A Sociedade de Consumo

27
Recensão crítica: Baudrillard, Jean (2001), A sociedade de consumo: A lógica social do consumo, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Centro de documentação, polic. Autor: Sara Margarida Candeias Gracioso 1

Transcript of A Sociedade de Consumo

Page 1: A Sociedade de Consumo

Recensão crítica: Baudrillard, Jean (2001), A sociedade

de consumo: A lógica social do consumo, Faculdade

de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa,

Centro de documentação, polic.

Autor: Sara Margarida Candeias Gracioso

Lisboa, 20 de Janeiro de 2011

1

Page 2: A Sociedade de Consumo

Índice1 Introdução..................................................................................................................32 A lógica social do consumo.......................................................................................5

2.1 O mito da igualdade e as novas formas de reconfiguração social: A Educação, a Cultura e as novas formas de consumo no centro do paradoxo..................................52.2 A penúria e a abundância como a lógica estruturante do sistema ou a lógica da diferenciação..................................................................................................................82.3 A procura incessante da satisfação, ou consumo como valor social: a marca de classe 92.4 O consumo como força produtiva.....................................................................122.5 O Metaconsumo e os novos modelos de consumo: produção industrial da diferenciação................................................................................................................13

3. Reflexão crítica............................................................................................................153 Bibliografia..............................................................................................................22

“Por consumo pode entender-se …qualquer actividadeenvolvendo a selecção, compra, uso, manutenção,

reparação e destruição de qualquer produto ou serviço”

(Campbell, 1995:104)

“ Os destinos sociais de cada indivíduo reflectem sempre,em algum grau,

a sua origem de classe.”

(Machado, 1994:131)

“ …A globalização – nas suas diversas formas – não vem apenas do exterior. Sempre que ligo um computador, envio um e-mail, consulto informação na Internet, ligo a televisão ou o rádio, estou a contribuir de forma activa para a globalização ao mesmo tempo que faço parte dela…”

(Giddens, 2007:25)

2

Page 3: A Sociedade de Consumo

1 Introdução

Parece ser no campo da partilha e produção de informação que reside

grande parte do fenómeno de intensificação das relações sociais ou de

interdependência a nível mundial a que vulgarmente se determinou chamar

globalização (Giddens, 2001:48-77 e Giddens, 2005:45). A globalização como

dimensão da modificação da forma como as pessoas e as instituições se

relacionam parece intimamente relacionada com o desenvolvimento dos

sistemas de comunicação e de formas de circulação de informação (Giddens,

2001:53). De facto, a utilização da internet e dos diversos meios de

comunicação (entre os quais se destacam os meios de comunicação social),

permitem que a todo o momento pessoas e instituições de todo o globo

permaneçam ligadas e em permanente interacção, verificando-se verdadeiros

saltos qualitativos (e não meramente quantitativos) na informação

disponibilizada, bem como o surgimento de uma hiper-realidade (Baudrillard

citado por Giddens, 2001:466), que determina a forma como as pessoas se

posicionam e actuam, em todas as esferas de relacionamento social, e por

consequência, na ostentação do consumo como atributo de classe.

A globalização parece permitir a exposição do privado a uma dimensão

global. Não é de estranhar, portanto que o fenómeno do consumo seja

transversal a sociedades distantes geigrafivcamente, mas inequivocamente

ligadas por teias comunicacionais determinantes para a exploração capitalista

do consumo (consumo como força produtiva).

Com os abalos que têm vindo a sofrer as instituições tradicionais, o género,

a classe social, a etnicidade ou a religião deixam de ser determinantes nas

escolhas e percursos de vida dos indivíduos, emergindo assim novos padrões

de identidade, em contradição com quadros tradicionais de referência, nos

quais o consumo assume um papel determinante como referencial cultural e

padrão social de referência.

O risco, ou melhor a percepção do risco é hoje outro dos aspectos a

considerar nas sociedades globais e que parecem afectar de forma

determinante as nossas vidas, não só porque continuamos expostos aos riscos

do passado, mas porque a estes se somaram riscos que decorrem do impacto

da nossa acção sobre o mundo natural (Giddens, 2001:65-68) – riscos

3

Page 4: A Sociedade de Consumo

manufacturados). Se a noção de risco parece justificação para que se actue

sobre as suas causas (Gonçalves e outros, 2004:24-47) (com recurso por

exemplo à ciência, ou à modificação dos padrões de consumo – carros

eléctricos, energias renováveis, produtos biológicos, roupas recicláveis…)

também parece ser verdade que as próprias formas de actuação sob os

factores de risco podem determinar a emergência de novos riscos e portanto

de novos consumos, na medida em que a utilização das tecnologias

disponíveis podem determinar a percepção de novas ameaças reais ou

socialmente construídas.

Outra dimensão da globalização prende-se com a chamada economia

electrónica e com as empresas transnacionais. A velocidade e a facilidade com

que se movimentam actualmente grandes somas de dinheiro pode

efectivamente destabilizar as economias locais e um colapso financeiro num

ponto qualquer do globo pode ter consequências a nível mundial. Não é

possível mais afirmar que uma crise económica em qualquer ponto distante,

não tem repercussões na forma como a economia de cada país evolui. As

empresas transnacionais (motores de globalização económica) podem actuar

em qualquer ponto do globo disseminando tecnologias e informação (Giddens,

2001:57), bem como modelos de consumo. Permitindo que novas formas de

actuar se instalem, competindo à escala global e disseminando a lógica de

mercado. Estas mega empresas imprimem novos dinamismos ao capitalismo,

aos quais as esferas se adaptam.

O livro de Jean Braudillard, intitulado A sociedade de consumo, expressa

um interesse peculiar pelas problemáticas do consumo e da centralidade que

este ocupa em todas as dimensões do social, bem assente no cerne da

reconfiguração de classes e do salvamento através do consumo.

Perfilando a convicção de que “ Todo o discurso sobre as necessidades

assenta numa antropologia ingénua: a da propensão natural para a

felicidade…” o autor defende ao longo do livro em análise, a importância do

consumo como instrumento de uma sociedade viciante, alienante e dependente

em si mesmo dos estímulo proporcionados pelo consumo, que se remova em

expirais que suportam o próprio sistema.

Relativamente ao capítulo: a lógica social do consumo, o autor

estabelece tópicos de análise, que servem de suporte a um discurso onde, ao

4

Page 5: A Sociedade de Consumo

contrário da apologia do consumo, se escrutinam, sem considerações de

natureza moral, as teias das sociedades baseadas em estruturas de consumo

cada vez mais intricadas e auto sustentadas, onde os ideais de liberdade e de

democratização do acesso aos bens produziram, em ultima análise paradoxos

sociais relevantes, onde o individuo se desmaterializa e dilui, num corpo

viciante de apelos e impulsos, que têm vindo a determinar, quer a organização

social, quer a forma como se organiza a produção e o consumo.

Esta recensão critica procura compreender as motivações do autor e

imprimir uma nota de reflexão pessoal sobre as temáticas abordadas, sem

deixar de reconhecer o nosso ainda insípido conhecimento sobre a sociedade

de consumo e as suas múltiplas facetas de análise.

2 A lógica social do consumo

2.1 O mito da igualdade e as novas formas de reconfiguração

social: A Educação, a Cultura e as novas formas de

consumo no centro do paradoxo

Por detrás das mais ingénuas visões o autor aponta o mito da identificação

da igualdade com a felicidade, felicidade essa que deve ser mensurável, por

objectos e signos capazes de conferirem a medida dessa felicidade.

Fundada sobre a Revolução Industrial, e sobre as revoluções do sec. XIX,

acentuam-se nos pós-guerra do sec. XX, as noções de que a felicidade

assenta na posse de bens materiais, alcançáveis através da igualitarização

social dos indivíduos, só possível pela proliferação da abundância imputável às

sociedades não discriminatória e democráticas, fundada paradoxalmente em

princípios de promoção do individualismo enquanto bem social, capaz do

milagre da igualdade perante os meios de produção e da forma como a riqueza

é distribuída.

Contudo, tal mito, em vez da tão proclamada igualdade, parece ter

produzido e continuar a produzir formas de desigualdade mais subtis e

nefastas, pois à medida que se instala, promove em si a diferenciação, não

tanto pela posse de objectos capazes de satisfazer necessidades, mas pela

forma como esses objectos se transformam em meios de diferenciação (pela

5

Page 6: A Sociedade de Consumo

forma como são consumidos, pelos signos distintivos que encerram, pelas

diferenças que promovem).

Baudrillard, (2001:49) refere a visão idealista do mito da igualdade centrada

nos conceitos de “crescimento”, “abundância” e “democracia”, que se

relacionam e determinam reciprocamente. Contudo, o crescimento da

produção, paradoxalmente, em vez de conduzir à erradicação da pobreza e da

exclusão, parece ter conduzido ao enraizamento de formas radicais de

exclusão, que transcendem a fronteiras do individual para se transformarem em

fenómenos de dimensão global. Assim, ao contrário da abundância anunciada

parece assistir-se a um fenómeno de “excedente estrutural” em conjugação

com uma “penúria estrutural”, bases de legitimação social, já que uma não

parece existir sem a outra. Apontando o equilíbrio, como o fantasma ideal dos

economistas, Baudrillard (o.c.:51), defende que o crescimento económico ao

contrário de extinguir a diferenciação e a discriminação social, potenciam essa

dicotomia, racionalizando-a e generalizando-a, na medida em que o

crescimento não afasta nem aproxima as sociedades actuais da “abundância”,

por se encontrar delas separado pela estrutura social, sendo por isso o

crescimento, função da desigualdade.

Contudo, na opinião do autor, esta desigualdade parece radicar agora

noutros domínios do social, não propriamente fundados no dinheiro ou na

posse de bens (os quais todos parecem condenados a possuir, numa

sociedade em crescimento económico acelerado – hoje as classes sociais na

base da hierarquia possuem cada vez maior quantidade de bens), mas na

posse de cultura e de conhecimentos, capazes de reconfigurar as estruturas do

poder, agora posse de especialistas, técnicos e intelectuais, que embora

alavancados pela posse de meios materiais, garantem o lugar de classe

através de meios intelectuais, capazes de os distinguir. Sendo que “ …aquele

que dá conhecimento não é privado do mesmo …” (Atalli, 2007:52), a cultura e

a educação podem, agora ser encaradas como novas formas de riqueza,

acumuláveis, renováveis e não esgotáveis, apogeu do investimento individual.

De facto, a constatação de que a pobreza, o desemprego, a

precariedade do trabalho, o exercício da cidadania e o acesso a melhores

condições de vida (com reflexo nos padrões de consumo e no modo de vida)

parecem estruturalmente relacionados com os níveis de escolarização,

6

Page 7: A Sociedade de Consumo

colocam ênfase na necessidade de revisitar o papel das instituições educativas

nos processos de selecção social (Gomes, 2003:63-92;Costa e outros, 2000:9-

43). Podemos então dizer que a cultura parece assumir-se como a nova fonte

de poder, ao permitir a diferenciação das ocupações profissionais e das formas

de consumo, não importando o que se consome, mas em última análise como

se consome. Não subestimando o poder conferido pela posse da riqueza

material, o autor defende ainda que é ultima análise esse atributo das classe

sociais de topo, que lhes permite a transfiguração, na senda da distinção.

Numa sociedade em que as classes na base da pirâmide estão ocupadas em

imitar os padrões de consumo das classes dominantes, estas têm a

capacidade e a liberdade que o dinheiro confere, para se moverem para novos

padrões de consumo, mais discretos, mas mais subtis e diferenciadores.

Contudo, e porque visitados estes lugares pela hierarquia social, tendem

também eles a transformar-se em lugares comuns, as formas distintivas de

consumo assumem formas cada vez mais delicadas e diferenciadoras, assaz

fetichistas (Baudrillard, 2001:58), na medida em que os bens e objectos não

são “consumidos”, no sentido estrito do termo, mas valorizados enquanto

objecto de consumo (ideias, ocupações, hobbies, cultura, educação…) e

exibidos no espectáculo social.

A exclusão social, resultante das recentes reconfigurações sociais,

produto de políticas neoliberais e/ou modificações no sistema económico, de

amplitude global, parece estar claramente associada à exclusão

educativa/cultural, (Alves e Canário, 2004:981 – 1010; Costa e outros, 2000:9-

43), visão aliás partilhada pelo autor (Baudrillard, 2001:56). Num contexto

global, o fenómeno da exclusão também se globaliza, torna-se transnacional e

é transversal a grupos profissionais, grupos etários, regiões e até países

inteiros.

Sendo que os fenómenos de natureza social gerenciadoras de exclusão,

e essencialmente radicados no mundo do trabalho, se têm vindo a acentuar

nas sociedades ricas e industrializadas, nomeadamente na U.E., novos

paradoxos se colocam aos sistemas sociais (incrementos da produção a par de

desemprego estrutural ou emprego precário, dualidade social – extrema

riqueza e extrema pobreza, incremento da procura de diplomas académicos a

par da sua desvalorização - características actuais dos países ricos e

7

Page 8: A Sociedade de Consumo

industrializados, entre outros), que se movem ainda na perplexidade de não

serem capazes de responderem com a tão desejada igualdade para todos, ao

mesmo tempo que se eleva a riqueza global.

Assim parece que as desigualdades, em vez de terem sido erradicadas,

se acentuam em novos campos do social, através de novas fontes de riqueza,

como a cultura ou o poder. De facto à medida que paradoxalmente os produtos

de consumo corrente se tornam acessíveis à maioria das pessoas (quer porque

são produzidos em profusão, quer porque as diferenças salariais se atenuam),

e se assiste à democratização da posse, estes perdem a sua dimensão

distintiva, acentuando-se a busca por novas formas de individualidade. Assiste-

se pois à procura acentuada de produtos diferenciadores, quer se trate da

escolha da habitação, da forma de deslocação, do acesso à saúde, à

educação, ao saber, à cultura, ao lazer, transformando-se também e

progressivamente todos os bens concretos e naturais em fontes de lucro

económico e de privilégio social (o.c.:57).

2.2 A penúria e a abundância como a lógica estruturante do

sistema ou a lógica da diferenciação

Defendido pelo autor, como uma visão realista do sistema, o desequilíbrio

estrutural do sistema social, parece facilitador do sistema produtivo, encerrando

em si o segredo dos incrementos produtivos das sociedades actuais. De facto,

segundo Baudrillard (2001:55) o “sistema”, permanece encerrado em ilusões e

contradições, ao privilegiar as finalidades geradoras de lucros (e portanto

capazes de suportar o crescimento, a desigualdade e as promessas de

abundância), ao mesmo tempo que promete a irradiação das desigualdades.

Tal paradoxo parece vital ao “sistema”, pois ao legitimar-se através dos

ideais de fraternidade e de igualdade (portanto ideais democráticos),

proporciona as condições necessárias ao seu desenvolvimento, criando zonas

de tensão nas estruturas sociais, que as impulsionam numa fuga para a frente

(os privilegiados, procurando mais privilégios e vantagens sociais, ao mesmo

tempo que as classes sociais na base da pirâmide, continuam a sua busca

incessante por melhores condições de vida, depositando num ideal de

8

Page 9: A Sociedade de Consumo

consumo e acesso a bens, a esperança de alcançarem os padrões de vida da

hierarquia social). Estamos pois perante uma dicotomia no processo de

consumo, que se assume como sistema de :

Permuta e de significantes (linguagem social do consumo), no qual

as práticas de consumo se inserem e assumem o respectivo sentido;

Classificação e de diferenciação, em que os objectos/signos, se

ordenam como valores estatutários no seio de uma hierarquia

(Baudrillard, 2001:60)

Neste contexto, distingue-se a:

“ “Sociedade da abundância” - privilegia as “necessidade do homem”,

na medida em que a partilha dos objectos, do poder, da sorte e dos

afectos são uma prática (o.c.:67). Nesta sociedade uma quantidade

limitada de bens é suficiente para criar a riqueza real, na medida em

que as necessidades reais são satisfeitas. ;

“Sociedade do crescimento” - pretende satisfazer as necessidades

sentidas, as que o próprio sistema determina (finalidades do sistema –

os automóveis, as auto estradas, o aumento da escolarização, os

serviços nacionais de saúde…), sob a capa da satisfação das

necessidades individuais (o indivíduo, só é atendido como sujeito por

intermédio de quem se configura o crescimento, quer porque agente

produtivo – e portanto ser físico, culturalmente enformável e

socialmente manipulável – quer porque agente de consumo

(Baudrillard, 2001:61).

2.3 A procura incessante da satisfação, ou consumo como

valor social: a marca de classe

A perplexidade imposta pelas diversas teorias das necessidades,

determina que diversos autores sobre elas se debruçassem, sendo distinguidas

por Baudrillard (2001:69) três linhas de pensamento, com os quais procura o

distanciamento esclarecido:

9

Page 10: A Sociedade de Consumo

As necessidades são interdependentes e racionais – consome-se o

que é útil à satisfação das necessidades, são estas que determinam

os níveis de consumo e os produtos adquiridos. O sistema produtivo

produz para a satisfação das necessidades dos indivíduos;

As escolhas de consumos impõem-se pela persuasão –

condicionamento das necessidades. As necessidades são em

grande medida impostas por condicionantes externas (tais como a

publicidade), pois o sistema necessita de controlar a produtividade e

o consumo, determinando o que consumir, em função de sistemas

de produção virtualmente limitados – a empresa de produção

controla os comportamentos do mercado;

As necessidades são interdependentes e derivam da aprendizagem

– os bens não são consumidos indiferentemente, o consumo deriva

da satisfação de necessidades que são cultural e socialmente

impostas. As finalidades económicas não se destinam à satisfação

individual, mas à maximização da produção entrincheirada num

determinado sistema de valores (escolha da conformidade a um

determinado sistema de valores) - consumo como fenómeno social.

Discordando em parte dos seus antecessores, mas não impondo códigos

morais, o autor promove uma análise desapaixonada do fenómeno do

consumo, ressalvando, que:

1. As escolhas de consumo são vividas pelos sujeitos como verdadeiras e

livres, ninguém as vive como alienação;

2. As escolhas individuais assentam sobre a lógica social da diferenciação.

São aos processos distintivos de classe que devemos atender, quando

tentarmos elaborar uma teoria explicativa do consumo;

3. Não é a produção que determina o consumo, mas sim o sistema de

necessidades (culturalmente e socialmente hierarquizado), que determina o

que é produzido;

4. As necessidades são produzidas como relação a um sistema e não como

relação de um sujeito a um objecto. As necessidades não são nada

isoladamente, elas associam-se a um sistema de signos, em que o

10

Page 11: A Sociedade de Consumo

consumo assume uma posição de interdependência com o sistema

produtivo e com os valores socialmente significativos. As necessidades e o

consumo constituem uma extensão organizada das forças produtivas;

5. As necessidades são-no na medida em que se constituem como

necessidades de diferenciação (Baudrillar,o.c.78), sendo assim

compreende-se que a satisfação das necessidades sentidas não exista

como conceito, não só porque a definição de necessidade é paradoxal (está

em constante mutação por comparação à simbologia da diferenciação), mas

também porque a própria satisfação individual se encontra condenada ao

vazio existencial.

Nesta medida, o ser social está condenado à insatisfação infinita das suas

necessidades individuais, porquanto elas não existem sem referente simbólico

e social. O segredo do consumo, como fenómeno social, parece residir na

função de produção de mais consumo, imediato e colectivo. Quando se

consome estabelece-se um sistema generalizado de troca e de produção de

valor, um sistema de pertença social diferenciado, uma valorização

significativa, vincadamente hierarquizada e diferenciadora, uma marca de

classe. Ao nível biológico da necessidade e da sobrevivência, impõem-se um

sistema sociológico de símbolos, a fim de se assegurar um determinado nível

de comunicação, diferenciador, reconhecível, indicativo de classe, não mais de

género, raça ou credo, mas de posição na hierarquia social.

Mas o consumo é ainda dever social, o consumidor, cidadão moderno, não tem

de se esquivar à fruição e ao prazer através do consumo. Constitui sua

obrigação, tal como o trabalho e a produção em épocas passadas. A sociedade

do consumo constitui-se como uma forma de socialização, em que intervêm

princípios de socialização e de iniciação determinantes para a construção do

Homem Consumidor. Principio sobre o qual assenta a um sistema económico

de alta produtividade, o consumo determina a extorsão da força de trabalho

(por exemplo através do crédito) e a maximização da produtividade através da

reprodução ampliada das forças produtivas e do seu controlo.

11

Page 12: A Sociedade de Consumo

2.4 O consumo como força produtiva

O consumo parece ser hoje reconhecido como força e dever social. O

consumidor, cidadão moderno, não tem de se esquivar à fruição e ao prazer

através do consumo. Constitui sua obrigação, tal como o trabalho e a produção

em épocas passadas. A sociedade do consumo constitui-se como uma forma

de socialização, em que intervêm princípios de socialização e de iniciação

determinantes para a construção do Homem Consumidor. Princípio sobre o

qual assenta a um sistema económico de alta produtividade, o consumo

determina a extorsão da força de trabalho (por exemplo através do crédito) e a

maximização da produtividade através da reprodução ampliada das forças

produtivas e do seu controlo.

As necessidades e as satisfações do consumidor são hoje forças

produtivas, racionalizadas e compulsivamente orientadas para modelos de

produtividade. O consumidor refém da sua própria compulsão, é um agente

produtivo, agrupado e estrategicamente estimulado, preso numa rede de

exploração da sua força social de produção. Tal como a força de trabalho, o

consumo é explorado produtivamente.

Se numa sociedade organizada em torno da produção, o trabalhador

surge como detentor da força de trabalho, factor de produção significativo e

muitas vezes organizado, o consumidor é um ser isolado, apesar de coagido

por determinismo e signos sociais. Se por um lado o consumo distingue e

hierarquiza em termos de classe, este também isola e torna vulnerável o

indivíduo, pelo que a apologia do individualismo se transforma numa espiral

perigosa de isolamento e distanciamento. A falta de regulação acentua a

clivagem entre a esfera privada do consumo e a compulsão social do consumo.

O consumidor é refém, ser condenado, pois o dever social do consumo, ao

qual surgem os mais pungentes e apelativos apelos, constitui uma força

colectiva equivalente aos “jazidos de mão-de-obra” (Baudrillar,o.c.:83). Portanto

a diferenciação e a apologia individualista do consumo encerram a armadilha

da exploração capitalista da força produtiva do consumo. Tal como Baudrillar

refere (o.c.:78): “O Povo são os trabalhadores, desde que sejam

desorganizados. O Público, a Opinião Pública são os consumidores, contando

que se contentem em consumir”.

12

Page 13: A Sociedade de Consumo

A percepção de que o consumo constitui uma força real produtiva, tem

conduzido a esforços compulsivos tendentes à sua regulação, é o caso dos

impostos e taxas sobre o consumo que proliferam nas sociedades actuais. Os

indivíduos, taxados sobre a sua força de trabalho, são-no também sobre a sua

capacidade de produzir riqueza ao aplicarem o rendimento, orientando o

consumo para finalidades política e economicamente convenientes, sobre a

aparência de aplicações sociais prementes, numa tentativa ilusória de explicar

o óbvio: o sistema necessita de controlar a seu favor a propriedade dos meios

de consumo.

2.5 O Metaconsumo e os novos modelos de consumo:

produção industrial da diferenciação.

A enorme importância ganha pelo fenómeno do consumo nas sociedades

modernas, determina a atenção que sobre ele actualmente se centra. Assim

que os aumentos de produção determinaram a posse de rendimentos

disponíveis cada vez mais elevados, o consumo subiu num ápice ao pódio de

prioridades da vida social, até se tornar numa das características mais

marcantes da nossa sociedade. Se os recursos se encontram disponíveis em

maior número (maior produção de bens e de serviços e maior rendimento

disponível) a variável fundamental que resta tentar perceber é a motivação. Por

outras palavras, se há condições para o consumo, falta perceber: de onde vem

a vontade para consumir.

A cultura do consumo explora duplamente a crise de identidade social e

individual ao propagar os bens, os serviços e as experiências, que parecem

constituir-se como panaceia para os problemas de identidade, ao mesmo

tempo em que dissemina a incerteza, por meio de sistemas de conformidade

(por exemplo de moda) e de obsolescência social planeada (armadilha

preparada pelo sistema, a fim de garantir a sua continuidade). O que pode ser,

hoje, a “escolha correta”, “in”, “fashion”, contrasta com a “escolha” da semana

passada ou à da próxima (Slater, 2002, 88-89).

Vivendo numa conjuntura de alto risco e alta ansiedade, em que cada acto

de compra ou de consumo parece ser expressão do gosto, dos valores e da

visão individual do mundo, bem como da posição social e da identidade, os

13

Page 14: A Sociedade de Consumo

indivíduos recorrem à busca incessante da personalização, através da

diferenciação. Parece paradoxal, na medida em que a diferenciação almejada,

parece também ela estar sujeita a objectivos claros de busca identitária: tudo

se passa como se através de signos se almejasse atingir a essência original do

indivíduo, entretanto estropiada e socialmente manejada. O monopólio da

diferença (conceitos contraditórios e paradoxalmente relacionados na

sociedade de consumo), segundo Baudrillard (o.c.:89), destaca-se porque a

diferenciação natural está condenada à extinção, impondo-se a diferenciação

fabricada, que obedece a símbolos sociais de consumo, constituindo-se assim

como “produção industrial das diferenças”.

Sendo que o consumo se pode definir como, “qualquer actividade

envolvendo a selecção, compra, uso, manutenção, reparação e destruição de

qualquer produto ou serviço” (Campbell, 1995:104), verifica-se que a

estratificação social é um vector de análise de grande importância na temática

do consumo, mas que não cabe aqui. É defendido pelo autor (o.c.:91-93) que a

aquisição, posse e exibição, ou ocultação de bens representa uma das formas

de exprimir status social e que se faz diferentemente, consoante o estrato ou

classe social a que o indivíduo pertença, pelo que o poder simbólico que o acto

de consumo adquiriu (de comunicar status) a pertença ou aspiração a um

estrato ou classe social constituem imperativos enformadores das decisões de

consumo dos indivíduos e grupos. Assim, profissões, graus de instrução,

habitações, automóveis, destinos de férias e colégios para os filhos (que são

alguns exemplos de consumos de reconhecido poder simbólico, discriminatório

e informativo) representam os verdadeiros símbolos de status no século XXI

(Menor Diferença Marginal), sendo que ao serem visitados pela hierarquia

social e promovidos pelos média, como valores simbólicos de classe, tendem a

perder o seu significado (o que primeiro é distintivo, constitui-se como

conformidade social), e a ser gradualmente substituídos pela recusa do

consumo (descrição, despojo e reserva), o “qual não passa de luxo a mais, de

acréscimo de ostentação,…transformando-se na diferença mais subtil”-

metaconsumo (Baudrillard,o.c.:91).

A imposição actual de modelos de consumo, colocam ênfase, segundo o

autor (o.c.:99), em sociedades de consumo em que se assumem feminilidades,

como modelo estrutural. Embora sem ligação ao género, mas à simbologia do

14

Page 15: A Sociedade de Consumo

feminimo (a mulher como função de prestígio, derivada da ociosidade burguesa

da mulher, que rendia tributo de prestígio ao respectivo marido e senhor),

impõem-se a cultura da fruição e do prazer. Sociedades mescladas de padrões

em que o feminino se impõem, como forma de consumo transversal, parecem

conduzir a modelos hermafroditas de consumo, associados à juventude, beleza

ao narcisismo, o que compele os consumidores, enquanto força produtiva para

uma teia de desejos e cedências, que parecem longe de poder reverter.

3. Reflexão crítica

De uma forma geral, o autor afirma que a lógica social do consumo é

estruturada e simbólica, constituindo um código linguístico, através do qual o

consumidor se expressa. Já não se trata da "apropriação individual do valor de

uso dos bens e dos serviços; (...) também não é a lógica da satisfação (a que

se evidencia), mas a lógica da produção e da manipulação dos significantes

sociais" (Baudrillard,2001:59). O consumo, pode ser então entendido como um

processo comunicacional (pois a apropriação de bens e de signos

diferenciadores constituem hoje a nosso código de comunicação) mas também

como um eficiente processo de classificação e diferenciação social.

É o seguinte o princípio da análise: nunca se consome o objecto em si

(no seu valor de uso) – os objectos (no sentido lato) manipulam-se sempre

como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo

tomado como referência ideal, quer demarcando-o do respectivo grupo por

referência a um grupo de estatuto superior (o.c.:60). Mas o consumidor ignora

esses processos, de modo que vive as suas condutas consumistas, como

distintivas, como sinais de liberdade, de possibilidades de escolhas, e não

como um "condicionamento de diferenciação e de obediência a um código"

(ibid).

Para o autor, a alienação social acontece pela naturalização do

consumo, um consumo que não se faz de objectos, mas de signos que

obedecem a uma lógica socialmente reconhecível, mas em constante mutação,

de modo que os objectos consumidos deixam de estar em relação com

qualquer função ou necessidade natural. Os bens e os serviços apresentam-se

15

Page 16: A Sociedade de Consumo

imbuídos de características de conforto e bem-estar, dominando o indivíduo e

retirando-lhe as incertezas existenciais, para transformá-las em relações

associativas e opressivas de objectos-significado.

Baudrillard, parece também declarar o fim da produção como princípio

organizador da sociedade – modelo calcado no sistema industrial de produção

de massa, fordista, inaugurado no início do século XX.- e, no seu lugar,

inaugura um novo modelo baseado na exploração capitalista do consumo. O

consumo, que endereça à noção de abundância (que já vimos não existir, na

medida em que a abundância é relativa à sintomatologia do consumo) e, sob

essa perspectiva, os objectos organizam-se de duas formas subsidiárias: a

profusão e a panóplia. A profusão, que é a forma mais rudimentar de

abundância de bens, cria "a evidência do excedente, a negação mágica e

definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa da terra da promissão"

(o.c.:16) e transporta à ilusão igualitária do consumo. O segundo modo de

organização é a panóplia, onde os objectos pertencem a colecções, nas quais

cada unidade indica uma conexão com outros objectos em movimento

recíproco. O objecto não é apropriado como bem, mas como um signo

diferencial, que cria a ilusão da diferença, do individualismo. Assim, segundo

Baudrillard, as estruturas de classes, parecem ser reorganizadas na sociedade

de consumo, pela panóplia, através da posse de signos-troféus que identificam

cada indivíduo como pertencendo a uma classe. Há, portanto, uma contradição

lógica entre profusão – que remete para uma democratização do consumo,– e

panóplia, por definição, organização dos objectos em colecções

diferenciadoras. Na realidade, há "uma contradição lógica entre a hipótese

ideológica da sociedade de crescimento (portanto, de abundância), que é a

homogeneização social no nível mais alto, e a correspondente lógica social

concreta baseada na diferenciação estrutural" (Baudrillard,2001:66).

Em síntese, para o autor, o sistema de consumo não se baseia, em

última instância, nem na necessidade, nem no prazer, mas num código de

signos e de diferenciações. Deste modo, Baudrillard chega à conclusão, tal

como Harvey (1994:260), de que a análise marxiana da produção está

ultrapassada, porque o capitalismo está actualmente centrado na produção de

16

Page 17: A Sociedade de Consumo

signos, imagens e sistemas de signos, e não tanto com nos bens e nos

serviços que são objecto de produção (depois da força de trabalho, a

socialização das forças de consumo). É neste âmbito que se localizam os

estudos de Baudrillard: a análise dos "modos de consumo", uma "lógica do

consumo, que aponta para os modos socialmente estruturados de usar bens

para demarcar relações sociais, tal como referido por Featherstone (1995:35).

Ora, como escapar ao determinismo imposto pelo capitalismo de

consumo? Como escapar ao vórtice imposto por um sistema que tende a

controlar de forma organizada e burocrática a força produtiva do Homem

Consumidor? Como escapar às formas da alienação consumista?

Queremos nós escapar-lhe? Seremos capazes de recusar o consumo? E

com que finalidade? Que consumo? A recusa do consumo, não se

constitui também como forma de alienação?

As respostas não são de todo fáceis, mas a temática do consumo e da

cultura do consumo nunca foi tão analisada como actualmente, localizando-se

na encruzilhada das discussões culturais, educacionais, políticas, sociais,

económicas e psicológicas. Contudo, a resposta talvez possa ser apontada

pela Educação, que parece surgir, nos contextos actuais, como causa/efeito de

uma força potenciadora de rupturas significativas no seio do social, com

implicações na forma como os actores se relacionam, nas empresas, nas

famílias e nas diversas dimensões do quotidiano. Neste contexto, parece

importante considerar o Discernimento “como desafio à Era da Abundância e

da Diversidade, da Contradição e da Complexidade”, ou seja a capacidade de

poder decidir, operacionalizar e avaliar as opções que se tomam em cada

momento (Marques,2000). Segundo o autor tal enfoque pressupõem uma

escolha objectiva, que permite reflectir a esperança na possibilidade de agir

sustentadamente sobre um mundo multidimensional e em mutação, e que por

conseguinte possa garantir uma escolha colectiva (já que parecemos estar

irremediavelmente ligados pela teia social) equilibrada entre a “sociedade da

abundância” e a “sociedade do crescimento”

17

Page 18: A Sociedade de Consumo

3 Bibliografia

Almeida, João F. de, Fernando Luís Machado, Luís Capucha e Anália Cardoso Torres

(1994), Introdução à sociologia, Lisboa, Universidade Aberta.

Alves, N. e R. Canário (2004), Escola e exclusão social: das promessas às incertezas,

Análise Social, Vol. XXXVIII (169), pp. 981 – 1010.

Attali, J. (2007), Breve História do Futuro, Lisboa, Publicações D. Quixote.

Baudrillard, J. (2001), A sociedade de consumo: A lógica social do consumo, Lisboa,

Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Centro de

documentação, polic.

Campbell, Colin (1995), “The Sociology of Consumption”, Acknowledging Consumption,

ed. David Miller,London, Routledge

Costa, António Firmino da, Rosário Moratti, Susana da C. Martins, Fernando Luís

Machado e João Ferreira de Almeida (2000), Classes sociais na europa, Sociologia,

Problemas e Práticas, 34, pp. 9-43.

Featherstone, M. (1995), Cultura de consumo e pós-modernismo, São Paulo, Studio

Nobel.

Giddens, A. (2001), Sociologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de

Educação e Bolsas.

Giddens, A. (2005), As Consequências da Modernidade, Lisboa, Celta Editora.

Giddens, A. (2007), A Europa na Era Global, Lisboa, Editorial Presença.

Gomes, Maria do C.(2003), Literexclusão na vida quotidiana, Sociologia, Problemas e

Práticas, 41, pp. 63-92.

Gonçalves, M.E., A. Delicado, M. Domingues, e H. Raposo (2004), Novos Riscos,

Tecnologia e Ambiente – Relatório Final, Lisboa, ISCTE – Instituto Superior de

Ciências do Trabalho e da Empresa.

Harvey, D. (1994), Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da

mudança social (2ª ed.), São Paulo, Edições Loyola.

MARQUES, R. (2000), 2020 – O futuro da Educação em Portugal – Uma leitura das

condicionantes do Contexto: Discernimento, Foco e Adaptação/Inovação in,

CARNEIRO, Roberto, João Caraça, M.ª Emília São Pedro e outros, “O Futuro da

Educação em Portugal – Tendências e Oportunidades – um estudo de reflexão

prospectiva”, Lisboa, DAPP Ministério da Educação.

Slater, D. (2002), Cultura do consumo & modernidade. São Paulo, Edições Nobel.

Silverstone, R. (2002), Por que estudar os média?, São Paulo, Edições Loyola.

18