouco emprego. Tenho um filho que teve que ir trabalhar fora por falta mesmo

    de emprego. Ele tem diploma, fez SENAI, tem tudo... E nem assim arranjou... " o que eu digo, nesta cidade, s faltamesmo indstria. Problemas de asfalto, de jardim, no tm no. Est tudo bom".. " muita gente querendo trabalhar. A

    turma do stio veio toda para a cidade. Por isso que falta servio. Isso de uns tempos para c. Teve uma lei a queapertou muito os fazendeiros. Antes eles tinham os empregados nas fazendas e quando aposentava podia mandar embora.Agora, no, tem que ficar com o empregado l dentro. Ento eles no querem mais empregados moradores. E o que

    aconteceu? Os empregados vieram morar na cidade e tm que tomar caminho para ir trabalhar no stio. Isto num pontoajudou a cidade a crescer. Tiveram que fazer loteamento porque no comportava. Mas tambm, muitos que trabalharam

    no stio agora trabalham na cidade e assim o servio diminui" (Rio Claro).

    Estas entrevistas no so casos isolados. A noo de que em Rio Claro, em Marlia, o mercado de trabalho est saturado muitogeral, aparece em quase todas as entrevistas. Alm da migrao local e regional, aponta-se tambm a grande migraointerestadual do Paran, de Minas e do Nordeste ou Norte (que, na concepo popular, engloba a Bahia).

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    V-se, portanto, que h uma ntida percepo da existncia de um mercado de trabalho. nessa compreenso do mercado de

    trabalho que est associada a valorizao da presena de indstrias que apontamos anteriormente. Na percepo das pessoas,apenas a grande indstria garante um mercado de trabalho favorvel mo-de-obra, oferecendo empregos mais bem pagos e

    aumentando o valor da fora de trabalho. em todas as demais ocupaes.

    "Pra ser boa para morar, uma cidade precisa ter indstria para pagar bem. E aqui no tem" (Rio Claro).

    "Aqui em Martia a falta de emprego o que traz dificuldade." ... "Muitas indstrias que tinham servio para homem jforam embora. Temos agora, mas s para mulher" (Marlia).

    Tambm parece ser consenso geral que a soluo para o problema da falta de emprego seria no apenas a ampliao, mas amodernizao do parque industrial. No se valoriza igualmente qualquer indstria, mas especialmente a grande indstria.

    "O bom mesmo indstria, para dar mais emprego e ter um padro de vida melhor... Sem indstria, no tem emprego.

    Comrcio d emprego, mas pouco. Uma loja grande pega 15 empregados. E 15 e nada a mesma coisa. A cidade estcrescendo de todo o lado. A populao aumenta e a indstria no d trabalho (suficiente). Uma cidade para ter um bom

    desenvolvimento precisa ter indstrias de material pesado, como aquelas do ABC, que tm os metalrgicos. A sim.Indstria de 2.000, 3.000 empregados. Sem isso, no adianta aumentar a populao. Aqui, h 7 anos atrs, tinha 50.000habitantes. Hoje tem mais ou menos 130.000. No s os que vm de fora no. os que nascem tambm, que nasce muito

    mais do que morre. E ainda vem o pessoal do stio" (Rio Claro).

    Essa valorizao da grande indstria est presa percepo do mercado de trabalho estruturado em trs tipos de empregos: o debia-fria; o emprego urbano que paga salrio mnimo ou pouco mais e que constitudo pelas indstrias tradicionais, pela

    construo civil e por um conjunto disperso de empregos pouco numerosos, como atendente de posto de gasolina, auxiliares deoficinas mecnicas, as ocupaes menos qualificadas do servio pblico e dos hospitais, alm da faixa dos biscates; e, finalmente, aindstria moderna, que paga melhor. Esse , de modo geral, o mercado de trabalho no qual a populao de baixa qualificao

    pode disputar empregos. Fora da, resta o caminho, em geral sonhado como carreira para os filhos, que passa pela escolarizaode nvel mdio ou superior e que permitiria a passagem para o trabalho no manual ou manual de alta qualificao, ou outro, ainda

    mais difcil, de abrir um "negcio".

    A fbrica , em qualquer circunstncia, a referncia central. o critrio a se privilegiar na procura de um emprego, mesmo paraaqueles que no tm nenhuma qualificao pois, alm do salrio, oferece uma srie de garantias ou vantagens. A questo colocada com muita nitidez em So Jos dos Campos, onde o emprego fabril abundante.

    "A gente mora aqui porque depende da fbrica, o nico jeito de viver depender da fbrica. Cidade pequena sem fbrica

    no d. Ele (o marido) profissional, mas depende de fbrica: se ele for trabalhar fora de fbrica, ganha a metade" (SoJos dos Campos).

    "Gosto mais de fbrica, j acostumei. Fbrica tem toda garantia, tem INPS, convnio, hospital... Prefervel fbrica: tem

    horrio pra chegar e pra sair, a gente sabe que deu aquele horrio, acabou. No campo e de sapateiro no tm horrio, temque trabalhar de manh at de noite" (So Jos dos Campos).

    Como se v, para a populao das cidades mdias o problema muito claro. Os empregos urbanos mais acessveis pagam salriomnimo, o que insuficiente para sustentar a famlia Como bia-fria ganham mais, mas o trabalho muito duro, incerto e no tem

    nenhuma garantia trabalhista. Por outro lado, o trabalho manual urbano melhor remunerado, aquele oferecido pelas indstriasmodernas, pouco e exige qualificao. Agora, a soluo seria aumentar a oferta de trabalho melhor remunerado, aumentando

    onmero de indstrias modernas. Isso permitiria aproveitar toda a mo-de-obra com alguma escolaridade e qualificao,diminuindo a oferta de trabalho nos demais setores o que acarretaria o aumento de salrio tambm nessas outras empresas e nosetor rural, como ocorre em So Jos dos Campos. A soluo alternativa seria parar o aumento populacional.

    H inmeros depoimentos em que estas questes so colocadas com muita nitidez. Seria desnecessrio multiplicar os exemplos.

    Mas importante salientar que toda a discusso sobre o mercado de trabalho est integralmente permeada pela preocupao como salrio Nota-se claramente que a riqueza do discurso sobre esse tema indica uma tentativa de compreender os mecanismos

    responsveis pelo baixo nvel salarial. Nesse contexto, aparece freqentemente uma referncia ao valor, no do trabalho, mas dotrabalhador. Ela surge, por exemplo, na queixa de que "aqui o trabalhador no tem valor", ou na discusso sobre as vantagens

    para o mercado de trabalho que advm da presena da grande indstria, quando se afirma que "s assim o trabalhador ia tervalor". O salrio aparece assim, para o trabalhador, como expresso do valor que a sociedade lhe atribui e, portanto, comoindicador objetivo da posio que ocupa na sociedade.

    A comparao com as pesquisas realizadas em So Paulo no pode ser direta, pois o material no equivalente. Com efeito, sobre

    o trabalho, as pesquisas vm se acumulando h anos e so muito mais amplas, extensas e minuciosas do que as informaes

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    colhidas nas entrevistas que realizamos nas cidades mdias. O mercado de trabalho tambm muito mais amplo e complexo, o que

    se reflete na diversidade das perspectivas ocupacionais e dos projetos profissionais. Mas encontramos aqui tambm a valorizaoda indstria moderna como elemento dinamizador do mercado de trabalho (mesmo que as perspectivas ocupacionais se dirijam emoutra direo) e a preocupao com o nvel salarial como expresso do valor do trabalho. As pesquisas mais recentes, realizadas

    quando se anunciava a estagnao econmica, demonstram tambm a preocupao com a saturao do mercado de trabalhodecorrente da continuidade do fluxo migratrio.

    Tanto num caso como em outro (cidades mdias e metrpole), dentro dos limites estabelecidos pelo mercado de trabalho e o baixo

    nvel salarial, as solues so variveis e, normalmente, encobrem toda uma estratgia familiar de distribuio de seus membros pordiferentes tipos de ocupao, na tentativa de aumentar a renda da famlia para permitir o investimento na compra da casa.Paralelamente, h um esforo muito grande para garantir o "estudo" para os filhos, como mecanismo de aumentar o nvel de

    qualificao e assegurar uma posio mais competitiva no mercado de trabalho.

    O Estado

    As referncias ao Estado aparecem em contextos diferentes que dizem respeito a dois nveis: o do Governo Federal e o dospoderes locais. Quando a conversa aborda os problemas do custo de vida e do nvel salarial, a questo sempre referida ao"Governo", que deveria tomar alguma providncia. No contexto, a palavra Governo sempre denota uma esfera mais distante do

    que os poderes locais e no h muita variao nos depoimentos colhidos em diferentes cidades: o "Governo" deveria controlar ainflao e fazer aumentar o salrio.

    "A inflao est aumentando dia por dia. No adianta querer controlar a inflao. A situao est dura. No sei nemquem o culpado. Essa turma, uns falam, criticam o Governo" (Rio Claro).

    "Para melhorar esse custo de vida, s osalrio, o salrio subindo. Porque a gasolina sobe todo ms, o salrio no sobe,sobe uma vez por ano, mercadoria sobe doze vezes... A difcil. O que precisava melhorar o salrio, mas a quem d

    jeito o Governo... Se ele quiser pagar 10.000 ele fala, obrigado as firmas pagar" (Marlia).

    "O custo de vida no tem jeito. Sempre foi assim e vai piorar mais ainda. Ns temos que consumir, no tem jeito. S se fortodo mundo plantar. Mas a tambm o Governo tinha de dar proteo" (Rio Claro).

    "O custo de vida sobe e o salrio no. Uma parte do custo de vida com o prprio morador, o dono da casa: tem que

    procurar comprar nos lugares mais baratos. Aoutra parte com o Governo" (Marlia).

    Em So Jos dos Campos, os depoimentos so semelhantes. O problema do custo de vida visto no como prprio da cidade,

    mas geral, e da responsabilidade do "Governo".

    Em Rio Claro, cidade com tantos bias-frias, a questo do custo de vida tende a ser relacionada com o xodo rural. "A obrigaodo Governo seria fazer a turma plantar, plantar mantimentos... O Governo devia comprar as fazendas dos fazendeiros e

    pr gente para plantar" (Rio Claro).

    O mesmo ocorre em Marlia: "Se o Governo resolvesse botar para produzir arroz, feijo, a no tinha esses aumentos"(Marlia).

    Entretanto, em nenhuma entrevista, surge qualquer expectativa de influir nesse Governo to distante. No parece haver nenhumamediao entre esse nvel de Estado e a populao em geral, a exterioridade completa. O discurso vago e vazio.

    Por outro lado, no contexto que diz respeito aos rgos pblicos que atuam no nvel municipal e, especialmente, a Prefeitura, as

    expectativas so mais concretas e as relaes com a populao percebidas com mais clareza. As referncias Prefeitura sempreaparecem na discusso dos problemas do bairro e apresentam maiores diferenas de cidade a cidade que derivam do contexto

    urbano especfico.

    O que geral nessas expectativas e na concepo dessas relaes que todos esses rgos so designados sempre como "eles".Define-se claramente a exterioridade dos rgos pblicos e nem mesmo os vereadores ou prefeitos so concebidos como seusrepresentantes por essa populao. Entretanto, esto mais prximos do que o distante "Governo". As pessoas conhecem o

    prefeito e a Prefeitura, tm uma idia do que fazem ou deixam de fazer.

    H, entretanto, alguma variao na concepo das atribuies da Prefeitura, e dos demais rgos que atuam no nvel municipal(CESP, DRE, SABESP). Na viso mais generalizada, a Prefeitura a responsvel por todos os servios urbanos. Mesmo quando

    se reconhece que os rgos responsveis no so da Prefeitura, o prefeito que deve providenciar os melhoramentos pblicos.

    "Aqui no bairro falta um bocado de coisa, principalmente o esgoto. Mas a gente no pode fazer nada Depende do prefeito,

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    dos vereadores, daquela gente de l" (Rio Claro).

    "Eu ouvi no rdio que agora vem esgoto. E tambm que vai passar asfalto na rua do nibus. Ele (oprefeito) fez essapromessa. Faz tempo que ns estamos pedindo, fazendo abaixo-assinado" (Rio Claro).

    Quanto crena na eficcia da presso popular, dos pedidos e dos abaixo-assinados, h muita variao:

    "A cidade precisa sempre de muitas coisas. Se a gente vai deixando e a cidade muito grande, tem muitas regies, no d

    para a Prefeitura fazer tudo. Tem gue dividir. Ento a gente tem que pedir"... "Agora, o mais certo na cidade que aPrefeitura faz tudo conforme a gente pede. Veja o show do meio-dia, no rdio. A cidade pede e ele d" (Rio Claro).

    Por outro lado, h atitudes mais cticas ou mesmo de descrena:

    "O prefeito antes vinha muito aqui. Agora nem vem mais. Eu no falo que no entendo nada. Mas a turma de l, fala maldele - que nem esse esgoto a - diz que s promessa" (Rio Claro).

    De qualquer modo, como a Prefeitura considerada a grande responsvel pela cidade, como a viso da cidade e do seu

    crescimento ordenada em termos de uma viso de progresso, a Prefeitura, de qualquer modo, adquire alguma legitimidade.

    Alm da responsabilidade pelos servios pblicos, cabe tambm Prefeitura zelar pelo bem-estar da populao. Desse modo, acrena geral, j indicada, de que a soluo do maior problema da cidade, que a falta de emprego, s poder ser feita pelainstalao de indstrias modernas, tambm considerada atribuio da Prefeitura. O prefeito e os vereadores deveriam atrair

    indstrias.

    Cabe ainda ressaltar que a relao entre Prefeitura e populao definida em termos de dar de um lado, pedir de outro. Apopulao pede. O prefeito d ou no d e julgado de acordo. Cabe Prefeitura fazer. Alguns acham que est fazendo

    bastante, outros que no est fazendo nada ou muito pouco.

    Tambm h a noo de que o prefeito faz mais pelos bairros centrais, mas, normalmente quando avaliam a atuao dos rgosmunicipais, as pessoas o fazem estritamente em relao ao seu bairro e no em termos da cidade em geral. assim, indiretamente,

    que aparece o problema das diferenas de classe na cidade, de seus interesses divergentes e de sua separao: na estratificaoespacial e na identificao do ns como aqueles que ocupam um mesmo lugar na hierarquia dos bairros e das vilas.

    Em So Jos dos Campos, por outro lado, as referncias Prefeitura so mais elogiosas. A idia que a Prefeitura est fazendo oque deve, atendendo progressivamente as reivindicaes legtimas da populao.

    "So Jos no uma Prefeitura rica: ela vem sendo bem administrada. A idia do prefeito a de que exista o centro eexistam bairros, cada um com tudo que precisar. Isso alis, o padro internacional. O padro que exista uma escola em

    cada bairro. As vezes, quando no d para construir a escola direito, faz quebra-galho, faz modulado"... (So Jos dosCampos).

    Essa expectativa de atendimento gradual que parece estar sendo preenchida em So Jos e explica o fato de no termos

    encontrado nessa cidade, ao contrrio de Marlia e Rio Claro, movimentos reivindicativos. Num dos bairros, um movimentoiniciado para obter luz extinguiu-se antes de se consolidar com o atendimento da reivindicao.

    Em suma, em So Jos dos Campos, a atuao da Prefeitura parece estar mais prxima daquilo que a populao considera ser seupapel.

    Aqui, mais uma vez, embora no seja possvel uma comparao direta com as pesquisas feitas em So Paulo, que se orientam em

    geral em outra direo, encontramos ntidas correspondncias com os discursos comuns na periferia paulistana: a relao maisdireta e mais reivindicativa com a Prefeitura, a oposio entre pedir e conceder (s vezes transformada num exigir e obter). "O

    Governo", tambm em So Paulo, assume a posio distante e inatingvel, sendo responsabilizado pelo aumento do custo de vida epela diminuio do salrio. Mas, obviamente, com uma presena sindical mais forte e atuante, com a presena mais marcada danova Igreja e, recentemente, a emergncia do PT, as situaes se diversificam e o discurso s vezes se altera, indicando maior

    politizao. No conjunto entretanto, ainda predominam as concepes e formulaes que encontramos nas cidades do interior.

    Concluses

    Os resultados de uma pesquisa exploratria como esta seriam em si muito pouco significativos se no fosse pela extremauniformidade dos resultados obtidos por equipes diferentes de investigadores trabalhando independentemente em cidades diversas.Mais ainda, os julgamentos e avaliaes dos moradores das periferias das cidades mdias so muito semelhantes queles revelados

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    por pesquisas que vm sendo feitas na cidade de So Paulo nos ltimos anos. Resultados diferentes desses que obtivemos vm sendo revelados apenas pelas pesquisas mais recentes realizadas na periferiapaulistana. Com efeito, nesses trabalhos, alguns dos quais ainda em andamento, tem-se notado um pessimismo crescente, uma

    crtica mais acerba e uma tenso que no so aparentes nas pesquisas mais antigas nem nos dados que coletamos nas cidadesmenores. Alis, a simples observao direta das periferias de So Paulo e das outras cidades revela muito claramente a maior

    deteriorao das condies de vida da populao pobre paulistana. Os bairros perifricos de Marlia, Rio Claro e So Jos dosCampos esto longe de suscitar a mesma impresso de misria, poluio e amontoamento da populao que to visvel em SoPaulo. Tambm nas cidades menores muito menos ntido o contraste entre os excessos de riqueza e de pobreza que a cidade de

    So Paulo exibe acintosamente. Por isso mesmo, a crena em que a melhoria das condies de vida pode ser conquistada atravsdo esforo pessoal e da colaborao familiar parece estar se esvanecendo mais rapidamente na metrpole do que nas cidades

    menores.

    O estudo comparativo dos resultados de muitas investigaes parece assim revelar, simultaneamente, a generalidade de uma certarepresentao da sociedade e o incio de sua transformao. Usando o material disponvel, possvel tentar configurar, de modoum pouco mais preciso, essa interpretao da realidade social que tem conformado a prtica popular e que parece estar em vias de

    se alterar.

    A anlise dos depoimentos mostra, de forma muito clara, que essa viso de mundo se estrutura em termos de duas dimensesindependentes mas articuladas - uma diz respeito vida privada e vista como dependente diretamente da iniciativa e da

    reponsabilidade de cada um; outra, que chamaremos pblica, compreende, de um lado, a sociedade propriamente e, de outro, oEstado. A articulao entre essas dimenses estabelecida pela compatibilidade entre crenas e valores que caracterizam cada

    uma das dimenses: na vida privada, a crena na possibilidade de melhoria de vida; na sociedade, a crena no progresso; noEstado, a esperana de justiasocial.

    Ao nvel da vida privada situam-se, complementarmente, o indivduo e a famlia. O discurso que revela o indivduo , basicamente,aquele que se refere ao trabalho, ao problema do emprego. Nesse discurso, a nfase colocada sempre na necessidade

    do esforo individual como instrumento indispensvel para se "melhorar de vida".

    Por outro lado, o trabalho individual remete dimenso social do mercado de trabalho, apreendido sob a categoria "ter ou no teremprego", sempre presente de forma muito marcante no discurso dos informantes. O mercado de trabalho constitui-se claramente,para essa populao, como forma bsica de apreenso da sociedade, marcada pela sua exterioridade em relao capacidade de

    ao dos trabalhadores. O mercado de trabalho compreendido como um dado da realidade com o qual as pessoas devem lidar,mas que no podem alterar. A natureza desse mercado de trabalho determinada pela grande indstria, cuja presena ou ausncia

    estabelece, na viso dos trabalhadores, as oportunidades de emprego. Por outro lado, o prprio uso do termo "emprego" paracaracterizar esse aspecto da realidade social muito significativo, pois como categoria, compreende, simultaneamente,tanto a

    quantidade como a qualidade das posies existentes no mercado de trabalho, como o nvel salarial que permitem alcanar. Dessemodo, referindo-se estrutura impessoal do mercado, relaciona-a imediatamente, atravs do salrio, s condies de vida,expectativas e vivncias do trabalhador.

    Pertence tambm dimenso da vida privada a famlia. A importncia da famlia como elemento bsico de organizao do modo

    de vida das classes populares est amplamente documentada em todos os depoimentos. Nota-se tambm que as referncias famlia esto constantemente associadas ao consumo. Ao contrrio do trabalho, que possui uma referncia individual necessria, o

    consumo essencialmente familiar, exigindo a reunio das contribuies de diferentes membros do grupo domstico. A famliaaparece assim como unidade de rendimentos, unidade de consumo e lugar da diviso sexual do trabalho. A contrapartida social douniverso privado da famlia , portanto, o mercado de consumo, isto , a oferta de bens e servios colocados disposio dos

    compradores. A compreenso da natureza desse mercado est contida na referncia constante ao custo de vida. Como os termos"ter emprego" e "salrio", o "custo de vida" refere-se, simultaneamente, impessoalidade do mercado e s condies de vida

    pessoais e concretas. Em funo do "custo de vida", a organizao privada da vida familiar se faz em termos de poupana esacrifcio.

    Nessa perspectiva, asociedade, como realidade exterior vida privada, aparece como mercado, na dupla face de mercado detrabalho e mercado de consumo.

    Temos assim um conjunto inicial de categorias articuladas que estruturam a percepo da realidade social. Colocando entre

    parnteses os termos introduzidos pelo investigador para diferenci-los das categorias empregadas pela populao, podemosconstruir o seguinte quadro:

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    Note-se que a famlia desempenha um papel-chave nessa articulao uma vez que, colocando seus diferentes membros comoindivduos no mercado de trabalho e reunindo os diferentes rendimentos assim obtidos para o consumo comum, constitui a instncia

    na qual so mutuamente referidos o salrio (obtido individualmente) e o custo de vida (que condiciona o consumo coletivo). Almdisso famlia propriamente que se aplica o projeto de "melhoria de vida", pensado como processo intergeracional e que exige a

    qualificao crescente dos trabalhadores. Note-se que essa qualificao sempre apresentada como sendo de responsabilidadeprivada do trabalhador e de sua famlia. na famlia, portanto, que se articulam as referncias ao mercado de trabalho e aomercado de consumo, a dimenso privada e a social na relao necessria entre salrio e custo de vida.

    O projeto de melhoria de vida que organiza a atividade individual e familiar parece se concretizar de modo muito marcante na casa

    prpria. Resultado do trabalho e dos esforos dos indivduos, do sacrifcio e da poupana de toda a famlia a casa prpriaconstitui, por assim dizer, a sntese da dimenso privada da vida social. Mais ainda, a casa, momento muito rico do discurso,

    aparece como objetivao do nvel de melhoria de vida atingido. Sendo espao privilegiado da vida privada, a casa tem comocontrapartida, na dimenso da sociedade, os servios urbanos: gua, luz, asfalto, iluminao pblica, transporte, escolas e postosde sade. O envolvimento da casa pela urbanizao do bairro constitui assim a face social da melhoria de vida concretizada nacasa. A "melhoria de vida" se realiza portanto atravs de dois modo complementares. De um lado, pelo acesso dos indivduos,

    graas ao seu esforo, a bons empregos que permitem, com a poupana (sacrifcio) da famlia, a construo da casa prpria. Deoutro, pelo acesso crescente aos benefcios urbanos. O progresso da sociedade que garante a possibilidade de melhoria da vidaprivada consiste no processo de ampliao do mercado de trabalho e no acesso ao mercado de consumo determinados pelaindustrializao e na oferta crescente de servios urbanos populao.

    Nosso quadro inicial pode ser agora ampliado:

    Algumas observaes adicionais podem ser feitas em relao a esse esquema. Em primeiro lugar, deve-se considerar que aapreenso da sociedade (em oposio vida privada) dominada pela percepo do mercado em sua dupla dimenso de"oportunidades de emprego - custo de vida". Trata-se, portanto, propriamente, da "sociedade civil" na sua acepo clssica,concebida aqui como exterior ao individual, como "dado" que configura os parmetros dentro dos quais as pessoas (nas

    famlias) devem procurar suas possibilidades de melhorar de vida. Em segundo lugar necessrio mostrar que a importncia crucialda crena na "melhoria de vida" e no "progresso" como elementos estruturantes da percepo da sociedade e da prtica indicamenos uma viso esttica da morfologia social que a apreenso de um processo. Esse processo corresponde sntese do modopelo qual as pessoas viveram as transformaes da sociedade brasileira, centradas no binmio industrializao urbanizao.

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    Finalmente, devemos observar que a insatisfao crescente que se vem observando ultimamente na periferia paulistana decorre,basicamente, da inviabilidade crescente da realizao da sonhada melhoria de vida, dada a estagnao do processo. A criseeconmica com seus corolrios de desemprego, diminuio da renda familiar e aumento do custo de vida esto desestruturando

    todo o esquema em funo do qual as classes populares organizaram sua prtica social nas ltimas dcadas.

    Resta ainda analisar, dentro deste esquema, o lugar e as funes atribudas ao Estado. Os poderes pblicos aparecem no discursopopular em dois momentos bastante distintos e de modo bastante diverso.

    O primeiro momento, e o mais ntido, est associado ao discurso sobre o bairro e a cidade. Nesse contexto so mencionadossempre os poderes locais (basicamente a Prefeitura, mas tambm o governo estadual), como responsveis pela oferta dos serviospblicos: gua, luz, asfalto, iluminao pblica, transporte, escola, posto de sade, posto policial. Nas cidades menores osdetentores do poder local so conhecidos e identificados. Existe tambm uma percepo definida da possibilidade de presso e

    reivindicao popular. Os mecanismos conhecidos e aceitos de reivindicao coletiva so o abaixo-assinado e a concentrao demoradores no prdio da Prefeitura ou o contacto direto de pessoas ou comisses com o prefeito.

    Note-se que esse tipo de ao coletiva, embora no dispense lderes, organizadores e mediadores, embora tanto possa surgirespontaneamente como ser suscitado por grupos polticos organizados de fora, implica sempre numa confrontao direta dapopulao em seu conjunto com os detentores dos poderes pblicos. Em outras palavras, admite antes organizadores e porta-vozes do que, propriamente, representantes. Trata-se portanto de uma ao poltica de tipo muito primrio que, confrontando "o

    povo" de um lado e "as autoridades" de outro, afirma a exterioridade destas em relao quele.

    O outro momento no qual o discurso popular se refere ao Estado aquele no qual se menciona uma entidade vaga e mal definidadenominada "Governo". A entidade "Governo" muito mais nebulosa que os poderes locais - no tem uma face discernvel,embora s vezes se personifique na figura do Presidente da Repblica. A palavra Governo refere-se basicamente aos poderespblicos federais e, dentre esses, especialmente ao Executivo As consideraes sobre o Governo surgem no contexto dasconsideraes sobre o emprego e o custo de vida, esperando-se dele que aumente um e diminua outro Sua funo parece portanto

    ser concebida, essencialmente, como a de controle dos interesses privados na esfera do mercado, de modo a coibir a exploraoexcessiva dos pobres ou "fracos" pelos ricos e poderosos. Essa concepo de Governo o constitui como uma entidade acima dasclasses e fora da sociedade e que possui uma funo de justiasocial. Desse modo, se a esfera do mercado aparece naindependncia da sociedade civil, ela pode e deve ser controlada pelo Estado no interesse do bem comum. Essa concepo certamente reforada pelo fato de que os momentos nos quais a populao sente a ao direta do Estado (ou sua omisso)

    referem-se fixao do salrio mnimo e ao estabelecimento do controle dos preos. Por outro lado, a relao institucional com ospoderes pblicos federais se d quase que exclusivamente atravs do INPS e remete noo dos "direitos" dos trabalhadores.

    O que cabe ressaltar nessa imagem do Governo exatamente sua completa exterioridade face populao Em primeiro lugar,como se ignoram os mecanismos institucionais de ao governamental na esfera do controle do mercado, essa ao aparecesempre como um ato puro de vontade e poder. Acredita-se apenas que o Governo pode e sabe como faz-lo. Por vezes a pressoresultante do excesso de oferta de mo-de-obra no mercado de trabalho resulta na concepo de que a interferncia

    governamental deve se dar no sentido de conter o fluxo migratrio para as cidades, facilitando o acesso do trabalhador rural terra. Desse modo se conseguiria, simultaneamente, diminuir a oferta de mo-de-obra no mercado de trabalho e aumentar a ofertade alimentos, diminuindo o custo de vida. Outras vezes, exige-se do Governo uma ao puramente repressiva, coibindo "abusos".De um modo ou de outro, pensa-se como funo do Governo o controle, o estmulo e o planejamento das atividades produtivas nointeresse do bem-estar coletivo; paralelamente, cabe ao Governo contrabalanar as diferenas sociais, assistindo a populao

    pobre e assegurando-lhe direitos ( assistncia mdica e aposentadoria, especialmente).

    A exterioridade do Governo se manifesta tambm na ausncia de mecanismos institucionais reconhecidos de ao ou presso,sobre o mesmo. Os recursos polticos que a populao costuma utilizar, o abaixo-assinado e a concentrao popular na presenade autoridade, teis ao nvel local, so inaplicveis e inoperantes face a esse Governo to distante, como o atesta sobejamente omovimento do custo de vida. No existem concepes referentes a um sistema de representao que estabelecesse a mediao

    entre o povo e esse nvel do Estado. Nesse sentido, pode-se dizer que o desmantelamento do sistema de eleies para os cargosexecutivos, promovido pela revoluo de 64, destruiu efetivamente os mecanismos atravs dos quais as classes trabalhadoraspodiam conceber uma relao poltica com o poder central que ficou, dessa forma, fora do alcance tanto do saber quanto dopoder popular. Nessa anlise, centrada no morador, no bairro e na cidade, omitiu-se uma relao importante com a sociedade e oGoverno que se efetiva atravs do sindicato. H que observar, entretanto, que as consideraes sobre as oportunidades de

    emprego, surgiram espontaneamente nas entrevistas, mas o mesmo no ocorreu com o movimento sindical. De qualquer forma,seria importante complementar essa reflexo, em outro momento, com uma anlise mais aprofundada das concepes acerca dosindicato.

    O esquema anterior, montado em funo da dicotomia vida privada-sociedade, pode ser agora completado com uma novadimenso : a do Estado.

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    Para concluir, convm indicar que, se a exterioridade e inacessibilidade do Governo no destruiu sua legitimidade enquanto semanteve a crena no progresso e na viabilidade de projeto de melhoria de vida, a crise econmica que ameaa esse projeto

    parece levar a populao a buscar mecanismos de manifestao de seu descontentamento e desespero A crescente agitaopoltica incentivada pelo processo eleitoral constitui ocasio privilegiada para a manifestao do descontentamento e, portanto, paraa emergncia de novas formas de ao poltica cuja necessidade parece ser difusamente sentida por todos.

    O esquema interpretativo preliminar que apresentamos certamente demasiado simplificado para dar conta de todas as nuances econtradies da imagem da sociedade construda pelas classes populares. Alm de no incluir a dimenso sindical e partidria, queno aparecem espontaneamente no discurso, mas certamente fazem parte do universo de referncia dessa populao, haveria ainda

    que analisar as referncias ao INPS, que estabelecem outra conexo entre a vida privada e o Governo. Tambm bvio, noinclumos outras dimenses importantes da vida privada e pblica, como o lazer e a religio. Mas acreditamos que, mesmo assim,esta tentativa de uma anlise mais global dos pressupostos que informam a prtica poltica das classes populares oferece um pontode partida para a reflexo mais globalizante, que supere o particularismo das monografias.

    Texto recebido para publicao em abril de 1986 NOTAS1 - A bibliografia contm principais trabalhos utilizados sobre a cidade de So Paulo. H tambm uma rica etnografia sobre a cidade do Rio de Janeiro,que no examinamos sistematicamente e que, por isso mesmo, citada na bibliografia apenas de forma indicativa. Por outro lado, muito doconhecimento sobre a periferia de So Paulo provm de pesquisas no publicadas, ou publicadas parcialmente, que foram ou esto sendo realizadaspor alunos sob a orientao de Ruth C.L. Cardoso ou minha. 2 - O grupo de pesquisadores, coordenado por Ruth C. L. Cardoso incluiu Teresa P. do Rio Caldeira, Jos Guilherme Cantor Magnani, Elizabeth Bilace eu mesma. Agradeo a todos a permisso de utilizar o material da pesquisa para este artigo, assim como a contribuio que deram, nos inmerosseminrios que realizamos, para a sistematizao das idias aqui expostas.

    3 - A seleo das cidades foi feita de modo a incluir regies diferentes do Estado e tipos diversos de urbanizao. Optou-se, nesse processo, por trscidades:

    So Jos dos Campos, por representar um ncleo urbano em expanso acelerada provocada pela concentrao de grandes indstrias.

    Rio Claro, como cidade de antiga tradio operria, ligada presena das oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e a pequenas indstriasde tipo tradicional. Essa cidade apresenta, alm disso, a caracterstica de se localizar numa das regies agrcolas mais desenvolvidas eprodutivas do Estado, reunindo aprecivel contingente de bias-frias.

    Marlia constitui, ao contrrio das outras cidades, um ncleo urbano de formao muito recente, tendo sido uma das mais clebres cidadespioneiras na dcada de 30. A indstria que se formou na cidade, presa transformao direta de produtos agrcolas regionais, est sendodesativada e a populao est diminuindo. So Jos e Marlia foram pesquisados por uma equipe,Rio Claro por outra. Nas trs cidades oprocedimento foi o mesmo:

    levantamento sucinto da histria do desenvolvimento da cidade, a partir de fontes secundrias;

    entrevistas com informantes qualificados (socilogos e pesquisadores que trabalham na cidade, lideres polticos e sindicais, habitantesconsiderados conhecedores da cidade);

    mapeamento do crescimento recente da cidade e localizao da nova periferia;

    reconhecimento de toda a zona perifrica para identificao visual das caractersticas espaciais aparentes;

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    seleo de bairros diferenciados para a realizao de entrevistas;

    entrevistas informais com lderes locais e habitantes contatados em postos de sade, bares, etc.;

    entrevistas formais gravadas nas residncias com habitantes do bairro.

    Em So Jos foram estudados 4 bairros e realizadas 28 entrevistas gravadas. Em Rio Claro, foram feitas 14 entrevistas gravadas em 3 bairros. EmMarlia, o estudo abrangeu 3 bairros e 24 entrevistas. (As. entrevistas informais no esto includas nesta relao.) Foram elaborados relatrios de pesquisa sobre cada uma das cidades estudadas e um trabalho especial foi preparado por Teresa Caldeira a partir dapesquisa bibliogrfica da cidade de So Paulo.

    4 - H ainda uma observao que se faz necessria sobre os conjuntos habitacionais do BNH. O ingresso nesse sistema no altera radicalmente odiscurso. Em primeiro lugar porque, construdos geralmente em local distante, implicam igualmente na expectativa de que o progresso chegue aobairro, com a urbanizao dos vazios e o aumento da oferta de servios pblicos. Depois, porque todo o discurso sobre o esforo e o sacrifcio sealteram muito pouco - referem-se prestao da casa, em vez da do lote, e reforma, em vez da construo inicial. Com efeito, a necessidade de fazero muro que cerca o terreno aparece para a populao como uma primeira necessidade que se segue mudana. Depois, comea o processo deampliao (que se inicia sempre pela cozinha) e embelezamento das fachadas. Com isso, nos conjuntos mais antigos, a uniformidade originaldesapareceu quase que totalmente, o que a populao valoriza muito (aqui j no parece BNH).

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