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A SITUAAO DA CLASSE TRABALHADORA EM INGLATERRAFRIEDRICH SACO DE ENGELS/AFRONTAMENTO L A C R A U S 4 O

Traduzido da verso francesa La Situation de la Classe Laborieuse en Angletene ((E) Editions Sociales) e revisto com o auxilio da edio inglesa de 1892 (The Condition of the Working Class in England).

Traduo: Joo B

Analia C. Torres Capa:

Edies Afrontamento, Maio de 1975 Apartado 532 Porto

INDICE

Prologo ...................................................................................... As classes trabalhadoras da Gra-Bretanha............................... Prefacio .....................................................................................

5 23 27

Introduo ........................................................ O proletariado industrial .................................. As grandes cidade ........................................... A coneorreneia ................................................ A imigrao irlandesa ..................................... Os resultados ..................................................

31 51 55 113 129 135

Os diferentes ramos da industria: os operarios de fabrica propriamente ditos ............................. 179 Os outros ramos da industria ......................... 239 Os movimentos operrios ............................... O proletariado das minas ................................ O proletariado agrcola ................................... A atitude da burguesia face ao proletariado . 267 299 321 337

PROLOGO

A que vem esta nova traduo de A Situao da classe trabalhadora em Inglaterra, ao mesma tempo que negligenciamos tantas obras escritas par volta de 1840? Por trs razes principais: a primeira e que este livro marca uma data na historia do capitalismo e da sociedade industrial moderna; a segundo e que ele constitui uma etapa na elaborao do marxismo, quer dizer, da nossa compreenso da sociedade; a terceira diz respeito a sua qualidade literria. Ao mesmo tempo erudito e apaixonado, misturando a acusao a anlise, e, numa palavra, uma obra-prima. Mas as prprias obras-primas tm, por vezes, necessidade de comentrios para serem lidos com proveito mais de um sculo depois da sua publicao, sobretudo quando foram alvo de repetidos ataques por parte de inimigos polticos, caso e o caso, e quando abordam problemas sobre os quais se constituiu posteriormente uma volumosa literatura histrica.

I ENQUADRAMENTO E ORIGEM DA OBRA Ao escrever A Situao da classe trabalhadora, Engels tm vinte e quatro anos; e oriundo de uma famlia de ricos proprietrios de algodo de Barmen, na Rennia,5

a regio industrial mais desenvolvida da Alemanha, seno o seu pai scio duma empresa de txteis, a casa Ermen & Engels, que est situada no corao da mais importante regio econmica inglesa da poca, em Manchester. 0 jovem Engels, face aos horrores do Ca pita industrial nascente e por reaco contra a estreiteza e o farisasmo da sua educao pietista, adere via dos jovens intelectuais progressistas alemes formados na tradio filosfica ento dominante nos meios cultos da Alemanha e tal como Karl Marx, mais velho uns anos do que ele, torna-se hegeliano de esquerda; a sua adeso precoce as idias comunistas leva-o a colaborar nos diversos peridicos e revistas onde a esquerda alem se esfora por formular a sua crtica d sociedade existente. A deciso de se instalar por algum tempo em Inglaterra ter sido sua ou do pai? No se sabe. Ambos tm, sem dvida, razes diferentes para aprovar este projeto: o pai quer manter o filho revolucionrio afastado das agitaes alems e fazer dele um slido homem de negcios; o filho quer estar mais perto do centro do capitalismo e desses grandes movimentos do proletariado britnico donde surgir, espera ele, a revoluo do mundo moderno. Parte para Inglaterra no Outono de 1842 (e no decurso desta viagem que encontra Marx pela primeira vez). Vai l ficar dois anos, observando, estudando e exprimindo as suas idias . Sem dvida que j est a trabalhar no seu livro desde os primeiros meses de 1844, mas e depois do seu regresso a Barmen, no decurso do Inverno de 1844-1845, que redige o essencial do livro. A obra aparece em Leipzig no Vero de 1845 2.1 Para alm de A Situao da classe trabalhadora em Inglaterra, a sua estadia dar origem as Umrisse zu einer Kritik d&r Nationaloekonorn'ie publicadas nas Deutsch-Franzoesisohe Jahrbuecher, Paris, 1844, esboo precoce, mas imperfeito, duma anlise marxista da economia, bem como artigos sobre a Inglaterra para o Rheinische Zeitung, o Schweizerische Republikaner, os Deutsch-Franzoesische Jahrbuecher e o Vorwaerts de Paris, e sobre a evoluo continental para o New Moral World de R. Owen. (Of. Karl Marx-F. Engels: Werke, Berlim, 1956, t. I, p. 454-592). 2 Die Lage der arbeitende Klasse in England. Nache eigner Anschauung und authentischen Quetten von Friedrich Engels. Leipzig. Druck und Verlag Otto Wigand 1845. Aparece uma edio americana com um prefacio distinto em 1887, uma edio inglesa, com um longo e importante prefacio em 1892, e uma edio alem no mesmo ano. Encontraremos estes diversos prefcios no fim do presente volume. Neles s ser corrigida uma parte dos erros da 1. edio. A ultima edio alem de A Situao a de Marx-Engels: Werke, Bd II, p. 288-506, Berlim, Dietz, 1957. W. 0. Henderson e W. H.

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A idia de escrever um livro sobre a situao das classes trabalhadoras no tinha em si nada de original. 0 livro de Engels e o mais notvel dos escritos deste gnero, mas no e o nico. For volta de 1830 era claro aos olhos de qualquer observador inteligente que nas regies econmicas avanadas da Europa se colocavam problemas completamente novas. No se trata somente dos pobres mas de uma classe sem precedentes na histria, o proletariado, cuja situao se impe cada vez mais a ateno mundo civilizado, diz Engels (Cap. 1, p. 49).A partir de 1830, e sobretudo depois e 1840, anos decisivos na evoluo do capitalismo e do movimento operrio, multiplicaram-se na Europa Ocidental os livros, brochuras e inquritos sobre a situado das classes trabalhadoras. 0 Quadro do estado fsico e moral dos operrios empregados nas manufatura de algodo, de La e de seda, de L. Villerme (181f0) e o mais celebre destes inquritos em Frana e ao mesmo tempo o mais notvel dos estudos deste gnero, ao lado do de Engels. Par razoes evidentes, estas pesquisas so particularmente numerosas em Inglaterra, e Engels utilizar da melhor maneira as mais importantes dentre elas, principalmente os relatrio da Factory Enquiry Commission de 1833, do Enquiry into the Sanitary Condition of the Labouring Population de 1842, da Children's Employment Commission de 1842-1843, e, na medida do possvel, da Commission for Inquiring into the State of the Large Towns (18244) (1. relatrio). De resto j se divisava claramente que o problema do proletariado no era simplesmente local ou nacional, era sobretudo intencional: Buret estudou ao mesmo tempo as condies da vida inglesa e francesa (A misria das classes trabalhadoras em Franca e Inglaterra, 1840), enquanto que Ducpetiaux recolhia dados relativos dos jovens operrios de toda a Europa (Das condies fsica e moral dos jovens operrios e dos meios para as melhorar). O livro de Engels esta pois longe de constituir um fenmeno isolado, o que, de resto, The valeuChaloner que acabam de reeditar o livro em ingls (Oxford 1958) entregaram-se a um trabalho extremamente minucioso, verificando todas as citaes, juntando referencias precisas onde Engels as no dava, corrigindo certos erros que tinham passado despercebidos e juntando teis informaes complementares. Infelizmente, este estudo 6 prejudicado pelo desejo irreprimvel dos seus autores de desacreditarem Engels e o marxismo par qualquer prego. A primeira edio francesa foi publicada por Alfred Costes, 2 volumes, 1933; cont6m numerosos erros e no comporta nenhum aparelho critico.7

periodicamente a acusao de plgio por parte de anti-masrxistas com, falta de argumentos3. Contudo, ele difere das outras obras contemporneas em muitos aspectos. Primeiro, como sublinha justamente Engels no seu prefacio, e o primeira livro, em Inglaterra ou em qualquer outro pais, que se refere classe operria no seu conjunto, e no a certos ramos ou indstrias particulares. 0 segundo aspecto, mais importante ainda, e que no se trata de um simples exame da situao das classes trabalhadoras, mas de uma anlise da evoluo do Ca pita industrial, das conseqncias sociais da industrializao, com as suas implicaes polticas e sociais, principal-mente o desenvolvimento do movimenta operrio. De fato, e a primeira tentativa de envergadura para aplicar o mtodo marxista (que encontrar a sua primeira formulao terica na Ideologia alem de Marx, em 1845-46J ao estudo concreto da sociedade 4 . Como indica o prpria Engels na sua introduo edio de 1892, este livro no representa o marxismo na sua forma acabada, mas antes uma das fases do seu desenvolvimento embrionrio 5. Para uma interpretao mais segura e uma anlise mais completa da evoluo do capitalismo industrial, temos de nos reportar ao Capital de Marx.3 Fteprovam-ihe sobretudo ter plagiado Buret. Cf. a crkica de Charles Artdler: Introduo e comentrios sobre o Manifesto Comunista. Paris, Rieder, 1925, p. 110-113. Esta acusao foi analisada e refutada por Gustavo Mayer: Friedrich Engels, vol., 1, Haia, 1934, p. 195, que explica, por um lado, que nada prova que Engels tenha conhecido o livro de Buret antes de escrever o seu, e por outro, que as opinies de Buret no tm nada de comum com as de Engels. 4 Quando Engels escreve A Situao, s tinha encontrado Marx durante uma dezena de dias em Paris, em Agosto de 1844 (se excetuarmos a sua breve visita a redao da Gazeta Renana em Colnia, no fim de Novembro de 1842): Portanto, no poderia tratar-se do mtodo marxista elaborado. Contudo parece ter sido atravs da influencia de Engels, ao ler A Situao, que Marx se orientou para o estudo sistemtico das questes econmicas. A contribuio original de Engels para o marxismo nascente foi a critica econmica da sociedade capitalista que se encontra alis nas Umrisse zu einer Kritiik der Nationaloekooomie, Marx-Engels: Werke, vol. 1, Dietz, Berlim, 1957, publicadas em 1844, e escritas alguns dias antes. A Situao 4 uma das primeiras, seno a primeira das grandes obras marxistas, visto que se ignora a data exata em que Marx redigiu as Teses sobre Feuerbach (Primavera de 1845). 0 prefacio de Engels esta datado de 15 de Maro. 5 Ver adiante p. 390 (prefacio de 1892). Cf. D. Rosenberg: Engels als Oekonom, in Friedrich Engels der Denker. Aufsaetze aus der Grossen Sowjet Enzyklopaedie, Zurique, 1935, Basileira, 1945.

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II ESQUEMA E ANALISE O livro Iomega por tragar um rpido quadro desta revoluo industrial que transformou a Inglaterra em nao capitalista industrial e que, principalmente, fez surgir o proletariado (captulos I e II). Engels foi neste aspecto um pioneiro, visto que A Situao e provavelmente o primeiro estudo importante cujo contedo assenta inteiramente sobre a noo de revoluo industrial, hoje admitida, mas que ento no passava de uma hiptese ousada, elaborada nos crculos socialistas ingleses e franceses dos anos vinte 6. 0 panorama que Engels apresenta desta evoluo entre 1160-1180 e 18^0-1845 no se pretende de modo algum original e, apesar da sua utilidade, e menos completo do que certas obras posteriores \ Hoje os especialistas concordam em dizer que a situao das classes trabalhadoras inglesas sofreu uma deterioragdo a partir de 1790, se bem que ainda se discuta para saber ate que datas. De resto, se Engels apresenta a sociedade pr-industrial de modo relativamente favorvel, no e porque calcule que os trabalhadores fossem ento menos pobres, mas porque pensa que gozavam de uma maior segurana (cf. a comparado entre campons e operrio, servo e proletria, p. 32-34 e 235-236). Os seus criticas no respondem a este argumento. Do ponto de vista social, as transformaes devidas revoluo industrial traduzem-se para Engels num gigantesco processo de polarizao e de concentrao, teno por tendncia principal a criao de uma burguesia cada vez mais restrita de capitalistas cada vez mais6 Para uma apreciao dos diferentes mtodos de Engels, cf. LENINE: Aspectos do romantismo econmico (Sismondi e os nossos sismondisias nacionais), Obras Completas, vol. II. Sobre a historia das origens do conceito de revoluo industrial, ver A. BEZANSON: The early use of the term Industrial Revolution, in Quarterly Journal of Economics, XXXVI, 1922, 343, e G. N. CLARK: The ideia of the Industrial Revolution, Glasgow, 1953. 7 Cf. P. MANTOUX: A revoluo industrial no sculo XVIII, Paris, Genin, 1905, reeditado em 1959, superado, mas excelente, e T. S. ASTHON: A revoluo industrial, (ed. portuguesa, Publicaes Europa-America, col. Saber), discutvel quanto as suas interpretaes, mas til como sntese ou introduo a leituras mas especializadas. 8 Cf. J. T. KRAUSE: Changes in English (Fertility and Morality, in Economic History Review, 2." Ser., XI, 1, 1958, p. 65; S. POLLARD sustenta em Investment, Consumption and the Industrial Revolution in Economic History Review, 2.' Ser., XI, 2, 1958, p. 221, que esta deteriorao comea antes de 1790.

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poderosos, enquanto o proletariado se desenvolve e a sociedade se torna cada vez mais urbana. O mango do capitalismo industrial implica a eliminao dos peque-nos produtores, do campesinato e da pequena burguesia; o declnio destas camadas intermediarias, impedino que o operrio se tome num pequeno patro, integra-o no proletariado que deste modo se transforma numa classe estvel, enquanto que outrora, muitas vezes, no era mais do que uma transio para o acesso a burguesia (p. 49). Nos trabalhadores aparece por conseqncia uma conscincia de classe esta expresso no e utilizada por Engels e constitui-se o movimento operrio1. Como sublinha Lenine: Engels foi o primeiro a dizer que o proletariado no e s uma classe que sofre, mas que e precisamente a vergonhosa situado econmica que The 6 imposta que o empurra irresistivelmente para a frente e o obriga a lutar pela sua emancipao final 9. Este processo econmico no tm, todavia, nada de fortuito. A indstria mecanizada em larga escala exige investimentos de capitais cada vez mais considerveis, e a diviso do trabalho pressupe a concentrao de um grande numero de proletrios. Centros de produo com, tal amplitude, mesmo situados no campo, levam a formao de importantes comunidades; Da um excedente de mo-de-obra: os salrios baixam, o que atrai outros industriais para a regido. Por isso, as aldeias transformam-se em cidades que, por sua vez, se desenvolvem em virtude das vantagens econmicas que apresentam aos olhos dos industriais (p. 53). Como a indstria tende a deslocar-se dos centros urbanos para as regies rurais, onde os salrios so mais baixos, este deslocamento e a prpria causa da transformao das campos. As grandes cidades constituem, para Engels, os lugares mais caractersticos do capitalismo, e para elas que ele agora se volta (cap. HI). Mostra-nos o reino da luta frentica de todos contra todos, e a explorao do homem pelo homem (quer dizer, dos trabalhadores pelos capitalistas) na sua forma mais brutal. Nesta anarquia, aqueles que no possuem meios de subsistncia ou de produo so vencidos e constrangidos a penar por um magro salrio, ou a morrerem a fome quando esto desempregados. O pior e que esto reduzi' No artigo F. Engels, escrito em 1895 (Marx-Engels-Marxismo, p. 37). Contudo, Engels no determinou claramente, nesta poca. o papel da Iota de classes na historia. 10

(k)s a uma insegurana profuno e o futuro< do trabalhador -lhe totalmente misterioso, incerto. Com efeito, este futuro e determinado pelas 10 da concorrncia capitalista, que Engels leis analisa no cap. TV . 0 salrio de um operrio oscila entre um mnimo e um mxima: por um lado, o salrio de subsistncia determinado pelo jogo da concorrncia entre os trabalhadores, mas limitado pelo fato de no poder descer abaixo de um certo nvel este conceito no e rgida: Cf. p. 116. E verdade que este limite e muito relativo: uns tm mais necessidades que outros, uns esto habituados a maior conforto que outros por outro lado, o mxima* e determinado pela concorrncia capitalista nos perodos de penria de mo-de-obra. E verossmil que o salrio mdio se situe ligeiramente acima da mnimo. Quanta f Isso depende do nvel de vida tradicional ou adquirido pelas trabalhadores. Certos sectores, nomeadamente os sectores industriais, exigem trabalhadores mais qualificados: ai a salrio mdio ser mais elevado que noutro lado, tanto mais que o prprio custo de vida e mais elevado nas cidades. Por sua vez, esta superioridade do salrio mdio urbano e industrial contribui para engrossar as fileiras da classe operria, atrainda imigrantes rurais e estrangeiros. Todavia, a concorrncia entre os operrios cria um excedente permanente, um excedente de populao que contribui para rebaixar a nvel geral o que mais tarde Marx chamar de exercito de reserva. lata apesar da expanso geral da economia que se apia, por um lado, na baixa de prego das mercadorias devida aos progressos das tcnicas de produo (donde deriva o aumento da procura e a redistribuio dum grande numero de operrios pelas indstrias novas) e, por outro lado, no monoplio industrial mundial da Inglaterra. Seguem-se a expanso demogrfica, a aumento da produo e novas necessidades de mo-de-obra. Apesar de tudo, subsiste a excedente de populao, dada a altemncia cclica das perodos de prosperidade e de crise, que Engels e um dos primeiros a considerar parte integrante do sistema capitalista e para as quais sugere uma periodicidade precisa . A partir do momenta em que o10 Engels v na concorrncia o fenmeno essencial do capitalismo. " Aqui talvez Engels deva alguma coisa a Sismondi e, sobretudo, a John Wade: Historia das classes medias e trabalhadoras, 7833, que utiliza para a redao do seu livro. Wade prope um perodo de

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capitalismo est submetido a flutuaes, deve possuir uma reserva permanente de trabalhadores (proletrios em potencia), exceptor no ponto culminante da sua expanso. Que classe operria e esta que nasce da capitalismo? Quais so as suas condies de vida e quais so as atitudes individuais ou colectivas que tem razes nas suas condies material? Engels consagra a estes problemas a parte de longe mais considervel no seu livro (captulos III, V-XI), e as suas direes ou anlises constituem12 sua contribuio mais solida a em certos pontos migualada para as cincias saciais: o exame dos efeitos da industrializao e da transformao urbana capitalistas. O capitalismo precipita bruscamente a jovem classe operria, muitas vezes composta por imigrantes vindos de pases no desenvolvidos e pr-industriais, como a Irlanda), numa espcie de inferno social onde as trabalhadores so explorados sem trguas, mal pagas, reduzidos a fome, abandonados, condenados a viver em barracas srdidas, desprezados e oprimidos no s em virtude do joga impessoal da concorrncia, mas tambm directamente pela burguesia que, enquanto classe, os considera como coisas e no como homens, como trabalho, mo-de-obra e no como seres humanos (cap. XII). Seguro pela apoio da legislao burguesa, o capitalismo impe a sua disciplina na fbrica, aplica muitas, lana os trabalhadores na priso, submete-os aos seus mnimos desejos. A burguesia, enquanto classe, organiza uma discriminao social desfavorvel aos trabalhadores, elabora a teoria malthusiana da populao e constrange-os a suportarem as crueldades da Nova Lei sobre os Pobres, lei malthusiana de 1834 que os fora a entrarem para as oficinas de caridade essas bastilhas da lei sobre os pobres quando pedem auxilio, e separa homens, mulheres e crianas; trata-se de tornar a assistncia to horrvel, que o trabalhador, por muito5-7 anos. Engels, que mais tarde se pronunciaria por um perodo de dez anos, adopta aqui esta sugesto. De resto ele j tinha notado a periodicidade das crises nas Umrisse... (Mega, t. II, p. 396). Como de costume, os analistas crticos do capitalismo fizeram muito mais descobertas sobre o mecanismo econmico que os economistas burgueses, os quais permaneciam nesta poca cegos a estas flutuaes fundamentais. Cf. J. SCHUMPETER: History of economic Analysis, 7954, p. 742. * 12 Ver o elogio sem reservas que faz Current Sociology: Urban Sociology (Research in Great Britain), UNESCO; Paris, vol. 4, 1955, p. 30, a analise do urbanismo de Engels: A sua descrio de Manchester... 6 uma obra-prima de anlise ecolgica.n 12

relutante que esteja, prefere aceitar o primeiro emprego que o capitalista lhe oferece. Todavia esta desumanizao vai manter os trabalhadores fora do alcance da ideologia e das Iluses burguesas do egosmo, da religio e da moral burguesas por exemplo13 enquanto que a industrializao e o movimento de concentrao urbana vo, ao reagrup-los, dar-lhes pouco a pouco uma idia do seu poder. Quanto mais estreitamente os trabalhadores esto ligados a vida industrial, mais avanados so (p. 48) ", Face a esta situao os trabalhadores reagem de diferentes maneiras. Alguns sucumbem e deixam-se desmoralizar: mas o alcoolismo, o vicio, a criminalidade que dai decorrem e se expandem cada vez mais so fenmenos sociais nascidos do capitalismo, e que no poderiam ser explicados pela simples fraqueza ou faltai de energia dos indivduos. Outros submetem-se humildemente a sua sorte e contribuem, de facto, para forjar mais solidamente as cadeias dos trabalhadores (p. 161). Mas s lutaro contra a burguesia e que o trabalhador se pode elevar a uma verdadeira humanidade e dignidade. Este movimento operrio passa por diferentes etapas: A revolta individual, o crime pode ser uma das suas formas; a destruio de mquinas e outra, se bem que nenhuma destas duas formas esteja universalmente espalhada. 0 sindicalismo e a greve so as primeiras formas generalizadas que o movimento operrio toma, e a sua importncia assenta menos na sua eficcia do que na lio de solidariedade que do: 15 trabalhadores adquirem nelas a conscincia de os classe . O movimento poltico representado pelo cartismo situa-se a um nvel ainda mais elevado. Paralelamente a estes movimentos, as teoriasMas no seu prefacio ao Socialismo Utpico, 7897, conhecido pelo ttulo de Materialismo histrico, Engels sublinhara, pelo contrario, os esforos feitos depois pela burguesia para manter o povo sob o jugo 14 obscurantismo religioso. do No entanto, Engels tambm nota que a imigrao massiva de irlandeses, anormalmente pobres, contribui por seu lado para a propagao do radicalismo entre os operrios (p. 166). 15 Embora correcta em linhas gerais( a descrio que Engels faz da fase pre-cartista do movimento operrio 6 muito apressada e muitas vezes errada no pormenor. Seria bom complet-la com a leitura de obras recentes, tais como, G. D. H. COLE e Ft. POSTGATE: The Common People, Londres, 1945. Era praticamente impossvel que Engels se alargasse sobre as origens do movimento operrio que, ainda hoje, continuam muito mal conhecidas. 1313

socialistas viram a luz do dia graas a pensadores burgueses que, ate 1844, se mantiveram na sua maior parte fora do movimento operrio, ao mesmo tempo que atraiam a si uma pequena minoria de trabalhadores avanados. Mas o movimento ir evoluir para o socialismo medida que se aproxima a crise geral do sistema capitalista. Em 1844, Engels cr que esta crise se pode desenvolver de duas maneiras: ou a concorrncia americana (ou talvez a alem) vir acabar com o monoplio industrial da Gr-Bretanha e precipitar uma situao revolucionria (e algo de notvel discernir, j nesta poca, nestas duas naes os dois rivais mais perigosos da Inglaterra), ou ento a polarizando da sociedade seguir o seu curso ate ao memento em que os operrios, constituindo a partir de ento a grande maioria da nao, tomaro conscincia da sua fora e tomaro o poder. Contudo, dada a situao intolervel dos trabalhadores e a existncia de crises econmicas, produzir-se-ia uma revoluo antes que estas tendncias tivessem tido plena efeito. Engels calcula que ela ir explodir entre as duas depresses econmicas seguintes, quer dizer,.entre 1846-1847 e 1854-1855. Apesar da sua falta de maturidade, a obra de Engels possui qualidades cientificas absolutamente notveis. Os seus defeitos so os da juventude e, em certa medida, duma falta de perspectiva histrica. As suas previses pecam, evidentemente, per excesso de optimismo: sem falar da revoluo que ele via eminente, a eliminao da pequena-burguesia inglesa e o desenvolvimento da indstria americana, per exemplo, deviam concretizar-se muito mais lentamente do que ele pensava em 1844- Mas estas duas ultimas previses eram fundamentadas. Em Inglaterra, os patres representavam, em 1851, 2 % da populao activa, os gerentes, administradores, etc., 3,1 %, os proprietrios rurais, artesos, pequenos lojistas em resume, a pequena-burguesia no sentido clssico do termo 5,3 %; os assalariados 87 %. Em 1844, populao estava longe de mostrar uma tal polarizando. $ facto que as generalizaes de Engels so, per vezes, apressadas. Deste modo, sem duvida que subestimou muito as possibilidades que ento se ofereciam aos trabalhadores de se elevarem acima da sua classe, sobretudo aos das indstrias sem fbricas, tais Como a construo ou as indstrias artesanais, muito importantes na poca, e evidente que no soube avaliar com justeza a tendncia que levar uma classe favorecida de trabalhadores a constituir uma aristocracia do trabalho que adoptar,14

em larga medida, os valores da burguesia ie. Mas certa-mente que ele tinha razo para no se referir, em 1842-1844 constituio da aristocracia de trabalho. Por outro lado, alguns dos seus erros podem ser atribudos, sem hesitao, a situao histrica: Engels escreve no momento em que & capitalismo ingls esta mergulhado no primeiro dos seus trs grandes perodos econmicos: 1815-1843, 1873-1896, 1920-1941 e na vspera do segundo dos seus perodos de prosperidade: 1180-1815, 1844-1813, 1896-1920 e 1941-19... 17 . Esta crise foi particularmente aguda, como o mostra a violncia das lutas de classe, no s entre exploradores e explorados, mas tambm entre as diversas categorias de classes exploradoras (ver os conflitos entre a burguesia industrial e a aristocracia agrria, a propsito da livre troca, por exemplo). No h duvida que, desde ento, nunca mais as massas trabalhadoras inglesas foram to revolucionrias, mas a falta de maturidade e as fraquezas da organizao dos seus movimentos, a falta de uma direo e a ausncia de uma solida ideologia causaram a sua perda. De resto, a seguir as guerras napolenicas, manteve-se a tendncia para a baixa dos pregos, durante uma gerao, enquanto que a taxa de lucro tinha tendncia a baixar; o espectro da estagnao que obcecava os economistas burgueses da poca 1S e que criava o ressentimento da burguesia, hem como dos grandes proprietrios, contra os trabalhadores, tornava-se cada vez mais ameaador. Nestas condies, no era nada de particularmente irreal ver na crise dos anos 40 os ltimos sobressaltos do capitalismo e o preldio da revoluo. De resto, Engels no foi o nico observador a alimentar esta idem. Sabemos que, longe de constituir o fim do capitalismo, esta crise no foi seno o preldio de um grande perodo de expanso baseado, por um lado, no desenvolvimento massivo da indstria pesada, ago, ferro, cami16 Cf. E. J. HOBSBAWM: The Aristocracy of Labour in 19th Century Britain in J. SAVILLE erf.: Democracy and the Labour Move ment, Lorrdres, 1954. 17 Adapto aqui a periodizao correntemente admitida pelos economistas ingleses e que se baseia em diversos ndices econmicos. C. ROSTOV: British Economy in the 19th Century, Oxford, 1948. " Principalmente Ricardo (1817), James Mill (1821), Malthus (1815) e Sir Edward West (1815A82Q). Embora utilizando ambos esse termo, nem Adam Smith (1776), nem John Stuart Mill (1848) parecem, nos seus escritos, ter acreditado na eminncia dessa estagnao final do capitalismo.

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nhos de ferro, em oposio ao desenvolvimento da indstria txtil no perodo precedente e, par outro lado, na conquista de sectores ainda mais vastos em pases ate ento no desenvolvidos, na derrota dos agrrios e, finalmente, na descoberta de novos mtodos, mais eficazes, da explorao das classes trabalhadoras, pelo crescimento da mais-valia relativa, mais do que pelo da mais-valia absoluta. (De resto, foi estes mesmos mtodos que finalmente permitiram aios capitalistais ingleses proceder a substanciais melhorias dos slarios reais.) Tambm sabemos que a crise revolucionria prevista por Engels no afetou a Gr-Bretanha, e isto em virtude dessa lei do desenvolvimento desigual, de cuja existncia Engels dificilmente poderia suspeitar. Com efeito, enquanto que no continente o perodo econmico correspondente devia atingir o seu ponto culminante no decurso da grande crise de 1847-1848, ele tinha-o atingido em Inglaterra alguns anos antes, com a crise catastrfica de 1841-1842; por volta de 1848 j tinha comeado o perodo de expanso econmica com o grande boom dos caminhos de ferro em 18bb-1847. O equivalente britnico da Revoluo de 1848 foi greve geral cartista de 1842 19. A crise donde saram s revolues continentais no constituiu em Inglaterra seno a breve interrupo duma fase de rpida recuperao. Naturalmente, este novo perodo modificou a situao descrita por Engels. Tendncias at ento latentes apareceram luz do dia, tomaram forma e conscincia: foi o caso da Constituindo de uma aristocracia operria e da propagao do reformismo no movimento operrio. Engels e, pois, prejudicado pelo facto de escrever no preciso momento em que uma fase econmica da lugar a outra, nesse intervalo de alguns anos em que a natureza exacta das tendncias econmicas se deveriam conservar quase irremediavelmente impenetrvel. Ainda hoje, estatsticos e historiadores discutem para saber exatamente em que momento e que se situa a fronteira que separa, entre 1842 e 1848, o marasmo da idade do ouro do capitalismo ingls. Seria difcil reprovar a Engels o no ter visto isso com mais clareza do que nos. Seja como for, quem quer que examine imparcialmente o livro de Engels, deve admitir que os seus errosNo momento em que Engels redige o seu livro, o movimento cartista acaba de atingir o seu ponto culminante, mas o seu declnio s se tornara perceptvel nos anos seguintes. Donde, em parte, as Iluses de Engels sobre a iminncia da revoluo social. 16

no dizem respeito ao essencial, e no pode deixar de ficar muito impressionado com os seus resultados. Estes no se devem unicamente ao seu talento pessoal, que e evidente, mas tambm as suas convices comunistas, por muito impregnadas que ainda estejam do utopismo burgus. E dai que ele retira aquela perspiccia econmica, social e histrica infinitamente superior a de todos os seus contemporneos, partidrios declarados da sociedade capitalista, e que lhe permite antecipar algumas concluses a que Marx chegar em seguida. Engels pro-va-nos que, no domnio das pesquisas sociais, ningum poderia produzir uma obra cientifica sem se ter desembaragado previamente das Iluses da sociedade burguesa.

III A DESCRICAO DA INGLATERRA EM 1844 Em que medida nos podemos basear nesta descrio da classe operria inglesa? Ser suficiente? As suas asseres foram confirmadas pelas pesquisas histricas posteriores? 20. A descrio de Engels assenta ao mesmo tempo em observaes ao vivo e nas obras que ele tinha a sua disposio. E evidente que ele conhece o Lancashire industrial e sobretudo a regido de Manchester, e que visitou as principais cidades industriais do Yorkshire: Leeds, Bradford, Sheffield, assim como passou vrias semanas em Londres. Nunca ningum sustentou seriamente que ele tenha falseado o seu testemunho. Entre os captulos descritivos, torna-se claro que grande parte dos captulos III (As grande cidades), V (A imigrao irlandesa), VII (O proletariado nas indstrias txteis), IX (Os movimentos operrios) e XII (Atitude da burguesia) se apiam em observaes pessoais. No esqueamos que Engels no e um simples turista, mas que vive no meioA critica clssica, formulada pela primeira vez por V. A. HUBER: Janus, 7845, vol. II, p. 387 e B. HILDEBRAND: Nationaloeko-nomie der Gegenwart und Zukunft, Frankfort, 1848, resume-se a isto: Mesmo que os factos relatados por Engels sejam verdadeiros, a sua interpretao e demasiado sombria. Os seus editores ingleses mais recentes chegam ao ponto de dizer: 0s historiadores j no podem considerar o livro de Engels como obra autorizada e contendo um quadro fiel da sociedade inglesa por volta de 1840 (Chaloner e Henderson, p. XXXI). Assero absolutamente absurda.220

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da burguesia industrial. Alem disso, conhece cartistas e socialistas por ter trabalhado com eles e, finalmente, possui um conhecimento directo e profuso da vida das classes trabalhadoras21. No resto do livro, assim como para confirmar o seu prprio testemunho, Engels baseia-se noutros observa-dores e em fontes impressas; tem sempre grande cuidado em ter presentes s tendncias polticas destes documentos e cita, sempre que isso lhe e possvel, fontes capitalistas (Ver o ultima pargrafo do seu prefcio). Sem ser exaustiva, a sua documentao e indubitavelmente solida e rica. A acusao segundo a qual ele trunca e deforma as suas fontes cai pela base 22. Apesar de um certo numero de erros de transcrio, vrios dos quais sendo corrigidos por Engels no decurso de edies ulteriores 2 e de uma tendncia bastante forte para resumir as suas citaes em vez de as reproduzir palavra por palavra, nada prova que ele tenha falsificado alguma das suas fontes, e se se pode descobrir algumas, que ele no utilizou o mais frequente e estas confirmarem as suas afirmaes. Teria podido, por exemplo, completar a sua descrio da crise de 181^1-18^2 com a ajuda das estatsticas da presente depresso do comercio de Bolton, de H. Ashworth, no Jornal of the Statistical Society, V fonte que utilizar em seguida, das Statistics of the Vauxhall Ward in Liverpool do owenista J. Finch (Liverpool), e sobretudo do Report of the Statistical Comminttee appointed by the Anti-Corn-Law Conference... (18^2), Londres2i. Estes documentos oferecem-nos um panorama ainda mais assustador desta crise que o de21 Em 1843, conhece Mary Burns, operaria de origem irlandesa, com quem vivera ate a morte desta. Sem duvida alguma, ela p-lo em contacto com certos meios operrios e irlandeses de Manchester. Ira utilizar muito duas publicaes: o Northern Star e o Manches ter 'Guardian. 22 Os poucos exemplos de deformaes que os editores mais hostis a Engels (por exemplo Chaloner e Henderson) conseguiram encontrar s se reportam a questes inteiramente de pormenor e no serviriam a um observador Imparcial para tirar concluses. 23 Contudo, Engels, no conjunto, redigiro o seu livro na Alemanha e redigindo-o depressa, no pode confrontar as suas fontes. E em 1892, no se entregou a uma reviso profundo da sua obra. Dai, terem subsistido alguns erros materiais (datas, nmeros). Precisemos mais uma vez que eles nada retiram ao valor do livro e no diminuem o seu interesse. 24 Sobre estes e outros documentos cf.E. J. HOBSBAWM: The British Stanord of Living, 1790-1850, na Economic History Review, 2." Ser., X., 1, 1957.

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Engels. Melhor dizendo, no se pode reprovar a Engels o < toother as suas conforme coincidam ou no com as Was feses. Quanto muito, poderemos dizer que no utiliza todos os materiais disponveis nessa poca nos Parliamentary Papers25 2? evidente que ele se preocupava mais i ver as suas observaes confirmadas e completadas por fontes no comunistas do que em escrever uma tese oxaustiva. Para qualquer homem de boa f, A Situao r uma obra muito bem documentada. Em geral censuram-se duas coisas a Engels: primeiro hr deliberadamente enegrecido o quadro, e, em seguida, lar subestimado a boa vontade da burguesia inglesa. Nenhuma destas criticas resiste a um exame aprofuno. Com efeito, em parte alguma Engels descreve os trabalhadores como uniformemente desprovidos de tudo, famintos e mal possuindo as recursos sufidentes para subsistirem, nem como uma massa indiferenciada unicamente composta por indigentes. Os que Ihe atribuem apreciaes to excessivas nem sempre se deram ao trabalho de ler a seu texto. Ele nunca afirma que a situao dos trabalhadores no tenha sofrido nenhuma melhoria. 0 resumo que ele dd da vida dos trabalhadores (fim cap. HI) evita todo o esquematismo. E certo que poderia ter insistido nos aspectos menos sombrios do seu panorama, mas isso a custa da verdade. Seja quem for que, viveno na Tnglaterra de 18^2-18^, tivesse tragado um quadro mais risonho da vida dos trabalhadores teria feito mais uma obra apologetica do que a de jornalista preocupado com a verdade. No e Engels, mas o industrial burgus e liberal J. Bright, quem nos descreve nestes termos uma manifestagao de grevistas do Lancashire: A cidade foi invadida, as onze horas; por cerca de 2 000 mulheres e raparigas que desfilaram atraves das ruas cantano hinos. Era um espectdcula comovente e singular, que se aproximava do sublime. Tem uma fome horrivel. Um pdo e engolido com uma voracidade indes-critivel, e, mesmo que esteja completamente coberto de lama, devoram-no com avidez 28. Quanto a acusagcia segundo a qual Engels teria calu-niado a burguesia e, pfovavelmente, preciso ver nisso o eco da velha tendncia liberal em atribuir todas as25 P. e G. Ford fornecem-nos um guia util na Select List of British Parliamentary Papers 1833-1899, Oxford, 1953. 26 N. McCord: The Anti-Corn Law League (18321-846), Londres, 1958, p. 127.

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melhorias da condigdo operria ao credito da benevo-lencia e da consciencia social da burguesia, em vez de as atribuirem as lutas operrias. Contrariamente a uma opinido admitida, Engels no apresenta a burguesia como um unico bloco de demonios negros (Cf. a comprida nota do fim do cap. XII). As suas generalizagoes no preten-dem abranger todos os casos particulares. E, contudo, quantas vezes no encontramos na pena de escritores no-comunistas a mesma andlise das atitudes tipicas do burgues ingles da epoca. Os seus burgueses so os de Dickens nos Tempos Dificeis, os do cash nexus (as tran-sacgoes financeiras e o interesse substituiram-se a todas as relagoes humanas) de Thomas Carlyle27. So os des-critos pelos edonomistas escoceses dos excelentes romances de Thomas Love Peacock. A sua hipocrisia e a sua dureza so as que mais tarde evocard o poeta A. H. Clough nos seus versos cheios de azedume: No matards, mas e inutil bateres-te para salvares aqueles que rebentam. A sua indiferenga absoluta a respeito dos pobres 6 a daqueles capitalistas partiddrios do livre cdmbio que embora bons maridos e bans pais de familia caucio-nados com toda a especie de virtudes privadas (p. 335) encaram seriamente, em 18^2, um lock-out gerdl, a fim de fazer presso sobre o governo2S: dito de outro modo, estavam dispostos a reduzir os seus operrios a fome sem pestanejar. (No e por acaso que Engels esoo-Ihe (para ilustrar a sua tese o burgues liberal livre--cambista: viveno ele propria na capital do liberalismo burgues, sabe do que fala). Com efeito, longe de enegrecer a burguesia, Engels mostra-se visivelmente desconcertado pela sua cegueira. No para de repetir que se ela fosse inteligente, aprenderia a fazer ooncessoes aos trabalha-dores29. (Cf. o antepenultimo pardgrafo do capitulo I e o ultimo do capitulo VI). 0 odio ao que a burguesia e as suas atitudes repre-sentam, no se reporta em Engels a um odio ingenuo aos maus, por oposigdo aos bons. Ele resulta da sua critica ao cardcter desumano do capitalismo que automa21 Ver sobre este ponto a c&ebre passagem do Manifesto Comu-nista ortde Marx descreve este processo (Le Manifeste, Ed. Soc, p. 17.)

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McCord, op. cit., cap. V.

Ela fe-lo no pertodo economico seguinte. As consideragoes de Engels mostram-no consciente das tendencias que, se bern que momentaneamente eclipsadas por outras no momento em que se desencadeou a arise, voltariam mais tarde ao primeiro piano. 20

ticamente transforma os exploradores numa classe pro-funomente imordl, mcuravelmente apodrecida e interior-mente roida pelo egoismo. Mas se todas estas censurais estao mal funomen-tadas, e, no entanto, possivel encontrar na sua descrigdo um certo numero de omissoes. Assim, e indubitdvel que no teria subestimado a influencia da ideologia religiosa sobre os trabalhadores se conhecesse melhor os meios rurais e mineiros que descreve, sobretudo, em seguno mdo. Acontece que o Lancashire, regido que conhecia melhor^ era a regido industrial por excelencia, onde as seitas protestantes eram particularmente fracas nos meios operrios, como o mostraria o Recenseamento' Religioso de 185130. Engels tambem poderia ter dedicado mais atengdo ao movimento cdoperativo, oriuno do socialismo utdpico, c que, em breve, deveria ganhar certa importancia: os pioneiros destas cooperativas estabelecem a sua primeira loja em Rochdale, no longe de Manchester, no preciso momento em que Engels redige a sua obraS1. Embora de um excelente resumo das heroicos esforgos dos traba-Ihadores para organizarem a sua propria educagdo, no nos diz grande coisa sobre as formas menos politicas, mas muito interessantes, da cultura proletdria. verdade que os progressos da industrializao destruiram rapi-damente algumas destas formas, sem suscitarem outras novas: a cangdo popular extingue-se32, os clubes de fute-bol ainda no existem. Contudo, tais criticas no atingem funomentalmente o valor documental da obra que e ainda, hoje como em 181}5, de longe, a melhor livro que apa-rcceu sobre a classe operria desta epoca. Excluino o pequeno grupo de criticos que, recente-mente, e por razoes abertamente politicas, se esforam por desacreditd-loss, todos os historiadores viram e con30 Quando, em 1844, Lord Lononderry expulsou os mineiros em greve, dois tergos dos metodistas primitivos da regiao de Durham pcrderam os seus lares. Sobre os problemas das seitas operarias, cf. E. HOBSBAWM: Primitive Rebels, Manchester, 1959. 31 Cf. G. D. H. COLE: A Century of Cooperation, Londres, 1944. 12 A Workers's Music Association of Lonon, publicou colecgoes de cantos popuiares da e~poca, tais como Come All Ye Bold Miners (Lloyd e McColl)). " Esta tomada de posigao de defesa do capitalismo aparece claramente em F.-A. HAYEK: Capitalism and the Historians, Londres, 1951.

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tinuam a ver em A Situao um grande cldssico. Os pioneiros da historia economica inglesa admitiram a vali-dade das suas decries. A ultima boa historia economica da Inglaterra fala destas pdginas subtis e penetrantes34, e o funodor da escola historica anti-engelsiana, Sir John Clapham, no encontrou seno esta restrigdo a formular: A obra 35 verdadeira em tudo e o que descreve, mas no descreve tudo . A Situao da classe trabalhadora em Inglaterra continua a ser uma obra indispensavel, e e um marco no oombate pela emancipagao da mimanidade. E. J. HOBSBAWM

34 W. H. COURT: Concise Economic History of Great Britain, Cambridge, 1954, p. 236. 35 Economic History of Modern Britain, Cambridge, 1939, vol. I, p. 39. 36 . J. HOBSBAWM, autor deste prdlogo, e um ecorromista e histpriador ingles, \autor de numerosas obras e artigos sobre a situao operaria inglesa.

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AS CLASSES TRABALHADORAS1 DA GRA-BRETANHA

Trabalhadores, E a vos que dedico uma obra onde tentei descrever aos meus compatriotas alemaes um quadro fiel das vossas condies de vida, dos vossos sofrimentos e das vossas esperangas e das vossas perspectivas. Vivi muito tempo entre vos para ficar bem informado das vossas condies de vida; consagrei a mais seria atengao a conhecer-vos bem; estudei os mais diversos documentos oficiais e no oficiais que tive a possibiiidade de consultar; no fiquei nada satisfeito; no era um eonheeimento abstraeto do meu assunto que me interessava, queria conhecer-vos nas vossas casas, observar-vos na vossa existencia quotidiana, falar convosco das vossas condies de vida e dos vossos sofrimentos, testemunhar as vossas lutas contra o poder social e politico dos vossos opressores. Eis como procedi: renunciei a sociedade e 2aos banquetes, ao Porto e ao Champagne da classe media , e consagrei quase exclu1 Esta dedicat6ria foi escrita por Engels em inglgs. Aqui, ele emprega de facto o plural Working Classes*, enquanto utiliza o singular no titulo da obra. Numa carta a Marx de 19 de Novembro de 1844, Engels explica que a deseja imprimir a parte e dirigi-la aos chefes dos partidos politicos, aos homens de letras e aos membros do parlamento. Ela figura em ingles nas edigoes alemas de 1845 e 1892, mas esta ausente nas edigoes americanas e inglesa de 1887 e 1892. 2 A burguesia.

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sivamente as minhas horas vagas ad convivio com simples trabalhadores; estou ao mesmo tempo orgulhoso e feliz por ter agido deste modo. Feliz, porque assim vivi muitas horas alegres, enquanto aprendia a conhecer a voissa ver-dadeira existencia muitas horas que, se assim no fosse, teriam sido desperdigadas em tagareliees conven-cionais e em cerimonias reguladas por uma aborrecida etiqueta; orgulhoso porque tive assim ocasiao de fazer justiga a uma classe oprimida e caluniada a qual, apesar de todos os seus defeitos e de todas as desvantagens da sua situao, so poderia recusar aprego quern tivesse alma dum comerciante ingles; orgulhoso ainda, porque estive assim em condies de poupar ao povo ingles o desprezo crescente que foi, no continente, consequencia inelutavel da politica brutalmente egoista da vossa classe media actualmente no poder e, mais simplesmente, da entrada em cena desta classe. Graas as vastas possibilidades que tinha de obser-var ao mesmo tempo a classe media, vossa adversaria, cheguei rapidamente a conclusao que tem razao, muita razao, em no esperar dela nenhuma ajuda. Os seus inte-resses e os vossos sao diametralmente opostos, se bem que ela procure sem cessar afirmar o contrario e vos queira fazer crer que sente pela vossa sorte a maior simpatia. Os seus actos desmentem as suas palavras. Espero ter apresentado provas suficientes de que a classe media apesar de tudo o que afirma no tem, na realidade, outra finalidade que no seja enriquecer-se a custa do vosso trabalho, enquanto pode vender o iproduto dele, e deixar-vos morrer de fome, quando ja no pode tirar lucros desse comercio indirecto de carne humana. Que fizeram eles para provar que vos querem bem, como o afirmam? Alguma vez dedicaram a minima atengao aos vossos sofrimentos? Alguma vez fizeram mais que con-sentir nas despesas que implicam meia duzia de comis-soes de inquerito cujos volumosos relatorios estao condenados a dormir etemamente sob os amontoados de dossiers esquecidos nas prateleiras do Home Office s? Alguma vez chegaram a retirar dos seus Livros Azuis a materia de pelo menos uma obra legivel, que desse a cada um a possibilidade de reunir sem custo uma pequena documentagao sobre as condies de vida dos livres cida-daos britanicos ? No, nunca o fizeram; sao coisas de queMinistgrio do interior. :>A

no gostam de f alar. Deixaram a um estrangeiro o cuidado de apresentar ao muno civilizado um relatorio sobre a desonrosa situao em que sois obrigados a viver. Estrangeiro para eles, mas no para vos, seguno espero. Pode ser que o meu ingles 4no seja puro, mas, apesar de tudo, espero que o achareis claro . Nunca nenhum operario em Inglaterra nem na Franga, diga-se de passagem me tratou como estrangeiro. Tive o maior prazer em ver-vos isentos dessa mal-digao que e a estreiteza nacional e a suficiencia natural, que no passa, no fim de contas, de um egoisnio em grcmde escala: observei a vossa simpatia por quem quer que dedique honestamente as suas foras ao progresso humano, seja ingles ou no a vossa admiragao por tudo o que e nobre e bom, tenha ou no nascido na vossa terra natal; verifiquei que sois muito mais do que mem-bros de uma nagao isolada, que so querem ser Ingleses; constatei que sois homens, membros da grande familia intemaeional da humanidade, que reconheeestes que os vosisos interesses e os de todo o genero humano sao identicos; e e a esse titulo de membros da familia una e indivisivel que a humanidade constitui, a esse titulo de seres hivmanos, no mais pleno sentido do termo, que eu saudo eu e muitos outros do eontinente os vossos progressos em todos os dominios e que .vos desejamos um rapido exito. Para a frente na via em que vos emipenhastes! Esperam-vos ainda muitas dificuldades; mantende-vos firmes, no vos deixeis desencorajar, o vosso exito e certo e cada passo em frente, nesta via que tendes de percorrer, servira a vossa causa comum, a causa da humanidade. Barmen (Prussia Renana), 15 de Margo de 1845. F. ENGELS

4 O texto ingl6s diz: e ingles verdadeiro. O termo alemao (5 inequivoco: deutlich.

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PREFACIO

As paginas seguintes abordam um assunto que eu queria inieialmente apresentar apenas como um capitulo que se insere num trabalho mais vasto sobre a historia social da Inglaterra1; mas em breve a sua importancia me obrigou a dediear-lhe um estudo particular. A situao da classe operaria e a base real donde sairam todos os movimentos actuals porque ela e, ao mesmo tempo, o ponto maximo e a manifestagao mais visivel da miseravel situao social actual. Os comunis-mos operrios frances e alemao sao disso o resultado directo, o fourierismo, o socialismo ingles, bem como o comunismo da burguesia alema, o resultado indirecto. O conhecimento das condies de vida do proletariado e uma necessidade absoluta se quisermos assegurar uma base solida as teorias socialistas bem como aos jui-zos sobre a sua legitimidade, acabar com todas as divagagoes e fabulas pro e contra. Mas as condies de vida do proletariado no existem na sua forma cldssica, na sua perfeigao, seno no Imperio Britanico, e mais particularmente na Inglaterra propriamente dita; e ao mesmo tempo, so em Inglaterra e que os dados necessa-rios estao reunidos de uma forma tao completa, e veri-ficados por inqueritos oficiais, como o exige qualquer estudo sobre este assunto, por pouco exaustivo que seja.1 Engels no escreveu essa hist6ria social da Inglaterra que projectava. Contudo, publicou, entre 31 de Agosto e 19 de Outubro de 1844, varios artigos sobre esse assunto no Vorwarts (Gesam-tausgabe 1, vol. Berlim, 1932, pp. 292-334).

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Durante vinte e um meses, tive ocasiao de travar conhecimento com o proletariado ingles, estudar de perto os seus esforgos, os seus sofrimentos e alegrias, fre-quentano-o pessoalmente, ao mesmo tempo que com-pletava estas observagoes utilizano as fontes autenticas indispensaveis. Utilize! nesta obra o que vi, ouvi e li. Espero ver ataeados de varios lados, no so o meu ponto de vista, mas tambem os factos citados, sobretudo se o meu livro cair nas maos de leitores ingleses. Tambem sei que aqui e ali se podera sublinhar alguma inexactidao insignificante (que mesmo um ingles, dada a amplitude deste assunto e tudo o que ele implica, no teria podido evitar), com tanta mais facilidade quanto e certo que no existe, na propria Inglaterra, uma obra que se refira, como a minha, a todos os trabalhadores; mas no hesito um so momento em desaf iar a burguesia inglesa a demons-trar-me a inexactidao de um unico facto com alguma importancia do ponto de vista geral, e demonstra-lo com a ajuda de documentos autenticos como os que eu proprio apresentei. E principalmente para a Alemanha que a exposigao das condies de vida do proletariado do Imperio Brita-nico sobretudo na hora actual reveste uma grande importancia. O socialismo e o comunismo alemaes tive-ram a sua origem, mais do que quaisquer outros, em hipoteses teoricas; nos, os teoricos alemaes, ainda conhe-cemos demasiado pouco o muno real para que sejam as condies socials reals que nos tenham polido ineitar imediatamente a reformar essa ma realidade. Pelo menos entre os partidarios confessos destas reformas quase nenhum chegou ao comunismo seno atraves da filosofia de Feuerbach que reduziu a pedagos a especulagao hege-liana. As verdadeiras condies de vida do proletariado sao tao pouco conhecidas por nos, que mesmo as filan-tropicas Associagoes para a elevagao das classes tra-balhadoras, no seio das quais a nossa burguesia actual despreza a questao social, tomam sempre como pontos de partida as opinioes mais ridiculas e mais insipidas sobre a situao dos trabalhadores. E sobretudo para nos, alemaes, que o conhecimento destes factos e, neste caso, uma necessidade imperiosa. B se as condies de vida do proletariado na Alemanha no chegaram a este grau de classicismo que conhecem na Inglaterra, depa-ramos, no funo, com essa mesma ordem social, a qual chegara, necessariamente, mais cedo ou mais tarde, ao ponto critico atingido do outro lado da Mancha no28

caso da perspicacia da nagao no tomar medidas a tempo para dar ao con junto do sistema social uma base nova. As causas fundamentais que provocaram em Inglaterra a miseria e a opressao do proletariado existem igual-mente na Alemanha, e devem provocar, necessariamente, OH mesmos resultados. Mas, entretanto, a miseria inglesa, dovidamente constatada, dar-nos-a a oportunidade de oonstatarmos a nossa propria miseria alema, e fornecer--nos-a um criterio para avaliar a importancia do perigo que se manifestou nos incidentes da Boemia e da Silesia 3 que, deste lado, ameagam a tranquilidade imediata da Alemanha. Para terminar, tenho ainda duas observagoes a fazer. l'rimeiro, utilizei constantemente a expressao classe midia no sentido ingles middle-class (ou como se diz quaise sempre: middle-classes); esta expressao designa, como o termo frances bourgeoisie, a classe possuidora, e, particularmente, a classe possuidora distinta da cha-mada aristocracia classe que na Franga e na Inglaterra detem o ipoder politico directamente, e na Alemanha indi-rectamente a coberto da opiniao publica. Utilizei tam-bem, constantemente, como sinonimos, as expressoes trabalhadores (working men) e proletarios, classe quase sempre: middle-classes); esta expressao desigTia, na maior parte das citagoes, indiquei o partido ao qual pertencem aqueles cuja caugao utilizo porquequase sempreos liberals procuram sublinhar a miseria das regioes agricolas, ao passo que, pelo contrario, os con-servadoreis reconhecem a miseria nas regioes industrials e fingem ignorar as regioes agricolas. E por esta razao que quando os documentos oficiais apresentam pontos fracos, preferi, para descrever a situao dos trabalhadores de fabrica, um documento liberal, com o proposito de com-bater a burguesia liberal com as suas proprias declara-goes, e reeorri aos tories e aos cartistas quando conhecia bem o assunto por o ter verificado eu proprio, ou quando a personalidade ou o valor literario das autoridades podia convencer-me da verdade das suas afirmagoes. Barmen, 15 de Margo de 1845.3 Engels refere-se as revoltas dos teceloes em 1844. Na Silesia, as tropas intervieram, nomeadamente em Langenbielau, e abafaram a revolta em sangue. Na Boemia, no mesmo ano, nos distritos de Leitmeritz e de Praga, os trabalhadores tomaram de assalto as fabricas tSxteis e destruiram as maquinas.

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INTRODUgAO1

A historia da classe trabalhadora em Inglaterra eomega na seguno metade do seculo passado, com a invengao da maquina a vapor e das maquinas destinadas a trabalhar o algodao. Sabe-se que estas invengoes desen-cadearam uma revolugao industrial2 que, simultanea-mente, transformou a sociedade burguesa no seu conjunto o cuja importancia so agora se comega a reconhecer na historia do muno. A Inglaterra e o pais classico desta revolugao que foi tanto mais poderosa quanto mais silenciosamente se fez. E por isso que a Inglaterra e tambem o pais de eleigao onde se desenvolve o seu resultado essencial, o proletariado. E so em Inglaterra que o proletariado pode ser estudado em todos os seus aspectos e relagoes. Por agora no temos que nos preocupar com a historia desta revolugao, nem com a sua imensa importancia para o presente e para o future E preciso reservar este estudo para um trabalho posterior mais vasto. Proviso-riamente devemo-nos limitar a algumas informagoes1 As primeiras paginas desta introdusao inspiram-se larga-mente na obra de P. GASKELL: The Manufacturing Population of England, 1833, p. 15-32. * Se n&o criou a expressfio, Engels 6 um dos primeiros a emprega-la (Cf. CLARK: The Idea of the Industrial Revolution, Glasgow, 1953).

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)i(-cc:::;:in;ir, para a compreensao dos factos que se seguem, para a compreensao da situacao actual dos proletarios ingleses. Antes da introducao da maquinaria, a fiagao e a tecelagem das materias-primas efectuava-se na propria casa do trabalhador. Mulheres e raparigas fiavam o fio que o homem tecia ou que elas vendiam, quando o chefe de familia no o trabalhava. Estas familias de teceloes viviam, na maior parte dos cases, no campo, proximo das cidades, e o que ganhavam assegurava perfeitamente a sua existencia, porque o mercado intemo constituia ainda o factor decisivo da procura de fazenos era mesmo o unico mercado e o poder esmagador da eon-correncia que devia aparecer mais tarde, com a con-quista de mercados estrangeiros e com a extensao do comercio, no pesavam ainda sensivelmente no salario. A isto juntava-se um permanente crescimento da procura do mercado intemo, paralelamente ao lento crescimento da populao, o que permitia ocuipar a totalidade dos trabalhadores; e preciso mencionar, por outro lado, a impossibilidade de uma concorrencia brutal entre os trabalhadores, dada a dispersao do habitat rural. Assim, o tecelao podia fazer, muitas vezes, economias e arrenor um bocado de terra que cultivava nas horas de ocio. Ele determinava-as a sua vontade porque podia tecer quando e durante quanto tempo desejasse. E certo que era um pobre campones e que se dedicava a agricultura com certa negligencia, sem tirar dela um proveito real; mas, pelo menos, no era um proletario e tinha plantado como dizem os ingleses uma estaca no solo da sua patria, tinha uma habitacao e na escala social situava-se no escalao acima do trabalhador ingles de hoje 3. Assim, os trabalhadores viviam uma existencia em geral suportavel e levavam uma vida honesta e tran-quila, em tudo piedosa e honrada; a sua situao material era bem melhor que a dos seus sucessores; no tinham necessidade de se matarem a trabalhar, no faziam mais do que lhes apetecia e, no entanto, ganhavam para as suas necessidades e tinham tempos livres para um trabalho sao no jardim ou no campo, trabalho que era para eles uma forma de descanso, e podiam, por outro lado, participar nas distracgoes e jogos dos seus3 O fim deste paragrafo resume de muito perto uma passa g-em de GASKELL: op. cit., pp. 16-17.

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vizinhos; e todos estes jogos, ehinquilho, pela, etc., con-tribuiam para a manutengao da sua saude e para o seu desenvolvimento fisico. Eram, na sua maior parte, pessoas vigorosas e bem constituidas, cuja constituigao fisica era muito pouco, ou nada diferente da dos camponeses, seus vizinhos. As crianas cresciam no bom ar do campo e, se tinham que ajudar os seus pais no trabalho, faziam-no ocasionalmente, e nunca durante urn dia de trabalho de oito ou doze horas. O caracter moral e intelectual desta elasse adivi-nha-se faeilmente. Longe das cidades, onde nunca entra-vam, porque entregavam o fio e o tecido a encarregados itinerantes mediante pagamento de um salario, tao isola-dos no campo que pessoas de idade que habitavam nas proximidades das cidades nunca la tinham ido ate ao momento em que as maquinas as despojaram do seu ganha-pao e em que foram coagidas a procurar trabalho na cidade. O seu nivel intelectual e moral era o das gentes do campo, as quais, na maior parte das vezes, estavam directamente ligados pelas suas pequenas terras. Respeitavam o seu Squire o proprietario rural mais importante da regiao como seu superior natural, pe-diam-lhe conselho, submetiam-lhe as suas pequenas querelas e prestavam-lhe as honras que essas relagoes patriar-cais comportavam. Eram pessoas respeitaveis e bons pais de familia; viviam seguno a moral, porque no tinham ocasiao de viver na imoralidade, pois nenhum cabaret ou casa de ma fama se encontrava nas proxi-dades, e o estalajadeiro, em cuja loja, de tempos a tempos, acalmavam a sede, era igualmente um homem res-peitavel, e, na maior parte das vezes, um grande fazen-deiro que fazia questao de ter boa cerveja, boa ordem e que no gostava de se deitar tarde. Tinham os filhos durante todo o dia em casa e inculcavam-lhes a obediencia e o temor de Deus; estas relagoes familiares patriarcais subsistiam ate os filhos casarem; os jovens cresciam com os seus amigos de infancia numa intimidade e numa simplicidade idilicas ate ao casamento, e mesmo que as relagoes sexuais antes do casamento fossem algo quase corrente, so se estabeleciam quando a obrigagao moral do casamento era reconhecida pelos dois lados e nupcias subsequentes restabeleciam a ordem. Em resumo, os tra-balhadores industrials ingleses desta epoca viviam e pen-savam como se vive ainda em certas regioes da Alemanha, contano apenas consigo mesmos, a margem, isem activi33

dade intelectual e levando uma existencia sem sobressal-tos. Raramente sabiam ler e muito menos escrever, iam regularmente a igreja, nao faziam politica, nao conspi-ravam, nao pensavam, gostavam dos exereicios fisicos, escutavam a leitura da Biblia com urn recolhimento traditional, e estavam bem de aeordo, humildes e sem neces-sidades, com as classes sociais mais proeminentes. Mas, por outro lado, estavam intelectualmente mortos; so viviam para os seus interesses privados, mesquinhos, para o tear e para o jardim, e ignoravam tudo do forte movimento que, no exterior, sacudia a humanidade. Sen-tiam-se a vontade na sua pacifica existencia vegetativa e, sem a revolugao industrial, nunca teriam abandonado esta existencia de um romantismo patriarcal, mas apesar de tudo indigna de um ser humano. De facto, nao eram homens mas simples maquinas, trabalhando ao servigo dos poucos aristocratas que tinham ate entao dirigido a historia; a revolugao industrial levou simplesmente esta situagao ate ao seu fim logico, redu-zindo inteiramente os trabalhadores ao papel de simples maquinas, arrebatando-lhes os ultimos vestigios de acti-vidade independente, mas incitando-os, precisamente por essa razao, a pensar em exigir uma posigao digna de seres humanos. Se em Franga isso tinha sido feito pela politica, em Inglaterra foi a industriae de uma maneira geral a evolugao da sociedade burguesa que arrastou no tuiibilhao da historia as ultimas classes mergulhadas na apatia no que respeita aos interesses universais da humanidade. A primeira invengao que transformou profundamente a isituagao dos trabalhadores ingleses de entao foi a Jenny4, inventada em 1764 por um tecelao, James Har-greaves, de Standhill5, perto de Blackburn, no Lancashire do norte. Esta maquina foi o antepassado rudimentar da Mulee, que devia suceder-lhe mais tarde, funcionavaNome da primeira maquina de fiar algodao. " Trata-se na realidade de Stanhill. Engels provavelmente cometeu este erro por adoptar a ortografia de A. URE: Tlie Cotton Manufacture of G. B., 1836, p. 196. 0 Neste dominio, muitas invengoes importantes tinham sido feitas em Inglaterra a partir de 1738. A Jenny de Hargreaves foi aperfelgoada de 1769 a 1771 por Richard Arkwright, cuja maquina foi denominala de throstle. E em 1779 que Samuel Crompton da oa ultimos retoques a sua mule. Por fim, em 1825, ela sera substituida pela maquina automatica de Richard Robert chamada Meil'-actuig-mule ou self-actor.M4

k mao, mas em vez de uma agulha como na roda vulgar do fiar a mao possuia dezasseis ou dezoito, movidas por um so trabalhador. Foi assim que foi possivel for-neccr mais fio que anteriormente; enquanto antigamente um tecelao, que ocupava constantemente tres fiandeiras, ndo tinha nunca fio suficiente, e tiiiha muitas vezes que esperar, agora havia mais fio do que o que os tra-h.ilhadores existentes podiam tecer. A procura de teci-dos que, de resto, estava a aumentar, desenvolveu-se ainda mais devido a melhor venda destes produtos, con-nequencia da redugao das despesas de produgao gragas 1 nova maquina; houve necessidade de mais teceloes e o salario do tecelao aumentou. E, visto que desde entao o tecelao podia ganhar mais trabalhando no seu tear, elc abandonou lentamente as suas ocupagoes agricolas e consagrou-se totalmente a. tecelagem. Nesta epoca, uma familia de 4 adultos e 2 eriancjas, no trabalho de bobina-gcm, chegava a ganhar, em 48 horas de trabalho quoti-diano, 4 libras esterlinas por semana, 28 talers na cota-tagao prussiana actual e muitas vezes mais, quando os negocios corriam bem e o trabalho urgia; frequente-mente acontecia um unico tecelao ganhar no seu oficio 2 libras por semana. Foi assim que, pouco a pouco, a classe dos teceloes agricolas desapareeeu eompletamente, dissolvendo-se na nova classe dos que eram exclusiva-mente teceloes, que so viviam do seu salario e nao possuiam propriedades, nao tendo sequer a ilusao de pr,o-priedade que o trabalho agricola confere. Tornaram-se pois proletdrios (working men). A isto veio ainda jun-tar-se a destruigao da velha relagao entre fiadores e teceloes. Ate entao, na medida do possivel, o fio era fiado e tec'ido sob o mesmo tecto. Agora, visto que a Jenny, bem como o tear, exigiam uma mao vigorosa, os homens tambem se puseram a fiar e familias intei-ras passaram a viver disso, enquanto que outras, for-gadas a porem de lado a arcaica e caduca roda de fiar, tiveram que viver somente dos salarios do pai de familia, quando nao possuiam meios para comprar uma Jenny. Foi assim que comegou a divisao do trabalho entre fiagao e tecelagem, que em seguida iria ser levada ao extremo na industria. Ao mesmo tempo que o prdletariado industrial se desenvolvia assim com esta primeira maquina, todavia muito imperfeita, ela deu igualmente origem a um proleta-riado rural. Ate entao havia um grande numero de peque-nos proprietaries rurais, a quern chamavam os yeomen, os35

quais tinham vegetado na mesma tranquilidade e na mesraa nulidade intelectual que os seus vizinhos, os culti-vadores teceloes. Cultivavam o seu pequeno rincao de terra exactamente com a mesma negligeneia com que o tinham feito os seus pais e opunham-se a qualquer ino-vagao com a teimosia peculiar a estes seres, escravos do habito, que nao mudam absolutamente nada no decurso das gerasoes. Entre eles, havia tambem muitos pequenos fazendeiros, nao no sentido actual do termo, mas pes-soas que tinham recebido dos seus pais e avos um pequeno pedago de terra, fosse a titulo de renda hereditaria, fosse em virtude dum antigo costume, e que nele se tinham estabelecido tao solidamente como se se tratasse de pro-priedade sua. Ora, como os trabalhadores industrials abandonavam a agricultura, encontraram-se disponiveis grande numero de terrenos e f oi ai que se instalou a nova elasse de grandes arrendatdrios, os quais possuiam cin-quenta, cem, duzentas e mesmo mais jeiras. Eram os tenants-at-will, quer dizer, rendeiros cujo contrato podia ser anulado todos os anos, e que souberam aumentar a produgao das terras com melhores metodos agricolas e uma exploragao em maior eseala. Podiam vender os seus produtos mais baratos do que o pequeno yeomen e este nao tinha outra solugao visto que a sua terra ja nao o ali-mentava senao vende-la e adquirir uma Jenny ou um tear, ou empregar-se como jardineiro, proletario agricola, em casa dum grande fazendeiro. A sua indolencia hereditaria e a maneira negligente como valorizava a sua terra, defeitos que tinha herdado dos antepassados, e que nao tinha podido ultrapassar, nao lhe deixavam outra solu-gao, desde que se viu obrigado a entrar em concorrencia com pessoas que cultivavam a propriedade segundo prin-cipios mais racionais e com todas as vantagens que con-ferem a grande cultura e o investimento de capitals com vista a melhoria da terra. Entretanto, a evolugao da industria nao parou. Alguns capitalistas comegaram a instalar Jennys em grandes edificios e a acciona-las por meio de forgo, hidrdulica, o que lhes permitiu reduzir o numero de operarios e vender as fibras mais baratas que os fiandeiros iso-lados, que somente accionavam as suas maquinas a mao. A Jenny foi sucessivamente aperfeigoada, de tal modo que as maquinas se tornavam continuamente antiquadas e precisavam de ser transformadas,, ou mesmo postas de lado; e se o capitalista podia subsistir gragas a utili-zagao da forga hidraulica, mesmo com maquinas bas:>.ndo a unica preocupagao a de obter o maior lucro pos-;.ivcl e de acordo com o principio: por pior que seja um OQSebre, ha sempre um pobre que nao pode pagar um nu Ihor. Mas que quereis, e a cidade velha e e com este argumento que a burguesia se tranquiliza. Vejamos entao qua! e o aspecto da cidade nova (the new town). A cidade nova, tambem chamada a cidade irlandesa (Ihe Irish Town) estende-se para la da cidade velha no flanco de uma colina argilosa entre o Irk e St. George's Hand. Aqui todo o aspecto urbano desaparece. Filas isolating de casas ou formando um con junto de ruas, elevam-se

em certos locals, como pequenas aldeias, sobre o solo de argila nu, onde nem a relva cresce; as casas, ou melhor, os casebres, estao em man estado, nunca foram reparados, sao sujos e tern nas caves alojamentos humi-dos e sordidos; as ruelas nao tern nem pavimento nem canals de escoamento; em eontrapartida ha numerosas colonias de porcos, fechados em pequenos patios ou pocil-gas ou entao errando em liberdade na encosta. Aqui os caminhos sao de tal maneira lamacentos que e preciso que o tempo esteja muito seco para podermos sair sem nos enterrarmos a cada passo ate aos tornozelos. Perto de St. George's Road, as diferentes ilhotas juntam-se, mete-mo-nos numa interminavel enfiada de ruelas, becos, ruas das traseiras e patios, cuja densidade e desordem aumen-tam a medida que nos aproximamos do centro da eidade. No entanto, estas ruas estao, e verdade, frequentemente pavimentadas ou, pelo menos, possuem passagens para peoes pavimentadas e canals de escoamento; mas a suji-dade, o mau estado das casas, e sobretudo das caves, sao os mesmos. Cabem aqui alguns reparos sobre a maneira como sao habitualmente construidos os bairros operarios em Manchester. Vimos na eidade velha que frequentemente o acaso presidia ao agrupamento das casas. Cada casa e construida sem ter em conta as outras e os intervalos de forma irregular entre as casas chamam-se, a falta de melhor termo, patios (courts). Nas zonas um pouco mais recentes deste mesmo bairro, e noutros bairros operarios 52 que datam dos primeiros tempos do desen-volvimento industrial nota-se um esbogo de piano. O inter-valo que separa duas ruas esta dividido em patios, mais regulares, a maior parte das vezes quadrangulares, mais ou menos como se ve em baixo:RUA

Ligeira modificagao de termo na ed. de 1892; Engels substituiu bairros em que se trabalha por bairros operarios: Arbeiterviertel. 90

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Desde o principle que estes patios foram dispostos iiHsim: as ruas eomunicam com eles por passagens cober-tas. Se este modo de construcao ja, era muito prejudicial a saude dos habitantes, na medida em que impedia o arejamento, este metodo de encerrar os operarios em patios fechados por todos os lados ainda e pior. Aqui, o ar nao pode escapar-se de modo nenhum; as diamines das casas se o fogo nao esta, aceso sao as unicas saidas possiveis para o ar aprisionado na armadinha dos patios 53, Acrescente-se ainda que as casas a, volta destes patios sao construidas frequentemente duas a duas, sendo a parede do fundo divisoria, e isto ja e o suficiente para impedir um arejamento satisfatorio e complete. E, como a policia das ruas nao se preocupa com o estado destes patios 5i, como tudo o que ipara ai e atirado ai fica muito tranquilamente, nao temos de nos espantar com a suji-dade e quantidade de despejos e lixo que ai encontramos. Fui a uns patios perto de Millers Street que estavam pel' menos quinze centimetros abaixo do nivel da rua principal, e que nao tinham o mais pequeno canal de escoamento para as aguas da chuva que ai se amon-toavam! Mais tarde, comeou a adoptar-se outro estilo de construo, que e agora o mais corrente. No se constroem as casas operarias isoladamente, mas as dezenas, em quantidade um so empreiteiro constroi de uma so vez uma ou varias ruas. Estas estao dispostas da seguinte maneira: uma das fachadas (Cf. o desenho abaixo) com-preende as casas de primeira categoria que tern a sorte de possuir uma porta e um pequeno patio e que correspondent ao aluguer mais alto. Por tras das paredes destas casas, ha, uma estreita ruela, a rua das traseiras (Clack street), fechada de ambos os lados e cujo acesso e feitoE contudo um ajuizado liberal inglSs afirma no Children's Employment Commission Report *, que estes patios sao a obra--prima de arquitectura urbana, porque melhoram, tal como um grande numero de pragas publicas, o arejamento e a renovacao do ar. Ah! se cada patio tivesse 20 metros quadrados, acessos de frente, abertos e nao cobertos, por onde o ar pudesse circular! Mas eles nunca tern dois, muito raramente um unico descoberto, e quase todos tSm apenas entradas estreitas e cobertas. (F. E.) 81 Estes patios eram considerados propriedade privada. Os poderes da policia neste campo foram um pouco alargados em 1844 (Manchester Police Act).* Cf. R. D. GRAINGER, in Appendix tio the 2d Repport of the Children's Employment Commission, parte I.53

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lateralmente por um estreito caminho ou por uma passgem coberta. As casas que dao para esta ruela pagam o aluguem mais baixo, e sao as mais descuradas. Aa suas parades de tras sao comuns com as da terceira fila de casas que dao para o lado oposto da rua, e correspondem a um aluguer mais baixo que a primeira fila mas maior que a segunda. A disposio das ruas e mais ou menos assim:RUAFiia do meio - B terceira fila de casas - C primeira fila com ptios - A

RUA

Este modo de construir garante um arejamento comparativamente bom para a primeira fila de casas e o da terceira nao e pior que o da fila correspondente na disposigao anterior; em eontrapartida, a fila do meio esta pelo menos tao mal arejada como as casas dos patios, e as ruelas das traseiras estao no mesmo estado de suji-dade e tern uma aparencia tao ma como os patios. Os empreiteiros preferem este tipo de construgao por-que ele poupa espago e da-lhes a possibilidade de explo-rarem mais a vontade os trabalhadores mais bem pagos pedindo-lhes alugueres mais elevados pelas casas das primeira e terceira filas. Estes tres tipos de construgao de casas oiperarias encontram-se em toda a cidade de Manchester e atraves do Lancashire e do Yorkshire, mui-tas vezes misturados, mas de modo geral suficientemente separados para com base neles podermos deduzir a idade relativa dos desiguais bairros da cidade. 0 terceiro sis-tema, o das ruas das traseiras^ predomina nitidamente no grande bairro operario, a leste de St. George's Road, dos dois lados de Oldham Road e Great Ancoats Street, e e tambem o mais vulgar nos outros bairros operarios de Manchester e nos suburbios. no grande bairro que mencionamos, e a que cha-mam Ancoats, que estao instaladas, ao longo dos canais, .1 maior parte das fabricas e as mais importantes giganii-.;

tescas construgoes de seis ou sete andares, que com as suas diamines esguias dominam de muito alto as casas baixas dos operarios. A populagao do bairro compoe-sc principalmente de operarios de fabrica e, nas piores ruas, de teceloes manuais. As ruas situadas nas imediagoes do centro da cidade sao as mais velhas, portanto as piores, embora estejam pavimentadas e providas de canais de escoamento; incluo ai as ruas paralelas mais proximas: Oldham Road e Great Ancoats Street. Mais ao norte encontramos muitas ruas de construgao recente: ai as casas sao graciosas e limpas; as portas e as janelas sao novas e pintadas de fresco, os interiores sao limpos; as proprias ruas sao mais arejadas, os espagos entre elas, sem construgoes, sao maiores e mais numerosos. Mas isto so se aplica a maioria das habitagoes porque exis-tem em quase todas as casas alojamentos nas caves, muitas ruas nao estao pavimentadas e nao tern canais de escoamento e sobretudo o acr limpo nao passa de uma aparencia que desaparece ao fim de dez anos. Com efeitd, o modo de construgao das diferentes casas nao e menos condenavel que a disposigao das ruas. A primeira vista, estas casas parecem muito bonitas e bem feitas, as pare-des de tijolos macigos cativam quem passa e, quando percorremos uma rua operaria de construqaa recente sem nos preocuparmos mais com as ruas das traseiras e com a propria maneira como as casas estao construidas, concordamos com a opiniao dos industrials liberals, que afirmam que em parte alguma os operarios estao tao bem alojados como em Inglaterra. Mas quando olhamos de mais perto, vemos que as paredes destas casas sao o mais estreitas possivel. As paredes exteriores, que sustentam a cave, o res-do-chao e o telhado tern, quanto muito, a espessura de um tijolo, estando, em cada camada horizontal, os tijolos dispostos uns ao lado dos outros, no sentido do comprimento. Mas vi em muitas casas da mesma altura algumas em construgao em que as paredes exteriores nao tinham senao meio tijolo de espessura e onde estes, por conseguinte, nao estavam dispostos no sentido do comprimento, mas no da largura, ajus-tados pelo lado estreito. Isto, em parte, a fim de econo-mizar os materials, em parte tambem porque os emprei-teiros nunca sao os proprietarios do terreno: limitam-se a aluga-lo a moda inglesa por vinte, trinta, quarenta, cinquenta ou noventa anos, apos o que este retorna, com tudo o que ai se encontra, a posse do seu primeiro pro-prietario, sem ique este tenha de pagar seja o que for,93

como iiHJkMiinizagao pelas instalagoes que ai foram feitas. () locutario do terreno planeia pois estas instalagoes de forma a que tenham o menor valor posslvel quando o OOHtrato expirar; como as casas deste genero so sao conatruidas vinte ou trinta anos antes desta data, com-preende-se que os empreiteiros nao queiram ter grandes despesas com elas. Acrescente-se que estes empreiteiros, durante muito tempo pedreiros, carpinteiros ou industrials, quase nao fazem reparagoes, em parte porque nao querem reduzir o lucro dos alugueres, em parte porque se aproxima o fim do aluguer do terreno construido, e porque, em virtude das crises economicas e das privagoes que se lhes seguem, frequentemente ficam desertas ruas inteiras. Por conseguinte, as casas arruinam-se rapida-mente e tornam-se inabitaveis. Com efeito, calcula-se que os alojamentos operarios so sao habitaveis em media quarenta anos. Isto pode parecer estranho, quando vemos as belas paredes macigas das casas novas, que parecem durar varios seculos, mas e assim mesmoa avareza que preside a construgao, a ausencia sistematica de reparagoes, a frequente desocupagao dos alojamentos, a fre-quente e perpetua mudanga de locatarios e, por outro lado, as depradagoes que estes cometem (a maior parte sao iriandeses) durante os dez ultimos anos em que a casa e habitavel: arrancam frequentemente a madeira da construgao para fazerem fogo; tudo isto faz com que ao fim de quarenta anos estas casas estejam em ruinas. E por isso que o bairro de Ancoats, cujas casas datam apenas do desenvolvimento industrial e, em grande parte, apenas deste seculo, conta apesar de tudo com grande quan-tidade de casas velhas e arruinadas, em que a maioria ja atingiu o ultimo estadio de habitabilidade. Nao quero referir aqui a quantidade de capitals que foram desper-digados deste modo, nem como um investimento inicial um pouco mais elevado e pequenas reparagoes teriam sido suficientes para que todo este bairro se mantivesse limpo, conveniente e habitavel durante muitos anos. So me interessa a situagao das casas e dos seus habitan-tes, e e preciso vincar bem que nao ha sistema mais nefasto e mais desmoralizante do que este para alojar os trabalhadores. O operario e constrangido a habitar estas casas em mau estado porque nao pode pagar o aluguer de outras melhores, ou entao porque nao existem melhores nas proximidades da fabrica, e ate talvez porque estas casas pertencem ao industrial e este so empregue os que aceitamMI

habitar num destes alojamentos. Claro que esta duragao de quarenta anos nao e para ser tomada a letra, porque se estas habitagoes estao situadas num bairro com grande densidade de imoveis e se, por conseguinte, apesar da renda predial mais elevada, ha sempre possibilidades de encontrar locatarios, os empreiteiros fazem alguns esfor-gos para assegurar a habitabilidade relativa destes alojamentos para alem dos quarenta anos. Mas neste caso nao ultrapassam o minimo indispensavel, e entao estas casas reparadas sao precisamente as piores. De tempos a tempos, quando se receiam epidemias, a consciencia dos servigos de higiene, normalmente muito sonolenta, des-perta um pouco. Entao empreendem expedigoes aos bair-ros operarios, fecham toda uma serie de caves e de casas, como foi o caso de varias ruelas nas cercanias de Oldham Road. Mas isto e sol de pouca dura; em breve os alojamentos reprovados voltam a ter habitantes, e os proprietaries ainda tem mais facilidade em encontrar locatarios; sabe-se bem que os policias dos servigos de higiene nao voltarao tao cedo! Esta parte leste e nordeste de Manchester e a unica em que a burguesia nao se instalou, pela forte razao de o vento dominante, que sopra durante dez ou onze meses do ano, de oeste e sudoeste, arrastar para ai o fumo de todas as fabricas. Este fumo, os operarios que o respi-rem sozinhos. Ao sul de Great Ancoats Street estende-se um grande bairro operario bem construido, uma zona de colinas, sem vegetagao, com filas ou quarteiroes isolados de casas, dispostos desordenadamente. Nos intervalos, ficam iocais vazios, argilosos, desiguais, sem relva e por conseguinte dificeis de atravessar com tempo chuvoso. As casas sao todas sujas e velhasi frequentemente situadas em buracos profundos, que lembram a cidade nova. O bairro que e atravessado pela via ferrea de Birmingham e aquele em que as casas estao mais amontoadas e e, portanto, o pior. Neste local, os numerosos meandros do Medlock per-correm um vale que em certos sitios e perfeitamente ana-logo ao do rio Irk. De amibos os lados do rio de aguas estagnadas e nauseabundas, tao negro como o pez, estende-se, desde a sua entrada na cidade ate a confluencia com o Irwell, uma larga cintura de fabricas e de habitagoes operarias; estas estao no estado mais deploravel possivel. Frequentemente, a margem e escarpada e as construgoes descem ate ao rio, tal como no Irk; e as ruas e casas estao mal construidas tanto do lado de95

MJUICIICHUT como de Ardwick, Cborlton ou Hulme. O sitio i i.ir.; horrendo (so eu falasse em pormenor de todos os blocoa de imoveis, separadamente, nunca mais acabava) flea do lado de Manchester, a sudoeste de Oxford Road e ohama-se Pequena Irlanda (Little Ireland). Numa depressao de terreno bastante funda, numa curva do Medlock, e cercada pelos quatro lados por grandes fabri-cas e margens altas cobertas de casas ou aterros, estao cerca de 200 casas repartidas em dois grupos, sendo f requentemente a parede de tras a divisoria; habitam al cerca de 4 000 pessoas, quase todas irlandesas. As casas sao velhas, sujas e do tipo mais pequeno: as ruas sao desiguais e cheias de saliencias, em parte sem pavimento nem canais de escoamento; por todo o lado ha uma quantidade consideravel de imundicies, detritos e lama nauseabunda entre os charcos estagnados; a atmosfera esta empestada com as suas emanagoes, enegrecida e pesada pelos fumos de uma duzia de chamines de fabri-cas. Uma multidao de mulheres e criangas esfarrapadas vagueiam por estes sitios, tao sujas como os porcos que se espojam nos montes de residuos e nos charcos. Em resumo, todo este local oferece um espectaculo tao repugnante como os piores bairros das margens do Irk. A populagao que vive nestas casas arruinadas, por detras destas janelas quebradas nas quais foi colocado papel oleoso, e destas portas fendidas com os caixilhos podres, e ate nas caves humidas e sombrias, no meio desta suji-dade e deste cheiro inqualificaveis, nesta atmosfera que parece intencionalmente fechada, na verdade deve situar-se no escalao mais baixo da sociedade. Tal e a conclu-sao e a impressao que o aspecto deste bairro, visto do' exterior, impoe ao visitante. Mas, que dizer, ao sabermosBB que em oada uma destas pequenas casas, que, quanto muito, tern duas divisoes e umas aguas--furtadas, por vezes uma cave, abrigam vinte pessoas e que em todo este bairro ha uma unica casa de banho quase sempre ocupada, claro para cerca de cento e vinte pessoas e que apesar de todos os sermoes dos medicos, apesar da emogao que se apoderou da poli-cia encarregada da higiene durante a epidemia de colera, quando descobriu o estado da Pequena Irlanda, hoje, no ano da graga de 1844, tudo esta quase no mesmo estado"* IHl

Dr. Kay: op. cit., * (F. E).pp. 35-36.

que em 1831 ? O Dr. Kay relate, que, neste bairro, nao sao apenas as caves, mas tambem os proprios res-do-chao que sao humidos; outrora, algumas das caves tinham sido entulhadas, explica ele, mas pouco a pouco desentu-lharam-nas e agora sao habitadas por irlandeses; nunra cave, em que o solo ficava abaixo do nivel do rio, a agua saltava continuamente de um buraco de evacuagao obtu-rado com argila, a ponto de, todas as manhas, o locatario, um tecelao manual, ter de esvaziar a cave e deitar a agua para a rua 0e. Mais a jusante, encontra-se Hulme, na margem esquerda do Medlock, cidade que, para falar com. pro-priedade, nao passa de um grande bairro operario cujo estado, em quase todos os aspectos, e semelhante ao do bairro de Ancoats. Os bairros de grande densidade habi-tacional estao frequentemente em misero estado e quase sempre em ruinas; os bairros com populagao menos densa e de construgao menos recente sao mais arejados, mas tambem frequentemente atolados de lama. Em geral, as casas sao hiimidas e providas de uma rua das traseiras e habitagoes nas caves. Na outra margem do Medlock, em Manchester propriamente dita, existe um segundo grande bairro operario que se estende dos dois lados de Deansgate ate ao bairro comercial e que, em certos sltios, nao fica em nada atras da cidade velha. Principalmente junto do bairro comercial entre Bridge Street e Quay Street, Princess Street e Peter Street, o amontoamento das casas ultrapassa nalguns sitios o dos mais estreitos patios da cidade velha. Encontramos ai compridas vielas, entre as quais ha patios com cantos e recantos, e passa-gens cujas entradas e saidas estao arranjadas com tao pouco metodo que, em semelhante dedalo, entramos a cada passo num beco sem saida ou enganamo-nos na saida, se nao conhecemos a fundo cada passagem e cada patio. nestes locais exiguos, arruinados e sujos, que habita, segundo o Dr. Kay, a classe mais amoral de toda a Manchester, cuja profissao e o roubo ou a prostituisao, e que segundo parece, ainda hoje existe. Quando a policia de higiene aqui fez uma rusga, em 1831, descobriu uma insalubridade tao grande como nas margens do Irk ou na Pequena Irlanda (posso testemunhar que ainda hoje esta na mesma) e entre outras coisas, uma unica retrete O proprio Dr. Kay inspira-se aqui num relato sobre o estado sanitario da cidade feito pela municipalidade de Manchester em 1831. 77 9

para 380 pessoas na Parliament St., e outra para trinta Q&iav com grande densidade populacional na Parliament Passage. Quando vamos a Salford, ao atravessar o Irwell encontramos, numa peninsula formada por este rio, uma cidade com oitenta mil habitantes que, para falar ver-dade, nao passa de um grande bairro operario atravessado por uma unica e larga rua. Salford, outrora mais impor-tante que Manchester, era nessa epoca o principal centro do distrito que a rodeia e que tem ainda o seu nome: Salford Hundred. E por isso que tambem aqui ha um bairro bastante velho, e por conseguinte muito insaiubre, sujo e arruinado, em frente da velha igreja de Manchester, e que esta em tao mau estado como a cidade velha, na outra margem do Irwell. Um pouco mais afas-tado do rio estende-se um bairro mais recente, mas que tambem data de ha mais de 40 anos e por isso e razoavel-mente decrepito. Toda Salford foi construida em patios ou ruelas tao estreitos que me lembraram os becos mais estreitos que conheci, em Genova. Deste ponto de vista, a maneira como Salford esta construida ainda e bem pior que a de Manchester, e o mesmo se pode dizer a respeito de limpeza. Se em Manchester a policia ia pelo menos de tempos a tempos uma vez de seis ou de dez em dez anos aos bairros operarios, para encer-rar os piores alojamentos e limpar os cantos mais sujos destes estabulos de Augias, parece nunca ter feito nada em Salford. Decerto que as estreitas ruelas transversals e os patios de Chapel Street, Greengate e Gravel Lane nunca foram limpos desde que foram construidos; actual-mente a via ferrea de Liverpool atravessa estes bairros num alto viaduto e fez desaparecer muitos dos mais sujos recantos, mas o que e que isso altera? Ao passar no viaduto, ainda podemos ver daqui de cima bastante sujidade e miseria, e se nos dermos ao trabalho de per-correr estas ruelas, de dar uma vista de olhos a estas portas e janelas ^bertas, as oaves e as casas, verificamos a cada momento que os operarios de Salford vivem em alojamentos nos quais qualquer limpeza ou conforto e impossivel. Passa-se o mesmo nos bairros mais afastados de Salford, em Islington, perto de Regent Road, e por tras do caminho de ferro de Bolton. Nos alojamentos operarios entre Oldfield Road e Cross Lane, ou nalguns de Hope Street, encontramos um grande numero de patios e ruelas num estado dos mais deploraveis, rivalizando em sujidade e densidade de populagao com a cidade velhaOH

de Manchester. Aqui encontrei um homem que parecia ter sessenta anos e vivia num. estabulo. Tinha construido neste buraco quadrado, sem janelas, sem soalho nem chao pavimentado, uma especie de diamine; tinha ins-talado ai uma tarimba e ai habitava, se bem qu