A SOCIEDADE EM COMUM NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
A SOCIEDADE EM COMUM NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
NOVA LIMA
2008
EDUARDO SILVA BITTI
A SOCIEDADE EM COMUM NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação strictu sensu da Faculdade de Direito Milton Campos como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Empresarial. Área de concentração: Direito Empresarial Orientador: Vinícius José Marques Gontijo
NOVA LIMA 2008
BITTI, Eduardo Silva
B624s A sociedade em comum no novo código civil brasileiro./ Eduardo Silva Bitti – Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2008
92 f. enc. Orientador: Prof. Dr. Vinicius José Marques Gontijo
Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de concentração Direito empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos
Bibliografia: f. 88 - 92
1. Sociedade 2. Personalidade Jurídica 3. Capacidade Negocial 4. Sociedade em
Comum . Sociedade em formação I. Gontijo, Vinicius José Marques II. Faculdade de Direito Milton Campos III. Título
CDU 347. 72 347.725
Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206
Faculdade de Direito Milton Campos – Mestrado em Direito Empresarial
Dissertação intitulada “A sociedade comum no novo código civil brasileiro, de autoria do Mestrando Eduardo Silva Bitti”, aprovada pela banca constituída pelos seguintes professores:
Professor Doutor Vinicius José Marques Gontijo Orientador
Professora Doutora Moema Augusta Soares de Castro
Professor Doutor Ricardo Adriano Massara Brasileiro
Nova Lima, outubro de 2008 Alameda da Serra, 61 – Bairro Vila da Serra – Nova Lima – Cep 34000-000 – Minas Gerais – Brasil. Tel/fax (31) 3289-1900
Dedico este trabalho à minha mãe, Sandra Conceição Silva Bitti, ao meu pai, Jair Bitti Costa (in memoriam), à Natália, e aos meus irmãos, Eugênio e Ingrid.
AGRADECIMENTOS
Às cidades mineiras de Belo Horizonte e Nova Lima pelas acolhidas semanais.
A meu orientador, Vinícius Jose Marques Gontijo, pelo exemplo de pensamento jurídico
crítico.
A Osmar Brina Corrêa-Lima e a Eugênia Bitti.
Aos demais professores do curso de mestrado da Faculdade de Direito Milton Campos, em
especial, Fernando José Armando Ribeiro.
Aos demais funcionários da Faculdade de Direito Milton Campos, a Rosely, a Miralda e a
Cássia, bem como a Emilce Maria Diniz.
A meus amigos de mestrado, Fabrício de Souza Oliveira, Marcelo Moraes Tavares, Marcelo
Calonge, Luciano Comper, Patrícia Faria Moraes Araújo Gonçalves e Weser Francisco
Ferreira Neto.
A José Eduardo Miranda, pela aposta.
A meus amigos, professores e alunos, da Faculdade de Aracruz (ES).
A Nilson Frigini, pelo incentivo.
. Assim como a leitura, a mera experiência não pode substituir o pensamento. (Arthur Schopenhauer)
RESUMO
O presente estudo retrata a situação da sociedade em comum no Direito brasileiro
após o advento do Código Civil em vigor desde 2003. A possível aparição
empresarial de tal estrutura societária permite refletir sobre a aplicação de
significados de elementos, como a personalidade jurídica e a capacidade negocial.
Mais que isso, a partir da visão de que as sociedades somente se registram em prol
de uma conduta regular perante o Estado, é possibilitada a adoção de conceito de
sociedade em comum derivado da importância que a mera solicitação de
arquivamento de atos constitutivos possui, a de possuir caráter de ente legitimado a
responder por suas práticas. Isso acontece, ainda que a responsabilidade do sócio
se apresente de maneira equivalente à das demais espécies de sociedade em
formação.
Palavras–chave: Sociedade em formação. Personalidade Jurídica. Capacidade
Negocial.
ABSTRACT
The current study portraits the situation of common partnership of Brazilian law after
the advent of Civil code in force since 2003. The possible business appearance with
such corporate structure permits the reflection on the application of element
meanings, as the judicial personality and the trading capability. More than that, since
the vision where the partnerships only register in favor of a regular procedure before
the State, it´s made possible the adoption of partnership concept in common derived
from the importance that the mere solicitation of filing of constitutive acts hold, the
one of having legitimate character to respond for its actions. This happens even
when the partner’s responsibility presents in an equal manner to the other types of
partnership in development.
Key-words: Company in constitution. Judicial Personality. Trading capability.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................... . 11
2 A EMPRESA INFORMAL E A CRIAÇÃO DE SOCIEDADES NO DIREITO BRASILEIRO .............................................................................................. 15
2.1 A liberdade para contratar em mercados.................................................... 16
2.2 A sociedade informal na questão da empresa.......................................... 20
3 NOÇÕES CONCEITUAIS SOBRE SOCIEDADE EM COMUM .... ........ 28
3.1 Distinção entre a sociedade de fato e a irregular..................................... 29
3.2 O conceito da sociedade em comum segundo o Código Civil de 2002.... 32
3.3 A exclusão da sociedade anônima em constituição................................... 37
3.4 A sociedade anônima em formação e o advento de obrigações em nome próprio.......................................................................................................... 39
4 ASPECTOS DO PROBLEMA DA PERSONIFICAÇÃO E DA CAPA CIDADE DA SOCIEDADE EM COMUM.............................. .................................. 43
4.1 Linhas gerais sobre a evolução da personalidade jurídica societária e a divergência acadêmica sobre a natureza do fenômeno.............................. 43
4.2 A discussão da personalidade das hierarquias em formação na espécie em comum......................................................................................................... 47
4.3 Reflexões sobre a capacidade da sociedade em comum........................... 51
4.4 A legitimidade para figurar em processo de falência e de recuperação judicial......................................................................................................... 57
5 RESPONSABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO................ ............................ 61
5.1 Utilização subsidiária das normas relativas às sociedades simples.......... 61
5.2 A responsabilidade nas relações com terceiros e o benefício de ordem.. 64
5.3 A administração da sociedade em comum e o pacto de limitação de poderes....................................................................................................... 68
5.4 O contrato social e sua comprovação......................................................... 70
6 PONDERAÇÕES SOBRE A SAÍDA DE SÓCIOS DA SOCIEDADE EM COMUM...................................................................................................... 74
6.1 A liquidação decorrente de resolução parcial ou de dissolução da sociedade em comum................................................................................................... 74
6.2 Comentários sobre o aspecto temporal para a responsabilização dos sócios após a saída da sociedade......................................................................... 79
7 CONCLUSÕES........................................................................................... 82
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................88
11
1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação começou como um projeto no qual se discutiria a
personalidade jurídica das sociedades de fato e das irregulares sob uma ótica a ser
posicionada diante da legislação vigente. Por conseqüências conhecidas por todos
aqueles que já percorreram os caminhos experimentais da ciência do Direito, toda
uma gama de ventos sopraram a favor de uma análise apropriada à satisfação de
problemas de importância mais pragmática e específica. A cada opinião doutrinária
descoberta, mais a personificação societária parecia se tornar apenas uma parcela
do que viria a se tornar a presente pesquisa.
A crescente aparição de rastros deixados, principalmente durante o Século
XX, das várias peças do quebra-cabeça da ordem societária vigente, no tocante às
organizações fáticas e irregulares, fez com que estes pedaços começassem a não
se encaixar com tanta clareza. Isto ocorria tanto no próprio desenrolar da aplicação
do conceito de personalidade jurídica quanto no que se argüia naquilo que era
relativo ao que viria a ser a sociedade em formação.
Para piorar, recentemente trazida ao contexto do direito empresarial brasileiro
pelo Código Civil de 2002, a sociedade em comum revelou ser tema de interesse
relevante em decorrência de uma visualização prática confusa tanto pela doutrina
como pela jurisprudência e com o agravante de, talvez, ser a herdeira das
organizações sem regularidade. Nesta altura, sabia-se que, em princípio, essa
herança acabaria por ser uma alteração supostamente pouco significativa no
universo jurídico pátrio, conforme os ensaios esposados até então.
Afinal, para quê estudar uma instituição que não provocasse maiores
mudanças na legislação vigente?
Para responder a isso, de pronto foi diagnosticado que o sentimento
pertencente à matéria em princípio estaria refletido apenas como um apêndice das
estruturas societárias. Poderia, contudo, vir a sofrer nova diagramação com base em
novas interpretações, um grande filão de pensamentos. A isso, soma-se a ausência
de uma variedade de produções científicas específicas que pudessem vir a elucidar
qual o verdadeiro direcionamento dispensado pelos artigos 986 a 990 do diploma
substantivo em vigor, mais uma dificuldade que estava exposta ao trabalho. A
12
primeira barreira a ser rompida seria, como se verá, a quantidade de referências
bibliográficas a respeito da temática.
A cada capítulo haveria de ser feita clara criação de hipóteses que viessem a
adequar as colocações de cada aparato bibliográfico segundo as circunstâncias
diagnosticadas. A apresentação paradigmática de autores, a princípio escassa, teve
nos exatos termos desta carência o oferecimento de variáveis capazes de permitir
discussões. Nesta altura, enfim, a sociedade em comum já era um tema
justificadamente apaixonante.
Devido ao Código Civil não pugnar pela clareza de uma série de
necessidades especiais inerentes às arestas que a disciplina carece, empurrando
para a analogia a função de fornecer embasamento aos juristas que desenvolviam
teses voltadas para o esclarecimento do assunto, a grande brecha estaria por recair
sobre os méritos do desenvolvimento de um trabalho aparentemente colocado à
margem das pesquisas do Direito Empresarial. O que se deseja com um trabalho
sobre uma espécie societária, supostamente já pacificada, seria pontualmente
esclarecê-la sob a ótica inquieta da dialética jurídica.
Assim é que o primeiro ponto de conteúdo deste trabalho tratará a situação da
empresa informal diante da criação de sociedades no direito brasileiro. Afinal, se o
Direito Empresarial é movido pelos alicerces que regem a Economia, nada mais
salutar que a linha de raciocínio localizar as estruturas societárias contidas no cotejo
informal em questão, aliada à visão do exercício da empresa. Nessa ponderação,
subdivide-se tal capitulação em dois subitens. Em um, crê-se na lógica dos
questionamentos da própria liberdade de contratar em mercados, elemento que
corrobora para o desenvolvimento defendido em âmbito constitucional, inclusive. Em
outro, em decorrência de uma suposta herança informal da sociedade em comum,
anteriormente mencionada, está a discussão da organização informal em sede de
paralelo à questão da empresa, em especial.
Objetiva-se, assim, ponderá-las se são realmente instrumentos tipológicos
situados pelo legislador dentro da ótica contratual informal do exercício da empresa,
como uma instituição com terminologia derivada de preceitos econômicos
autônomos em paralelo à vontade estatal. Fita-se responder ao questionamento de
que se essa conjuntura textual, em termos de contrato, fosse válida para as
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situações concretas, como poderia a própria lei vir a tachá-la de irregular e, por
conseguinte, incentivar a sua não-aceitação no mercado em que atua e sobrevive.
Na seqüência, capitulam-se as noções conceituais a respeito das sociedades
em comum. Tópico chave para o trabalho, aqui bate o coração da pesquisa,
momento central da interpretação acerca do conceito de sociedade em comum. Para
tanto, quatro subdivisões se mostram necessárias. De início, será vista a velha
discussão sobre a distinção entre a sociedade de fato e a irregular. Após, será
trabalhado um conceito específico de sociedade em comum diante dos debates
inerentes às hierarquias empresariais informais. Logo em seguida, será comentada
a lógica da exclusão das companhias em constituição do conceito colocado na
passarela epistemológica. Por fim estarão os comentários complementares sobre a
formação das sociedades anônimas e o surgimento de obrigações em nome próprio
neste interstício da fase formativa.
No quarto tópico estarão os aspectos do problema da personificação de
sociedades no Direito brasileiro e, por tabela, a alocação de esforços com o
propósito de discutir a capacidade da sociedade em comum, conforme o conceito
abordado no capítulo anterior. Para melhor posicionamento, novamente serão quatro
os subitens. Inicialmente serão trazidas as linhas gerais sobre a evolução da
personalidade jurídica societária diante da divergência acadêmica a respeito da
natureza do fenômeno da personificação. Depois, virá a discussão quanto à
personalidade das sociedades em comum, hierarquias em formação a serem lidas
com base nos entendimentos formulados em conceito exposto no capítulo anterior.
Definida a idéia da personificação, ou não, a seguir serão realizadas reflexões
sobre a capacidade de exercício de tal estrutura societária. Finalmente visualizada,
ou não, tal capacitação, será tomada como objeto a controvérsia sobre a
legitimidade de tal espécie figurar em processo de falência e de recuperação judicial.
No quinto capítulo estará a responsabilidade dos administradores e sócios da
sociedade em comum. Tal matéria será esmiuçada em outros quatro subtópicos.
Será discutida preliminarmente a utilização subsidiária das normas relativas às
sociedades simples, uma das instituições paradigmas desta dissertação. Em
seguida, os debates se dirigem à responsabilidade dos sócios nas relações com
terceiros e o benefício de ordem previsto pelo Código Civil, separador entre o
patrimônio da organização e o dos investidores em sua individualidade. Também
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será abordado o problema da administração da sociedade em comum e a menção
legal ao pacto de limitação de poderes igualmente preconizado pela legislação. Esta
parte contará ainda com reflexão acerca da comprovação do contrato social
relacionado à responsabilidade disposta nos artigos relacionados ao tipo societário
em pauta.
No último capítulo de conteúdo, as ponderações sobre a saída de sócios da
sociedade em comum virão à tona já expostas em duas significativas expressões.
De um lado, será externada a importância da liquidação decorrente de resolução
parcial ou de dissolução da sociedade em comum. De outro, tomam horizonte os
comentários sobre o aspecto prescrional da responsabilização dos sócios após a
saída dos mesmos da sociedade.
Espera-se, enfim, que a presente obra atinja seu propósito de despertar uma
releitura do instituto sob enfoque principal, de maneira a expor e, principalmente,
oferecer crítica às conjecturas atuais do assunto. Deseja-se que a leitura seja
agradável, mas que a partir dela, principalmente, haja uma nova abertura de
diálogos sobre o tema.
15
2 A EMPRESA INFORMAL E A CRIAÇÃO DE SOCIEDADES NO D IREITO
BRASILEIRO
Antes de apresentar os conceitos especificamente relevantes às
sociedades em comum, vale fazer breve digressão na disciplina de Direito e
Economia, o que serve de parâmetro para a explicação sobre como uma
estrutura societária, apesar de livre quanto ao surgimento, somente sobrevive
por adequação a preceitos legais, como a imposição do respectivo registro1.
As derivações da teoria jurídica da empresa trazem à tona as assertivas
destinadas a solucionar a verdadeira posição das sociedades no contexto
infraconstitucional. Talvez a compreensão do que seria atividade empresarial,
por si só, tivesse grande valia, graças ao enfoque econômico do assunto.
Há que ser buscada a apuração sobre quais seriam as variáveis da
criação de sociedades no direito brasileiro, a partir da ótica dos contratos e dos
direitos de propriedade, pontos norteadores para uma justificativa da
necessidade do registro para uma possível personificação societária.
Em análise superficial, o direito se esquece dos preceitos de ordem
econômica e dita que a informalidade societária é quesito a ser expurgado da
vida prática. O assunto aparentemente derrotado dos debates acadêmicos
adormece inquieto no leito jurídico nacional por força das alterações legislativas
advindas do Código Civil de 2002.
Inicia-se toda essa verificação pelo presente tópico que será dividido em
apenas duas partes, a liberdade de contratação em mercados e a sociedade
informal no questionamento do que vem a ser empresa.
1 Existem situações, no entanto, onde nem sempre só o registro é necessário para que se alcance a regularização societária, onde há condicionamento a aprovação do Poder Público. Roberto Senize Lisboa, em nota, lembra que “o Banco Central do Brasil – Bacen é o órgão que autoriza o funcionamento das instituições financeiras, das bolsas de valores, das associações de crédito imobiliário e das sociedades distribuidoras de valores; a Superintendência de Seguros Privados – Susep é o órgão que autoriza o funcionamento das empresas de seguro de bens e de vida; a Agência Nacional de Saúde Suplementar é responsável pela autorização de funcionamento das operadoras de plano de saúde e de seguro-saúde” (LISBOA, Roberto Senize, Manual de direito civil: teoria geral do direito civil. v. I. 3 ed. São Paulo: RT, 2002, p. 336).
16
2.1 A liberdade para contratar em mercados
De maneira profícua, o atual Código Civil traz, sob a expressão “Direito
de Empresa”, o fruto de um trabalho feito durante a parte final do Século XX na
tentativa de substituir a antiga codificação de 1916, pautada na ideologia de
uma sociedade agrária e conservadora, preocupando-se muito mais com o ter
– o contrato, a propriedade – do que com o ser – os direitos da personalidade,
a dignidade da pessoa humana, entre outros2.
A inclusão da matéria, mais que isso, foi uma busca sem sucesso pela
unificação do direito privado3. Certamente que o direito civil regula os conceitos
sobre as relações jurídicas e invoca-os sempre que pessoas, também por ele
reguladas, decidem por interagir. Ocorre que o direito de empresa, por seu
turno, releva-se por exprimir especificidade e por merecer destaque ao abrigar
preceitos ligados a interesses estritos à economia.
A inclusão do direito de empresa no Código Civil de 2002 leva o estudo
a um direcionamento sobre o sentido utilizado pelo legislador. Se é certo que
na prática a unificação pretendida não alcançou êxito4, também o é que algum
sentido haveria de ter tal direcionamento.
De grande valia é a observação a respeito da nova Lei quanto à menção
relevada a elementos como a função social dos contratos e a da propriedade,
liames de relações jurídicas com a Economia, em especial, no que tange ao
direito empresarial. Os contratos são a corporificação dos negócios jurídicos e
servem de elo para as vontades dos agentes que, invariavelmente, deles se
utilizam para a troca econômica, a produção de riqueza. São os instrumentos
para o deslocamento dos direitos de propriedade inerentes aos agentes
econômicos e dependem dos níveis de coação advinda da lei ou do próprio
2 Cf. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. v. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva. 2006, p. 44. 3 Como reflete José Jairo Gomes, a visão unitária dos ramos jurídicos civil e empresarial é deficiente “[...] porque, a unificação legislativa não poderia implicar a perda da autonomia científica desse importante ramo do Direito Privado.” (GOMES, José Jairo. Direito civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p.106). 4 Finaliza Rubens Requião, em passagem que comenta o relatório do então projeto do atual Código Civil:“[...] é óbvio que a unificação do direito das obrigações não significa a abolição da vida mercantil” (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. I. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21)
17
instrumento contratual, para serem eficazes. Conforme predispôs Francesco
Carnelutti5, a sanção somente encontraria êxito mediante a criação de um
interesse à obediência, a coação, em que aquele que desobedecesse tivesse a
certeza de que seria punido.
Em pesquisa levada à conferência da International Society for New
Institutional Economics (ISNIE), em 2006, Raquel Sztajn6 refletiu que o Código
Civil não foi uma réplica completa do italiano7, mas primou por abordagem
destinada exatamente a unificar a disciplina obrigacional e contratual, tal qual o
legislador daquele país procurou fazer. Notadamente, como fruto da
mentalidade peninsular, a norma brasileira dela se derivou para abrir largo
caminho para uma maior intervenção do Estado nas relações econômicas de
cunho empresarial.
Em busca de uma solução para desequilíbrios econômicos nos casos
concretos, o intervencionismo estatal se exacerba sob a justificativa de corrigir
possíveis erros quanto aos negócios jurídicos voltados a mercados. Afinal,
“competição e equilíbrio entre os agentes podem ser a chave para a
compreensão da Economia”, como disseram Ugo Mattei, Luisa Antonielli e
Andrea Rossato8.
A favor da referida causa estatal estaria o fato de que fosse o ambiente
negocial algo pacífico, talvez as relações jurídicas nele contidas também
fossem situações em que os agentes econômicos pudessem se conformar com
as trocas econômicas realizadas9, uma vez que elas seriam perfeitas, ótimas10.
5 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Traduzido por A. Rodrigues Queirós e Artur Anselmo de Castro. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006, p.108. 6 SZTAJN, Raquel. What a new law should not accomplish. ISNIE 2006: Institutions: Economic, Political and Social behavior. Boulder, set. 2006. Disponível em <www.isnie.org/ISNIE06/Papers06/04.5/sztajn.pdf>. Acesso em 20 de agosto de 2007. 7 ITÁLIA, Codice Civile. Disponível em: <http://www.jus.unitn.it>. Acesso em 20 set. 2007. 8 Em tradução livre de: “Competition and equilibrium among maket actors may be the key to understanding economics” (MATTEI, Ugo A; ANTONIOLLI, Luisa; ROSSATO, Andrea. Comparative Law and Economics. Encyclopedia of Law & Economics. p. 510. Disponível em <http://encyclo.findlaw.com/0560book.pdf>. Acesso em 3 set. 2007). 9 Gaspar Ariño Ortiz destaca que a razão primeira para intervenção do Estado se situa no fracasso do mercado e na necessidade imperiosa de recriá-lo. Segundo ele: “a intervenção teve por finalidade justamente garantir a livre competição no mercado, dando-lhe consistência. O Estado veio assumir tarefas que, sem a sua interferência, poderiam constituir-se em perturbadoras do funcionamento adequado do mercado: a existência de monopólios naturais, de estruturas de mercado não competitivas (monopólio de fato, abuso de posição dominante, distribuição assimétrica de informação...), bens públicos e
18
Haveria sempre a satisfação por parte dos contratantes, o que faria com que a
presença de sujeitos ou lugares intermediários, como é o caso dos mercados,
não fosse necessária11.
As críticas à perfeição das relações jurídicas, entretanto, servem para
lembrar que a formação de contratos deveria sempre levar em consideração a
possibilidade desse comportamento oportunista de agentes. Como situa
Raquel Sztajn12, os agentes tendem a pender a balança de interesses para o
lado mais conveniente em desfavor ao outro pólo da relação, de acordo com
cada negócio jurídico celebrado, tornando-o imperfeito. Teve-se a oportunidade
de se dizer que a sociedade, como organização empresária, é criada para que
os riscos da atividade econômica sejam diminuídos aos que a empreendem
com o fito de transacionar direitos de propriedade13. E se há um cenário em
que agentes envolvidos no mercado possuem informações diferentes sobre as
características dos ativos em negociação, existe aquilo que a Economia chama
de assimetria informacional14.
externalidades.” (ORTIZ, Gaspar Ariño. Economia y Estado: crisis del sector público. Madrid: Marcial Pons, 1993, apud FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5 ed. Rio de janeiro: Forense, 2007, p. 276). 10 Alusão ao padrão de medida de eficiência denominado “Ótimo de Pareto”, criado por Vilfredo Pareto, que diz que em uma troca econômica, ou série dela, o aumento do bem-estar do indivíduo aliado à ausência de piora do quadro da outra parte em relação ao estado anterior ao ato tem como resultado uma operação considerada eficiente. As críticas a esta teoria podem ser encontradas na obra de Louis Kaplow e Steven Shavell (KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. The conflit between notion of fairness and the Pareto Principle. American Law and Economics Review. v. 1. n.º 1 e 2, p. 65, Fall,1999, apud SZTAJN, Raquel. Teoria jurídica da empresa. Atividade empresarial e mercados. São Paulo: Atlas. 2004, p. 44): “Under the Pareto Principle, if every person is better off under onde policy then under another, the former is deemed to be preferable”. 11 No fim do Século XIX foi criada na Inglaterra a Teoria Neoclássica à qual se filia o comentário apresentado. Calixto Salomão Filho lembra que essa teoria econômica explicava que o preço dos produtos variava em função do valor dado ao bem pelo último consumidor, chamado de marginal, em detrimento à idéia de que a responsabilidade por tal feito seria dos custos de produção (SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e concorrência: estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 56-57). 12 Cf. SZTAJN, Raquel. Raquel. Teoria jurídica da empresa. Atividade empresarial e mercados. São Paulo: Atlas. 2004, p. 44. 13 A necessidade de se garantir as trocas econômicas pode ser representada pelas palavras de Ronald H. Coase, o qual retrata o papel da empresa nos casos de termos contratuais insatisfatórios para um dos pólos da relação COASE, Ronald H. The nature of the firm. Economica, v.4, nº 16, Londres, 1937, p. 386/405. Disponível em <www.jstor.org>. Acesso em 04 de set. de 2007, p. 392. 14 Alexandro Boedel Lopes e Eliseu Martins (LOPES, Alexandro Broedel; MARTINS, Eliseu. Teoria da contabilidade: uma nova abordagem. São Paulo: Atlas, 2007, p. 31-32) abordam a assimetria informacional como uma diferenciação entre o nível de informação de alguns agentes econômicos em relação a outros, causando problemas ao funcionamento do mercado financeiro.
19
Percebe-se que a liberdade de iniciativa para a criação de organizações
pode obter, em certos casos, um caráter destinado unicamente ao interesse
individual, contrário aos condicionamentos constitucionais destinados a
assegurar os ditames da justiça social15.
Duas soluções seriam dadas ao problema. Na primeira, o Estado
assumiria os fatores de produção e substituiria os agentes econômicos em
todas as relações criadas. Através dessa ingerência direta, o Estado passaria a
atuar como empresário, comprometendo-se com a iniciativa produtiva, seja sob
a forma de empresa pública, seja como sociedade de economia mista,
constituintes da chamada Administração pública indireta. Sob estas duas
formas, inclusive, pode ele atuar em regime concorrencial, em que há
equiparação aos entes privados, ou mesmo, a caracterização de um regime
monopolístico sobre o ramo empresarial verificado, como lembra João Bosco
Leopoldino da Fonseca16.
Na segunda, mais utilizada, ele cede suas funções à iniciativa privada
para que ela se desenvolva e possa fornecer ao Poder Público parte de seus
ganhos17, por meio de tributação das atividades, entre outras formas.
Em ambos os casos há um espectro no qual o poder intervencionista estatal
pode oscilar, de acordo com as especificidades do mercado em questão, como
ocorre, verbi gratia, no caso de companhias como o Banco do Brasil S/A e a
Petrobrás S/A, ou ainda, nas hipóteses de agências reguladoras como a
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e a Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL).
Discussão de faces distintas, ao mesmo tempo em que se manifesta
essa ordem substitutiva do Estado como agente, dá-se a proporção em que se
tende a bloquear a liberdade de seus sucessores de modo a regulá-los.
15 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 760. 16 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5 ed. Rio de janeiro: Forense, 2007, p. 281. 17 Por essa alteração de competência para atuar como agente na economia, João Bosco Leopoldino da Fonseca (FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5 ed. Rio de janeiro: Forense, 2007, p. 280-281) ressalta a caracterização de uma intervenção indireta, por meio de normas “[...] que têm como finalidade fiscalizar, incentivar ou planejar; o planejamento, como se verá, é somente indicativo para o setor privado. Esta forma de atuação no Estado está prevista no art. 174 da Constituição Federal.”.
20
O excesso de regras, por sua vez, acabaria por limitar a vontade desses
agentes em empreender nesses terrenos muito regulados, em que o
relacionamento com outros interessados sempre passasse por mediação
estatal. Motivar os atores desse cenário a aumentar a produção de riquezas e
ao mesmo tempo designar os limites de suas atividades eram os desafios que
couberam ao legislador brasileiro de 2002, na medida em que teve de fazer a
escolha por um padrão de comportamento reticente ao direito empresarial18.
Nessa conjuntura, lembra-se Norberto Bobbio19, quando afirmou, sobre a
intervenção do Estado na economia, como sendo uma atividade promocional,
com vista a dirigir o complexo econômico, naquilo que evolui de mera proteção
a um caráter programador, baseado na livre iniciativa, conforme disposição do
artigo 170 da Constituição Federal de 1988.
2.2 A sociedade informal na questão da empresa
O papel da empresa seria assim o fluxo para o qual seguiria o direito à
livre iniciativa, o qual se traduziria na possibilidade de exercício de uma livre
atividade econômica privada.
A liberdade de criar e gerir admitiria restrições resultantes das normas
constitucionais ou das leis inferiores, justificadas, ou pela necessidade de
proteção do interesse público em geral, ou pela necessidade de proteção de
grupos econômicos que tenham relação específica com a atividade
empresarial20.
Na empresa, todos os contratos, em relação ao direcionamento de
recursos, cruzar-se-iam como pequenos feixes, como situou Ronald Coase21.
18 SZTAJN, Raquel. Raquel. Teoria jurídica da empresa. Atividade empresarial e mercados. São Paulo: Atlas. 2004, p. 29. 19 BOBBIO, Norberto. Dalla struttura allá funzione. Milão: Ed. Di Comunità, 1977, p. 80. 20 Cf. BERTOLDI, Marcelo Marco; RIBEIRO; PEREIRA, Marcia Carla. Curso avançado de direito comercial. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 130. 21 “A firm, therefore, consists of the system of relationships which comes into existence when the direction of resources is dependent on an entrepeneur” COASE, Ronald H. The nature of the firm. Economica, v.4, nº 16, Londres, 1937, p. 393. Disponível em www.jstor.org. Acesso em 04 de set. de 2007.
21
Com os relacionamentos entrelaçados, haveria uma maior capacidade de
produção de efeitos, ao contrário do que ocorreria se estivessem isolados. Em
função de tal entrelaçamento, importa destacar, cria-se um sujeito operante de
valores inerentes à Economia, o empresário.
Tal qual se extrai do artigo 966 do vigente Código Civil, na empresa há
um ambiente contratual onde se desenvolve a atividade econômica, de maneira
profissional, sob a forma de organização dos fatores de produção e serviços,
uma assertiva que justifica o seu posicionamento, por alguns22, como objeto
nas relações jurídicas a ela inerentes.
Essa representação geométrica liga-se, desse modo, a outro local
ideológico, maior, chamado mercado, que também possui base contratual e é
considerado como ambiente no qual se inserem os agentes econômicos. Ele
não é um local natural, é criação do direito para propiciar a circulação de bens,
o que lhe propicia aproximação com a atividade empresarial, dela sendo
intermediário23.
Esse locus, quando formalizado, deixaria exposta uma condição de
espaço estruturado de maneira vertical, naquilo que poderia chamar-se de
hierarquia da organização empresarial. Supostamente, seria assim
proporcionada uma amenização da tensão entre ela e outras instituições por
meio de um aumento na disciplina interna da própria organização, ou seja, com
o aparecimento de regras sobre os interesses comuns nela inseridos.
Peter G. Klein24 argumentou que isso poderia resultar em um aumento
nos custos burocráticos, como as dívidas fiscais, e por conseqüência, num
desajuste - o chamado tradeoff - entre o mercado e a própria hierarquia, o que,
conclui-se, justificaria um possível fomento ao acréscimo na quantidade de
contratos informais de sociedades.
22 Sobre o assunto, leiam-se Sérgio Campinho (CAMPINHO, Sérgio O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 11), e Romano Cristiano (CRISTIANO, Romano. Empresa é risco: como interpretar a nova definição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 253). 23 Cf. SZTAJN, Raquel. Raquel. Teoria jurídica da empresa. Atividade empresarial e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 49. 24 KLEIN, Peter G. New Institutional Economics. Encyclopedia of Law & Economics. 1999, pp.468-469. Disponível em <http://users.ugent.be/~gdegeest/0530book.pdf>. Acesso em 12 set. 2007.
22
Essa possibilidade ocorreria em função do próprio conceito de
empresário, fornecido pela legislação de 2002, em seu artigo 96625, uma vez
que o dispositivo legal não impede a atuação daqueles que não possuem o
respectivo registro. O fenômeno, inclusive, possui reflexo observado na criação
de sociedades, negócio jurídico plurilateral26, que por si só não prescinde da
vontade estatal para sua criação.
Estabelece-se, por conseqüência, que a atuação em mercados,
ambientes para os quais se destina a atividade empresarial, independe do
registro perante os órgãos governamentais. De forma incompreensível,
validam-se os contratos informais ainda que as sociedades fáticas não tenham
personalidade jurídica, o que ocorre por meio de que o ente não registrado é
aceito para ocupar o papel de sujeito nas relações jurídicas negociais. É o que
se depreende das palavras de Wille Duarte Costa27 para quem a doutrina
brasileira costuma distinguir entre comerciante de direito e de fato, “[..] mas em
qualquer hipótese, não deixam de ser comerciantes com ou sem registro ou
arquivamento.” A hierarquia informal, assim, não perde seu caráter empresarial
pela falta de contrato levado a arquivamento, uma vez que o próprio conceito
de empresa não depende de tal ônus.
Vinícius Jose Marques Gontijo28 ao comentar o assunto, ressalta,
exatamente, que por força do artigo 967 do Código Civil não se pode
compreender o fenômeno empresário como mera formalidade estrutural, na
medida em que em nada se mitigaria o conteúdo material que serviria de
25 O artigo 966 preceitua que “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. É possível incluir na análise uma série de disciplinas diferentes como é o caso das relações de consumo e outras questões de cunho constitucional, como são as discussões sobre efeitos ambientais das atividades das organizações e a proteção dos direitos do trabalhador. 26 João Eunápio Borges acentuava que o instrumento contratual da sociedade era ato complexo, ato coletivo ou negócio coletivo (BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 258). Assim é que a vontade dos contratantes era filtrada com vistas a um mesmo objetivo, onde cada um daqueles se obrigaria perante todos os demais pelas obrigações societárias, naquilo que resultará num novo sujeito de direito. 27 COSTA, Wille Duarte. A possibilidade de aplicação do conceito de comerciante ao produtor rural. Belo Horizonte: UFMG, 1994. p. 68. 28 GONTIJO, Vinícius Jose Marques. O empresário no Código Civil brasileiro. Revista de Julgados do Tribunal de Alçada de Minas Gerais. v. 94. Belo Horizonte , 2004, p. 25.
23
orientação para a respectiva figura. Em correta complementação, o autor
ressalva que em virtude do disposto no artigo 36 da Lei 8.934/1994, a Lei do
Registro Empresarial, o documento encaminhado a arquivamento nos 30
(trinta) dias posteriores à sua lavratura teria o seu registro retroativo quanto aos
seus efeitos à data constante do documento. “Dessa feita, a natureza jurídica
do registro é declaratória”, afirma.
A partir desta mentalidade, deriva-se, a sociedade direcionada a
mercados é identificada, portanto, como empresária, o sujeito em relações
jurídicas em seu ramo de atuação. Logo, apesar da visão estatal sobre o
assunto, por mais que aqui se apresentem concepções sobre intervenção
econômica, não se condiciona o contrato social ao registro do agente, ao
menos, em se tratando de exercício ou não de empresa. Isso ocorre, primeiro,
porque o Estado não pode agir sobre a vontade dos interessados, em seu
âmago, no que diz respeito à formação do contrato que faz surgir a estrutura
societária. Segundo, porque a prática disseminou a existência de fato de
algumas organizações29.
Em hipótese, é possível dizer que, em tais ambientes, como existem
menos regras internas capazes de aumentar a segurança das transações, base
da credibilidade do empresário, haveria um possível aumento nos custos e na
incerteza da continuação do negócio. Sabe-se, no entanto, que confirmação
desta empírica suposição dependeria da análise de outros fatores.
A fuga do registro perante o Poder Público poderia favorecer a
sociedade de fato, em termos concorrenciais, a sofrer menor influência de
elementos derivados da regularidade, como a vigilância estatal e o pagamento
de impostos, o que é relacionado aos chamados custos de transação30. Isto
está atrelado à idéia do que vem a ser a chamada teoria da Nova Economia
Institucional que veio a substituir, em termos econômicos, a teoria
29 Cf. MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. ver. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 173. 30 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e concorrência: estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 58.
24
Neoclássica31. Por esta nova corrente doutrinária, como ressalta Calixto
Salomão Filho, “inclui-se também o próprio mercado e as formas de realização
dos negócios e trocas em seu interior”.
Esta verificação, no entanto, pode induzir ao pensamento de que, a
primeira vista, a clandestinidade acaba se transformando em algo atrativo. O
fato de se registrar poderia revelar a absorção de um acúmulo de obrigações
para o empresário, que somadas, provocam efeitos sobre o preço final cobrado
sobre as transações dos direitos de propriedade, objeto social.
Neste ínterim, destaca-se Haroldo Malheiros Ducrerc Verçosa32 quando
acentua a omissão do Código Civil ao não reproduzir a regra do artigo 4º do
antigo Código Comercial33 relativa à perda dos benefícios da regularidade pelo
empresário. Segundo o autor, a ausência do preceito expresso poderia levar o
intérprete a se equivocar quanto à ausência de desvantagens para o
empresário irregular em virtude do desaparecimento da expressa restrição.
Por isso, diga-se, presentes os requisitos que compõem a organização
da atividade sujeita a registro, as sanções estatais deveriam estar aptas a atuar
sobre a estrutura da sociedade. Macular a viabilidade da continuação dos
contratos informais e incentivar a formalidade, contudo, seriam expressões que
só encontram sentido sob a influência de mecanismos de coação. Para isso,
duas seriam as possíveis soluções já fornecidas pela lei: a ausência de
limitação de responsabilidade dos sócios e a falta de personificação societária.
Ao se considerarem as sociedades sem registro ou à espera dele como
hierarquias ditas como sem personalidade jurídica, como a legislação brasileira
o faz, a principal discussão recairia sobre uma possível anulação dos negócios
jurídicos, o que não ocorre. Encontrou-se um modo de evitar a discussão sobre
a falta de capacidade, inclusive a de exercício, posicionando os exemplos de
31 Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto . Regulação e concorrência: estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 56. 32 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: Teoria geral do direito comercial e das atividades empresariais mercantis, Introdução à teoria geral da concorrência e dos bens imateriais. v. 1. São Paulo : Malheiros, 2004, p. 185. 33 Eis o teor do artigo: “Art. 4 - Ninguém é reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e faça da mercancia profissão habitual (artigo nº 9)”.
25
irregularidade como os de simples sujeitos de direito em relações jurídicas
específicas34, até como meio de salvaguardar direitos de terceiros que se
relacionam com os contratos sociais informais. A validação dos negócios
jurídicos celebrados pela sociedade interessaria, enfim, ao desenvolvimento de
meios de definição e de preservação dos direitos de propriedade35.
O próprio ideal societário, entretanto, apoiado basicamente sobre os
alicerces da boa-fé objetiva dos contratantes, em que as partes devem guardar
entre si o respeito e a lealdade que se esperam em um padrão médio de
comportamento36, tenderia a ser frontalmente atacado por esse tipo de
comportamento legal, no que tange à personificação. Validar atos
supostamente ilegais elevaria a possibilidade de fabricação de desvios de
comportamento por parte dos investidores envolvidos nos termos exatos da
diminuição de nível da referida padronização.
Vale a lembrança, em tempo, de que alguns tipos de sociedades
empresárias consideradas personificadas – no caso das em nome coletivo37,
ou em comandita simples38 – , mesmo registradas não prevêem a proteção
para os sócios contra as dívidas sociais, deixando de limitar-lhes a
responsabilidade até o limite de suas cotas do capital da organização.
Ao ser analisada, a própria personalidade jurídica parece distanciar-se
da disciplina de direito empresarial, como será abordado adiante. O Estado
tende a utilizá-la meramente como moeda coativa em troca da regularidade,
pressionando os terceiros a exigirem do ente “não personificado” a
apresentação de documentos probantes de regularidade perante o Poder
34 O conceito de sujeito de direito revela um vínculo de atributividade pelo qual se fornece legitimidade ao ente tanto material, como processual, para a figuração em relações jurídicas (Cf. EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 89). 35 Cf. MUELLER, Bernardo et al. Economia dos direitos de propriedade. In: SZTAJN, Raquel; ZYLBERSZATJN, Decio. [org]. Direito e Economia: análise econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005., p. 90. 36 Cf. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. v. I. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 66 37 A responsabilidade dos sócios na sociedade em nome coletivo é prevista pelo artigo 1.039 do Código Civil (op. cit.), cuja disposição prevê que ”somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade em nome coletivo, respondendo todos os sócios, solidária e ilimitadamente, pelas obrigações sociais”. 38 Eis a redação do artigo 1.045 do Código Civil: “Na sociedade em comandita simples tomam parte sócios de duas categorias: os comanditados, pessoas físicas, responsáveis solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais; e os comanditários, obrigados somente pelo valor de sua quota”.
26
Público, como ocorre em contratos de compra e venda, em que se deve
requisitar a emissão da dita nota fiscal. Eis mais um motivo pelo qual não se
corrobora com a concepção de que os terceiros são vítimas dos entes sem
registro. No mundo dos dias atuais seria inimaginável que a irregularidade
pudesse ser disfarçada, a não ser com a apresentação de documentos falsos
pelo empresário a seus clientes.
Em outra linha, não se esqueça, ainda, mesmo que a sociedade seja do
tipo limitada hoje já não serve, na prática, como esconderijo para investidores
que possuam intenções fraudulentas como a que ocorre no descrito ao final do
parágrafo anterior. Isto decorre da propagada idéia da desconsideração da
personalidade jurídica, segundo a qual baixa-se o véu da personificação e são
detectadas as pessoas que estão protegidas pela organização, bem como se
credita ineficácia da sociedade no caso concreto, isentando-a de condenação,
não havendo que se falar em direito de regresso do sócio39.
O cenário encontraria melhor solução em situações diversas. Aquela da
qual aqui se manifesta concordância estaria nos dizeres de Calixto Salomão
Filho40, ao mencionar que no sistema alemão “a tendência recente é a
aproximação das regras dos grupos de fato às regras dos grupos de direito,
exatamente pela sentida necessidade de substituir a ineficaz regra do conflito
de interesses”. Para ele, no sistema brasileiro não haveria qualquer movimento
coerente nesse sentido, senão tentativas tímidas, tanto pela lei, como pela
jurisprudência que se faz quase que exclusivamente a partir da aplicação da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Em complementação,
opina por não ser apenas o caso de estabelecimento das conseqüências para
a fraude, mas da criação de formas de compensação cabais para a reparação
de prejuízos ao patrimônio da sociedade e dos sócios minoritários que podem
ser causados.
Com efeito, todavia, mesmo nas sociedades anônimas não se afasta
totalmente a idéia da responsabilização, graças ao elenco normativo da Lei 39 Cf. GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no direito societário de terceiro por obrigação da sociedade. Revista de Direito Mercantil: industrial, econômico e financeiro. v. 140. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 95-96. 40 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 47.
27
6.404/1976. O artigo 117, em relação aos acionistas, e o 158, quanto aos
administradores, e o artigo 165, para os membros do conselho fiscal, cuidam
de esposar a possibilidade de serem mirados os patrimônios pessoais dos
referidos personagens.
Sob uma perspectiva, enfim, comparada com todas as sociedades
devidamente regularizadas, talvez o ente empresarial clandestino fosse a única
espécie societária a enfrentar a intervenção econômica estatal sobre a
atividade empresarial no Brasil.
Pelo que é observado, o objetivo de se apresentar a existência de uma
sociedade a uma junta comercial se traduziria em mero desencadeamento de
práticas de publicização ao mercado. A ausência de tal conduta não anula o
ato, mas pune o investidor em benefício de terceiros que dificilmente estariam
de boa-fé na relação jurídica por conta da amplitude de meios de verificação da
situação de irregularidade pela qual passa a hierarquia societária.
28
3 NOÇÕES CONCEITUAIS SOBRE SOCIEDADE EM COMUM
Há que se fazer uma constatação, a de que o tipo descrito do artigo 986 a 990
do Código Civil não veio a ser exatamente aquilo que foi consignado pela doutrina
nacional mais recente, a transmutação terminológica das hierarquias de fato e das
irregulares para a designação de sociedades em comum.
O problema é que a legislação, além de lacônica, neste ponto ainda não
alcançou a maturidade prática necessária, razão pela qual não se pôde vislumbrar
qualquer tipo de narrativa pelos pretórios nacionais capaz de sedimentar um
raciocínio único. Tudo que existe até hoje se refere tão unicamente às organizações
com desvios de regularidade, o que acaba proporcionando uma grande e nebulosa
lacuna sobre o real significado do que viria a ser uma sociedade em comum, o que
será abordado neste capítulo.
O próprio desentendimento entre alguns doutrinadores pátrios e a realidade
imposta pela lei para verificação das sociedades irregulares ou de fato têm o condão
de temperar a temática com ares de crítica. Afinal, se realmente o Código Civil
tivesse aclarado este contexto, poucas sobras teriam restado para qualquer tipo de
altercação entre aqueles que estudam a matéria. A condição pré-regular, que por si
só deveria ser atrativa à proximidade dessa condição de regularidade, trazendo o
ente societário em formação para dentro dos limites do tolerável diante da falada
ótica intervencionista do Estado sobre a economia, sofre violento tratamento
divergente pelo diploma material.
Disso derivam dúvidas sobre a existência, ou não, de um novo tipo societário,
algo que, a primeira vista, poderia ser completamente contrário a qualquer noção
razoável quanto ao objeto estudado. Enfim, estaria a fuga do controle estatal, égide
do apanhado do capítulo anterior, agora devidamente regulamentada? A empresa
informal societária teria perdido tal condição pelo decorrer da declaração legal feita
pelo legislador de 2002?
Neste capítulo serão buscadas as possíveis respostas para esses
questionamentos e a alguns outros, inevitavelmente esboçados conquanto o
percorrer dos caminhos que levam à resolução de inquietudes relativas à temática
proposta.
29
3.1 Distinção entre a sociedade de fato e a irregular
A compreensão do que viria a ser uma sociedade de fato e uma irregular
motivou correntes que espelharam sentimentos diversos. De um lado, estariam
aqueles que pugnam pela diferenciação entre as instituições, e de outro, os que as
igualam em sentidos.
José Xavier Carvalho de Mendonça41 entendeu que as sociedades irregulares
mantinham diferenciação para com as meramente de fato, na medida em que as
primeiras possuiriam funcionamento durante tempo restrito, sem cumprir com ônus
legais de constituição, no caso, o registro42 e a publicidade. Para ele, as
organizações fáticas eram afetadas por vícios que as penalizariam com a nulidade
de seus atos, independentemente de haverem tido vida e participação em negócios
jurídicos consumados e impossibilitados de mutação. Claramente, em termos
interpretativos, os maiores prejudicados seriam aqueles que viessem a negociar com
a organização caracterizada sob o aspecto da clandestinidade, constritos de
discutirem os termos tornados sem efeito. Coincidência, ou não, paralelamente, na
França, vigia o mesmo pensar, insuflando-se a literatura de lá com uma série de
ponderações de modo a validar os anteriores atos praticados pela corporação
clandestina43.
Até por isso, o pensamento de Waldemar Ferreira44 foi um tanto discordante.
Ele observava na sociedade de fato um “ajuste verbal, sem contrato escrito”, o que
não impediria sua vida, funcionamento e prosperidade fática. O ente irregularizado
seria, por sua vez, constituído por instrumento material redigido não levado a
arquivamento em órgão registral, uma mera escritura particular que conteria todos
os direitos e deveres dos sócios. A preferência por essa doutrina foi
consubstanciada, inclusive, na obra de Rubens Requião45, ao defender que a
41 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de direito comercial. v. III. 5 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, p.131. 42 RUBENS REQUIÃO (Curso de direito comercial. v. I. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 126) afirma que o termo registro traduz a idéia de um gênero daquilo que o arquivamento viria a ser espécie. 43 TEMPLE, Henri. Les sociétés de fait. Paris: LGDJ, 1975, p. 58-60, apud OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 187. 44 FERREIRA, Waldemar. Instituições de direito comercial. v. I. São Paulo: Freitas Bastos, 1951, p. 209. 45 Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. I. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 396.
30
sociedade factual não apresentaria meio documental de sua existência, enquanto a
irregular possuiria escrituração não legalizada em registro competente.
A divisão classificatória apreciada acima, por outro lado, não viria a ser
acatada por autores como João Eunápio Borges46 e, mais recentemente, por José
Maria Rocha Filho47. Neste contexto, compreendia-se que ambas as expressões
utilizadas corresponderiam ao mesmo significado. Em termos pragmáticos, vale
reconhecer certa dose de coerência nessas razões, pois de nada serviria a
colocação de um confronto de correntes dogmáticas que, invariavelmente,
chegassem a um resultado quase sempre análogo, a ausência de limitação de
responsabilidade para os sócios que empreenderam o negócio.
Por outro lado, Fran Martins48, seguido por Eduardo Goulart Pimenta49,
entendia que o principal ponto de bifurcação estaria sob o enfoque de que a
irregularidade não retiraria a personalidade jurídica da sociedade previamente
constituída de maneira regular. O jurista cearense, outrora defensor da igualdade de
significados, expôs que foi levado a mudar de opinião por conta de evidência relativa
à necessidade de aplicação da teoria da aparência às sociedades de fato. Desta
maneira, enquanto que para as hierarquias irregulares uma simples consulta ao
registro público de empresas mercantis e atividades afins seria suficiente para a
comprovação da vida social, para as fáticas, deveriam ser buscadas evidências
acerca de suas existências. Bem se crê no valor de cada forma opinativa
comentada. Ao menos em parte, todas guardam a centelha de verdade e um grão
de equívoco em suas argumentações.
Se a regularidade somente pode se tornar presente em função da aceitação
do arquivamento dos atos constitutivos pelo órgão governamental competente para
o respectivo registro, a sociedade de fato, por conseqüência, sempre será irregular.
Há, contudo, significativo engano doutrinário ao se pensar que o fenômeno de uma
organização registrada, período em que foi seguidora dos ditames legais, seria igual
ao daquela que nunca sequer solicitou informar seu estado societário de formação,
46 BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 278. 47 ROCHA FILHO, José Maria. Curso de direito comercial. v I. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. 48 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. ver. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 173-176. 49 PIMENTA, Eduardo Goulart. Considerações sobre a personalidade jurídica das sociedades comerciais irregulares. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas, v. 03, p. 52-62, 1º e 2º sem. 2000, p. 59.
31
vivendo na mais completa informalidade. Até por isso, aceita-se a visão esboçada
por Fran Martins, acima esboçada, por aparentar ser a mais correta em substância,
dela apenas se excluindo a terminologia empregada.
Entende-se, haveriam de ser chamadas sociedades de fato e sociedades
tornadas irregularizadas, uma vez que ambas são irregulares. Apesar de resultarem
em efeitos semelhantes, as duas derivam de situações claramente diferenciadas no
que tange ao conhecimento de suas presenças no universo jurídico pelo Estado.
Afinal, se nas primeiras vigora certa dificuldade em se comprovar a faticidade
empresarial pela quase absoluta ausência de documentos de transação, como as
notas fiscais, segundo as últimas, a hierarquia empresarial, muitas vezes nos casos
de irregularização recente, já possui tais formas de comprovação o que induz os
terceiros a possíveis erros de consentimento na celebração de negócios jurídicos
societários.
Acredita-se, as chaves para se chegar a uma suposta transição ocorrida em
2002 seriam diversas. Estaria entre elas, em função da falta de critérios legais que
definissem o assunto de maneira correta, o tratamento jurisprudencial específico da
sociedade irregularizada, com uma eficaz proposta de punição aos sócios que fosse
diferente da que ocorre quando a hierarquia é meramente fática. Menos por esta
última não ser personificada e mais por aquela ter sido registrada e já contar com
efeitos práticos de sua antiga regularidade, como a equivocada ciência dos
mercados e de outros agentes econômicos a respeito da conformidade obrigacional
perante o Estado.
Outra saída seria a própria lei classificar as organizações sem registro e as
que o perderam em categorias diferentes e assim tipificá-las dentro da legislação
pela maneira correta. O aproveitamento delas, ou mesmo uma simples menção às
diferenças abordadas, seria suficiente para um começo da retificação que o tema
mereceria. Justifica-se, o tratamento igualitário somente teve o condão de causar
mais dúvidas, motivo pelo qual haveriam de ser modificados os paradigmas que há
muito assolam a matéria dentro da legislação vigente.
32
3.2 O conceito da sociedade em comum segundo o Código Civil de 2002
O pioneiro quanto à expressão sociedades em comum foi Waldemar
Ferreira50 ao dizer que enquanto não houvesse o arquivamento dos atos
constitutivos, a organização configuraria um mero patrimônio do qual os sócios
seriam comunheiros. Passadas décadas após a expressão do autor em plano, eis
que o universo jurídico brasileiro se intriga com a mesma terminologia, agora
empregada dentro do próprio Código Civil, ou seja, tipificada à luz de uma legislação
que floresce no limar de um novo Século. Em um primeiro momento, como não
poderia deixar de ser, esse fenômeno trouxe de pronto o sentimento de que as
hierarquias informais finalmente teriam encontrado regulamentação dentro da já
vergastada ótica intervencionista da economia praticada pelo Estado. As
divergências existentes, quando do Código Civil de 1916 e do Código Comercial de
1850, em função de que ambos não abordaram o assunto de maneira clara,
finalmente haveriam de ser adequadas ao novo contexto do direito pátrio.
Ao interpretar a sustentação de Waldemar Ferreira, acima colocada,
Alexandre Bueno Cateb51, com defesa no que foi o pensamento de Fran Martins52,
afirma que a antiga dicotomia teria sido transplantada para o ambiente da Lei
10.406/2002. Para Cateb, denota-se, a sociedade em comum viria a substituir as
chamadas sociedades de fato, mantendo-se ativa a distinção para com as
organizações irregulares, ou tornadas irregulares, como aqui se afirma ser o mais
correto. Assim, ele refuta a hipótese de omissão legislativa. Entende, deixando de
promover o registro de seus atos constitutivos ou de cumprir as obrigações
pertinentes para a permanência como um ente regular, a sociedade deixaria de estar
regulamente “formada”, devendo sofrer sanção cabível. O autor considera que a pior
pena à hierarquia seria a extensão dos efeitos contidos na norma relativa na
legislação substantiva atual.
50 FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial: O estatuto da sociedade de pessoas. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1961, apud CATEB, Alexandre Bueno. A sociedade em comum. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 151. 51 CATEB, Alexandre Bueno. A sociedade em comum. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 151. 52 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. ver. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 173-176.
33
Em divergência frontal, Haroldo Malheiros Ducrerc Verçosa53 aduz que
Alexandre Bueno Cateb estaria equivocado quanto à manutenção da divisão, apesar
de entender ser a espécie societária, tal qual se encontra na Lei 10.406/2002, como
“resultante da ausência do registro obrigatório, mesmo quando se trate de contrato
social por prazo determinado vencido sem prorrogação tempestiva”. Extrai-se, tanto
importaria a leitura dos artigos inerentes ao assunto, seja antes do registro, seja
depois, a sociedade poderia ser chamada de fática, irregular, ou, simplesmente em
comum. Segundo ele, nada haveria na redação do capítulo legal em relevo que
fizesse justificar aquilo que o jurista mineiro havia exposto.
Semelhante tendência tem Fábio Ulhôa Coelho54 para quem a lei material de
2002 disciplinou a sociedade empresária irregularizada, ou de fato, dentro da
designação da sociedade em comum, não se tratando de novo tipo societário, mas
de irregularidade na exploração de negócios sem o respectivo registro.
Não há dúvidas de que as sociedades sem contrato escrito deveriam ter sido
recebidas pelo Código Civil, mas o verbo usado no futuro do pretérito retrata bem a
realidade existente no momento. Em balanço, todas as visões a priori esboçadas
trataram a extensão dos efeitos da falta de registro por ausência de contrato escrito
e da perda da situação regular de modos muito próximos, inclusive, ao que se
depreende do Código Civil quando se faz referência às sociedades em comum.
Ousa-se, no entanto, discordar de tais posicionamentos.
A forma de consideração do patrimônio e a proteção aos bens particulares
dos sócios não são instrumentos suficientes para se conceituar as sociedades
segundo o texto aprovado e disposto no livro II do diploma material civil em vigor. Se
assim o fosse, outras situações análogas dentro do universo societário obteriam
tratamento legal semelhante. Seria como se dissesse que toda sociedade que
possuísse limitação de responsabilidade para classes de sócios, como ocorre na
comandita simples exposta no artigo 1.04555 da Lei Civil, fosse obrigatoriamente
53 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: Teoria geral das sociedades, As sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 299-300. 54 COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial. 17 ed. São Paulo: Saraiva. 2006, p. 125. 55 “Na sociedade em comandita simples tomam parte sócios de duas categorias: os comanditados, pessoas físicas, responsáveis solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais; e os comanditários, obrigados somente pelo valor de sua quota”.
34
tipificada como limitada, aquela descrita a partir do artigo 1.05256, o que bem se
sabe não ser verdade.
No artigo 986 do Código Civil, o termo “enquanto” favorece a idéia temporal,
ou seja, o período provisório em que se protrairia o fenômeno jurídico. Apõe-se,
dessa forma, a sociedade em comum seria uma espécie societária que existe
enquanto a situação paradigma não viesse a ser substituída por outra, mormente, o
aceite pela Junta Comercial do pedido de registro da hierarquia, primordial para
torná-la definitivamente regular. Isso imediatamente exclui a organização
irregularizada na medida em que ela já obteve o favor declaratório pelo Estado e o
perdeu, podendo obtê-lo novamente em função de novo pedido.
Discorda-se, portanto, da opinião de Sérgio Campinho57, para quem, uma vez
firmado o contrato social, embora operando no interregno com o ato constitutivo não
inscrito, não haveria ostentação de um caráter de sociedade em comum, que para
ele também seria a transmutação atual da organização de fato ou irregular, visto que
os efeitos do registro retroagiriam à data preconizada no pedido. A seguir a posição
firmada por Campinho não se saberia dizer qual a real condição da sociedade
durante o período da espera da aceitação da solicitação registral e mais, haveria um
rechaço fatal ao artigo 986 da Lei 10.406/2002.
O grande problema, então, está justamente sobre a afirmação do momento
exato em que seria iniciada a contagem de tempo da vida da sociedade em comum
tipificada, o qual resulta na própria definição do conceito em questão, ou seja, se o
tratamento dispensado seria igualitário em qualquer ocasião. No caso, o enfoque
seria se toda sociedade sem registro deveria ser assim considerada.
Ainda sobre a matéria do Projeto de Lei 634/1975, o comentário de Mauro
Brandão Lopes58 já argumentava fundamentado receio de ver o referido tipo
societário condenado à clandestinidade, ou à vida efêmera, como simples fase
preparatória da sociedade personificada. Eis que a redação do artigo 986 do Código
Civil em vigor, o qual foi derivado daquela projeção por ele estudada, expressou que
enquanto não inscritos os atos constitutivos, as sociedades, com exceção daquelas 56 “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”. 57 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87. 58 LOPES, Mauro Brandão. A sociedade em comum: inovação do anteprojeto do Código Civil. Revista de Direito Mercantil, n. 15-16, São Paulo: Malheiros, 1974, p. 47.
35
que teriam capital dividido em ações, seriam regidas pelo capítulo ali iniciado.
Talvez, com isto, seria forçoso convir que a única solução para a problemática
conceitual fosse a constatação de que o temor daquele doutrinador teria acabado
por ser revelar uma realidade, conquanto à transformação das sociedades em
comum como uma mera etapa preliminar.
É o que recentemente proferiu Marcelo Andrade Féres59, pois, segundo ele,
“tais contornos epistemológicos acarretam a conclusão de que a sociedade em
comum, que veio de ser regulada pelo Código Civil de 2002, é o regime jurídico das
sociedades contratuais em organização”. Corrobora-se essa opinião e vai-se mais
além. Via de regra, todos os tipos societários envoltos em fórmulas baseadas em
contratos, como a em nome coletivo, a em comandita simples e a limitada, assumem
a inevitável feição de sociedades em comum ainda que por tempo determinado.
Aliás, diga-se, o próprio estudo das sociedades simples, com conceito
abordado no capítulo 5 desta obra, extrai que o legislador força a vinculação das
sociedades em comum àquela. Coincidência, ou não, denota-se que a classificação
voltada para a atividade econômica dita não empresária abarca de maneira supletiva
a legalidade das tipificações societárias do parágrafo anterior60, aquelas mesmas
que propositadamente sofrem com o período formativo que vai do pedido à
aceitação do registro.
Sem temer a diferenciação das organizações de fato das em comum segundo
a legislação de 2002, para este trabalho, a organização em estado formativo seria
gênero daquilo que seriam espécies (a) as sociedades sem contrato escrito, ou que
o possuíssem sem efetuar solicitação de registro, e (b) as de que tivessem solicitado
pedido de arquivamento de atos constitutivos e ainda sem aceitação pelo órgão
competente. Apenas para ressaltar, uma vez constituída a hierarquia, por meio do
respectivo instrumento social, os administradores possuem o prazo de 30 (trinta)
dias61 para efetuar o pedido de arquivamento. Até essa data a organização é
meramente de fato; cumprida a lei e na espera da aceitação do pedido pela Junta
59 FÉRES, Marcelo Andrade. Depuração da sociedade em comum: primeiras considerações sobre o regime jurídico das sociedades contratuais em formação. Juris Síntese. São Paulo. n. 52. mar-abr 2005. 60 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: Teoria geral das sociedades, As sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 306. 61 Determinação do artigo 998 do Código Civil.
36
Comercial, estará em comum; ignorado esse comando, deteriora-se como
irregularizada.
Explica-se, se fosse considerada uma igualdade entre as hipóteses, teria sido
viabilizada a criação de uma ilicitude de direito. Interessante desconexão, se o
direito ratificasse o ilícito, então deixaria de sê-lo e o objeto de estudo passaria a ser
lícito, o que não se acredita sobre a hipótese legal em comento. Não se acredita que
o Código Civil tivesse sido tão incongruente.
Nessa ótica, opta-se, portanto, por compreender que o legislador sedimentou
o termo de início do surgimento da sociedade em comum como aquele do dia do
pedido de arquivamento dos atos constitutivos e não da constituição social em si, a
celebração do contrato. Observa-se que a linguagem do referido dispositivo 986
rechaça as sociedades de fato e as irregularizadas de seu comando, bem como a
permissão para se seguir a idéia sugestionada de que o dispositivo em comento
deveria ser interpretado como se não inscritos os atos constitutivos “ou não
registradas as modificações posteriores”, como colocou Alexandre Bueno Cateb62.
Por conclusão, se a sociedade empresária possui pedido de registro, está em
comum e resta sedimentada a regularidade de seus atos, não lhes havendo
vedação, como ocorre quanto às sociedades por ações adiante comentadas, ou
velada ilegalidade, no caso das organizações fáticas e das irregularizadas.
Disto, obviamente, não se reproduz o sentimento de satisfação. A vida
irrisória63 de tal tipo societário reflete mais uma impureza do Código Civil, do que a
certeza de uma solução definitiva quanto ao tema. Afinal, contudo, aos que destas
afirmações possam vir a desferir comentários, vale a lembrança de que antes um
raciocínio de uma sociedade inócua, por ser provisória e sem efeitos práticos, do
que uma que seja contrária à boa razão sobre o assunto.
62 CATEB, Alexandre Bueno. A sociedade em comum. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 154. 63 No Estado de Minas Gerais, v. g., segundo informações da respectiva Junta Comercial (JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Disponível em: <http://www.jucemg.mg.gov.br/>. Acesso em 14 set 2008), o arquivamento definitivo dos atos constitutivos empresariais atingem prazos de até 08 (oito) dias, o que acaba por repelir, na prática, a existência da sociedade em comum.
37
3.3 A exclusão da sociedade anônima em constituição
As sociedades anônimas em constituição, situadas entre o pedido de
arquivamento, a aceitação e a publicação desta última aparecem com regime
jurídico próprio. A gestação de companhias poderia ser a base para a semelhante
obrigatoriedade de alguns fatores, como os relativos ao arquivamento dos atos
constitutivos que pertencem ao universo epistemológico de ambas as formas
societárias.
O sistema criado pelo Código Civil de 2002 bem que poderia ter gerado um
ambiente peculiar para a aplicação do conceito de sociedade em comum àquelas
que têm capital social dividido em ações, mas ainda em formação. Ao revés disso, o
artigo 986 foi claro ao excluir as sociedades anônimas do regramento ali iniciado,
muito provavelmente porque a estrutura em formação ali contida não era mero
gênero, como visto na finalização do tópico acima, mas espécie própria tal qual é a
sociedade anônima.
No que se destaca da seção I do capítulo VII da Lei 6.404/1976, dispôs-se
sobre algo que poderia ser chamado de gestação, como o fez Osmar Brina Corrêa
Lima64, período no qual os requisitos preliminares deveriam ser satisfeitos. Pelo que
se depreende do parágrafo único do artigo 81, pode-se afirmar que essa fase
poderia ser prolongada, como regra geral, por até seis meses, mas não existia uma
regra rígida sobre tal consideração, o que fez com que a época pré-regular pudesse
ter dias, horas ou até anos, como disse o referido jurista.
Tullio Ascarelli65 argumentou, certa feita, que o sistema pátrio deveria excluir
a possibilidade de uma “facto corporation (não registrada)”. Isso aconteceria uma
vez que nem os terceiros de boa-fé poderiam alegar desconhecimento da condição
não regular, tendo em vista as facilidades de se verificar a inobservância das
formalidades de arquivamento e publicidade. Hoje, a clandestinidade, atacada pelo
artigo 94 da Lei das sociedades por ações, que preceitua que “nenhuma companhia
poderá funcionar sem que sejam arquivados e publicados seus atos constitutivos”,
não serviria para se responsabilizar a companhia, tal como ocorre nos demais tipos
64 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedades anônimas. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 160. 65 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999, pp. 516-517.
38
de hierarquias sem pedido de arquivamento de seus atos constitutivos. Para Tullio
Ascarelli, a sociedade existiria juridicamente apenas a partir do dia do cumprimento
das formalidades de arquivamento e, no caso das companhias anônimas, de
publicação. Explicava, todavia, que todas essas hierarquias ficariam
obrigatoriamente, durante certo período, na situação prevista no artigo 55, parágrafo
único, do Decreto-Lei 2.627/1940, substituído pelo artigo 99 e parágrafo único, da
Lei 6.404/1976, ou seja, sob o caráter de uma pré-regularidade.
Sob esta mesma vertente seguiram, verbi gratia, Rubens Requião66 e Sérgio
Campinho67 que fizeram interpretações na linha de que a sociedade anônima sem
arquivamento e publicidade não poderia ser irregular, pois apenas não se
constituiria. Seus diretores, dizem, seriam responsáveis pelos atos que praticassem.
Tudo, entretanto, aparenta recordar os antigos debates sobre as funções do
arquivamento para as sociedades anônimas, se declaratória, ou constitutiva.
Para Modesto Carvalhosa68, ambas as diretivas seriam pertinentes. Segundo
sua doutrina, “a lei é expressa ao dispor que a companhia não responde pelos atos
ou operações praticados pelos primeiros administradores, antes de cumpridas as
formalidades de constituição [...]”, o que consta exposto no artigo 99 da Lei
6.404/1976.
Ocorre que, em que pesem visões como estas, não se concorda com a
simples dicção de que a companhia não responderia por atos praticados antes da
conclusão de todas as suas formalidades. De pronto se contraria o pensamento
fornecido, pois não há que conceber condão ambíguo ao arquivamento, mas sim
uma única trilha, a da função declaratória.
Discorda-se aqui dessa visão negativista da existência fática da sociedade
anônima, o que se explica. Se a significância da hierarquia por ações é o
direcionamento da aparição da pessoa jurídica69, as sociedades anônimas de
existência fática, sem documento escrito que comprovasse qualquer pedido de
regularização, seriam entes ditos não personificados. Veja-se que ainda que sem o 66 Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. I. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 397. 67 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 75. 68 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações das Leis n.º 9.457, de 5 de maio de 1997, e n.º 10.303, de 31 de outubro de 2001. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 183. 69 Cf. CORRÊA-LIMA, Osmar Brina.. Sociedades anônimas. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 162.
39
arquivamento e a publicidade dos atos inerentes à constituição da companhia, a
prática, inescrupulosa ou não, pode possibilitar o surgimento informal de uma
“sociedade anônima” de fato70. É tautológico dizer que o resultado efetivo dessa
condição seria a automática aplicação à companhia de todos os efeitos pertinentes
às organizações de cunho fático, inclusive no que diz respeito à responsabilização
dos sócios, administradores e da própria sociedade, ao contrário do disposto no
parágrafo único do artigo 92 e no parágrafo único do artigo 99, ambos da Lei
6.404/1976.
Em tempo, se não se manifestarem o arquivamento dos atos iniciais e a
respectiva publicidade da constituição, a companhia não existe como pessoa, mas o
faz como sociedade, ainda que contratual. Se a sociedade não pode ser
considerada responsável por atos anteriores à constituição em decorrência da
referida norma relativa às companhias, poderá sê-lo se for sobressaltada a ótica do
Código Civil, neste caso, extraordinariamente aplicável. E note-se que seguindo a
lógica deste trabalho, não será uma sociedade em comum, mas mera organização
de fato ou irregular.
3.4. A sociedade anônima em formação e o advento de obrigações em nome próprio
No capítulo 2, sobre a empresa informal e a criação de sociedades no direito
brasileiro, houve a oportunidade de se declinar sobre a existência de corporações
empresárias ainda que pendente a visualização de seus respectivos registros, o que
é aplicável às companhias. Ora, se o artigo 94 da Lei das companhias traz a
determinação de que nenhuma delas poderá funcionar sem o arquivamento e a
publicação dos atos constitutivos, não se olvide da clara aplicação do artigo 36 da
Lei 8.934/1994, tendo em vista que não há empecilho fático que impeça a
clandestinidade.
A legislação não consegue expurgar totalmente as situações práticas em que
não há respeito à obrigatoriedade do uso da expressão "em organização”, prevista
pelo artigo 91 da Lei de 1976, em qualquer negociação antes da concreção dos atos
70 Sobre as possíveis razões que levam os agentes econômicos a empreender empresas informais, veja-se o tópico 2 retro.
40
complementares à constituição. Extrai-se que, ademais, tal qual já fora feito em
passagem já capitulada, o arquivamento possui cunho declaratório de condição
preexistente, retroagindo efeitos até a data do respectivo pedido71. Isso sublinha a
possível legitimidade da companhia ao revés do disposto nos parágrafos únicos dos
já mencionados artigos 92 e 99.
Aliás, reconheça-se que nem todas as companhias possuem tamanho
numérico de acionistas que sempre permita dizer que a sociedade anônima é, na
prática, ela mesma. Veja-se o caso de uma pequena loja de roupas que viesse a
causar danos a seus consumidores, mas que, modelada externamente, por meio de
propaganda variada, sob a forma de uma sociedade anônima, não possuísse
arquivamento em registro competente, nem publicidade de seus atos constitutivos.
Segundo se interpreta da Lei 6.404/1976, estaria ela – e seu patrimônio faticamente
assenhoreado – vestida com um manto protetor que a desoneraria de
responsabilidade para com os seus clientes, consumidores, em caso de danos,
obrigando-se, tão unicamente, a figura dos primeiros administradores a arcar com as
dívidas. Sob este prisma, tal acontecimento se asseveraria ainda que estes últimos
não possuíssem bens para efetuar o respectivo pagamento, o que seria uma
apologia ao descalabro.
A dúvida, portanto, impera sobre a possibilidade de a sociedade anônima em
constituição vir a contrair obrigações em nome próprio, ao contrário do que se
predispõe do artigo 92 da Lei nacional das companhias, e dos primeiros a gerenciá-
la, segundo o artigo 99 da mesma codificação. O principal motivo para tal
discordância decorre de que, logo após o registro e a publicação dos atos
constitutivos, toda a responsabilidade pelos feitos praticados antes da regularização
completa é automaticamente transferida da própria sociedade. Isso corresponderia a
uma novação subjetiva. Segundo o Código Civil, sabe-se que a novação é uma
71 Segundo a Lei 8.934/1994, em seu artigo 32, o registro compreende em parte, ao arquivamento dos documentos relativos à constituição, alteração, dissolução e extinção de firmas mercantis individuais, sociedades mercantis e cooperativas; os atos relativos a consórcio e grupo de sociedade de que trata a Lei nº 6.404/1976; os atos concernentes a empresas mercantis estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil; das declarações de microempresa; os atos ou os documentos que, por determinação legal, sejam atribuídos ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins ou daqueles que possam interessar ao empresário e às empresas mercantis.
41
forma de pagamento, com a criação de uma nova relação jurídica72, e só se
manifesta sob o interesse direto do credor no sentido de aceitá-la.
Há, assim, problema grave na legislação em virtude de haver violação de
regra básica desse conceito de novação quanto à atividade volitiva do maior
interessado, aquele com crédito a receber. Ao negociar com a sociedade em
constituição, o terceiro interessado, ainda que de boa-fé, localiza-se forçado a ver o
sujeito do pólo passivo ser substituído por outro, fundadores ou primeiros
administradores. Mais uma vez, nem sempre aquele que contrata com a sociedade é
alguém de porte suficiente a compreender as normas comerciais, o que se observa
em danos decorrentes de relação de consumo, por exemplo. A atitude do legislador
não aparenta ser sensata.
Mais ainda, pelo que se denota dessa exemplificação, os artigos 92 e 99
poderiam ser considerados inconstitucionais, pois ferem mortalmente as normas
contidas no artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal. Há a preceituação de
que “o Estado promoverá, na forma da Lei, a defesa do consumidor”, o que vem a
ser tornado eficaz pelas linhas do artigo 28 da Lei 8.078/1990, que protege o próprio
consumidor contra a personificação societária, fraudulenta ou não, desconsiderando-
a para atingir, os bens sociais, ou dos sócios, ou, outrossim, dos administradores.
Explica-se que, a ter a aceitação das normas atacadas da Lei societária,
impossibilitada estaria, por exemplo, a aplicação da chamada desconsideração
inversa da personalidade jurídica, pacificada no direito brasileiro toda vez que
houver confusão entre o patrimônio social e o dos sócios.
Em outra ordem, vê-se claramente que a atualidade não guardou lugar sequer
para a anulação dos atos praticados pela sociedade anônima em formação. Sob
paritária tonalidade, o artigo 36 da Lei 8.934/1994 também é frontalmente contrário à
norma do artigo 99 da Lei 6.404/1976, vez que, como já salientado, retroage os
efeitos do arquivamento, dentre eles, a publicidade e a proteção de direitos relativos
à personalidade jurídica, até a data do respectivo pedido, abordagem que infere a
ratificação das atividades gerenciais antes da instituição societária. Ao se tomar os
primeiros administradores como responsáveis, cria-se um confronto legislativo
somente solucionável por intermédio de interpretação até sob o aspecto temporal.
72 Cf. PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. II. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 244.
42
Bem se crê aqui que a Lei de 1976 estabeleceu três fases fundamentais para
a diferenciação de responsabilidades. A primeira estaria no espaço que vai da idéia
de criar a companhia até a assembléia-geral ou a escrituração pública da sociedade,
na forma do artigo 88 da Lei das companhias. A segunda corresponderia ao período
em que os atos complementares à constituição deveriam ser praticados pelos
primeiros administradores, tais como a publicação dos atos em imprensa do local da
sede, sob previsão do artigo 98 do mesmo diploma legal. Por fim, viria a etapa na
qual a personalidade jurídica seria adquirida, a da regularidade. Esquecida pelo
legislador, mas aqui já observada anteriormente, outra fase que poderia ser
diagnosticada começaria do momento do pedido de arquivamento dos atos
constitutivos, documentos relativos à assembléia-geral ou à escritura pública,
disposto segundo o artigo 97, até a aceitação pelo órgão de registro.
Com efeito, a legislação societária alemã em vigor73, em seu artigo 29, fez
declarar a constituição da sociedade pelo simples ato de subscrição de seu capital,
apesar do artigo 41 da mesma Lei determinar que no período anterior ao registro a
sociedade anônima não teria existência própria. Segundo consta, começou-se a
admitir uma espécie da sociedade preliminar de natureza controvertida, ou como
sociedade civil, ou como associação sem personalidade jurídica, entre outras
possibilidades. Vê-se que o direito brasileiro, por sua vez, adotou modelo não tão
diverso. Apesar do disposto na Lei 6.404/1976, não se concorda, contudo, com a
narrativa de que os primeiros administradores seriam os únicos responsáveis pelos
infortúnios ocorridos antes da complementação dos atos de constituição.
73 Cf. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações das Leis n.º 9.457, de 5 de maio de 1997, e n.º 10.303, de 31 de outubro de 2001. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 164.
43
4 ASPECTOS DO PROBLEMA DA PERSONIFICAÇÃO E DA CAPAC IDADE DA
SOCIEDADE EM COMUM
Tal como se observa quanto ao local em que se encontra no Código Civil, a
sociedade em comum é relatada como um ente não personificado, fator esse que
merece melhor atenção. Afinal, não se afirma sobre um ser que deixa de produzir
efeitos jurídicos, mas, sim, aborda-se sobre algo, ou alguém, com aparição
pragmaticamente efervescente.
A possibilidade de existência de uma sociedade não ter personalidade, ainda
que desenvolva atividade econômica organizada, é ponto de grande discussão. A
descoberta dos fatores condicionantes para a aceitação da organização empresarial
como uma pessoa jurídica pode trazer surpresas. Responder ao colocado configura
uma tomada de partido em cenário hostil e pouco aclarado pela doutrina nacional
como o caso se apresenta, mesmo após a redação de novas legislações.
Assim é que, neste capítulo, será desenvolvida a idéia conseqüente a respeito
da personificação da capacidade das sociedades em comum, mais relevantemente
sobre a incerteza da capacidade de direito e a de exercício, equacionadas em razão
das variáveis cabíveis.
Igualmente, busca-se analisar a situação da legitimidade desse tipo societário
para figurar como parte em processos falimentares e de recuperação judicial,
assunto integrado a uma série de hipóteses não abarcada pela doutrina que cuida
do assunto.
4.1 Linhas gerais sobre a evolução da personalidade jurídica societária e a
divergência acadêmica sobre a natureza do fenômeno
Em Roma o sistema jurídico não fez menção expressa sobre o que
representava a força associativa personificada. Numa época em que o máximo que
se poderia fazer seria uma analogia para com os seres humanos como entidades
políticas, a expressão pessoa jurídica ainda não era a terminologia adotada
conforme o significado atual. Apenas em caráter evolutivo, passaram-se as
44
sociedades a serem compreendidas não exatamente como pessoas, mas como uma
comunhão de interesses capazes de produzir efeitos jurídicos74.
Apesar disso, com o propósito de se concretizar o patrimônio próprio, ainda
que sem personificação, proporcionou-se o aparecimento das estruturas
associativas em paralelo ao que se considerava universalidade75. Havia para tanto
estreita ligação entre as figuras dos que a compunham, os sócios, na medida em
que a manifestação dependia da vida destes personagens, notadamente, seres
humanos. Isso era aprofundado pela necessidade de se dissolver em caso de morte
do constituinte e, mais ainda, por influência da razão de responsabilidade sobre
estes mesmos sócios por dívidas sociais.
Convém dizer que a relevante tentativa de se separar homens e entes
coletivos veio somente com a independência da Igreja, já na Idade Média, sob razão
da força e vontade divina76. Apresentou-se ideário próprio, separando-a como ser
em relação aos humanos que praticavam os atos em nome da referida
universalidade. Caminhou-se de igual maneira para um conceito que fosse apto a
abarcar a condição de pessoa sem confundir a nova figura pela da antiga
comunhão. Na medida do aceitável, representava-se a transmutação do contexto
romano para algo mais plausível às necessidades da época, a vontade de
recepcionar uma força em torno de um poder eclesiástico, a universalidade que
atuaria de maneira única como representação de si mesma, já que tal era a própria
corporificação de um Ser superior na Terra.
Com a renovação de critérios epistemológicos no cenário econômico mundial,
a pessoa moral na França foi detidamente colocada como fruto de considerações
legais expostas a partir de entendimentos da época na qual o Estado já era a figura
competente para controlar o equilíbrio do mercado. O que importava era a
apresentação formal da sociedade ao universo legalizado, independente da maneira
74 Cf. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A pessoa jurídica e os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 15-16; FRONTINI, Paulo Salvador. Pessoas jurídicas no Código Civil de 2002: elenco, remissão histórica, disposições gerais. Revista de direito mercantil: industrial, econômico e financeiro. n. 137. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 95. 75 JOSÉ JAIRO GOMES (GOMES. José Jairo. Direito civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p. 223) esclarece que a expressão relativa à universidade de direito significava uma unidade abstrata de coisas e direitos, evitando-se tomar os bens integrantes de maneira singular, mas como um conjunto “harmônico, coerente e coeso com um sentido finalístico”. 76 Cf. AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 279.
45
como atuariam os sócios. Se a legislação permitisse, a sociedade existiria como
pessoa.
De maneira geral, a personalidade jurídica foi assunto que conheceu vários
estudos interessantes com o passar dos anos. Diversas teorias foram criadas para
justificar a natureza da existência da pessoa jurídica no contexto normativo. As
primeiras menções sobre o caso, inclusive, aduziam a completa aversão à existência
da pessoa jurídica, negando-a. Em momentos iniciais, foi considerada como um
conjunto patrimonial destinado a qualquer tipo de atividade por aglomeração de
pessoas naturais e ideais de prática conjunta de ações com vista a mercados nada
mais significaria do que um patrimônio a um fim destinado, conforme defesa de
Windscheid e Brinz, citados por Maria Helena Diniz77. Esta vertente também foi
chamada de teoria da equiparação.
Ainda que a colocação de objetivos ligados ao patrimônio tenha sido bem
posicionada, uma outra corrente, mais aproximada ao conceito advindo da época
romana, tentou estabelecer que a visão associativa decorreria do enfoque sobre
comunhão dos bens colocados para o exercício da atividade. Seria estabelecido um
condomínio, uma propriedade coletiva entre os interessados em fazer parte daquele
negócio jurídico, mas quem seria responsabilizado pelas agruras econômicas, por
exemplo, continuariam a ser as pessoas naturais que a empreendessem, como
mencionado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho78.
Em complementação à versão anterior do parágrafo acima, a teoria da mera
aparência, de Rudolf Von Jhering79, dizia que os atos da sociedade e da associação
seriam praticados somente por pessoas naturais, mesmo que em conjunto, pois só
estas seriam os sujeitos de direito. A pessoa jurídica, na verdade, seria apenas uma
forma para manifestação da vontade exterior dos seus membros, um fio condutor de
vontades.
77 WINDSCHEID. Pandete . v. 1, §40 apud DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: Teoria do direito civil. v. 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 143. 78 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. v. I. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 184. 79 JHERING, Rudolf Von. El espíritu del derecho romano. 5 ed. t. 4. Madrid: Bailly-Bailliere, p. 364-366 Apud OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 10-11.
46
Na finalização das correntes negativistas, a teoria negadora da toda
personalidade jurídica, posicionada por Miguel Maria Serpa Lopes80, ressaltava que
as figuras então ditas como personificadas não passariam de situações jurídicas
subjetivas81. Por ela, não existiria um ente coletivo que abrigasse os atos dos
supostos membros. Esta forma de negação cuidava por observar cada relação
jurídica constituída por pessoas com finalidades comuns, não havendo o porquê de
se conceituar uma nova pessoa, uma vez que cada caso era observado de maneira
única, apesar de possíveis repetições.
Outras diferenciações teóricas acabaram por dissipar a aplicabilidade das
correntes doutrinárias acima mencionadas. A esse novo direcionamento, deixou-se
de buscar as linhas de argumentação com caráter negativo em prol de uma conduta
afirmativista. Sob essa nova linha de pensamento, a primeira ótica se transcreve da
teoria da ficção, interessante raciocínio de Friedrich Karl von Savigny82 para o qual a
personalidade jurídica, apesar de existente, era fruto de uma abstração que assumia
o caráter intermediário entre a negativa e a afirmação. Apontava-se para o fato de
que a titularidade de direitos subjetivos deveria ainda se manter sobre o poder da
pessoa natural, real, física, para a prática dos atos. A pessoa jurídica seria apenas
uma força moral, o resultado da vontade das partes sob ângulo normativo.
Os debates sobre ser a lei o motivo imperioso para a permissão do Poder
Público quanto ao conceito de organizações personificadas levaram alguns
pensadores a se debruçarem sobre o papel sociológico de relações que envolviam
coletividades de pessoas e de bens, notoriamente associações e sociedades.
Viria, então, uma corrente, ao contrário das anteriores teorias negativistas,
que entenderia ser a formação personificada não mais uma ficção, mas uma
realidade presente no mundo, capaz de praticar todos os atos negociais de maneira
independente da vontade estatal. Essa era a teoria da realidade objetiva, em que a
simples vontade dos instituidores em gerar o ente associativo ou societário, com a
respectiva designação de patrimônio destacado especificamente para a atividade
80 LOPES, Miguel Maria Serpa. Curso de direito civil. 8 ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1996 Apud AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 286. 81 Cf. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. v. I. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 184. 82 SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Sistema Del diritto romano atuale. v. 2. Torino: Unione Topigrafico, 1888, p. 1-2, 240-246, 279-280 Apud OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 10-11.
47
pensada, criaria a nova pessoa análoga à natural83. O grande mérito da teoria da
realidade objetiva, ou orgânica, foi caracterizar a pessoa jurídica como ser real, que
existe fisicamente. Para entender a importância disso, basta lembrar que o Código
Civil brasileiro de 2002 retificou a terminologia empregada na legislação de 1916
quanto às pessoas naturais em detrimento da denominação “pessoas físicas”, já em
seu Livro I do Título I.
A falta de razoabilidade em se acreditar que a personalidade jurídica seria
uma mera ficção, já que assim não haveria capacidade de exercício por parte do
ente, além do descrédito na afirmação da natureza realista baseada em elementos
fáticos que fogem do controle estatal da economia, trouxe o raciocínio hoje
majoritário de que a ponderação dominante sobre a natureza da personalidade
jurídica é aquela destacada da teoria da realidade técnica, de Francesco Ferrara84.
Dela se extrai que tal tipo de organização considerada pessoa é somente derivado
do permissivo legal, mas com a convicção de que é um ser que existe de maneira
real no universo e, portanto, fisicamente manifestado.
Outras teorias poderiam ser aqui expostas, mas o importante em termos de
detalhes é que a consideração de que, independentemente da natureza escolhida
entendida sobre o fenômeno, a Lei continua sob a obrigação de interpretar a
formação de sociedades devido ao caráter econômico que as elas possuem,
conforme visto no tópico 2 deste trabalho.
4.2 A discussão da personalidade das hierarquias em formação na espécie em
comum
É quase uníssona85 a afirmação de que a personalidade é uma aptidão
genérica, uma qualidade da pessoa, sujeito de direito e obrigações na ordem civil.
83 Cf. AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 284. 84 FERRARA, Francesco. Teoria delle persone giuridiche. Napole: Marguieri, 1923, p. 354 Apud OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 10. 85 No Brasil, facilmente é encontrável na nova safra de doutrinadores, tais como TAÍSA MARIA MACENA DE LIMA (LIMA, Taísa Maria Macena de. Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 244), KARIN GRAU-KUNTZ (GRAU-KUNTZ, Karin. Do nome das pessoas jurídicas. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 14), FRANCISCO AMARAL (AMARAL. Francisco. Direito Civil: Introdução. 5ª ed. São Paulo: Renovar, 2005, p. 218), SIMONE EBERLE (EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 47).
48
Personalidade, enfim, corresponde a uma postura fática existencial, examinada à luz
dos holofotes do Direito. Para as sociedades, releva-se formatação semelhante. A
personificação é, ao mesmo tempo, um fato e uma realidade jurídica de que a lei se
utiliza para a criação da capacidade negocial.
O Diploma Civil de 1916 pode ser considerado como um dos pilares da
personificação de sociedades no Brasil, já que o Código Comercial não cuidava do
tema de maneira direta. Em seu artigo 18, era apresentada a época de início da
personalidade como o do registro dos atos constitutivos86.
No Código Civil em vigor, a manutenção da exigência do registro para a
personificação societária é mencionada no artigo 4587 e, de certo modo, parece
muito mais uma questão de estética do que propriamente um acerto técnico. Na
mesma linha, o artigo 985 do referido Diploma Substantivo não alterou essa
proposição e determinou a necessidade da confirmação de existência perante
organismos públicos, a fim de que após a regularização, ou até mesmo autorização
ou aprovação governamental, pudesse-se obter a condição de pessoa por parte da
sociedade. A personificação jurídica societária se colocou em posição subalterna à
declaração estatal de existência.
Houve a oportunidade de se dizer que a sociedade, como organização
empresária, é criada para que os riscos da atividade econômica sejam diminuídos
aos que a empreendem com o fito de transacionar direitos de propriedade88. Afinal,
como visto, se há um cenário onde agentes envolvidos no mercado possuem
informações diferentes sobre as características dos ativos em negociação, existe
aquilo que a Economia chama de assimetria informacional89.
Ao Direito, caberia amenizar esse panorama, propiciando medidas protetivas
que serviriam de anteparo para os infortúnios que diminuem a aceleração da
vontade empreendedora de novos negócios sob a alcunha de empresa. A
86 Preceituava o antigo 18 do Código Civil de 1916: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos, estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou aprovação do Governo, quando precisa”. 87 Artigo 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 88 COASE, Ronal H. The nature of the firm. Economica, v.4, nº 16, Londres, 1937, p. 386/405. Disponível em <www.jstor.org>. Acesso em 04 de setembro de 2007, p. 392. 89 Cf. LOPES, Alexandro Broedel; MARTINS, Eliseu. Teoria da contabilidade: uma nova abordagem. São Paulo: Atlas, 2007, p. 30.
49
personalidade jurídica às sociedades regularizadas foi criada justamente para esse
fim de proteção aos exercentes de atividades econômicas. Ela, que permite a
manifestação de uma capacidade própria para a prática de atos jurídicos, ao mesmo
tempo tende a servir de escudo ao patrimônio individual dos sócios.
Como já exposto, o Código Civil90 estabeleceu que a atuação em mercado,
ambiente para a qual se destina a atividade empresarial, independe do registro nos
órgãos governamentais. Validam-se os contratos celebrados ainda que as
sociedades em formação estejam na informalidade. Conforme as noções sobre a
empresa informal no direito brasileiro consubstanciadas no tópico 2 retro, viu-se que
a personalidade jurídica é, na verdade, uma tentativa estatal de manter o controle da
economia, obrigando-se os empresários a efetuarem o registro nos órgãos
governamentais91. É, enfim, a ratificação pelo Estado da existência de estrutura
societárias, condicionamento para a assunção de direitos e obrigações, aspecto
qualitativo do que é a capacidade, quantitativa92.
O problema da personalidade jurídica das sociedades fáticas e
irregularizadas, afinal, diz respeito à possibilidade de ser o patrimônio social objeto
de execução por parte de terceiros, sem que se admita o concurso dos credores
particulares dos sócios. Como disse Tullio Ascarelli93 sobre a personalidade, “[...]
negando-a, admite-se que, quer quanto aos bens sociais, quer quanto aos bens
particulares do sócio, possa haver um concurso dos credores sociais e dos
particulares dos sócios”.
Ao destacar os vértices da autonomia hierárquica, pode ser visualizado um
conjunto patrimonial diferenciado do de seus sócios, estando sob o estado “[...] em
comum, sujeito às regras do ato constitutivo [...]”, como observou Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda94. Neste sentido, Cláudio Manoel Alves95, ao refletir
90 Vejam-se os artigos 966 e 982 do Código Civil. 91 Admir Ramos (RAMOS. Admir. Constituem pessoas jurídicas as sociedades comerciais irregulares? Revista dos Tribunais. São Paulo. v. CXXIV. p. 416-418. Março de 1940, p. 417) há muito já havia levantado o problema dos interesses envolvidos. Segundo ele, a necessidade de se registrar a sociedade decorre fundamentalmente de razões até sociológicas, como a proteção de interesse de terceiros. 92 Cf. EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 47. 93 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999, p. 516-517. 94 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 1, São Paulo: BORSOI, 1954, p. 334. 95 ALVES, Cláudio Manoel. Sociedades irregulares: pré-vida das sociedades. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 556, p.19-27, fev. 1982, p. 26.
50
sobre a idéia de existência desse patrimônio em comum, tomou partido pela
compreensão de que não seria diversa, substancialmente, a orientação adotada no
projeto de Lei 634/1975 que veio a dar origem ao Código Civil, que nessa época
ainda estava em tramitação.
Recentemente, sobre o direito francês, Jean-Bernard Blaise96 descreveu que
o ato registral não passaria somente uma função probatória, mas também uma
condição de existência da personalidade de uma sociedade. Esta força probante
atestaria a importância da prestação de informações dada ao Estado; eis que, na
prática, as sociedades manifestam-se ainda que seus contratos sociais sejam nulos
ou anuláveis, pois produzem efeitos em toda a seara relacionada à atividade
exercida, empresarial, ou não. Transparece-se, nesse ponto, a evidência de que
tudo se passaria em torno da necessidade de se manter um controle da atividade
empresarial, uma conjectura formalista e útil em termos tributários e econômicos,
jamais em termos jurídicos.
Vale lembrar que Cesare Vivante97, contrário a Bonelli, orquestrou o raciocínio
de que é infundado o pensamento de que seria o registro algo essencial para a
existência da personalidade jurídica, bastando a vontade dos sócios. Em termos
brasileiros, José Xavier Carvalho de Mendonça98 e João Eunápio Borges99, muito
antes do Código Civil de 2002, já haviam se pronunciado a respeito de que ao
Estado não caberia o papel de criar as pessoas, apenas de reconhecê-las, afinal, é
o Direito que se ajusta à realidade e não o contrário.
Houve oportunidade de se dizer que a sociedade, como organização
empresária, é criada para que os riscos da atividade econômica sejam diminuídos
aos que a empreendem com o fito de transacionar direitos de propriedade100. Assim
é que, no direito brasileiro, a sociedade de fato e a irregularizada caminham no
sentido contrário a essa correnteza, levando o sistema jurídico pátrio a impor
injustificadamente o afastamento da personificação dessas hierarquias. Já com
96 BLAISE. Jean-Bernard. Droit des affaires: commercants, concurrence, distribution. 2ª ed. Paris: LGDJ, 2000, p. 69. 97 VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale: Le società commerciale. v. II. 4ª ed. Milão: Casa Editrice Dottor Francesco Valardi, 1912, p. 71. 98 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de direito commercial brasileiro. v. III. L. III, p. III. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1933, pp. 89/90. 99 BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 289. 100 COASE. Ronald H. The nature of the firm. Economica, v.4, nº 16, Londres, 1937, p. 386/405. Disponível em <www.jstor.org>. Acesso em 04 de setembro de 2007, p. 392.
51
relação às sociedades em comum, tal assunto muda de face, e o argumento
utilizado é rendido. Como dito no capítulo anterior, a sociedade em comum, tipificada
a partir do artigo 986, não pode ser confundida com uma sociedade de fato ou
tornada irregular, o que lhe retira a efetividade da opção legal expressa por sua não-
personificação.
A temática, via de regra, deveria ser encarada como frutos de idôneos
interesses de seus sócios, fator retirante de qualquer tipo de motivação para o
tratamento dispensado pela Lei 10.934/2002. Na espera pela mera declaração
estatal quanto à sua existência como ente, todos os atos informativos são prestados
pela hierarquia ao Estado, redundando em ausência de ilicitude. Se a atuação das
sociedades de fato em mercados seria contrária à exegese evolutiva da legislação
vigente, devido ao agravante dos riscos da atividade econômica, o mesmo não se
diga das sociedades em comum, interstício temporal tipificado pelo qual passam as
estruturas societárias.
4.3 Reflexões sobre a capacidade da sociedade em comum
A Conferência do Direito Internacional Privado, reunida em Haia, na Holanda,
em outubro do já distante ano de 1951, pugnou pela fixação de condições mínimas
para o reconhecimento da personalidade nas relações de comércio internacional.
Como resultado, obteve-se um projeto de convenção que mencionava no artigo 1º a
capacidade judicial, a de possuir bens e, por fim, a de celebrar contratos e praticar
atos jurídicos em geral101.
Para essa capacidade, João Franzen de Lima102 explicava que a suposição
de uma vontade é a capacidade de fato, mas, ao seu suprimento, a lei colocaria ao
lado da pessoa jurídica alguém que a representasse, “da mesma maneira que o faz
com o menor, com o louco, com o surdo-mudo, com o ausente”. Disso, no entanto,
discorda-se. A pessoa jurídica como ente provido de existência legalizada equivale a
uma corporificação capaz de praticar todos os atos da vida negocial, capacidade
específica para atos relacionados aos fins propostos em sua constituição. Ela deve
101 Cf. REVUE TRIMESTRIELLE DE DROIT COMMERCIAL, t. V. Paris, 1952, apud BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 267. 102 LIMA, João Franzen. Curso de direito civil brasileiro. v. I. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 176.
52
ser encarada como uma realidade, um ser completo que atua no cenário cotidiano
com capacidade própria para a prática de atos, sem a necessidade de
representantes.
Seguem-se aqui, por preferência, as palavras de Francisco Cavalcanti Pontes
de Miranda103 exultante para o fato de que para as estruturas societárias
possuidoras de personalidade jurídica em nada haveria de representação, mas, sim,
de uma presentação, em que era a própria pessoa jurídica que estaria a praticar os
atos e não o ser humano ali aposto para a realização do ato. A sociedade registrada,
segundo as disposições do Código Civil, atua nos negócios jurídicos de modo
pessoal, ainda que por intermédio de prepostos, o que de nenhuma forma retira da
corporação o caráter de ente plenamente capaz.
A capacidade, enfim, é a extensão da personalidade. Com aquela se observa
a medição dos direitos inerentes ao ente observado, posicionando-o como um
sujeito de direito. Discorrendo-se sobre a lição de Francesco Carnelutti104, em
contraposição às coisas, deu-se o nome de sujeito da relação à pessoa, segundo
ele, “não já porque a relação admita, e muito menos por que exija, um sujeito e um
objeto, mas porque um dos termos da relação apresenta a qualidade pessoa, que
dele faz um sujeito perante a realidade”.
A aplicação do conceito de sujeito de direito costumeiramente desemboca em
foz de pensamentos justificadores de um ambiente com o qual aqui não se
concorda. É o que ocorre com o pensamento de Eros Roberto Grau105 para quem o
direito econômico teria se encarregado de posicionar os sujeitos de direito de
maneira não coincidente com a materialidade do perfil das pessoas jurídicas. Mais
recentemente, Fábio Ulhôa Coelho106 corroborou essa tendência ao dizer que sujeito
de direito é gênero daquilo que pessoa seria espécie, o que justificaria a aptidão de
titularidade obrigacional ou creditícia de entidades não reputadas personificadas.
103 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 1, São Paulo: BORSOI, 1954, p. 281-282. 104 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Traduzido por A. Rodrigues Queirós e Artur Anselmo de Castro. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006, p. 215. 105 GRAU, Eros Roberto. Sujeitos de direito (direito econômico). In: LIMONGI FRANÇA, R. [coord.]. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1982, pp.308-311. 106 COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial. 17 ed. São Paulo: Saraiva. 2006, p. 112.
53
Entende-se, contudo, que tais posicionamentos não compreendem a verdade
sobre o assunto. Prefere-se aqui a opinião de Simone Eberle107 para quem “somente
as pessoas podem figurar como destinatárias dos comandos normativos, do modo
que apenas a elas é dado assumir o papel de sujeito de determinada relação
jurídica”. A autora finda seu raciocínio de modo brilhante ao concluir que melhor
seria indagar se aos outros entes para os quais a legislação atribui subjetividade,
como é o caso das sociedades em formação, não se evidenciaria a existência de
personalidade também para essas situações. A essa indagação de Simone Eberle,
entende-se que a resposta seria positiva, compreendendo-se como pessoas
jurídicas os casos excepcionais, como são as sociedades em comum.
A conclusão é inevitável, perigosa, mas atrativa. Se há uma organização com
pedido de arquivamento já efetuado, mas ainda não aceito, ela deveria possuir
personalidade, por poder ser verificada a proeminência da limitação de capacidade
de exercício deste tipo societário descrito a partir do artigo 986 do Código Civil. Isto
significa dizer que ela corresponderia a uma pessoa jurídica incapaz, dependente de
representação para a prática de atos negociais. Aliás, que não se perca de vista o
comentário de Maria Helena Diniz108 para quem o significado da representação seria
a proteção jurídica dos incapazes realizada por intermédio daquela, o que fornece
segurança ao incapaz, seja em relação a sua pessoa, seja em relação ao
patrimônio, possibilitando o exercício de seus direitos. Por inclusão, parece ser este
o caso em tela.
O que se vê na prática é que o patrimônio especial da sociedade consegue
ser mais que um amadurecimento da vontade dos sócios, é a verdadeira
capacitação inerente à criação dos entes. O que varia, ao contrário do que está
estabelecido a partir do artigo 986 do Código Civil, não é a personalidade, mas a
capacidade de exercício para a defesa dos direito adquiridos pelo sujeito ainda em
formação. Aponta-se, por isso, para o surgimento de um ente que pode atuar em
defesa de direito próprio.
A qualificação inerente à possível defesa do patrimônio próprio tem esse
condão em virtude de uma aparente segurança transmitida às relações jurídicas das
107 EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 26. 108 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: Teoria do direito civil. v. 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 117.
54
quais as sociedades participam, devido ao aumento da garantia para o cumprimento
de obrigações societárias. Denota-se que a teoria da aparência109 foi criada em justa
medida para defender interesses correspondentes à atividade empresarial, em
especial, de terceiros que negociam com a sociedade. A hierarquia é aparentemente
regular e as pessoas que com ela contratam têm completa oportunidade de verificar
quais as reais condições do respectivo ente. Afinal, se há ilicitude na sociedade em
comum, responderiam criminalmente ambos os lados da relação jurídica mercantil,
tendo em vista que a prática empresarial suscita a tomada de precauções por todos
os agentes econômicos.
Na íntegra, objetiva-se a permanência de efeitos de atos que provocam
reflexos jurídicos e econômicos na comunidade na qual se inserem os que se
encontram sob situação pré-regular. Essa aparência de ser que existe e produz
efeitos jurídicos de maneira regular permite às sociedades em comum certo trânsito
entre as consideradas regularizadas, de modo que nada mais natural que tenham o
patrimônio especial destacado para fins de ataque em possíveis atos processuais
executivos.
Em conseqüência, vale analisar a própria capacidade processual. Sabe-se
que esta não é independente da capacidade material, sendo dela decorrente.
Segue-se neste ponto o ensinamento de Humberto Theodoro Junior110 que compara
o Código Civil de 1916 e o de Processo Civil, e reflete, no que aqui igualmente se
entende aplicável às sociedades em comum, que as sociedades de fato sob a
orientação do Diploma Adjetivo de 1973 poderiam ser sujeito ativo e passivo da
relação processual, nas demandas sobre os negócios jurídicos que praticassem.
Segundo o mesmo doutrinador, haveria com isso uma alteração do sistema
tradicional da Lei material que só lhes reconhecia legitimidade passiva. Como ele
mesmo assevera, “o reconhecimento, porém, de legitimidade processual da
sociedade de fato não exclui a responsabilidade pessoal dos sócios pelas
obrigações assumidas em nome dela”, como se verá adiante no presente trabalho.
109 Cf. CALAIS-AULOY, Jean. Essai sur La notion d’aparence em droit commercial. 9 ed. Paris: Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1961, p. 111 e seguintes, apud MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. ver. E atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 176. 110 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. 27 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 83.
55
Alguns111 tentam compreender que a visão material afastaria a processual,
com alegações de que haveria um suposto empréstimo de personalidade ao direito
processual, algo com o qual aqui não se coaduna. Afinal, o artigo 12, inciso VII, do
Código de Processo Civil preceitua que as sociedades ditas não personificadas
seriam representadas em juízo, ativa e passivamente, “pela pessoa a quem couber a
administração dos seus bens”, numa clara demonstração de antagonismo em
relação ao diploma material já comentado. Isto, além de esclarecer a existência da
capacidade de exercício da sociedade em comum, escorço da comparação imediata
a respeito da capacidade civil específica, da qual se funda e mantém correlação,
também materializa a legitimidade dela para ser parte em processos que envolvam
como sujeitas de direito.
Trata-se de ponto intrigante a possibilidade das formas societárias
participarem da relação judicial112 como autoras113 de demandas contra outras
pessoas que possam vir a lesá-las em suas relações externas. Toma-se por base
histórica o ditame de que nenhuma ação entre sócios, ou destes contra terceiros,
que fundar a sua intenção na existência da sociedade, seria admitida em juízo se
não fosse logo acompanhada do instrumento probatório da existência daquela
organização, dizia o revogado Código Comercial de 1850, em seu artigo 303.
111 Em exemplo recente, Alex Sandro Ribeiro (RIBEIRO. Alex Sandro. Ofensa à honra da pessoa jurídica: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2004, p. 75). 112 Como exemplo, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 26 jan 2008) em julgamento do Recurso Especial 1551/MG, em 20 de março de 1990, que teve como relator o Ministro Athos Gusmão Carneiro, assim se pronunciou em situação concreta: “Sociedade por quotas de apenas dois sócios. Falecimento de um deles. Demanda proposta, em nome da sociedade, pelo sócio remanescente. Legitimação para a causa. Questionamento sobre se o falecimento de um dos sócios, em casos tais e face a cláusulas contratuais, resulta ou não em dissolução da sociedade. Alegação de que sociedade já extinta não poderia estar em juízo. O tema da dissolução ou não da sociedade por quotas não é relevante no alusivo a 'legitimatio ad causam', pois inclusive podem litigar em juízo as 'pessoas formais', as sociedades de fato, as sociedades ainda sem personalidade jurídica, ou já sem personalidade jurídica. Manutenção, no caso concreto, da capacidade para ser parte (mesmo se considerada extinta a sociedade), por tratar-se de disputa sobre bem afirmado irregularmente alienado ainda antes do falecimento do sócio. Recurso especial conhecido pela alínea c, mas ao qual se nega provimento”. 113 Sobre a matéria, veja-se o julgamento pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais no processo n.º 1.0024.05.781512-8/001(1) , que teve como relator Eduardo Mariné da Cunha, julgado em 26 de abril de 2007: “AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE -- SÓCIO - LEGITIMIDADE - SOCIEDADE IRREGULAR - IRRELEVÂNCIA. O art. 1.033 do CCB/2002 prevê as hipóteses de dissolução da sociedade simples, estabelecendo o art. 1.034 os casos de dissolução judicial, que poderá ocorrer por meio de ‘requerimento de qualquer dos sócios’. Destarte, demonstrando o autor, por meio dos documentos juntados com a inicial sua qualidade de sócio, impõe-se a cassação da sentença que o considerou parte ativa ilegítima. É irrelevante, para o ajuizamento da presente demanda de dissolução, eventuais irregularidades no estatuto da sociedade requerida, eis que a legislação e a jurisprudência reconhecem a possibilidade das ‘sociedades irregulares’ serem demandadas em juízo (art. 12, inciso VII, do CPC), e conseqüentemente, dissolvidas judicialmente.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Disponível em: <www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 20 ago 2007).
56
Ocorre, porém, que se as demandas judiciais envolvendo as atividades
mercantis não podem ser paralisadas sob o argumento da ausência do registro
societário em órgão competente, resta o raciocínio de que aquele que pode fazer
parte do pólo passivo de uma ação de cobrança, também o poderá quanto a ser um
sujeito ativo em outra. Não há, tanto no Código Civil, quanto no de Processo Civil,
norma que afaste esta conjectura.
Em especial atenção às sociedades em comum, torna-se incompreensível a
ausência de permissão para ser autora em suas mazelas. Quando o terceiro, v.g.,
tendo, ou não, pleno conhecimento da ausência provisória do registro já solicitado
pela sociedade, deixa de pagar a respectiva dívida contraída em função da prática
empresarial, não haveria razão para o afastamento da legitimidade societária para
demandá-lo.
Veja-se, discorda-se de posicionamentos como o adotado pela Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça que no julgamento do recurso especial 14.180/SP,
em 25 de maio de 1993, decidiu por unanimidade não aceitar a legitimidade ativa,
declarando como ilegítima uma sociedade irregular, derivada de uma incorporação
societária114.
A sociedade em formação após o pedido de registro, como já restou
consignado no capítulo 2, cumpriu com sua parte de informar ao Estado da
existência de atividade empresarial e que gostaria de fazê-lo sob a regularidade
descrita em lei. Se a aceitação do pedido de registro é ato que não cria a sociedade,
conforme estabelece o artigo 36 da Lei 8.934/1994, mas somente declara a sua
aparição formal para o universo jurídico, estando os atos negociais praticados
imbuídos de plena validade e eficácia, nada deve prosperar como contrário à
aceitação da estrutura societária como sujeito ativo do processo.
114 Eis a ementa completa: “Civil. Comercial e processo civil. Personalidade jurídica. Capacidade para ser parte e " legitimatio ad causam". Arts. 18, CC e 12, VII, CPC. Incorporação. Arquivamento no registro do comércio. Sucessão processual. Recurso acolhido. I - o legislador de 1973, ao atribuir, no art. 12-VII, CPC, capacidade para ser parte das sociedades sem personalidade jurídica, colimou, embora com desapego ao rigor cientifico, tornar menos gravosa a situação processual dos que com tais sociedades irregulares litigam, sem, com isso, subverter a ordem legal até então vigente, em particular no que diz com o disposto no art. 18, cc. Ii - enquanto não arquivado no registro próprio o contrato de incorporação, incorporadora e incorporada continuam a ser, em relação a terceiros, pessoas jurídicas distintas, cada qual legitimada para figurar em juízo na defesa de seus interesses. III - ajuizada a causa pela incorporada, opera-se automática e naturalmente, a partir do posterior registro do contrato de incorporação, sua sucessão pela incorporadora, independentemente da anuência da parte contraria” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 20 dez 2007).
57
4.4 A legitimidade para figurar em processo de falência e de recuperação judicial
O capacitado para o exercício, por tal condão, não é estanque à desventura
da atividade negocial, muito pelo contrário, com ela se confunde. Faticamente,
configurado o caráter empresarial do negócio, a própria organização dos fatores de
produção, elementos servidores da materialização da personalidade, do ser, cria
facetas dos efeitos processuais discorridos no subitem anterior. Em uma delas, que
se confere na Lei 11.101/2005, está o problema do processo falimentar e
recuperação judicial.
Viu-se no tópico 2 que a empresa, como ambiente econômico no qual os
contratos proliferam, existe independentemente da existência de registro por parte
da sociedade. Pouco importa, portanto, se a hierarquia compõe-se de fato ou
irregularmente, ou se já apresentou pedido de arquivamento dos atos constitutivos,
como é o caso das sociedades em comum. Não é o ato registral que lhe confere
caráter empresarial, mas a atividade prática exercida ainda que fora da aceitação do
Estado.
Assim, inevitável passa a ser a alusão à perspectiva do processo falimentar e
da ação de recuperação judicial a respeito do assunto.
Em antigo tratamento sobre o direito comercial italiano, Alfredo Rocco115
defendia o princípio de que a personalidade jurídica era o único meio de se adquirir
a qualidade de comerciante. A lembrar que a teoria vigente à época era a dos atos
de comércio, ele entendia, como conseqüências, que todos aqueles que estivessem
sob a informalidade, ou em formação, nunca poderiam, quando tornados
insolventes, ser declarados em estado de falência.
A seqüência da aplicação da teoria da empresa serviu para aceitar as
sociedades de fato, irregularizadas e em comum na categoria de parte legítimas
para sofrerem o processo falimentar, em caso de insolvabilidade. Do que se
115 ROCCO, Alfredo. Princípios de direito comercial. Tradução por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003, p.304
58
compreende do artigo 1º da Lei 11.101/2005 e como recorda Ricardo Negrão116, no
que tange ao devedor, “é indispensável ficar demonstrada sua condição de
empresário – regular ou irregular –, uma vez que o instituto falimentar tutela
exclusivamente as situações de crise econômico-financeira empresarial”.
O problema começa quando o paradigma passa a ser o ponto em que as
sociedades em formação, tanto as fáticas como as com pedido de registro ainda não
aceito, passam a querer ser sujeitas ativas nessas relações falimentares.
Em dois casos se resume a contenda. No primeiro, destaca-se a
impossibilidade de se requerer a falência de outros empresários, discussão que tem
a mesma sede do tópico anterior quanto à análise da legitimidade ativa para efetuar
a cobrança de crédito junto a terceiros117.
Inquietante para esta ocasião é mesmo a segunda hipótese, a autofalência.
Sob o permissivo legal de sua manifestação prescrito no artigo 97, I, da Lei
11.101/2005, pode a sociedade empresária em formação solicitar a imposição dos
efeitos do processo falimentar sobre si própria. Isto decorre do disposto no artigo
105, em que o devedor em mencionada crise, que julgue não atender aos requisitos
para pleitear sua recuperação judicial, poderá requerer ao juízo sua falência,
expondo as razões da impossibilidade de prosseguimento da atividade empresarial.
Assim, à primeira vista, a autofalência realmente deveria ser o único recurso por
parte de devedores como a sociedade em comum.
O motivo, conforme aduz Fábio Ulhôa Coelho118, é que a sociedade irregular
não teria legitimidade ativa para pleitear a recuperação judicial em função do artigo
51, V, da Lei 11.101/2005. De posse, contudo, da informação prestada pelo artigo
em relevo, não se concorda com tal ponderação.
116 NEGRÃO, Ricardo. Aspectos objetivos da lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 04. 117 O Tribunal de Justiça de Minas Gerais no processo n.º 1.0000.00.229527-7/000(1), julgado em 13 de dezembro de 2001, seguiu a tendência majoritária do direito brasileiro emitiu a seguinte ementa: “Falência - Inexistência de cerceamento de defesa - Legitimidade para requerer a falência – Comerciante de fato - impossibilidade - recurso desprovido. Se a requerente não fez prova de sua condição de comerciante e nem quis comprovar tal fato, não pode se queixar de cerceio de defesa, pois a oportunidade foi dada para fazer tal demonstração. Para requerer a falência do devedor, deverá o comerciante domiciliado no Brasil provar ter firma inscrita, ou contrato ou estatutos arquivados na Junta Comercial.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Disponível em www.tjmg.gov.br, consulta realizada em 20 de agosto de 2007). 118 COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial. 17 ed. São Paulo: Saraiva. 2006, pp. 43-44.
59
Realmente, a referida norma assim se posiciona, excluindo as organizações
sem regularidade. Por diretriz deste trabalho, entretanto, os efeitos práticos da
diferenciação entre as sociedades fáticas ou irregulares, as irregularizadas e as
sociedades em comum, quanto aos conceitos já apresentados no capítulo anterior,
deixam as hierarquias com pedido de arquivamento dos atos constitutivos em
posição contrária ao pensamento de Fábio Ulhôa Coelho, acima exposto.
Observa-se que a expressão “que julgue” do artigo 105 da Lei 11.101/2005119
já expressa curiosa subjetividade permissiva de interpretação no sentido de que se a
organização, à espera da aceitação do registro, não desejar a autofalência e se
julgar merecedora de uma recuperação judicial, nada seria obstáculo para que esta
última fosse concedida.
Considerando sua regularidade, em termos pré-registrais, às sociedades em
comum poderiam ser estendidos os benefícios da ação de recuperação judicial
aplicável aos empresários, se elas exercessem atividade empresarial. O problema
que se observa é que a legislação determina que tais sujeitos exerçam regulamente
sua atividade há mais de 02 (dois) anos, conforme disposto no artigo 48 da Lei
11.101/2005. É bem verdade que tal fato se mostra impensável, sendo certo que o
período de penumbra equivalente à espera pela aceitação do registro dificilmente
levaria prazo superior ao bienal, o que inviabilizaria o pré-requisito para a aplicação
do dispositivo legal acima mencionado.
Poder-se-ia entender que a legislação andou mal nessa passagem. Se a
recuperação é da empresa, consagrada no artigo 47 da Lei 11.101/2005, e não do
empresário, nenhuma razão assistiria ao legislador em determinar que a atividade
da sociedade em comum em crise não pudesse ser beneficiada pela recuperação
judicial. Como afirma Lídia Valério Marzagão120, “não é essa a idéia nuclear que
norteia a nova lei em vigor em nosso País, que é a preservação da empresa
independentemente da pessoa do empresário”. O que pesa em sentido contrário é o
fato de que a recuperação judicial não foi criada para a satisfação de interesses
119 Eis a redação do artigo: “O devedor em crise econômico-financeira que julgue não atender aos requisitos para pleitear sua recuperação judicial deverá requerer ao juízo sua falência, expondo as razões da impossibilidade de prosseguimento da atividade empresarial (...)” 120 MARZAGÃO, Lídia Valério. A recuperação judicial. In: MACHADO, Rubens Approbato (coord.). Comentários à nova lei de falências e recuperação judicial: doutrina e prática: lei 11.101 de 9/2/2005 e lc 118 de 9/2/2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 85.
60
espúrios, tão facilmente suscitados por investidores de má-fé, o que, nesta linha,
justifica a exclusão da pessoa jurídica em formação.
61
5 RESPONSABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO
O Código Civil dispôs de maneira lacônica quanto às formas de
responsabilização dos sócios e à administração da sociedade em comum, problema
facilmente verificável segundo a leitura dos artigos a ela correspondentes. Com
utilização da sociedade simples como instrumento subsidiário de interpretação dos
problemas, direcionado à referida espécie de sociedade em formação, justifica-se a
o presente capítulo.
A forma como a sociedade em comum se porta diante da narração de sua
premente capacidade para figurar como sujeito de direito é fator que leva à
discussão sobre a possível responsabilização da própria organização e a de seus
sócios pelas dívidas sociais. Em especial, a maneira como a legislação arbitra a
matéria poderia levar o leitor a entender que, a critério do Poder Público, o ente
ficaria irresponsável por não possuir individualidade própria, ou seja, por repassar o
caráter de devedor a seus investidores, de maneira direta.
Visa-se, enfim, posicionar a colocação da responsabilidade societária nas
relações com terceiros e o caso, ou o caos, do que vem a ser o benefício de ordem.
Finaliza-se o capítulo com dois temas, um a respeito da administração da
sociedade e a breve reflexão sobre o pacto limitativo de poderes, e outro sobre o
contrato social e a sua respectiva comprovação.
5.1 Utilização subsidiária das normas relativas às sociedades simples
Foi objeto de estudo a espera pela aceitação do registro que, em vez de
decretar a nulidade de todos os atos praticados pela sociedade em formação,
fornece espaço particular para validação dos negócios jurídicos celebrados por ela
com terceiros. O Código Civil brasileiro inovou ao trazer para si a tipificação inerente
às sociedades em comum, e o fez com a suposta pretensão de, em poucas linhas,
esgotar um assunto tão complexo.
62
O legislador de 2002 manteve certa paridade entre as organizações que
tivessem a ingerência imediata e pessoal de sócios na administração do
empreendimento, além da possível responsabilidade pessoal de cada um deles por
dívidas societárias. Historicamente, como comentou Nelson Abrão121, no sistema
italiano seria inegável o preenchimento pela sociedade simples do lugar reservado
no Código Civil peninsular de 1865 à sociedade civil, com a ressalva de que “embora
não comercial, é de conteúdo econômico, distinguindo-se daquela pela ausência de
formalismo constitutivo e estrutura organizada em empresa”.
Mesmo nessa ordem, impende afirmar que o direito italiano não deixou
completamente desamparados aqueles que empreenderiam a sociedade simples.
Estas continuariam a ser criticadas quanto à maneira como amparariam os bens
individuais daqueles que as empreenderam, situação mantida até hoje no próprio
direito peninsular122e no direito alemão123, onde não foi fornecida personalidade
jurídica às sociedades de pessoas exatamente por não protegerem corretamente o
bens do investidores.
Mauro Brandão Lopes124, sob esse prisma, ao comentar ainda sobre o projeto
que resultou na Lei 10.406/2002, lecionou sobre o paradigma peninsular da società
semplice utilizado pelo direito pátrio. Ele retratou a ausência de personalidade
jurídica, mas ainda assim destacou a salvaguarda do pecúlio particular dos
indivíduos que compõem o quadro social enquanto perdurar o patrimônio coletivo
por meio de uma meramente subsidiária responsabilidade daqueles com a
personificação.
Num contexto conflitante, com a exceção do caráter provisório do ente em
formação em relevo, efetuou-se uma grande aproximação entre a sociedade em
comum e a simples, porque, em princípio, ambas não ofereciam a segurança
adequada aos que as contratavam. As hierarquias simples, que ora aparecem como
121 ABRÃO, Nelson. Sociedade simples; novo tipo societário? São Paulo: Leud, 1975, p. 45. 122 Dispõe o artigo 2.251 do Código Civil italiano (ITÁLIA, Codice Civile. Disponível em: <http://www.jus.unitn.it>. Acesso em: 20 set. 2007) que “[...] nella società semplice (att. 204) il contratto non é soggetto a forme speciali, salve quelle richieste dalla natura dei beni conferiti (1350, 2643)”. Em tradução livre, “na sociedade simples (artigo 204) o contrato não é sujeito a forma especial, salvo aquela requerida pela natureza do bem conferido”. 123 Sobre o assunto, recomenda-se a leitura sobre a sociedade simples no direito alemão na obra de José Lamartine Correa de Oliveira. (OLIVEIRA, José Lamartine Correa. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, pp. 126-129). 124 Cf. LOPES, Mauro Brandão. A sociedade em comum: inovação do anteprojeto do Código Civil. Revista de Direito Mercantil, n. 15-16, São Paulo: Malheiros, 1974, p. 41.
63
tipo societário, ora como classificação em função do objeto não empresarial
escolhido125, deixam de proteger a figura dos sócios apenas por não lhes fornecer
limitação de responsabilidade.
Curiosamente, em seu artigo 986, o Código Civil brasileiro ratificou a
tendência de tornar paritárias as sociedades simples e as em comum; o texto legal
remete o intérprete à leitura dos artigos 997 e seguintes, colocados como normas
subsidiárias à vida social dos entes societários em formação, espécie esta colocada
inconvenientemente como não personificada pela própria legislação nacional.
Denota-se que o legislador, por coerência, poderia ter ofertado exegese na
própria legislação quanto ao caráter não mercantil da fase pré-registral. Com isso, a
visualização seria de que, talvez, toda atividade da sociedade em comum antes do
arquivamento dos atos constitutivos devesse possuir o caráter meramente voltado
para a atuação de controle de procedimentos internos à sociedade, não
exteriorizados por intermédio de negociações com terceiros.
Se assim o fosse, diga-se, a aproximação feita pelo artigo 986 do Código Civil
talvez tivesse seu propósito: as sociedades que manifestassem atitudes antes do
arquivamento dos atos constitutivos seriam declaradamente desconsideradas,
inexistentes. Como já salientado, isto ocorreria como colocado quanto às sociedades
por ações quando elas não respondem por seus atos, reenviando-se toda a
responsabilidade para os primeiros administradores, sem solidariedade, sem
subsidariedade, fato impensável tanto na sociedade em comum, como na simples.
Apesar da questão da aproximação, derivada da responsabilidade
semelhante para os investidores dos dois tipos societários, e do afastamento, devido
à possível natureza mercantil da sociedade em comum, ponto definitivo sobre a
celeuma está no argumento de que, independentemente da qualidade do objeto
social, qualquer sociedade, com exceção expressa das que possuem capital dividido
em ações, passa inevitavelmente pelo período de espera entre o pedido de registro
e o definitivo arquivamento de atos constitutivos, seja competente o cartório de
registro de pessoas jurídicas ou a junta comercial.
Assim, contudo, verifica-se como conveniente entender que a expressão
utilizada pelo Código Civil, em seu artigo 986, refere-se a uma supletividade, fator
125 Cf. LIMA,, Osmar Brina Corrêa. Sociedade Limitada. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 08.
64
que confere à sociedade em comum não o caráter de sociedade simples, mas
unicamente uma fonte de solução de conflitos, em aproveitamento das lacônicas
passagens do diploma substantivo.
Relembra-se que tal contextualização não está isolada na Lei de 2002. A
base comparativa se dispõe sobre a utilização da sociedade simples como
paradigma normativo subsidiário para todas as demais formas societárias de cunho
contratual, independentemente de seu objeto. Na ótica das estruturas empresárias,
depreende-se isso da leitura dos artigos 1.040, 1.046 e 1.053, normas legais que
retratam a remessa supletiva126, respectivamente, das sociedades em nome
coletivo, em comandita simples e da limitada, tal como ocorre no artigo 986.
5.2 A responsabilidade nas relações com terceiros e o benefício de ordem
Na busca por respostas a respeito do caminho adotado pelo Código Civil,
encontra-se Raquel Sztajn127 para quem, em termos econômicos, seria necessário
haver regras de direito disciplinadoras da propriedade e de sua atribuição, circulação
lícita e regular da riqueza e punição para a sociedade ilegal, além de definição de
responsabilidade dos operadores.
Historicamente, entretanto, já no conteúdo do revogado artigo 350 do Código
Comercial de 1850, havia a determinação para que os bens particulares dos sócios
não pudessem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de
executados todos os bens sociais. Conforme Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa128
ressalta, o favor legal do benefício de ordem para a época do dispositivo acima
mencionado “[...] “não poderia ser aplicado a comunheiros, mas apenas a sócios de
sociedades regulares”129. Logo, como também afirmou Fran Martins130, os sócios
126 Sobre as normas legais supletivas, leia-se Osmar Brina Corrêa-Lima (CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Limitada. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 28-29). 127 Cf. SZTAJN, Raquel. Teoria jurídica da empresa: Atividade empresarial e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 64. 128 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades, as sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 297. 129 Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades, as sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 297) ainda complementa: “Na verdade, o benefício de ordem de se que se fala era aplicável tão-somente aos sócios solidários das sociedades em nome coletivo, das sociedades em comandita simples (quanto aos sócios comanditados) e das sociedades de capital e indústria”.
65
responderiam não só de maneira ilimitada, como também solidária. Terceiros que
mantivessem créditos particulares junto a sócio da sociedade sem registro tinham a
possibilidade de conseguir a penhora dos bens individuais daquele sem que os
demais investidores pudessem obstar tal medida.
A seguir a linha da comunhão, a possível vítima, eventual e supostamente
enganada quanto à condição formativa da referida organização, estaria apta a
impetrar demanda contra a sociedade em comum e, de maneira solidária, e não
subsidiária, em desfavor aos seus sócios. Para ressaltar, não há comunheiros em
função de que não há comunhão, mas unicamente uma sociedade que produz
efeitos jurídicos na prática como um ente que segue os ditames legais de sua
existência: o pedido de arquivamento dos atos constitutivos e a espera pela
aceitação, situação probante de sua própria regularidade.
Este é o momento em que se entra na necessária leitura do intrigante artigo
990 do Código Civil de 2002, para o qual “todos os sócios respondem solidária e
ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem previsto no
art. 1.024131 aquele que contratou pela sociedade”. Afinal, é dúbio o significado
daquilo que o legislador preceituou, se os sócios responderiam de maneira solidária
ou se subsidiária.
Tanto na sociedade em comum como na simples a responsabilidade dos
sócios que criam a organização é considerada ilimitada, no que já foi discutido
acerca da assimetria informacional no capítulo 2 retro. Vale, por outro lado, o alerta
de Nelson Abrão132, em seu estudo do projeto do atual Código Civil. Entre as
características básicas da sociedade simples no direito brasileiro estaria a
responsabilidade proporcional do sócio no caso de déficit patrimonial. Igualmente, tal
caracterização ocorre na sociedade em comum, estendendo-se sobre todas as
exemplificações, como na comandita simples e a sociedade limitada, ambas em
estágio de gestação, por perderem em primeiro momento a limitação de
130 Cf. MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. ver. E atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 176. 131 “Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”. 132 ABRÃO , Nelson. Sociedade simples; novo tipo societário? São Paulo: Leud, 1975, p. 55.
66
responsabilidade para determinada categoria de sócios ou para todos,
respectivamente, graças aos efeitos preparatórios da sociedade em constituição133.
Discorda-se, porém, da opinião de Alexandre Bueno Cateb134 quando ele
destacou que o artigo 990 do Código Civil excluiu todos os tipos de dúvida sobre a
escolha legislativa entre a solidariedade e a subsidiariedade para os sócios e a
sociedade em comum. O problema está na redação do artigo 988 do diploma
civilista. Ele afirma que “os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial do
qual os sócios são titulares em comum”. Vê-se um descompasso: ou o patrimônio
pertenceria à própria sociedade – como patrimônio especial –, ou aquele seria de
titularidade dos sócios – como um condomínio destinado a um fim. A ser escolhida a
segunda opção, não haveria subsidiariedade, mas uma solidariedade.
A solução começaria a ser exposta no entendimento de que, como ressaltou
Cláudio Manoel Alves135, as sociedades se enquadrariam sob as disposições dos
direitos obrigacionais, enquanto que à comunhão são aplicáveis as que vêm do
direito das coisas. Entende-se, por conseguinte, que a assertiva inerente ao
condomínio ou composse seria incongruente sob a atual ótica da hierarquia em
formação, pois se chocaria à já comentada possibilidade de a sociedade em comum
vir a ser um sujeito capaz de titularizar direitos, como os de propriedade136.
Refuta-se, de pronto, a afirmação da titularidade conjunta entre os
empreendedores, pois se crê neste ponto que não haveria impedimento sequer para
o registro de bens em nome da corporação após o pedido de registro. Pelo contrário,
após a constituição da sociedade, torna-se esperado que os sócios venham a
integralizar a subscrição realizada, transferindo o patrimônio individual na esteira do
que determina o artigo 1.004 do Código Civil. Não se concebe crer subsistirem ao
mesmo tempo o benefício de ordem e condomínio entre sócios sobre os bens
sociais, uma vez que assim não haveria patrimônio a ser esgotado antes de se
efetuar o levantamento do acervo individual de cada investidor, ou seja, não haveria
subsidiariedade.
133 Sobre o tema, veja-se o capítulo 3. 134 CATEB, Alexandre Bueno. A sociedade em comum. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 153). 135 ALVES, Cláudio Manoel. Sociedades irregulares: pré-vida das sociedades. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 556, p. 19-27, fev. 1982. 136 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades, as sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 298.
67
Duas seriam as vertentes de entendimento. A primeira estaria na completa
desconsideração do disposto no supramencionado artigo 988. A segunda saída
seria fazer uma nova interpretação da norma, de maneira a torná-la mais coerente.
Ao analisar o ponto normativo em questão, vê-se que a grande celeuma está em
dizer que o patrimônio da sociedade pertenceria a “titulares em comum”. Releva-se
que, com a substituição de tal terminologia por “representantes em comum”,
aparentemente toda essa dificuldade hermenêutica cairia por terra. Explica-se, ao
invés dos sócios serem proprietários diretos e em condomínio dos bens sociais, ou
compossuidores, seriam eles meros representantes exercentes da capacidade de
exercício do ente incapaz. Somente dessa forma, a sociedade em comum justificaria
a autonomia patrimonial que possui, permitindo-se a aplicação dos artigos 990 e
1.024, ou seja, a responsabilidade ilimitada e subsidiária.
Em outra questão marcante, com conteúdo paritário ao do artigo 1.012137, a
parte final do artigo 990 distancia os que administram e os que não o fazem,
excluindo-se do dito benefício de ordem aquele que contrata pela sociedade. Trata-
se de presunção legal de que o gerenciador das atividades sociais deveria ser o que
cuidaria melhor dos interesses de seus pares. O legislador optou por acolhida
peculiar na norma do último dispositivo.
Vê-se que ela é superior até mesmo às responsabilidades, como as baseadas
em dívidas oriundas de direitos do consumidor ou dos trabalhadores138. Em tais
casos, por exemplo, a única punição aos sócios seria traduzida pela transformação
da responsabilidade dos sócios em ilimitada e subsidiária, retirando-se a limitação
pré-existente, se houver. No máximo, portanto, haveria uma aproximação à
sociedade simples e não às em comum.
Há outro ponto do qual não pode haver esquecimento. Na seqüência
renovada das válidas palavras de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa139, se a
situação é apresentada como de uma sociedade, e não como de uma comunhão, 137 O texto do artigo 1.012, no tocante às sociedades simples, discorre: “O administrador, nomeado por instrumento em separado, deve averbá-lo à margem da inscrição da sociedade, e, pelos atos que praticar, antes de requerer a averbação, responde pessoal e solidariamente com a sociedade”. 138 Para efeito de comparação, o artigo 28 do código de defesa do consumidor preceitua que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. 139 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: Teoria geral das sociedades, As sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 298.
68
com o sócio administrador agindo segundo o objeto social e conforme os poderes
que lhe foram outorgados, a referida regra da responsabilidade direta do contrata em
nome dela é, no mínimo, sem razão.
Talvez seja por isso que autores como Sergio Campinho140 façam aderência
ao sentimento de que não haveria justificativa para que a responsabilidade fosse
subsidiária, já que a sociedade em comum não seria possuidora de personalidade
jurídica. Aliás, para este autor, “todos os sócios, e não só aquele que contratou pela
sociedade, deveriam ter responsabilidade pessoal direta, que pode ser exigida
independentemente da exaustão do patrimônio social”. Neste sentido, concorda-se
com ele.
5.3 A administração da sociedade em comum e o pacto de limitação de poderes
Em 03 de abril de 1995, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça141,
em julgamento do agravo regimental 39477/SP, decidiu que a sociedade não
registrada possuiria responsabilidade civil por atos de seu gerente. O caso, ainda
que sobre a narrativa de uma sociedade meramente de fato, exarou circunstância de
que as lesões cometidas antes do início da existência regular societária não
afastariam a solidariedade entre a sociedade e o órgão diretor, tendo sido invocado
em nome e proveito da primeira. Essa decisão, marcante no cenário jurídico
nacional, retratou a fragilidade da hierarquia informal diante do imperativo estatal do
registro, elemento até então indispensável à conotação de regularidade.
Pensa-se, em contrapartida, que apesar desse precedente criado no contexto
pretoriano, não há por que se manter tal posicionamento para com as sociedades
em comum. A força do pedido de registro é, justamente, no sentido de se acreditar
que a exposição formal da existência societária é capaz de afastar os elementos
punitivos presentes na afirmação realizada no supracitado tribunal.
Surpreendentemente, segundo o artigo 989 do Código Civil, o sócio que
contrata em nome da organização em comum não teria, em princípio, a delimitação
140 Cf. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 77/76. 141 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 26 jan 2008.
69
das zonas limítrofes de seus poderes, a não ser que houvesse uma cláusula que
expressasse a tal limitação. Foi a própria legislação que relevou a existência de um
acordo que denotasse os limites de atuação do administrador.
A idéia do pacto limitativo de poderes possui a tendência natural de vir a
aparecer dentro do próprio contrato social que cria a sociedade em comum, o que
não impede sua aparição em instrumento autônomo de caráter público ou particular.
Este documento seria derivado de moção decorrente da maioria do capital social, na
seqüência da lógica do artigo 1.010142.
Entende-se que o desrespeito à supracitada cláusula de limitação poderia ter
como resultado algo que se assemelharia ao descrito no parágrafo único do artigo
1.015143, ou seja, a aplicação concreta da teoria dos atos ultra vires144, aquela a
dizer que a prática de exageros gerenciais resultaria em responsabilidade única para
o administrador, excluindo-se de obrigação a sociedade. Pois é justamente nesta
ótica que a aplicação do artigo 989 aparenta ser estranha. Se a sociedade em
comum está regular quanto à obrigação do pedido de registro, conforme esclarecido
anteriormente, não há necessidade de um novo dispositivo legal a respeito do
assunto. Andou mal o legislador em não utilizar a norma que cuida dos excessos de
gestão, acima apontada.
O artigo 989 corroboraria taxativamente para que o pacto limitativo de
poderes tivesse a eficácia em fazer com que o terceiro que o conheça, ou devesse
conhecer, perdesse o direito de cobrar da sociedade e subsidiariamente dos sócios
aquilo que viesse a ultrapassar os limites dos poderes concedidos ao administrador,
isentando-se aqueles da responsabilidade pregada no artigo 990. Vê-se, todavia,
que a existência do pacto e o conhecimento pelo terceiro são algo de singular
dificuldade de comprovação.
Para Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa145, é problemático o conhecimento
da limitação dos poderes de gestão da sociedade em comum por terceiro que venha
142 Artigo 1.010 preceitua: “Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um”. 143 “O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros[...]”. 144 Sobre a teoria dos atos “ultra vires”, leia-se Carlos Henrique Abrão (ABRÃO, Carlos Henrique. Sociedades simples. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 56/57). 145 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades, as sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 304.
70
a assumir a posição de credor. De qualquer maneira, diz ele, seria ônus daqueles
que pertencem ao quadro social a prova de que o terceiro conhecia, ou devia
conhecer, a limitação de poderes em causa.
Igualmente, Alexandre Bueno Cateb146 afirma que os ativos da sociedade, o
patrimônio em comum, responderiam pelas dívidas sociais de maneira independente
à alegação de prática de atos com excesso de poderes por qualquer dos sócios,
pois não se poderia exigir que terceiros soubessem das restrições contratuais
quanto à administração por um dos membros da sociedade.
A questão seria mais prática do que doutrinária. De todo modo, não seria
crível aceitar-se que no universo empresarial atual seja possível acreditar que
terceiros fossem completamente inocentes quanto à ciência da real condição de
sociedade em formação por parte daquele que transaciona em mercados. Por mais
que se acredite em assimetria de informações, diversas são as maneiras de se
conhecer o empresário, como a emissão de documentos fiscais e as consultas aos
órgãos registrais. Em que pese a divergência, apenas em negociação de valores
irrisórios seria passível de crédito a referida ignorância.
5.4 O contrato social e sua comprovação
Dispõe o artigo 987 que a hierarquia em formação pode ser comprovada de
qualquer modo por aquele que não faz parte da composição organizativa, em caso
de verificação de prejuízos decorrentes do respectivo relacionamento negocial.
Apesar de não estabelecer os referidos meios de prova das hipóteses
irregulares, a legislação pretérita de 1850 admitia elementos de existência social. O
artigo 305 do antigo Código Comercial exemplificava fatos que faziam presumir a
existência da sociedade em comum, tais como a negociação promíscua e comum, a
aquisição, alheação, permutação ou pagamento comum. Ainda, poderia ser
verificado se um dos associados se confessaria sócio, e os outros não o
contradiriam por uma forma pública; se duas ou mais pessoas proporiam um 146 Cf. CATEB, Alexandre Bueno. A sociedade em comum. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 153.
71
administrador ou gerente comum, a dissolução da associação como sociedade, ou o
emprego do pronome “nós” ou “nosso” nas cartas de correspondência, livros,
faturas, contas e mais papéis comerciais, o recebimento ou responder cartas
endereçadas ao nome ou firma social criado, o uso de marca comum nas fazendas
ou volumes e o uso de nome com a adição - e companhia.
Pode-se denotar que há a continuidade de tais caminhos para se presumir a
sociedade em função de evidente caráter restritivo quanto à manifestação de
agrupamentos que não tenham o pedido de arquivamento de atos constitutivos em
órgão competente. Segundo o artigo 987, facilita-se, assim, a comprovação por
parte de terceiros e dificulta-se entre os sócios.
Logo, embate maior enfrenta a comprovação de vida societária entre os
próprios sócios, o que é extraído da continuação do mencionado dispositivo, pelo
qual isso se daria somente por meio de documentos. Ao não existir prova escrita,
segundo se conclui da lei, seria prejudicado qualquer tipo de demanda entre os
membros da organização.
Em raciocínio, Marcelo Andrade Féres147 defendeu, mormente sob o
estandarte da equiparação entre as sociedades de fato e as em comum, a
compreensão sobre o entendimento de que ambas poderiam ser comprovadas por
qualquer meio admitido em direito. Por uma questão de lógica, entende-se, porém,
que é a partir da data do pedido de arquivamento do contrato social escrito que se
inicia o ônus da comprovação por intermédio de documento escrito, a considerar a
forma da hierarquia já apresentada ao Estado, restando impossibilitada a
prevalência de cláusulas apenas verbais.
Vale dizer, nas questões internas à sociedade, como se verá em tópico
adiante, a definição das formas de comprovação resultaria, inclusive, em efeitos
sobre outros assuntos, como, verbi gratia, o problema da prescrição das obrigações
do sócio para com a pessoa jurídica após a saída da sociedade. Neste caso, afinal,
torna-se profícuo o entendimento de que o marco inicial para a contagem do prazo
somente poderá ser concebido como o da criação dos atos de constituição escritos,
e não o data do pedido à junta comercial, ou, nem mesmo, da respectiva aceitação.
147 FÉRES, Marcelo Andrade. Depuração da sociedade em comum: primeiras considerações sobre o regime jurídico das sociedades contratuais em formação. Revista Juris Síntese. São Paulo. n. 52. mar-abr 2005.
72
Com efeito, a considerar a importância do contrato escrito direcionado ao
órgão registral, outro fator de relevo estaria sobre a demora do sócio administrador
em transformar a organização de fato em sociedade em comum. Como lembra
Sérgio Campinho148, aqueles que assumem a administração são justamente os
obrigados a requerer o registro e devem responder, “em virtude da omissão ou
demora, por perdas e danos junto aos prejudicados”. Logo, se um sócio vier a ser
pessoalmente responsabilizado por dívidas da sociedade limitada em constituição,
condição societária em comum, terá ele ação de regresso contra o administrador ou
contra qualquer outro que deveria, por contrato, ter praticado o ato.
Criou-se um debate sobre as desavenças internas ao ambiente societário por
conta da assertiva colocada sobre o contrato escrito e a ciência entre sócios. Não se
esqueça, contudo, que a visão externa ao âmbito social, é igualmente intrigante. O
motivo é que, segundo o artigo 1.154 do Código Civil, o ato constitutivo a ser levado
a registro, ressalvadas disposições especiais da lei, não pode, antes do
cumprimento das respectivas formalidades, ser oposto a terceiro, salvo prova de que
este o conhecia. Explica-se, mais uma vez, o problema é que diante da quantidade
de instrumentos satisfatórios que servem para o fornecimento da ciência da real
condição societária em fase constituição perante aos órgão registrais, torna-se
insensato falar em ausência de ciência pelos terceiros que negociam com a
sociedade.
Tal qual o discorrido no subitem anterior, sabe-se que a organização à espera
do registro possui, além da aparência de regularidade, face exposta ao Estado,
interventor indireto sobre a economia. Uma simples consulta à junta comercial do
local da sede da referida corporação para se chegar ao conhecimento sobre a
verdadeira situação daquele ente.
Vê-se, por outro lado, que na facilidade concebida aos terceiros prejudicados
de provar por qualquer modo a existência social, em que pese o artigo 987 do
Código Civil. O que está presente nada mais é do que uma prática já difundida em
todos os outros tipos de sociedade regulares, e não a idéia de uma suposta punição
ao sócio, que pode provar a existência social apenas por escrito, e, tampouco, um
148 Cf. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87-88.
73
benefício ao terceiro, que fará uso de artifícios probatórios comumente utilizados em
qualquer relação contratual.
74
6 PONDERAÇÕES SOBRE A SAÍDA DE SÓCIOS DA SOCIEDADE EM COMUM
O sentimento voluntário de co-participação em uma atividade que envolva
risco econômico, a affectio societatis, é volátil e não se sujeita a imposições ditadas
contra a vontade dos sócios já existentes. A continuação da sociedade, entretanto,
pode passar por discussão, podendo findar-se se o instrumento particular celebrado
assim o necessitar.
Percebe-se que este fenômeno pode ser visto em qualquer tipo de estrutura
social de caráter empresarial, desde a mais robusta entidade registrada até a menor
das sociedades em comum, alcançando efeitos até nas hierarquias informais. Nessa
linha, ninguém seria obrigado a aceitar a presença de terceiros estranhos ao ideal
empreendedor contido na atividade econômica.
A partir do momento em que os interessados fazem saber ao Estado a
existência de uma organização, esta passa a possuir determinados requisitos que
levam o ente a se manter regular. Entre eles, assevera-se, está o contrato social
que, escrito e dotado de validade e eficácia, é elemento que serve como uma
justificativa para, ao menos, dificultar a própria extinção e dissolução societária.
Assim é que com a busca pela utilização de preceito acolhido pelo Código
Civil para regulamentar a matéria, vê-se com clareza a supletividade das normas das
hierarquias simples sobre as sociedades em comum. A ressaltar, sob três aspectos
cabem ser analisadas as maneiras como se apresenta a saída dos sócios também
para os casos de sociedades em comum: a cessão de cotas, a resolução parcial da
sociedade em relação a sócios, e a dissolução.
Todas elas deságuam na idéia da necessidade de liquidação, ainda que
parcial, do patrimônio da hierarquia, o que será aqui abordado. Do discurso a
respeito desse enfoque e dos breves comentários acerca do problema temporal da
responsabilidade dos sócios das sociedades em comum por dívidas sociais após a
saída dos mesmos, estabelece-se o direcionamento deste último capítulo.
6.1 A liquidação decorrente de resolução parcial ou de dissolução da sociedade em
comum
75
No direito brasileiro, as sociedades em formação vieram a apresentar
ambiente no qual o estreito liame entre os sócios poderia vir a se desfazer. Sob a
visibilidade de sua forma de fato ou irregular, sem contrato social escrito, ou, ao
menos, ausente o pedido de arquivamento do mesmo, os anos cuidaram para que a
jurisprudência nacional149 sedimentasse a permissão de entrega de partes
pecuniárias da sociedade aos empreendedores desertores. Estes seriam os titulares
de direito sobre aquelas divisas, o que fez com que o Direito brasileiro viesse a
consolidar mecanismos análogos aos das sociedades já formadas.
Com relação às sociedades em comum, para este trabalho posicionadas
como regulares com o Estado, mas na espera do registro que, como visto, é ato
meramente declaratório, ratificador, os elementos condizentes à saída de sócios ou
ao término do enlace negocial não obtiveram ainda a clara e devida observância por
parte dos tribunais brasileiros. Ainda assim, graças à significativa formalidade do
pedido de arquivamento dos atos constitutivos, os proprietários das cotas do capital
social não estariam mais livres para continuar a sociedade com outras pessoas,
senão com a necessidade de observação das regras relativas à substituição ou
exclusão de sócios, tal como a estrutura subsidiária das organizações societárias na
modalidade simples.
Reflexo disso estaria na necessidade de se apresentar pedido de novo
arquivamento quanto às alterações realizadas. O contrato social já em mãos do
órgão competente para registro seria razão pela qual aqui se denota a
obrigatoriedade de averbação sobre o instrumento representativo da existência da
hierarquia na Junta Comercial.
Normal, então, seria a defesa do artigo 1.002 da Lei 10.406/2002, a aplicação
do direito de preferência, por exemplo, no caso de uma cessão de cotas. Este, que é
149 Eis a ementas derivadas de julgamentos efetuados pela Terceira Turma do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 26 jan 2008) que ilustram o caso. Da primeira, sobre o recurso especial 41286/MG, ocorrido em 12 de setembro de 1994 e que teve como relator o Ministro Nilson Alves, extrai-se: “Sociedade comercial de fato. Dissolução judicial. e possível a dissolução para a partilha de acervo social. 2. recurso especial. É inadmissível, quando a decisão recorrida não tenha ventilado, de modo especifico e claro, a questão federal. 3. Recurso não conhecido”. Da segunda, sobre o recurso especial 43070/SP, julgado em 09 de maio de 1994, que teve como relator o Ministro Waldemar Zveiter, recorta-se: “Comercial e civil - Ação de reconhecimento de sociedade de fato - pedido de dissolução - contrato escrito inexistente. I- A falta de documento escrito, comprobatório da existência de sociedade, constitui irregularidade, contudo, não desnatura a capacidade processual de um dos sócios a postular em juízo, em seu nome, para reaver o patrimônio, em poder dos demais. Tal restituição se impõe como imperativo econômico, jurídico e ético, para coibir o enriquecimento sem causa destes. II- Incidência do dispositivo na súmula n. 07, do STJ. III- recurso não conhecido”.
76
instrumento utilizado pela legislação para propiciar a alteração do quadro de sócios
de modo geral, também poderia ser aplicável aos casos específicos de formação
societária na seqüência do respeito ao princípio empresarial da chamada affectio
societatis.
Fixando-se no contexto da aplicação do referido artigo, seriam duas as
ressalvas quanto à substituição de sócios, quais sejam, o consentimento dos demais
proprietários do capital e modificação do contrato social quanto ao ato.
A primeira medida diria respeito ao direito de preferência sobre as cotas em
disposição pelos atuais membros. O exercício de tal privilégio pelos atuais titulares
do quadro social deve seguir, pois, a ordem obrigacional de que, ou se oferece a
celebração do negócio jurídico aos sócios com tal direito, ou haverá nulidade do
feito. A segunda seria a já mencionada necessidade de se averbar junto ao órgão
registral as mudanças realizadas no quadro de sócios.
Nada impede, contudo, que o referido tipo societário, na lógica do artigo 986,
faça aderência a outras situações excepcionais que dizem respeito à saída de
sócios da organização. A resolução a apenas um dos sócios não finalizaria as
atividades sociais do ente empresário em formação.
Para isso, algumas também seriam as variáveis. O direito de retirada para um
dos proprietários da hierarquia em formação é exposto no artigo 1.029, bastando-se
notificar aos demais sócios sessenta dias antes, quando a sociedade for de prazo
indeterminado, ou com a prova de justa causa, quando o ente possuir tempo de
existência determinado. Em ambas as hipóteses, seria aplicável o parágrafo único
do dispositivo em voga para possibilitar a opção das partes remanescentes pela
dissolução no prazo de trinta dias subseqüentes ao ato.
Nessa mesma ótica, outra discussão estaria na regra legal em caso de
falecimento de um dos sócios, em que os herdeiros poderiam ficar, segundo o artigo
1.028 da Lei 10.406/2002, com o valor apurado ao qual faria jus o morto, de início
impedidos, pois, de adentrarem na sociedade em virtude de virtual respeito à affectio
societatis, liame entre os sócios remanescentes, se existentes150. Tal solução teria
150 Interessante caso real foi tema de parecer emitido por Luiz Gastão Paes de Barros Leães (LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Pareceres. v. I. São Paulo: Singular, 2004, p. 1.302) no qual o doutrinador se posta contrário à realização de uma série de alterações contratuais viciadas praticadas pelo o único sócio remanescente, proprietário de apenas 0,1 % do capital ao tentar tomar o controle da sociedade, com o cerceamento do ingresso
77
aplicação semelhante se, por acaso, a morte de todos os sócios ocorresse em datas
próximas.
A liquidação somente não ocorreria, conforme os incisos do artigo 1.028, se
houvesse disposições contratuais diferentes capazes de determinar a dissolução, ou
a continuidade da sociedade somente com os herdeiros. Assim, haveria
prosseguimento da atividade social por intermédio dos sócios subsistentes, ou, por
meio de pacto, com a participação de todas as partes nos rumos do negócio.
Circunstância ainda a ser salientada seria a da exclusão do sócio segundo o
artigo 1.030 quando, por iniciativa dos demais, na observação de falta grave quanto
às obrigações, ou por incapacidade superveniente, o integrante da organização
poderia ser expulso. O mesmo ocorreria, segundo o parágrafo único de tal
dispositivo legal, com o sócio falido, bem como o que teve suas cotas liquidadas,
conforme o procedimento do parágrafo único do artigo 1.026.
Em tempo, permite-se não concordar com tal opção feita pelo legislador. Punir
o sócio por sua falência individual ou por sua capacidade superveniente não reflete
os termos da boa razão, quando isto não for empecilho para a continuidade da
organização, especialmente, quando em tais casos o falido e o incapaz não exerçam
funções de administração da sociedade.
A liquidação igualmente é observada em decorrência da dissolução, prevista
no artigo 1.034 do Código Civil. Em sua percepção como ato, esta última possui
significado de fim da relação societária devido à total ausência do interesse –
affectio societatis – quanto à manutenção do estado de sócio por todos aqueles que
exercem direito de propriedade sobre a sociedade. Como procedimento, é o início
do processo que levará à sua extinção, por intermédio da liquidação patrimonial.
Eis a importância do estudo da fase de liquidação. Com a transformação do
patrimônio social em dinheiro, ela, além de propiciar a partilha entre os sócios, vem
a servir de fonte de pagamento de suas dívidas. Como recorda Haroldo Malheiros
Duclerc Verçosa151, seria, inclusive, a solução para os credores particulares dos
dos demais irmãos. O sócio alegava a presunção de querer valer o direito dos herdeiros apenas aos valores decorrentes da apuração de haveres deixados pelo de cujus, sob o pleito da ineficácia de cláusula contratual favorável à continuação do negócio pelos herdeiros e do testamento do sócio falecido, que possuía 99.9% das cotas, haver sido direcionado ao tratamento igualitário entre os filhos. 151 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades, as sociedades em espécie no Código Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 300.
78
referidos membros, na aplicação do artigo 1.026, pois, insuficientes os bens sociais,
os credores poderiam fazer recair a execução “sobre o que ao devedor couber nos
lucros da sociedade ou a parte que lhe tocar em liquidação parcial do ‘contrato
social’, apurando-se os haveres correspondentes”. Sem coincidências, a afirmação
de Verçosa aparenta ratificar o ataque feito ao artigo 988 no capítulo 5 retro,
especificamente, no enfoque para uma amostragem da ineficácia em se abordar os
bens sociais sob a égide de um condomínio ou de uma composse dos sócios.
Marcelo Marco Bertoldi152 afirma que a sociedade ainda subsistiria nessa
fase, mas não poderia praticar mais atos destinados à consecução de seu objeto.
Afinal, sem a presença daquilo que corresponde ao liame entre os sócios nada mais
existiria em termos sociais.
Os motivos que levam à dissolução societária são vários e podem ser
aplicados às sociedades em formação com base no artigo 1.033 do Código Civil.
Para tais tipos societários, fatores como o consenso unânime dos sócios em
qualquer caso, ou a decisão por maioria absoluta na sociedade de prazo
indeterminado, seriam destacáveis em relação à imposição para o término da
sociedade, isto porque aplicáveis a possíveis casos concretos.
Há relevo também nas hipóteses em que as sociedades em fase de criação
tenham por ideal um prazo determinado para suas existências. No caso, se ocorrer o
vencimento do referido lapso temporal, tal como preceitua o inciso I do artigo 1.033,
sua transmutação em uma organização por prazo indeterminado, será fato que
justificará a dissolução. De igual forma, decorre do inciso V do mesmo dispositivo
legal o raciocínio de que se a autorização para funcionamento não for fornecida pela
autoridade competente, não se justificará a continuidade da sociedade em comum.
Neste ponto, grife-se que se houver continuidade da organização de maneira
irregular, o instituto possuirá significado no estudo terminológico das hierarquias
meramente fáticas.
Há, contudo, o debate estendido à possibilidade de apenas um sócio
perpetuar sozinho a sociedade. O inciso IV do artigo 1.033 determina para a
sociedade regular que ela deveria ter pluralidade de sócios em até 180 (cento e
oitenta) dias do momento em que o subsistente adquire tal condição. Inobstante a
152 BERTOLDI, Marcelo Marco; RIBEIRO; PEREIRA, Marcia Carla. Curso avançado de direito comercial. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 151.
79
isso, há quem defenda, como o faz Calixto Salomão Filho153, que a sociedade é vista
como uma organização e não como uma pluralidade de sócios, motivo pelo qual
seria incompreensível a manutenção dessa obrigatoriedade descrita na norma do
dispositivo acima citado.
A toda sorte, é bom lembrar, no interstício liquidatário, o qual poderia
acontecer judicial ou extrajudicialmente154, o liquidante seria nomeado para
arrecadar bens e livros da sociedade, apurando-se o ativo e o passivo social155. Com
o respectivo levantamento, o liquidante deveria realizar o pagamento das dívidas
com o patrimônio líquido apurado, partilhando-se o remanescente. Em seguida, teria
por obrigação convocar assembléia dos sócios para uma prestação de contas sobre
os atos realizados. Precisamente, segundo o artigo 1.031 do Código Civil, que cuida
ainda da resolução da sociedade em relação a um dos sócios, tomar-se-ia o valor da
cota com a consideração do montante efetivamente realizado para a verificar a
divisão dos bens.
Ponto controverso em todas variáveis acima mencionadas, a conotação da
sociedade em comum como comunhão não permitiria logo que fosse efetuada a
divisão daquilo que já pertenceria aos sócios, o que foi rechaçado no capítulo
anterior. Seja em hipótese de cessão, resolução em parte, ou dissolução, os sócios
seriam representantes em comum dos interesses sociais e não titulares dos
respectivos direitos, o que permitiria a liquidação das respectivas cotas em questão.
Em tempo, aliás, a hierarquia em formação não só poderia como deveria ser
proprietária ou possuidora de bens na medida em que aos criadores da estrutura
societária o próprio contrato impõe integralização do capital prometido por
intermédio da subscrição realizada, ou seja, pela transferência de direitos de
propriedade.
6.2 Comentários sobre o aspecto temporal para a responsabilização dos sócios após
a saída da sociedade
153 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 48-49. 154 Cf. CARNEIRO, Rubia. Regime jurídico da sociedade simples. In: RODRIGUES, Frederico Viana. O direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 184. 155 Sobre a liquidação judicial, veja-se o disposto nos artigos 655 a 674 do código de processo de 1939, mantidos em vigor pelo inciso VII do artigo 1.218 da lei processual de 1973.
80
Toda esta exposição de elementos quanto à saída de sócios serve para
apresentar a problemática da ausência de menção a respeito do limite temporal de
responsabilidade após a sua saída da sociedade em comum. Afinal, se essas
hierarquias estão na espera da aceitação do pedido de registro de seus atos
constitutivos, torna-se necessário saber o grau de importância de tal solicitação
como paradigma temporal para a contagem do período de prescrição das
obrigações dos sócios em tais situações.
Em hipótese de cessão de cotas ou de resolução parcial quanto a uma parte
dos sócios, em análise, ou o empreendedor simplesmente estaria isento de qualquer
obrigação depois de sua saída dos quadros de co-proprietários, ou o antigo
investidor seria eternamente um devedor por conta da fase de formação da
sociedade. Condenar o sócio a pagar por uma dívida que possa vir a aparecer
décadas após a sua cessão de cotas também não seria razoável.
Como José Jairo Gomes refuta156, um devedor não pode esperar
indefinidamente que o credor adote as medidas cabíveis para recobrar crédito que
lhe pertence. Os princípios da Carta Política de 1988 referentes à liberdade e
mesmo à dignidade humana seriam violados caso o devedor ficasse sujeito ao
credor sine die, ou seja, à mercê de ver cobrada a dívida para todo o sempre e a
qualquer momento. Seria impensável, por exemplo, guardar eternamente os
documentos que provariam a realização de negócios celebrados entre a pessoa
devedora e os possíveis credores.
Entende-se, logo, que há prazo. Existe vivacidade no pedido de registro junto
ao órgão competente como ato que impõe caracteres de assento público da
organização empresarial. Uma vez realizado, a sociedade em formação passa a ter
que comunicar ao Estado todas as alterações contratuais feitas, dentre elas, as
modificações dos quadros sociais. Afinal, como determina o artigo 53 da Lei
8.934/1994, as alterações contratuais ou estatutárias poderão ser efetivadas por
escritura pública ou, grife-se, particular, independentemente da forma adotada no
ato constitutivo.
Ademais, o artigo 1.032 do Código Civil, sobre a análoga situação, é taxativo
acerca da retirada, ou da exclusão do sócio não o eximir de responsabilidade de
obrigações sociais até mesmo posteriores por até dois anos após a sua saída da
156 GOMES, José Jairo. Direito civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p. 553-554.
81
sociedade, enquanto não fizer um requerimento ao órgão competente para a
respectiva averbação do contrato. Assim, ressalta-se, resta clara a importância do
pedido de arquivamento das alterações contratuais como termo para o início do
período prescricional, inclusive no que se refere à cessão de cotas. É o que foi
observado por Sérgio Campinho157 ao destacar que, embora não existente a
demanda pelo registro da cessão, o cedente teria o interesse em realizá-lo devido à
fluência do prazo ter como marco a data da averbação competente.
Crê-se que esse tempo pode ser obtido pela análise que segue a linha do
parágrafo único do artigo 1.003 do diploma material civil, ou seja, é de até dois anos
a contar da data da averbação da mudança junto ao órgão competente onde foi
efetuado o pedido de registro. Apenas para frisar, a Lei 10.406/2002 também
menciona o prazo de 02 (dois) anos a partir de tal ocorrência, no que tange à
resolução da sociedade em relação um sócio, conforme preceitua o mesmo artigo
1.032.
Por lacuna legal, no entanto, entende-se que para a cessão no caso da
sociedade em comum, situada no interstício entre o pedido de registro e a
decorrente aceitação pelo órgão competente, somente a partir de uma nova
solicitação com vista a averbar as retificações contratuais seria possível contar o dito
prazo prescricional após a saída de um dos membros proprietários.
Já em outro vazio, no que se refere à dissolução-procedimento da sociedade,
igualmente melhor compreensão ocorre quando se fixa a data da solicitação da
averbação da intentada da dissolução-ato como termo inicial para o horizonte da
prescrição. Para este ponto, ao contrário da cessão de cotas, na ausência
observada de lapso prescricional específico, aquiesça-se por interpretação, há de
prevalecer a data relativa à prescrição genérica de direitos pessoais, prevista em
dez anos pelo artigo 205 do Código Civil158, ou outro inferior, conforme o tipo de
dívida, a ser previsto pela Lei.
157 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 100. 158 Eis a redação do artigo: “A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.
82
7 CONCLUSÕES
Pugnou-se com a presente dissertação a explicação da existência das
sociedades em comum dentro do universo jurídico pátrio a partir do Código Civil de
2002, mormente por meio de uma aplicada reflexão sobre as variáveis que o
assunto incrivelmente fornece. O tema, que parecia estar relegado a uma mera
substituição de conceitos a respeito de modelos societários anteriores, pode vir a
tomar contornos próprios.
O trabalho, contudo, abordou em seu início a atual situação da maneira como
o Estado se porta diante da atividade empresarial, especialmente quanto ao
oferecimento de mecanismos de coação dos sujeitos investidores para que eles
regularizassem suas atuações.
Com simplória verificação dos sentidos da Teoria da Empresa, torna-se
evidente que ser empresário não está estritamente relacionado a estar regularizado,
o que é destacado do direcionamento escolhido pelo Código Civil brasileiro em seus
artigos 966 e 967, tanto que o exercício da empresa se posta, acima de tudo, como
prova de existência do próprio ente. Dizer regular, afinal, significa colocar a
organização como alguém subordinado a uma ordem voltada para o
desenvolvimento econômico, limitando-se, porém, o seu diâmetro de práticas às
afirmações feitas à autoridade estatal sobre os objetivos para os quais foi criado
quando do registro.
A sociedade em comum, nesse cotejo, poderia ser receptáculo de atividade
econômica de cunho empresarial tais quais as formas previstas como personificadas
pela legislação. O que se vê, no entanto, é que, devido às percepções de sua
suposta irregularidade, a primeira menção a vir à tona é a de que as hierarquias em
comum seriam sociedades que, mesmo empresárias, não forneceriam aos sócios a
proteção que somente as entidades regulares poderiam fornecer, principalmente no
que tocaria à limitação de responsabilidade decorrente da personalidade jurídica.
Dialeticamente, a crítica que se faz resulta na assertiva de existência de
registro por parte da organização social que, por via de regra, confere-lhe a
personificação, mas, por vezes, não lhe aufere a limitação de responsabilidade aos
sócios, como ocorre nas sociedades simples, em nome coletivo e na comandita
83
simples. Assim, na escolha entre uma organização informal e os tipos societários
acima exemplificados, tendo em vista o nível de ausência de proteção patrimonial
para os investidores, optar pelo caminho irregular poderia vir a se tornar inevitável.
Interpreta-se que, por possibilitar compreender uma hierarquia informal como
empresária, como determina o Código Civil em seu artigo 966, torna-se a questão da
irregularidade assunto destoante dentro do contexto em que se insere na referida
legislação.
De todo modo, é importante que se diga que a sociedade em comum,
segundo entendimento firmado neste trabalho, não pode ser confundida com as
corporações de fato ou irregular, ou com aquelas tornadas irregulares após a
existência da personalidade. Não é sequer um mero contrato informal direcionado ao
exercício da empresa. Pelo que se observou, é um instrumento formalizado e válido
para a formação da sociedade direcionada à atuação em mercados. Em conceito,
segundo se extrai do artigo 986 do Código Civil, a sociedade em comum é aquela
que se localiza na penumbra existente entre a confecção do pedido de arquivamento
dos atos constitutivos e a aceitação do registro. Ainda que de efeitos semelhantes,
ela é ontologicamente diferente das sociedades que possuem contrato escrito não
levado a órgão registral competente.
O principal motivo de se valorar o pedido de arquivamento dos atos
constitutivos está justamente no fato de que se o Estado faz tanta questão de que os
agentes econômicos se apresentem como sujeitos em tal condição, o mero solicitar
do procedimento registral já configuraria obediência ontológica à legislação. Após o
pedido de registro, toda a estrutura societária estaria exposta ao Estado para fins de
tributação e fiscalização, entre outras prerrogativas estatais, ainda que em fase
preparatória para o exercício da empresa. Toma-se como supedâneo deste
argumento a constatação de que o registro é ato puramente declaratório, e não
constitutivo da existência da sociedade, conforme se recorta do artigo 36 da Lei
8.934/1994.
Em sentido contrário, podem vir a pesar explicações sobre a exígua
existência da espécie societária em destaque, eis que os prazos entre o pedido e o
arquivamento podem ser pequenos, mas há que se valorizar, repita-se, que antes
um raciocínio de uma sociedade inócua, por ser provisória e sem efeitos práticos, do
que uma que seja contrária à boa razão sobre o assunto.
84
Forneça-se relevo à retirada das sociedades por ações do conceito do objeto
de estudo. Toda a abordagem sobre as sociedades em comum não pode ser
aplicada às companhias por elas possuírem sistemática própria contida na Lei
6.404/1976. As passagens relativas à sociedade anônima em formação, contudo,
expelem subsídios para uma melhor interpretação das sociedades em comum
dentro do diploma substantivo civil, tanto que, por conclusão, nada impediria sua
aplicação à fase embrionária das sociedades.
A mais importante delas está no artigo 99 da Lei das Sociedades por Ações,
no qual se impõe que as companhias não respondem pelos atos ou operações
praticados pelos primeiros administradores, antes de cumpridas as formalidades de
constituição, ou seja, conforme a norma, a sociedade não existe sem o registro,
tanto que seus administradores e sócios são diretamente responsáveis pelas dívidas
do período. Percebe-se que se o intuito do Código Civil era jogar as sociedades em
comum em ambiente de irregularidade, bastaria impor a elas os mesmos
empecilhos, o que não ocorreu.
Imagina-se que os motivos que levaram à não-aplicação das normas contidas
na Lei 6.404/1976 foram derivados do problema diagnosticado no tópico 3.3. Se
antes de arquivados os atos constitutivos da sociedade anônima, ela não pode ser
assim considerada, natural que seja interpretado que a companhia não existe como
pessoa jurídica regular, mas o faz como sociedade, ainda que contratual. O artigo 99
choca-se com a vertente de existência societária informal evocada para defesa de
direitos de terceiros. Em tempo, nem por isso se afirma que a companhia em estado
pré-registral seria uma sociedade em comum, defendendo-a apenas como uma
mera organização de fato ou irregular.
Com efeito, a própria leitura dos artigos 986 a 990 do Código Civil permite a
compreensão de que os atos praticados pela sociedade em comum não são
expressamente vedados, ainda que a responsabilidade dos administradores seja
solidária e a dos demais sócios seja subsidiária. Ao contrário, em defesa do
interesse de terceiros que contratam com a sociedade impõe-se a ela a concepção
de ser um sujeito de direito por estar apta a ser cobrada, inclusive judicialmente,
pelas dívidas contraídas.
Crê-se que esta capacidade patrimonial é decorrente de um estado de ente
personificado e que isso deriva do mesmo argumento anteriormente utilizado. A
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sociedade em comum é, ao mesmo tempo, um tipo e uma qualidade de estrutura
societária correspondente ao período que antecede o registro após solicitação ao
órgão competente. É pessoa jurídica passível de mera declaração de existência, na
hipótese o arquivamento dos atos constitutivos, mas que sofre por conta de uma
infeliz localização no Código Civil.
Ressalta-se que merecem observação as sociedades em formação, gênero
do que vem a ser a sociedade de fato ou irregular e, nesta lógica, as sociedades em
comum podem vir a sofrer falência. O raciocínio não advém da existência, ou não,
da regularidade, mas da condição de empresário, ou não, por parte do ente
societário. Com o exercício da empresa, permite-se a aplicação da Lei 11.101/2005
para, com base no artigo 1º, possibilitar-lhe a falência.
Especificamente quanto às hierarquias à espera do registro após informação
junto ao órgão registral, vale dizer que nem só a falência poderia ser aplicável, como
também a própria recuperação judicial. O que impede na prática tal ocorrência é
que, ainda considerando o pedido de arquivamento de atos constitutivos como algo
que transmita regularidade perante o Estado, dificilmente seria respeitado o requisito
imposto pelo artigo 48 da Lei 11.101/2005, que prevê um prazo mínimo de dois
anos, como ente regular, para obtenção de interesse processual em tal ação.
Contrário à lei, crê-se que tal pré-requisito não possui razão de ser, levando-se em
consideração que o sentido da recuperação judicial é recuperar a empresa e não a
sociedade empresária, formada ou em formação.
Outro ponto obscuro do Código Civil está sobre o mesmo artigo 986 quando
se afirma que as normas das sociedades simples seriam aplicáveis subsidiariamente
à sociedade em formação sublinhada. Definitivamente, com exceção das
companhias, por expressa vedação legal, toda sociedade pode passar pelo estado
de ente em comum, após solicitar o registro, sem afetar seu caráter empresarial.
Resta claro, então, tal qual se localiza na leitura dos artigos 1.040, 1.046 e 1.053,
respectivamente, das sociedades em nome coletivo, em comandita simples e da
limitada, em que também há a remessa supletiva para normas relativas às
sociedades simples, que a opção realizada pelo artigo 986 do Código Civil não
interfere na possível natureza mercantil da organização criada.
Com tal remessa supletiva, na consideração da autonomia patrimonial do ente
social em relação aos sócios, estes personagens restam escondidos por detrás do
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filtro do patrimônio especial consubstanciado, respondendo apenas de forma
subsidiaria, e não solidariamente, pelas dívidas do período pré-registral, como está
preceituado no confuso artigo 990. Sabe-se, porém, que o mesmo não ocorre com
os administradores que negociam em nome da sociedade, graças ao exposto no
referido dispositivo legal.
Outro mistério está disposto no artigo 987. Não há razão para que os sócios
somente por escrito comprovem a existência da sociedade, levando-se em conta
que os terceiros que negociam com a sociedade poderiam comprová-la de qualquer
modo, beneficiados pela aceitação de validade dos atos praticados pela sociedade
em comum, retrato de uma capacidade ligada à personificação. Quando se trata de
atuação em mercados, não se pode esquecer que nem mesmo estes últimos
escapam da realidade sobre o assunto. Afinal, não é crível que em tempos de ampla
gama de informações aqueles que contratam com o ente em formação não saibam
de sua condição pré-registral.
Talvez até não tenham ciência de situações como a do conhecimento sobre
determinadas cláusulas contratuais, como o pacto limitativo de poderes dos
dirigentes, mas, certamente, mediante a imposição de amostragem de documentos,
poderiam esclarecer a verdadeira face do ente com o qual contratam.
O mais sensato, se fosse o caso, seria punir tanto o sócio como o terceiro de
maneira semelhante, obrigando-os a apresentar provas escritas da negociação. Isto
porque, entende-se, o próprio paradigma da conduta do terceiro deveria ser
modificado para estabelecer uma presunção de conhecimento da situação da
sociedade contratada.
Outra hipótese seria partir para uma completa abertura sobre o tema,
reconhecendo-lhe, como amplamente feito neste trabalho, o caráter de sociedade
capaz de praticar atos como qualquer outra, igualando-a aos outros modelos
societários que se manifestam após aceitação do registro pelo órgão competente, ou
seja, após passarem pela fase de sociedades em comum.
Tal participação dos sócios não se limita a um diagnóstico junto a terceiros.
Levando-se em conta possíveis conflitos entre os investidores e a provável demora
quanto à aceitação do arquivamento do contrato social, tornam-se prováveis os
rompimentos durante a fase societária em comum.
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Talvez aqui a diferenciação entre as espécies de sociedade em formação
esteja mais evidente. Se o contrato já foi apresentado à Junta Comercial, resta
obrigatório que qualquer alteração ou extinção deva ser realizada tal como se o
registro já tivesse sido aceito. Isso permite concluir pela imposição análoga dos
instrumentos de resolução em relação a um ou alguns dos sócios e de dissolução da
sociedade, até chegar à liquidação.
O maior desafio mesmo seria imaginar até quando o sócio seria responsável
pelas dívidas sociais após a sua saída da sociedade. Com a visão de aplicação
subsidiária das normas relativas às sociedades simples, para uma virtual cessão de
cotas, a responsabilidade do cedente seria até dois anos após a sua desvinculação,
aplicando-se o artigo 1.032. Já por absoluta lacuna legal, a responsabilização dos
sócios após a dissolução da sociedade, entende-se que seria cabível a aplicação
dos prazos prescricionais das obrigações descritos a partir do artigo 205 da Lei
10.406/2002.
Para terminar, há que se lamentar a ausência de uma redação legal
suficientemente apta a aparar as arestas que o tema possui. Do conceito de
sociedade em comum até a narração dos elementos derivados de sua extinção,
grandes são os espaços vazios passíveis de melhor redação. Cumpriu-se, no
entanto, o primeiro andar de estudo teórico de sua manifestação no universo jurídico
brasileiro mediante a apresentação de suas variáveis.
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