A Serra e o Santuário - Capítulo 1
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Capí tu lo 1N o Q u a d r i l á t e r o d o O u r o
E s s e m u l a t o d e g ê n i oS u b i u n a s a s a s d a f a m a ,
T e v e d i n h e i r o , m u l h e r ,e s c r a v o , c o m i d a f a r t a ,
t e v e t a m b é m e s c o r b u t oe m o r r e u s e m c o n s o l a ç ã o
C a r l o s D r u m o n d d e A n d r a d e
– A Serra da Piedade
A
Serra da Piedade está situada na região centro do estado de Minas Gerais e, ao longo do
tempo, veio a transformar-se em símbolo de religiosidade, verdadeiramente induzido a partir
de uma sacralização ali ocorrida em meados do século XVIII, durante o período da
decadência da mineração. Na atualidade, encontra-se inteiramente integrada à cultura do
povo mineiro, tendo-se tornado parte integrante e – diríamos até - primordial da história
religiosa desse estado: Nossa Senhora da Piedade , durante os anos 1960, veio a ser sagrada a
padroeira de Minas Gerais.
A Serra da Piedade é parte de um conjunto alcantilado da Serra do Espinhaço – a
Serra do Curral - cujas elevações têm início a Oeste do estado de Minas Gerais, nas
proximidades da cidade deItaúna. Daí, assumindo a direção geral Nordeste, estende-se por
cerca de 95 quilômetros, até o município de Caeté, o qual é por ela atravessado em seu
extremo Norte. Nesse longo percurso, a serra recebe várias denominações locais,
relativamente recentes, todas surgidas entre meados do século XVIII e início do século XIX,
como: Serra do Itatiaiuçu, Serra Azul, Fecho do Funil, Três Irmãos, Serra do Rola Moça,
Serra da Mutuca, do Curral, do Taquaril, Serra da Piedade e, finalmente, da Descoberta,
ainda em Caeté.
Este conjunto de serranias, cujo ponto culminante está na Serra da Piedade, atingindo
1.746 metros acima do nível do mar, é parte de um conjunto orográfico maior que, em vista
do seu curioso aspecto planimétrico, recebeu a denominação de Quadrilátero Central. Essa
denominação lhe foi dada por Moraes Rego, geólogo dos primeiros a estudarem com
profundidade a sua riqueza ferrífera (ABREU, 1962; vol.II,pp..271-3).
Modernamente, a região passou a ser conhecida pelo nome de Quadrilátero
Ferrífero e tem como limite superior a própria Serra do Curral e seus prolongamentos; como
limite inferior, a Serra do Ouro Branco, que se dispõe em rumo sensivelmente paralelo à
primeira; à esquerda, o seu limite é dado pelas serras do Paraopeba, destacando-se a Serra da
Moeda que, em rumo Nor-Nordeste, vai encontrar a Serra do Curral nas proximidades de
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Contagem; finalmente, em seus limites à direita, estão as serras do Marembá e da Cambota,
do Gongo Soco e do Caraça.
De um outro modo poderíamos delimitar a região ferrífera, como um polígono cujos
vértices estariam nas cidades de Belo Horizonte, Congonhas do Campo, Mariana, Santa
Bárbara, Morro Vermelho, Caeté e Sabará, findando o seu fechamento em Belo Horizonte.
Devemos advertir que algumas jazidas de ferro conhecidas estão fora desses limites, os quais
não perdem sua importância, porque indicam a localização da maioria das jazidas incluídas
na formação geológica conhecida como Série Minas.
- As minas do ouro: aspectos fisiográficos e climáticos
Na região acima apresentada, há mais de 40 milhões de anos, obrou uma orogênese
muito característica, formando suas rochas através da metamorfização de grãos de quartzo e
precipitações químicas de solutos concentrados dos sais de ferro, sobre os primeiros;
dispuseram-se em camadas alternadas e de espessuras variáveis, onde a proporção entre
quartzo e o óxido de ferro resultante (sob a forma do mineral hematita) também variava
muito. Tais estruturas, intensamente metamorfizadas, vieram a se constituir, quando muito
ricas em hematitas, em uma espécie de minério de ferro conhecido como itabirito - tal como
a rocha sobre a qual falaremos abaixo - muito apreciado pelos operadores dos altos-fornos à
carvão de madeira que, justamente por isso, formaram uma tradição metalúrgica na região;
quando pobres em hematita, constituem as rochas ferrosas, friáveis que, trabalhadas pelo
intemperismo, apresentam-se com um aspecto inconfundível, de lâminas paralelas, tendo
sido denominadas originariamente de itabiritos, por Eschwege, quem fez derivar o seu
nome daquele do pico do Itabirito, onde as observou pela vez primeira.
De permeio a esses itabiritos, em lentes de enorme possança, encontram-se as
hematitas compactas, minério de ferro de enorme pureza e altos teores em ferro, muito
apreciado pela siderurgia internacional e cujo exemplo mais representativo está no pico do
Itabirito, atualmente preservado através o seu tombamento como área de preservação natural.
Dessa forma tornou-se formação perene, evitando-se o que ocorreu, em passado ainda
recente, com o pico do Cauê, próximo à cidade de Itabira, totalmente demolido e
transformado em toneladas e toneladas de minério hematítico granulado para a exportação.
A região goza das condições climáticas características de áreas subequatoriais,
segundo a classificação de Martonne, com modificações de altitudes (MATTOS, 1984; pp.7-
41). A pluviosidade é de regime intenso, com médias de precipitações anuais de 1600 mm; a
estação das chuvas estende-se de novembro a fevereiro. As temperaturas médias diárias
oscilam entre 6º C, nos meses frios, até 18ºC nos meses quentes; a insolação média é
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superior às 2000 horas de sol no correr do ano; estes fatores climáticos explicam o
intemperismo exacerbado agindo sobre as rochas dessa região.
Uma consequência do intemperismo sobre aquelas rochas itabiríticas foi a formação,
nos seus cimos, de uma cobertura, espessa de 2 a 3 metros, em alguns pontos, e dura como
se fora uma carapaça, impedindo, ou ao menos dificultando, a continuidade dessa ação do
tempo e do clima. Trata-se, contudo, de uma carapaça estruturalmente heterogênea, deixando
frestas e vazios por onde se inserem as raízes de uma flora rupestre que se instala e progride
lentamente; e que, mercê da alta pluviosidade, geralmente se torna exuberante. Essa
carapaça, formação mineral que tem o nome de canga,1 geologicamente é uma breccia,
formada pelos grãos de quartzo e hematita que resultaram da desagregação primitiva da
rocha-mãe, posteriormente cimentados entre si pela limonita produzida com a dissolução
oxidante dos minerais de ferro preexistentes, seguida pelo carreamento dos solutos e
posterior precipitação sobre aqueles grânulos.
Essa formação não aparece somente nas cumeadas, conferindo-lhes um aspecto
topográfico singular, de peneplanos; elas aparecem também nas encostas e em altitudes mais
modestas, neste último caso assumindo uma textura nodular, mais friável, muito apreciada e
explorada como minério de ferro, para o consumo dos pequenos altos-fornos da região.
Encontramos, também, um exemplo da utilização desse material para a construção civil na
própria capela de Nossa Senhora da Piedade, de Caeté, que foi inteiramente erigida com
seus blocos, no cume da Serra da Piedade, ainda no último quartel do século XVIII.
Assim, nas rochas itabiríticas, as carapaças de canga e uma vegetação rupestre
exuberante constituem-se nos aspectos fisiográficos mais característicos dessas serras. Sua
riqueza proverbial em minérios de ferro de alto teor foi conhecida desde as últimas décadas
do século XIX e manifestada ao mundo quando do Congresso Internacional de Geologia, em
Estocolmo, realizado em 1910 (TAMBASCO, 1998; p.46) .
Mas, anteriormente, essa mesma região também foi proverbialmente rica em ouro,
cujas jazidas foram descobertas e exploradas a partir da última década do século XVII, tendo
sido as responsáveis pelos vigores econômico e cultural das Minas Gerais do século XVIII.
A rigor, poderíamos dizer: o Quadrilátero Ferrífero foi, também, um Quadrilátero Aurífero.
Segundo renomados geólogos, o mineral aurífero dessa região formou-se após a
deposição das rochas da Série Minas, no período geológico denominado Algonquian.
Contudo, autores há que consideram essa mineralização como ocorrida em tempo anterior,
antes da formação de outra Série geológica do mesmo período, a Série Itacolomi. Qualquer
que tenha sido a época precisa, resultou que os veios do mineral aurífero encontraram-se
localizados impregnando as camadas dos itabiritos, dos filitos e dos quartzitos dessas
formações. Ora, tais rochas, encaixantes desses veios, como dissemos sobre os itabiritos,
eram bastante friáveis e susceptíveis de sofrerem intensa desagregação por efeito do
1-Corruptela do vocábulo tupi, itapinhoacanga, que designava tal formação.
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intemperismo. Sob tal ação, no decurso de milênios, essas rochas encaixantes foram erodidas
e liberavam o ouro que, carregado pelas enxurradas, ou se depositavam em meio a outros
sedimentos, nas depressões contíguas, ou eram levados aos leitos dos córregos e riachos que
se formavam nos sopés dessas serranias. Constituíram-se, dessa forma, as jazidas auríferas
ditas secundárias, e que coube aos primeiros descobridores explorar e enriquecerem-se: a
eles coube a fortuna de se beneficiarem daquilo que a natureza levou cerca de 40 milhões de
anos para preparar, mas que bem depressa se exauriram e cujas ocorrências não mais
veremos repetirem-se nesses locais.
A exploração das jazidas primárias, que se constituíam das próprias rochas mãe com
seus veios de minério aurífero, seria a fase seguinte da extração do ouro, agora demandando
o embocamento de galerias naquelas rochas, perseguindo os filões, que se aprofundavam
mais e mais. Por sua natureza, essa foi uma exploração que exigiu mão-de-obra intensiva e,
portanto, fortes aportes de capitais, além do emprego de um alto desenvolvimento
tecnológico em sistemas de aeração, de bombeamentos de águas de infiltração, de
transportes e tratamentos mecânicos dos minérios extraídos, razão pelas quais foi dominada
pelas empresas organizadas na Inglaterra, detentoras que eram da mais alta tecnologia de
exploração de minas subterrâneas.
Contudo, tecnologia de ponta e aporte de capitais, nem sempre foram uma garantia de
sucesso econômico para todas essas empresas, tendo em vista os vários insucessos
empresariais registrados naqueles tempos, principalmente devidos a acidentes inesperados
nas galerias das minas.2
Mas, de qualquer forma, não foi o Quadrilátero Aurífero um El Dorado, como as
legenda costumam descrever. Embora seja inegável que o volume do ouro dali extraído tenha
sido impressionante, este foi também o resultado de um prodigioso esforço muscular de uma
legião de escravos, trabalhando de sol a sol durante quase um século, desde o início do
século XVIII. Ao entrarmos no século XIX, já não havia jazidas secundárias produtivas,
como o eram as primitivas grupiaras. Tornou-se necessário o início dos trabalhos dos
embocamentos de galerias, trabalhadas nas rochas primárias, ou o emprego das “catas”, de
baixo rendimento. Iniciava-se a fase industrial da extração aurífera.
Pelo fato de não termos vivido o El Dorado, e principalmente, pelo esgotamento das
jazidas do ouro aluvial, manifestou-se uma fase de decadência das minas, provocando o
deslocamento de considerável parcela de uma população desenganada, até então mineradora,
fixando-se nas atividades da pequena agricultura, nos pequenos engenhos de açúcar mascavo
e aguardente, e nas fazendas de criatórios diversificados, onde era praticada uma economia
natural: ( PAIM, 1957 ; pass im) .
2- A mina de Cata Branca foi um dos exemplos mais dolorosos desses casos, pois que, além das perdas materiais, mais de cem vidas, a maioria de escravos, foram ali ceifadas no último e grande desmoronamento subterrâneo, ocorrido em 1886. Ver: (SILVEIRA, 1926; pp.54 e 74);
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Tal movimento social determinou a formação de uma sociedade na qual predominou
uma estirpe de homens de espíritos sérios, ponderados, graves e persistentes, mais que por
espíritos aventureiros , de visão curta e imediatista. Consolidou-se uma base social
evoluindo em construção de uma identidade própria, nitidamente distinta das demais frações
sociais surgidas em outras capitanias da Colônia.
É desta sociedade que trataremos mais adiante, buscando caracterizá-la em suas
linhas principais, destacando principalmente o seu misticismo peculiar, o qual veio a
manifestar-se, em toda a sua fé, na criação da capela que seria o núcleo fundacional do
Santuário de Nossa Senhora da Piedade do Caeté.
1.3 – Mitos e descobertas
O imaginário dos navegantes europeus do século XVI era fundamentalmente
voltada para a descoberta de riquezas em ouro e prata. Espíritos formatados pelos princípios
fundamentais do mercantilismo, eles tinham a convicção de que a riqueza metálica era o que
fortalecia uma nação e o seu povo. O comércio, só enriquecia a quem exercesse o monopólio
sobre os produtos comerciados e caso recebesse o seu valor em ouro, de forma a manter, em
seu país, uma constante circulação interna de moeda forte, vale dizer, cunhados em ouro ou
prata. Tal já era o exemplo da Inglaterra, com suas severas restrições ao comércio exterior,
bem cono nas medidas que possibilitavam elevar a capacidade tributária do seu povo.
Portanto, ouro e prata eram os objetivos primeiros e maiores dos descobridores (WEBER.
1968; p.304).
A primeira referência sobre o interior sul-americano como possível zona de riquezas
metálicas é encontrada na Newen Zeytung auss Presillg Landt (Nova Gazeta da Terra do
Brasil), escrita em 1515, antes, portanto, da conquista dos
Aztecas pelos espanhóis e das primeiras expedições exploradoras portuguesas. A Gazeta
traduzia rumores, aos quais acrescentava provas fragmentárias, por exemplo, referindo-se a
um punhal de prata que pertencera a um indígena, e que um comandante português estaria
levando ao rei de Portugal; um segundo pretenso fato comprobatório seria sobre outro
indígena, que estaria sendo conduzido de motu próprio, para contar ao rei português onde
“...se encontram no país tanto ouro e prata que seus navios não podem carregar.” (GUIUCCI,
1993; pp.181-3).
Após a efetiva ocupação do solo brasileiro, estabelecidas as feitorias permanentes e logo
após a criação das Capitanias Hereditárias, na medida em que a população crescia, os
rumores de riquezas incomensuráveis nos sertões interiores também circulariam com mais
intensidade. Segundo o que escreveu Abílio Barreto, Diogo Alves Correia (o Caramurú)
teria transmitido notícias, ouvidas de índios, sobre a existência de fabulosas minas de ferro,
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de ouro, de prata, de esmeraldas e outras gemas preciosas, nos sertões interiores; mas, todas
essas riquezas, sem quaisquer maiores precisões de onde se localizavam, sem rumos ou
distâncias da costa onde eles estavam (BARRETO, 1995; p.71, vol.I).
Há notícias de uma expedição organizada por Martim Afonso de Souza, em 1531, que
partira do Rio de Janeiro para o sertão interior; seu objetivo era a descoberta dessas minas
fabulosas, e foi a primeira expedição a penetrar naquele sertão que, hoje, constitui parte do
Estado de Minas Gerais. Se o seu objetivo maior não foi atingido, contudo ela teve o mérito
de ter descoberto um roteiro e uma passagem praticável,através das serras do Mar e da
Mantiqueira, permitindo as posteriores entradas pelos sertões.3 Calógeras buscou fazer uma
reconstituição do roteiro dessa expedição, que para nós tem a importância de confirmar o
quanto era levado a sério, pelos centros de decisão do Império Português, as notícias sobre
aquelas riquezas (CALÓGERAS, 1905; vol1, pp.17-9).
No temos que , nesses p r imei ros anos da co lon i zação , e ra comum
aos por tugueses r e fe r i r em-se aos índ ios como “negros” , quer d ize r, com
a pe le ma is escura .
As notícias sobre as riquezas interioranas deveriam ser, não só muito correntes, mas
também persistentes, entre a população que habitava a costa atlântica: eis que, em carta
datada de 1550, escrevia o Padre Manoel da Nóbrega: “...grande quantidade de ouro que,
pelas poucas forças dos Cristãos, não está descoberto, e igualmente pedras
preciosas.”(Apud:BARBOSA,1975; vol.I, pp.17-9) Mas, não era só isso: nesse mesmo ano
de 1550, Felipe de Guillén dava notícias a Dom João III da chegada de “...alguns negros
[sic], que vivem junto a um grande rio, além do qual há uma serra que resplandece muito e
de onde vão ter ao rio pedras que chamamos pedaços de ouro”(BARBOSA, 1975; vol.I,
p.18). . Notemos, a respeito da descrição dos tipos “negros” adotada por Guillén, não se
tratar de negros africanos; é que, nesses primeiros anos da colonização, era comum aos
portugueses referirem-se aos índios como “negros”, quer dizer, com a pele menos alva que a
deles.
Indubitavelmente, tratava-se de um reflexo das esperanças de uma contrapartida
portuguesa à grande descoberta espanhola do Serro de Potosi, em 1545, na região andina
onde hoje se encontra o território boliviano. Aquela descoberta ressoava no imaginário
português e excitava a cobiça dos descobridores da Terra de Santa Cruz.
Potosi, a enorme montanha erguendo-se até a altitude de 6.000m sobre o nível do
mar, na cordilheira dos Andes, ainda contava com 1.500 m sobre a vila do mesmo nome,
surgida como centro da administração espanhola das minas locais. Essa montanha abrigava
jazidas primárias de prata metálica, de extraordinária riqueza, e seu aspecto maciço, de
forma cônica, elevado e de penhas indômitas, quase verticais, foi transferido, no imaginário
3- DERBY, Orville Alberto. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Vol. V, p.241;
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português, para a tão procurada serra do Sabarabuçu, que deveria ser, fatalmente, rica de
prata, como o seu ícone gerador, dos Andes bolivianos.
De notícias assim tão auspiciosas, Pero de Magalhães Gândavo tornava-se o eco, ao
referir-se a uma lagoa às margens da qual viviam moradores que possuíam “...cabedais ricos
de ouro e pedrarias”. Ele também fazia eco às informações de Guillén quando afirmava
que haviam arribado a Porto Seguro alguns índios do sertão “... a dar novas de umas pedras
verdes que havia numa serra muitas léguas pela terra adentro e traziam algumas delas por
amostra, as quais eram esmeraldas, mas não de muito preço.”4
Observemos que a “serra resplandecente” era, ora de ouro, ora de prata, ora de
esmeraldas, e situava-se muitas léguas terra adentro, após um grande rio. Localização vaga,
que poderia caber tanto nas atuais Serra do Cipó, como na Serra da Piedade, como na Serra
das Andorinhas, ou qualquer outra das serras do sistema orográfico do Espinhaço.
Contudo, era o Sabarabuçu que, principalmente nas expectativas das autoridades
lusas, constituir-se-ia no Potosi português. Era natural, portanto, que devesse ser procurado
incessantemente o que determinou , de 1554 até 1675, as mais de vinte entradas
exploratórias pelos sertões da Bahia, Espírito Santo e São Paulo, sem falar na primeira, em
1531 e ordenada por Martim Afonso de Souza que, partindo do Rio de Janeiro, estabeleceu
o roteiro de passagem pela garganta do Embaú; todas essas entradas tinham como destino os
sertões interiores do atual Estado de Minas Gerais. Era lá, pois, que se acreditava poder
encontrar o Sabarabuçu.
Riquezas incertas e localizações não sabidas eram as características marcantes desse
imaginário, que se formava nas mentes dessa população ávida de cabedais. Deixar a pátria
mãe, fazer a América e regressar abastado não seria um sonho apenas, já que este outro,
maior, seria possível: a descoberta das riquezas da lagoa de Vupabuçu e da Serra de
Sabarabuçu. Eram estas as esperanças que se tornavam de uma concretude quase palpável,
tanto foram desejadas e esperadas por todos.
Sabarabuçu tornou-se em sinônimo de El Dorado e, tal como este, ninguém sabia da
sua exata localização; mas era crido como artigo de fé. Onde houvesse uma qualquer
iniciativa exploratória pelas autoridades coloniais, era lá que estava o Sabarabuçu, e todos se
tornavam expectantes. Dessa forma, esse local lendário também foi localizado em certo
momento do ano de 1661, nos sertões do Paranaguá (CALMON, 1956; p.50).
Também Cláudio Manoel da Costa situou o Sabarabuçu, como uma serra de altura
notável, nas proximidades do Sumidouro, o arraial fundado por Fernão Dias Pais, quando da
sua famosa bandeira esmeraldina, e que ficava situado entre as atuais cidades de Lagoa Santa
e Pedro Leopoldo. 5
4- SAMPAIO, Theodoro. In:Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Vol V, p.68; Ver, também: MAGALHÃES, Basílio de. A lenda do Sabarabuçu. In: Congresso do Mundo Português, Vol X, p.58;5- Tal informação foi dada por Cláudio Manoel da Costa nos Fundamentos Históricos, que precedeu seu poema Vila Rica, como uma espécie de justificativa do mesmo poema. A obra foi publicada, postumamente, em Ouro Preto, em 1839;
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Em 1674, essa esperança ainda era forte e presente no pensamento das autoridades
lusas, como podemos inferir das ordens expressas, recebidas por Fernão Dias Pais, para a sua
famosa bandeira à Serra das Esmeraldas. Nomeado, por antecipação, Governador das minas
que descobrisse, seu objetivo único não era, contudo, a Serra das Esmeraldas,pois que lemos
em documento datado de 1681: “... e por haver tradição constar entre nós de que há minas de
prata no serro do Sabarabuçu, empreendeu o dito Governador Fernão Dias Paes também
este descobrimento por lhe ficar em caminho na viagem das esmeraldas, para o que se situou
na paragem do Sumidouro.”(REVISTA do IHGB, 1879; vol.I, p.240)
Resultou, o documento em questão, de declaração feita pela Câmara de Parnaíba, a
rogo do irmão do ilustre bandeirante, padre João Leite da Silva, em 20 de dezembro de 1681,
para fins de obter pensões e outras benesses do rei de Portugal para a viúva e filhas do ilustre
bandeirante; esse documento foi tratado exaustivamente por W. de Almeida BARBOSA e,
sobre tal documento, Taunay lançou dúvidas, foi em críticas a Diogo de Vasconcelos, e
referiam-se às questões ligadas ao itinerário da bandeira esmeraldina, mas não quanto ao seu
conteúdo declaratório. Por isso, temos por certo que Fernão Dias Pais procurava, na atual
Serra da Piedade, a prata, que esperava encontrar em condições semelhantes às do Potosi.
Quanto às esmeraldas, sabiam as autoridades lusas estarem em local mais distante,
anteriormente explorado pelas entradas de Sebastião Fernandes Tourinho e Antônio Dias
Adorno, em 1572 e 1573, além da entrada de Marcos de Azeredo, que era suposto ser o
verdadeiro descobridor da Serra das Esmeraldas (BARRETO, 1995; p.82),
Dessa forma, o estabelecimento da base de autossustentação da bandeira, no arraial
do Sumidouro, nas proximidades da atual Lagoa Santa, justificava-se: dali, Fernão Dias
partiria para as buscas das esmeraldas na região do Serro Frio, Itamarandiba e Itacambira,
locais onde deveriam encontrar-se a Serra das Esmeraldas e a lagoa de Vupabuçu; da prata
do Sabarabuçu, ele tratou quando retornava do Serro Frio, tomando o rumo do Espinhaço
onde buscou na atual Serra da Piedade as evidências da existência de prata e, nada
encontrando, regressou ao Sumidouro(BARBOSA, 1975; pp.39-40).
Notemos que a Serra da Piedade, quando observada de longe, da direção da
localidade da atual localidade de Ravena, município de Sabará, apresenta-se como uma
montanha cônica e bastante elevada, lembrando a forma como era descrito o Potosi. Não
seria, pois, surpreendente que se a confundissem com o lendário Sabarabuçu. Contudo, é
necessário observar-se que a Serra da Piedade jamais teve, historicamente, qualquer relação
com as esmeraldas, como dissemos acima.
Entrementes, Manoel da Borba Gato, que ficara comandando os arraiais do
Sumidouro e o de Santo Antônio do Bom Retiro do Rio das Velhas, explorou a região e
descobriu ocorrências de ouro naquele rio, nas proximidades da atual cidade de Sabará. Após
a morte de Fernão Dias, em 1681, Borba Gato assumiu o comando da bandeira.
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Sobrevindo o desentendimento seguido do incidente em que foi assassinado Dom
Rodrigo Castelo Branco, Borba Gato homiziou-se no sertão do Rio Doce, onde permaneceu
até a certeza do seu perdão, fato que ocorreu em 1698, quando o Governador Artur de Sá o
chamou ao Rio de Janeiro e lhe conferiu a patente para descobrir prata “...na paragem do
Sabarabuçu.” Voltando ao Rio das Velhas, promoveu a divulgação das minas auríferas que,
certamente, já conhecia. Em 1702, no arraial de Santo Antonio do Bom Retiro do Rio das
Velhas, Borba Gato recebia a patente de Superintendente das Minas do Rio das Velhas e,
mais tarde, o Governador Antonio de Albuquerque confirmava-lhe a patente de Tenente-
General (BOXER, 1963; p.50).6
Devemos a Orville Albert Derby - renomado geólogo norte-americano e escritor- 7 o
fato de ter conhecido o trabalho poético de Cláudio Manoel da Costa, bem como o trabalho
cartográfico daquela personalidade e, em função deles, identificar a atual Serra da Piedade
como o Sabarabuçu. Fazendo a aproximação do Sabarabuçu com a Serra da Piedade, é o
próprio Derby que escreve ter sido essa serra “...recrismada como de Piedade, [nome] que
ainda hoje conserva.”(Apud: BARBOSA, 1875; p.18).
É esse um lamentável erro histórico de Derby, sem dúvida, mas que não deslustra a
contribuição intelectual e científica por ele a nós legada. Desse modo, podemos identificar as
fontes geradoras de tal aproximação: os trabalhos de Derby, com o seu peso científico, e a
poesia de Bilac, O caçador de esmeraldas também com o inegável peso emocional e de
verdade histórica aparente, cuja fonte também derivou da obra de Cláudio Manoel da Costa,
a mesma fonte dos estudos comparativos de Derby. Mas, não há como concordar com aquela
aproximação porque, se resplandecente a Serra da Piedade o foi, teria sido devido
unicamente ao oligisto e às micas contidas em suas rochas itabiríticas e, nunca, por conter as
lendárias esmeraldas, que jamais foram localizadas nela ou nas suas proximidades. Sabiam-
no os bandeirantes; sabiam-no os governantes. Permaneceu a legenda, através do enorme
peso de credibilidade que lhe foi conferida por Derby, em seus trabalhos científicos e, por
Bilac, através do seu lírico O caçador de esmeraldas.8
6- Boxer é de opinião que as minas do Sabará foram descobertas entre 1693 e 1695 por vários exploradores paulistas, baianos e portugueses. Contudo, foi após o retorno de Borba Gato que os descobrimentos se sucederam. Dessa forma, é crível que os descobrimentos passaram a ocorrer após o seu retorno. E não é menos sintomático desse fato o perdão real e a patente que lhe foi conferida em 1698. 7- Derby era Doutor em Geologia, formado em Cornell-EUA, em 1873, aos 22 anos. Viveu no Brasil até a sua morte, em 1915; foi membro da Comissão Geológica do Império do Brasil, dirigiu o Museu Nacional, do Rio de Janeiro; criou o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, e a Comissão Geográfica e Geológica, atualmente o Instituto Geológico e Geográfico de São Paulo. Produziu mais de 150 trabalhos, publicados em vários periódicos nacionais e norte-americanos.8- Salomão de Vasconcelos também foi enfático, quanto à localização do Sabarabuçu, situando-o na região das feitorias de Tucambira e Itamarandiba, na Serra das Esmeraldas, região de Araçuaí. Diz, ainda, este autor que o Governador Artur de Sá e Menezes, ao redigir os atos de nomeaçõe, primeiras provisões e patentes, em 1700, datou-os do “Arraial do Sabarabuçu”, fê-lo apenas por seu capricho pessoal, porquanto aquele arraial (hoje a cidade de Sabará), nem mesmo nome tinha. Ver: VASCONCELOS, Salomão.Origens e fundação do Sabará. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: IHGMG, 1946, vol. II, p. 178;
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Por outro lado, quanto à “recrisma” imaginada por Derby, sabemos que o nome
“Serra da Piedade” foi tardio, começando a circular regionalmente em Caeté, após 1780,
quando das primeiras peregrinações à ermida de Nossa Senhora da Piedade, em seu cume.
Razão de peso contra a teoria da “recrisma” é o fato de que, desde a sua descoberta, por volta
de 1680, passando por todo o período da colonização local até 1820, essa serra jamais havia
recebido um nome próprio que a individualizasse. Ela era conhecida apenas pela referência
local, de a penha.
Era a penha um portentoso penhasco, com cerca de 600 metros de altura, quase a
prumo; é este o aspecto que a serra apresenta quando olhada por um observador que se
situasse ao Sul, tal como a viam os antigos habitantes de Caeté: era a penha, o penhasco
grandioso. E tal a força referencial desse aspecto da serra, sobre o povo da vila, que seu
nome tornou-se, simplesmente, a penha. A tradição dessa denominação transmudou-se no
toponímico do distrito municipal que a compreendia, até hoje denominado de Penedia.
Penha, por outro lado, e até a nossa atualidade, é o nome que permaneceu designando o
povoado do Distrito de Penedia, fronteiriço à serra portentosa, e que foi centro dos
mineradores que exploravam as catas do sopé dessa serra no início do século XVIII.
Finalizando a argumentação a respeito do topônimo Piedade, quando Antônio da
Silva Bracarena, juntamente com um dos seus seguidores, Manoel Coelho de Santiago, pediu
autorização ao Bispo de Mariana para construir uma capela em louvor de N.S. da Piedade,
uma Provisão lhes é concedida “...para a.construção de uma capela com a invocação de
Nossa Senhora da Piedade e Santa Bárbara, no morro e paragem mais cômoda que lhes
assinalará o Reverendo Pároco.” [O grifo é nosso] . Ainda na introdução e qualificação dos
peticionários, essa Provisão os nomeia e indica “...moradores na freguesia de Caethé [sic] no
morro da mesma Villa” [Ainda nosso, o grifo]. São dados bastantes para comprovar que não
havia uma denominação específica para a serra até aquele momento. Será a religiosidade
popular que fará da serra o lugar sagrado, nomeando-a com o nome da santa padroeira, após
a ereção da capela no seu cume. A Provisão foi dada a 30 de setembro de 1767, o que
também demonstra que, naquele momento, a serra já era habitada por Bracarena e seus
seguidores, tema sobre o qual discorreremos mais detalhadamente, em momento e local
adequados. (QUEIROGA,1946; vol.II, p.1947).
Retornando à questão das descobertas auríferas de Borba Gato, essas provocaram
impressionante afluxo de aventureiros para a região das minas do Rio das Velhas; provinham
de todos os pontos da Colônia, e também do além-mar. Dessa forma, a Capitania das Minas
Gerais nascia como a mais populosa das capitanias da Colônia. Associando tal incremento
populacional à exclusiva dedicação à exploração aurífera, e dada a inexistência de uma
estrutura de abastecimento agrícola local, resultou a crise da então denominada “Grande
Fome,” que assolou essa região entre 1697 e 1698; a “Grande Fome” exterminou com um
número desconhecido – porém, certamente expressivo - dos recém-chegados. É indubitável
29
que esta foi uma experiência determinante, colocando presente ao espírito do colonizador a
necessidade do estabelecimento de uma agricultura, criações e pecuária, que ao menos
provessem a subsistência daquela nova população regional.
Em 1701, o sargento-mor Leonardo Nardez juntamente com os irmãos Antônio e João
Leme da Guerra, descobrem ouro na região de Caeté. Nessa região, que é uma zona de
tensão ecológica, pois é o fim e divisa natural entre as florestas estacionais tropicais e o
cerrado, a floresta era alta e densa, porém sem espécimes emergentes e com poucas
caducifólias, o que lhe emprestava um aspecto sempre verde e de difícil penetração, aspecto
que é radicalmente mudado ao nos aproximarmos das serranias, à noroeste, onde passa a
predominar o cerrado (VELLOSO, 1966; p.16).
Devemos a essas características florestais contrastantes o topônimo Caeté, de origem
tupi, significando lugar dentro da mata espessa como que contrastando com o ralo cerrado
adjacente. O acesso habitual era realizado através do leito dos ribeiros que drenavam as
encostas dessa zona escarpada, e foi exatamente nesses ribeiros que os primeiros
descobridores se fixaram: Manoel Rodrigues Soares, nas cabeceiras do Ribeirão Sabará;
João Pereira dos Santos, na cabeceira do ribeirão Caeté; Sebastião Luís e Domingos Pereira,
confrontantes de sesmaria com João Pereira dos Santos. Entre esses primeiros habitantes
também estava Bento do Amaral da Silva, emboaba fluminense, com vários crimes no Rio
de Janeiro e em São Paulo, mas que sob a proteção do Governador Artur de Sá e Menezes,
pôde vir para as minas, onde se estabeleceu em Caeté, tornando-se pessoa abastada e
influente.
Também participaram desses primeiros tempos de Caeté, Frei Simão de Santa Tereza,
que teria sido o fundador da primeira capela do Caeté; Antônio Pereira de Miranda, capitão
-mor das Ordenanças, portanto figura importante e possuidor da melhor casa do arraial, onde
se hospedou o Governador Antônio de Albuquerque; Frutuoso Nunes Rego, com sesmaria
entre o ribeiro Sabarabuçu e Morro Grande;9 Valentim Pedroso Barros, cujo nome aparece
nos primeiros conflitos que originaram a Guerra dos Emboabas, tendo-se transferido para Pitanguí, onde teve
o posto de Coronel de Ordenanças, em 1714; Manoel de Mendonça Lima Corte Real, que teve a patente
de Coronel de Cavalaria das Ordenanças, entre muitos outros citados na Revista do Arquivo
Público Mineiro, em seu volue XXI, às páginas 587 a 591.
Em 1703 o arraial já era muito importante, não só pelo extrativismo, mas também
pela sua diversificação econômica e pelo seu movimento comercial, como centro de
distribuição do gado que vinha do sertão baiano para abastecer Sabará, Vila Rica e Ribeirão
do Carmo. Era ali que viveu, mais tarde, o português Manoel Nunes Viana, uma das mais
importantes lideranças surgidas com o movimento denominado Guerra dos Emboabas,
9- Muito provavelmente, o ribeiro Sabarabuçu seria o atualmente denominado Ouro Fino, nascendo no sopé da Serra da Piedade e correndo para o ribeirão Caeté. Quanto ao Morro Grande, não sabemos ao certo qual seria, mas talvez fosse o morro de Cuiabá, onde até o presente se encontra a mina do mesmo nome.
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conflito entre paulistas, representando o Fisco Real, e os recém-chegados portugueses e
baianos, e que se deu de 1708 a 1709.
Em 29 de janeiro de 1714, Caeté era elevada à categoria de vila, por Dom Brás
Baltazar da Silveira, com o nome de Vila Nova da Rainha. A 04 de fevereiro, o Ouvidor
Geral tomava as providências para a instalação da vila e a 11 era realizada a eleição dos
oficiais da Câmara, entre os “homens bons” da Vila. Foi, assim, instalada a Câmara com as
pessoas “mais nobres e limpas de sangue” eleitas pelos “homens bons”do lugar, a 24 de
fevereiro.
Não trataremos aqui da Guerra dos Emboabas, por não ser objeto imediato do
presente trabalho. Contudo, as razões de origem do conflito, bem como dos movimentos
iniciais de interesses envolvidos, nos dirão respeito, porque nos ajudarão na apreensão dos
fenômenos culturais e problemas sócio-econômicos que plasmavam aquela comunidade em
formação, na Vila Nova da Rainha do Caeté.10 Neste sentido, trataremos das posturas fiscais
incidentes sobre a atividade extrativa e sobre a circulação de valores.
A partir de 1700, são tomadas as primeiras medidas para o recolhimento dos
“quintos” devidos ao Erário Real, pelos mineradores. Em abril de 1701, um bando (espécie
de decreto, emitido pelos Governadores de Capitanias) do Governador Artur de Sá e
Menezes proibia a exportação do ouro da região mineira sem que o prévio pagamento do
imposto devido (o quinto, taxa equivalente a 20% do valor do produto) fosse realizado; para
tanto, dever-se-ia apresentar a prova competente. Simultaneamente, eram criados os
“Registros” nas estradas para o Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Nesses
“Registros”também eram controlados os recolhimentos de direitos sobre outras mercadorias,
entrando ou deixando a capitania. O quinto, sendo um imposto considerado por demais
elevado, tornava-se óbvio que o contrabando seria praticado por todos os meios, geralmente
fazendo-se com que as mercadorias circulassem por trilhas não sujeitas ao controle oficial.
Contudo, por se tratar, talvez, de uma população e em uma época em que predominava a
ação aventureira, a reação das autoridades era sevara ao extremo e, não raras vezes, um
crime contra o Real Erário era castigado com a pena capital. O contrabando era crime
sempre reprimido; e, quando se podia imputar de contrabandista alguém poderoso, mas
inimigo político, a ação da autoridade repressora era implacável. Tal foi o caso de Borba
Gato contra Manoel Nunes Viana, em Caeté, fato que se transformou no estopim da Guerra
dos Emboabas.
Não havia circulação de dinheiro amoedado na região das minas. Não obstante, a
economia local era extremamente monetizada porque todas as transações correntes eram
pagas com o ouro em pó, onde a “oitava” ( equivalente a 3,58 g de ouro) era a unidade
monetária universalmente adotada . Tal prática facilitava a ação fraudadora contra o fisco e,
para a evitar, as autoridades locais pediam incessantemente à Metrópole que fizesse 10- Remetemos o leitor interessado na Guerra dos Emboabas, para a referência: GOLGHER, Isaias. Guerra dos Emboabas.A primeira guerra civil nas Américas. Belo Horizonte: Editora Itatiais, 1956;
31
introduzir, nas minas, as moedas de cobre e prata, o que veio a ocorrer somente em 1803. Por
outro lado, desde 1713, Dom Brás Baltazar da Silveira intentara construir casas de fundição
de ouro, dessa forma evitando a circulação desse ouro em pó; não o conseguiu, entretanto.
Em 1725 começaram a funcionar as casas de fundição, onde o minerador levava o seu
ouro e, após lhe ser retirado o quinto, era fundido em barras e devolvido ao minerador, agora
acompanhado de um certificado que as qualificava pelo peso e grau de pureza. Parecia ser
um passo importante na coibição das fraudes contra o fisco; mas, em 1730, o imposto sobre
o “quinto” era reduzido para um valor de 12% sobre o ouro extraído como um meio de
desestimular os descaminhos desse ouro, prática que se havia acentuado enormemente, nos
últimos tempos.
Não tendo alcançado os resultados pretendidos, as autoridades procuram mudar o
modo de tributação, abandonando os “quintos” e adotando o sistema de “capitação”, ou seja,
um valor fixo por cabeça de escravo trabalhando na mineração. Houve resistências contra o
novo sistema e foram propostos outros tipos de impostos mas, em 1735 Gomes Freire de
Andrade estabelecia a capitação, fixando-a em 4,75 oitavas ( 17,0 g) por escravo, sendo que
os escravos menores de 14 anos e nascidos nas minas, eram excluídos da contagem. Como
cerca de 100.000 escravos trabalhavam nas minas, a capitação rendia cerca de 113 arrobas ao
ano para a Coroa, os mineiros se queixando amargamente de tal forma de imposto, porque
realmente injusto: se era tolerável nas regiões de alta concentração aurífera, era dificilmente
aceitável nas mais pobres. Outras alterações sobre a forma de recolher os impostos foram
utilizadas, mas em 1750 já se marchava para a decadência da mineração, tendo em vista o
crescente esgotamento físico das faisqueiras e das grupiaras, de tal modo que o ano de 1759
foi o último em que o fisco ainda recolheu 116 arrobas. A partir de 1766, pela primeira vez a
arrecadação esteve abaixo de 100 arrobas e, nos anos seguintes, registraram-se: em 1777, 70
arrobas; em 1808, 30 arrobas; em 1819, 7 arrobas e, finalmente, em 1820, 2 arrobas. Nada
mais eloquente para caracterizar a continuada queda de rendimento da economia da extração
aurífera em toda a região. Mas, essa pauperização continuada da extração aurífera, tornou-se
particularmente incisiva em alguns centros mineradores, entre as quais, Caeté.
Em 1803, com a franca decadência das atividades mineradoras, expediu-se alvará
estabelecendo medidas que visavam a estimular a mineração; percebemos, nessas medidas,
que passara-se a entender ser essencial a cooperação de recursos econômicos exteriores para
dar prosseguimento às explorações: previa-se a outorga de autorizações de lavras às
empresas que se organizassem para tanto. Em 1811, já no tempo e pela ação de Eschwege,
era autorizada a formação de sociedades por ações, que viessem a explorar as minas
consideradas as mais difíceis. Em 1817 eram estendidos a todos os mineradores, sem
exceções, os privilégios da “trintena”, sistema de tributação posta em prática para alguns
casos desde 1750.11
11- A “trintena”era uma forma de avaliação da produtividade de extração em uma dada Vila, no período de trinta dias, com o fim do pagamento dos direitos do “quinto”, mas substituindo o sistema de “capitação”,
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Eschwege, o especialista alemão em mineração e metalurgia, que Dom João VI fizera
vir ao Brasil para estudar as causas da decadência da mineração, bem como para ela sugerir
remédios, foi o responsável pelas sugestões da adoção das sociedades por ações. Contudo,
não foram poucas as dificuldades que enfrentou para que os seus projetos fossem adotados.
E, dando o exemplo, fundou a Sociedade da Mina de Passagem em um momento em que a
exploração daquela mina já havia sido abandonada. Aí estabeleceu uma instalação de
tratamento de minérios, altamente mecanizada para a época, acionada por força hidráulica e
equipada com 9 martelos-pilões e as correspondentes mesas concentradoras. Era o início do
processo industrial de minerar, no Brasil (SIMONSEM, 1937; vol.I, pp.51-100). O
emprego de recursos tecnológicos avançados ( que caracterizou o processo industrial de
mineração) cresceu durante todo o século XIX em toda a região das Minas Gerais,
contribuindo para a formação de um grande reservatório de mão de obra especializada em
técnicas mecânicas, de carpintaria, de funilaria e de fundição, principalmente na região
aurífera.
Um exemplo da multiplicação das atividades de mineração com meios tecnológicos
avançados pode ser visto na própria região de Caeté onde, em 1894, ainda existiam as
seguintes empresas mineradoras (FERRAND, 1913; pp.40 e seg.):
• Empresa de Mineração do Caethe (Mina do Carrapato);
• Saint John d’El Rey Minning, Corp, Ltd. (Mina do Cuiabá);
• Dr. Manoel Joaquim de Lemos (Mina da Jacutinga);
• Teófilo M. Ferreira e José G. de Carvalho (Mina de Boa Esperança);
• Ouro Preto Gold Mines of Brazil ( Mina dos Borges);
• Empresa de Mineração do Caethé (Mina do Carvalho);
• Barão do Tinguá e Antônio J.Peixoto de Souza ( Mina de Carranca);
• Empresa Mineradora do Caethé ( Mina do Carvalho);
• Empresa Mineradora do Caethé ( Mina da Catita);
• Brazilian Gold Mines ( Mina do Descoberto);
• José Afonso, e outros ( Mina do Juca Vieira);
• Roça Grande Brasilian Gold Minning&Co,Ltd. (Mina de Roça Grande)
• Barão do Tinguá ( Mina de Santa Cruz);
• James Andrew ( Mina do Viracopos)
1.4 – A formação social
considerado altamente injusto. Era uma forma de “finta”, empregada entre 1715 e 1725.
33
Depois de noticiado o descobrimento das minas de ouro nos sertões de Taubaté,
como inicialmente era referida a região das minas do rio das Mortes, abrangendo também a
região mineral do rio das Velhas (mais tarde também chamadas de minas do sertão dos
Goitacás), a afluência de aventureiros de todas as partes da Colônia e, também, do além
mar, foi sem precedentes. Examinamos a mais trágica das consequências imediatas de tal
afluência em subtítulo anterior, mas a lição da imprevidência aventureira dos anos iniciais
da exploração aurífera foi assimilada e prudentemente implementada pelos setores
economicamente mais ativos da própria população.
Seguiu-se uma considerável diversificação das atividades econômicas, como a
agricultura de cereais, de cana e respectivas atividades de produção de rapadura, açúcar e
aguardente; atividades pastoris e de criações de animais de pequeno porte e algum gado
leiteiro, todas elas voltadas à subsistência local, mas não poucas voltadas para a exportação
de “molhados”em geral, como têm demonstrado os trabalhos mais recentes sobre o
desenvolvimento da agricultura na região das minas, em particular o de Cláudia M.
G..Chaves (CHAVES, 1999; p.102).
Por outro lado, na medida em que se afirmava o rápido enriquecimento da região,
houve o estabelecimento de comerciantes de carnes e gêneros alimentícios em geral, bem
como de outras utilidades, que passaram a ser demandadas por uma clientela que
demonstrava o seu crescente poder aquisitivo. O comércio, volante de início, praticado por
comerciantes provindos do Rio de Janeiro e de Salvador, exercendo um comércio que,
mesmo sendo de mascates, era bastante requintado; esses mascates logo se fixavam e
estabeleciam comércio próprio, na região. Da Bahia e Pernambuco, mas também do sertão
do São Francisco, predominava o comércio de gado para o abate, bem como o comércio de
escravos. De tais comerciantes, alguns dispondo de capitais suficientes, logo se fixariam
atendendo aos seus interesses maiores, entre os quais o comércio do ouro, cuja saída das
minas, sem o recolhimento dos quintos devidos, era realizada principalmente pelas picadas,
pouco conhecidas e praticadas, demandando a Bahia.
Entre esses traficantes do ouro, destaque deve ser dado aos cristãos-novos radicados
nas minas, que chegaram a constituir cerca de 60% do número de comerciantes nessa época
e local.12 Comerciando com ouro, armas, ferramentas e escravos, bem podemos imaginar a
razão de sua grande autonomia comercial e influência junto às autoridades coloniais, pois
que eram os responsáveis pelo fornecimento de itens indispensáveis ao fortalecimento
daquilo que se constituía na coluna dorsal do sistema colonial nas minas do século XVIII.
Contudo, podemos compreender também, que a ação violentamente repressora dessa mesma
autoridade passaria a ser exercida tão logo uma maior estabilidade dos negócios e mais
12- Não só comerciantes, constituíam o grupo de cristãos-novos que tomaram parte na epopéia da conquista dos sertões das minas do ouro: podemos citar, entre outros, Antonio Rodrigues Arzão, Luiz do Couto, Francisco de Lucena Montarroyos, Duarte Nunes, Antonio Raposo Tavares, Sebastião de Barros, Bartolomeu Bueno da Silva ( pai e filho), além do próprop Manoel da Borba Gato. Ver. FERNANDES, 2000., passim) ,
34
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efetiva capacidade de reação armada se vissem implantadas. Efetivamente, vieram a realizar-
se a partir de 1709. Em seguida, de 1712 a 1763, a ação do Tribunal da Inquisição também
se fez sentir, utilizada para a quebra do poder político que representava essa fração social tão
atuante. A perseguição por motivos de “práticas judaizantes” era a mais comumente citada
nos processos inquisitoriais, mas encobria também outras motivações menores, como a
inveja, a cobiça ou a simples vingança pessoal, por razões de “destratos pessoais”
anteriores.
Era eficaz a perseguição realizada pelo “Tribunal da Inquisição”, e devemos às suas
“listas” e processos, o muito do que sabemos hoje sobre aquelas frações sociais. Sabemos
que cerca de 370 cristãos - novos viveram na região das minas, dos quais 5 localizaram-se
em Caeté. Sua distribuição regional era a seguinte: Em Brumado; 1 ; Em Cachoeira(?):12;13
em Caeté: 5; em Congonhas do Campo: 2; em Córrego das Minas do Arassuahy : 2; em
Curralinho:27; no Tijuco: 11; em Fornos: 1; em Itaverava:1; em locais não definidos: 125:
nas Minas do Arassuahy:7; em Minas Novas e Fanados: 3; em Ouro Branco:1; em Vila
Rica:74; em Paranapanema:2; em Pitangui:10; em Ribeirão do Carmo:70; em Rio das
Mortes:28; em Sabará:55; em São Caetano:1; em São Gerônimo:1; em Serro Frio:35; em
Sumidouro: 1.(FERNANDES, 2000; pp.170-74-Anexo 4).
Esses comerciantes, pelas ações e práticas que introduziam , criavam as bases de
importante circulação de valores, favorecendo a formação de uma sociedade urbana, o que
subvertia o projeto luso para a Colônia. Tal projeto, sabidamente, era o de se tornar a
Colônia não mais que um centro exportador e abastecedor de produtos tropicais para o
Reino, mas não um centro econômico autônomo e atuante.
Alguns desses comerciantes tornaram-se abastados e influentes politicamente, não
raro adquirindo terras auríferas onde organizavam suas catas. Foi o caso de Manoel Nunes
Viana, em Caeté que, comercializando o gado, escravos e armas que trazia de Salvador e dos
seus criatórios baianos do São Francisco; ali, em Caeté, também adquiriu terras, no sopé da
Penha - muito provavelmente no local onde hoje se encontra a Fazenda do Ouro Fino, mas
então desbordando-a largamente. Tal foi a fortuna que amealhou e tal foi sua liderança local
que veio a provocar vários levantes como a Guerra dos Emboabas, o levante da Barra do Rio
das Velhas e o levante de Catas Altas.
Manoel Nunes Viana foi um caso singular – mas não um caso único – de uma época
em que fortuna e relacionamentos pessoais dela decorrentes davam-se as mãos desafiando o
próprio poder estamental, tentando amoldá-lo às suas conveniências.
A figura de Manoel Nunes Viana destacou-se na história de Caeté, no século XVIII,
sendo largamente conhecido o fato da manifestação de sua liderança local através do
13- Não sabemos, ao certo, se tratava de Cachoeira do Campo, próximo a Ouro Preto, ou de localidade próxima a Morro Vermelho, hoje Distrito de Caeté, onde já era referencial a cachoeira de Santo Antônio, notável queda d’água local. O local poderia referir-se, também, a Campos da Cachoeira, principal vila do Recôncavo Baiano, onde Nunes Viana possuía vários criatórios. De qualquer modo, entre os cristãos-novos ali residentes, era citado o nome de Manoel Nunes Viana.
35
arbitramento à que foi chamado quando da eclosão do movimento sedicioso denominado
Guerra dos Emboabas, em 1708.
Natural de Vianna do Minho, Portugal, veio para o Brasil em fins do século XVII,
tendo-se radicado na Bahia. Cedo foi contemplado com sesmarias às margens do rio São
Francisco, onde desenvolveu a criação de gado e, pouco tempo depois, já era proprietário de
fazendas em Cachoeira, no Recôncavo Baiano e em várias outras localidades no caminho da
Bahia às minas do ouro. Tendo sido administrador das propriedades de D. Maria Guedes de
Brito, grande latifundiária e filha de Antônio Guedes de Brito, amealhou grandes rebanhos
geralmente em sociedade com seu primo, Manoel Roiz (ou Rodrigues) Soares. Tornou-se
profundo conhecedor das trilhas e descaminhos do sertão do São Francisco, o que lhe valia
para evitar os postos de controle governamentais, os “Registros”, quando de seu comércio
irregular de ouro.
Oriundo de família de comerciantes cristãos - novos, seu pai, Antônio Nunes Viegas,
era bastante influente junto aos estamentos do Reino. Muito provavelmente pela tradição de
comércio que absorvera de seu pai, bem cedo Manoel Nunes Viana também se dedicou ao
comércio. Na Bahia, além do gado dos seus criatórios, com o qual chegou a estabelecer
verdadeiro monopólio na região das minas do ouro, também negociava com escravos, armas
e ouro. Organizava e conduzia, pessoalmente, os seus comboios, através dos caminhos entre
a Bahia e as minas do ouro, procurando fazê-lo após os períodos das chuvas na região do rio
das Velhas. Temos notícias dessa sua atividade através de uma anotação em livro próprio do
“registro” do posto de Rio Grande; nessa anotação há uma descrição sucinta do tipo físico
de Nunes Viana, pois que ali se encontra registrado:
Passa Manoel Nunes Viana, homem de mediana estatura, cara redonda, olhos
pardos, cabelo preto, com sua carregação que consta de vinte e três caras de
molhados. Rio Grande, 14 de maio de 1717 (FERNANDES, 2001; III Encontro
Brás.de Est. Com.Judaicos-RJ).
O que há de surpreendente nesse documento, é que o “Registro” em questão
controlava a passagem entre as comarcas do Rio das Mortes e de Ouro Preto e a carga
transportada era constituída por “molhados”, ou seja, carga de produtos alimentícios que,
eventualmente, poderia conter carnes salgadas provindas de seus criatórios. Constituía-se
em prova bastante, este registro, de que Nunes Viana comerciava em todo o território das
minas e pagava os impostos devidos àquele trânsito. Somos levados a pensar que tais
“passagens” – em particular, apresentando uma verdadeira folha de identificação do
passante, o que não era habitual - eram preparadas por Manoel Nunes Viana como meio de
comprovação de seu “respeito” e “acatamento” às leis do Reino e às normas editadas pelos
governadores das Minas Gerais; eram elementos de que poderia dispor em sua defesa em
ocasiões de perseguições a que fosse submetido.
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Eram do seu maior interesse tais provas documentais, tendo em vista suas atividades
tão ambíguas, como a do contrabando do ouro e a das frequentes sublevações de que
participava, todas seguidas de gestos de cooptação das simpatias das autoridades bem
posicionadas no sistema político colonial. Realmente, assim foi com a “Guerra dos
Emboabas”, em 1708, com a sublevação da Barra do Rio das Velhas, em 1718 e com a de
Catas Altas, em 1719. Sua ação foi comentada pelo próprio Ouvidor do Rio das Velhas que,
em documento conhecido, desabafa:
(...).No que toca aos cabeças do motim suponha v.m.q. o principal delles he
Manoel Nunes Vianna (...) o famoso (...) bem conhecido pellos seos
levantamentos e pellas suas insolências veyo a este Pais (...)14
Seus emissários políticos eram, sempre, frades dotados dos ânimos do tempo, ou seja, com
maior fé nos empreendimentos políticos que poderiam representar do que na pregação para a
salvação das almas. Dessa forma, após os acontecimentos da proibição da entrada, em Ouro Preto,
do governador D. Fernando de Lencastro, e refletindo sobre o ato praticado, enviou missão a El-
Rei, através de frei Francisco de Menezes, que foi portador de uma arroba e sete marcos de ouro
representando o quinto que fizera arrecadar durante o período de sua administração emboaba, e que
de justiça pertencia ao Tesouro de El-Rei; frei Francisco era portador, também, dos protestos da mais
profunda obediência e lealdade a Sua Majestade, que fazia Manoel Nunes Viana, pedindo um geral
indulto para os revoltosos.(MENEZES, 1933; p.48-Op.Cit. in:FERNANDES,2000;p.4)
Da mesma forma, ao chegar nas minas o sucessor de D. Fernando de Lencastro, Antônio
Albuquerque Coelho, Nunes Viana enviou o seu procurador, frei Miguel Ribeiro, apresentando a
obediência e as homenagens dos moradores das Minas Gerais. De outra feita, em 1715, acusado por
contrabando de ouro, juntamente com o seu primo, Manoel Rodrigues Soares, faz participar do
negócio o ouvidor Luís Botelho de Queiroz, que os defendeu e livrou das acusações. Foi envolvido
em processo inquisitorial por causa de sua meia-irmã Joana, casada com um cristão-novo da Bahia;
perseguido, o casal encontra refúgio na fazenda de Miguel de Mendonça Valadolid, amigo pessoal
de Viana; este, através de suas amizades e presentes a pessoas escolhidas, também se livra do processo.
(Apud; FERNANDES, 2000; p.5).
É certo que os inimigos que fazia, também tinham poderes locais; tanto que, em 1723, ele é
expulso da Comarca das Minas Gerais, com proibição de ali residir, livrando-se, contudo, da ordem
de prisão que lhe fora expedida a mando do Vice-Rei. Recolhe-se à Bahia e prepara uma viagem ao
Reino onde, através de seus métodos de presentear e dos seus intermediários religiosos, é recebido
em audiência por El-Rei, em 1725. El-Rei fá-lo portador de uma correspondência pessoal, destinada
ao comerciante Francisco Pinheiro, que se encontrava nas Minas Gerais (FURTADO, 1996; p.102-
103).15 Equivalia, aquele encargo, a uma tácita anulação das medidas anteriores que, contra ele, 14- IN: Revista do Arquivo Público Mineiro.Belo Horizonte: APM, ano 5, pp.213-7; carta ao Ouvidor da Comarca de São Paulo, em 1718, sobre os “motins promovidos por Manuel Nunes Vianna no sertão do Rio das Velhas.”15-Francisco Pinheiro era negociante que mantinha vasta rede de correspondentes entre a Metrópole e as Colônias. Provavelmente, representava os interesses de El-Rei no comércio grosso que fazia, tendo sido um personagem de relevo nas relações econômicas da época. Ver,com relação à sua ação nas Minas Gerais:,a
37
tinham sido alcançadas por seus inimigos e tomadas pelas autoridades coloniais, do Vice-Rei ao
Governador da Capitania de Minas Gerais.
O retorno de Manoel Nunes Viana às minas é ainda mais surpreendente, pois que é nomeado
ajudante de campo e escrivão da ouvidoria da comarca do Rio das Velhas, embora fosse apenas
semialfabetizado. Recebeu, também, Carta de Mercê de El-Rei, por serviços relevantes prestados.
Porém, o mais surpreendente é que, cristão-novo, e com todos os episódios de perseguição pessoal,
obteve sua admissão na Ordem de Cristo, o que significou a cessação das perseguições por razões de
sionismo, sobre si e sobre seus descendentes. Manoel Nunes Viana morreu em 1738, na Bahia,
deixando seu filho Miguel Nunes de Souza Viana, como seu herdeiro (FERNANDES. 2001;pp;108;
160-74).
A mineração definiu a forma do povoamento e da colonização da região, abrindo o
espaço para um grande afluxo de mercadores e, rapidamente, pelo efeito do crescimento
constante da população, criavam-se as condições para o estabelecimento do comércio fixo
nas vilas o qual se articulava com o abastecimento de todas as atividades citadinas; este era
realizado pelos tropeiros, importantíssimos agentes sociais que, além do transporte do
essencial à vida, eram também os responsáveis pelas notícias oficiosas que circulavam em
toda a região, bem como pela circulação de toda uma literatura iluminista formalmente
proibida pelas autoridades.
Vale lembrar, neste ponto, que a Manuel Nunes Viana também foi atribuída uma
atividade de mecenato na edição de algumas obras importantes, muito provavelmente após
1735: foi-lhe atribuída a responsabilidade pela edição do Compêndio do Peregrino da
América, de autoria de Nuno Marques Pereira, bem como do terceiro volume de Décadas,
de Diogo do Couto. Cabe lembrar que, embora semialfabetizado, era possuidor de biblioteca
de certa importância em sua residência baiana. Provavelmente, este foi um outro caminho
que utilizou para firmar-se socialmente e assegurar uma inserção estamental na sociedade da
época, objetivos que, como vimos, ele sempre perseguia.
A construção de bases econômicas duradouras para as atividades da sociedade que se
formava na região das minas do ouro, passava pela importação inicial de gêneros
alimentícios das regiões periféricas às minas. Sua progressiva substituição pelos
equivalentes da própria região mineira, fez crescer a ocupação produtiva diversificada na
própria região: a criação de fazendas agropastoris, alguma das quais cuidando, também, da
produção extrativa do óleo de mamona, produto muito demandado para a iluminação
residencial e pública, em substituição ao óleo de baleia, que se tornava escasso.16
Comunicação em referência.16- Cabe lembrarmos que a indústria da pesca e do aproveitamento da baleia era importante no Brasil colonial, sendo praticada nas costas da Bahia e do Rio de Janeiro. Era um dos componentes do estanco colonial e, portanto, sujeita a regulamentações restritivas. Durante os anos finais do século XVIII, ingleses e americanos passaram a fazer a pesca nas alturas das ilhas Falklands, em conseqüência do que a indústria da carne e derivados da baleia declinou, no Brasil. Nessas circunstâncias, não se interessou a Coroa em armar navios baleeiros para a pesca nos mares do Sul, tomando a única providência de abrir mão desse estanco.
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Essa última atividade tornara-se em especialidade da vila de Taquaraçu, do termo
de Caeté, mantendo certa importância econômica até nos dias do Segundo Império, quando
aquela localidade viu crescer essa atividade, passando a exportar esse insumo, não só para
Vila Rica, Sabará e Mariana, como também para o Rio de Janeiro.
Quanto à organização dessa nova sociedade das minas, os seus valores próprios,
valores jurídicos e hierárquicos foram aqueles por ela transladados, aqui adaptados às novas
condições operacionais de vida. Tal aconteceu também com os valores familiares, do
casamento, da filiação, bem como os valores patrimoniais, tais como a posse dos bens
patrimoniais e de sucessão nessa posse, aqui incluídos os escravos, como “coisas” que eram
considerados; as regras contratuais, de execução de dívidas, enfim, das responsabilidades
sociais, também foram convenientemente adequadas. Está claro que a presença reguladora
do Estado era mais tênue nessas regiões longínquas dos centros das decisões, porém isto era
apenas uma consequência das enormes distâncias geográficas e da maior mobilidade
naturalmente gozada por esses súditos do Rei, comparativamente à sua vida em Portugal e
nos centros decisórios das Capitanias.
A sociedade mineradora, dessa forma, desenvolveu um padrão próprio, distinto das
demais sociedades coloniais, que reproduziam a sociedade estamental donde provinham.
Mais que uma sociedade em torno de um centro minerador, tornara-se esta uma sociedade
pré-capitalista, onde havia um meio ativamente circulante, valorado e disponível, e onde as
iniciativas individuais – inclusive aquelas dos próprios escravos – podiam frutificar. Um
exemplo marcante foi o aparecimento do instituto da coartação como um meio de obtenção
da liberdade do cativo, através da conveniação dele próprio com o seu senhor. Esse modo de
manumissão foi muito utilizado na região das minas do ouro, porém muito pouco em outras
regiões da Colônia, onde predominaram formas outras de alforrias.
É interessante nos determos um pouco sobre um aspecto geral da escravidão na
América Portuguesa, o que conduziu nossa gente a caminhos muito criativos nas relações
entre escravos e senhores. Primeiramente, estaremos tratando da existência legal e legítima
do domínio privado de um ser humano sobre outro. Sob este aspecto, ao contrário do que
acontecia na América Espanhola, no Brasil-Colônia e prosseguindo pelo Brasil Império, a
legitimação jurídica da escravidão jamais passou pelo princípio, dito “científico”, da
inferioridade das raças escravizadas. Dominou, entre nós, o princípio que se embasava em
posturas do mercantilismo e que considerava o escravo como “mercadoria”. Dessa forma, a
escravidão se fez apoiada sobre o direito de propriedade do senhor sobre o seu escravo, este
juridicamente assimilado a simples mercadoria e, como tal, transacionado. Em segundo
lugar, resultava disso que o escravo
(...) é um ente privado dos direitos civis; não tem o de propriedade, de
liberdade individual, o de honra e reputação; todo o seu direito como criatura
39
humana reduz-se ao da conservação da vida e da integridade do seu corpo; é só
quando o senhor atenta contra este direito é que incorre em crime punível. Não
há crime sem violação de um direito
(CASTRO, 1966; LPH-Ouro Preto).
Dessa forma, observamos que o escravo não perdia a sua condição de ser humano
passível de possuir direitos civis, como qualquer um outro. Ocorria que, assimilado à uma
mercadoria, teria perdido, transitoriamente, aqueles direitos civis, passíveis de recuperação,
inclusive pela manumissão, a partir da qual passava novamente a ser cidadão e portador de
todos os direitos civis. Foi, precisamente, este conceito que permitiu, mais tarde, a
promulgação das leis de libertação dos nascituros e a dos sexagenários.
Contudo, surge neste ponto um aspecto interessante, posto que a privação do direito
de propriedade impediria ao escravo contratar condições de compra da sua própria liberdade;
a alforria era , pois, unilateral; uma simples manifestação de um espírito humanitário do
senhor, que concedia a liberdade, mesmo que outras condições econômicas do interesse do
senhor subjazessem, disfarçadas, o que era o comum da regra. A coartação, como
instrumento de restrição de direitos do senhor, sob determinadas condições, podia ser
declarada por aquele, com relação a uma eventual negociação de libertação do seu próprio
escravo, inclusive fazendo ele o competente registro cartorial. Dessa forma, o escravo podia
contratar com o senhor o preço de sua libertação, e paga-la de forma parcelada e no tempo
conveniente aos interesses deste, bem como das possibilidades de realização econômica
daquele. Nos tratos de coartação, poderiam figurar fiadores do escravo, que se obrigavam a
ressarcir o senhor, no caso de o escravo deixar de honrar o seu compromisso; ou então,
poderia o escravo perder a parte já paga, caso viesse a faltar com o resto do prometido. Foi a
urbanização da sociedade das minas , criando as múltiplas possibilidades de ganhos
individuais, principalmente do escravo artífice, ou dotado de capacidade inventiva e
realizadora, que possibilitou o aparecimento de tais nuanças nos direitos disponíveis. Vemos,
pois, a gestação de uma sociedade que, pela originalidade das suas criações no convívio
interpessoal, fê-la afastar-se das ideologias estamentárias, herança da formação do reino
lusitano em sua luta contra os mouros (MATTOS, 1988; TENGARINHA, 2000; FAORO,
2000).
Contudo, havia um outro ponto, aparentemente secundário é verdade, mas que nas
condições do desenvolvimento econômico que prevalecera ali, até o último quartel do século
XVIII, assumia relevo especial: a aptidão à miscigenação do povo português. Esta, que foi
explicada por Gilberto Freire pela binacionalidade desse povo com relação à África e à
Europa; no caso da região das minas, seria mais bem explicada pelo caráter aventureiro da
empreitada assumida, bem como pela solidão natural em que se via envolvido o colonizador
(FREYRE, 1980; pp.480 e seg.).
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Efetivamente, o homem do povo vinha desacompanhado da sua família e o seu
projeto pessoal era o do enriquecimento e rápido retorno à pátria. Nem sempre ele o
realizava, e a acomodação às circunstâncias o levava ao estabelecimento de relações
espúrias, de concubinato. Essas relações, que foram muito comuns, eram apercebidas por
nós, seus descendentes, apenas quando um fato político relevante as iluminava como, por
exemplo, nos casos de João Ramalho, em São Vicente, ou de Jerônimo de Albuquerque, em
Pernambuco.17
Face a tal acomodação, a reação estamental se fazia pelas restrições do acesso dessa
fração social dinâmica aos postos de comando político, a partir das Câmaras das vilas, como
já tivemos ocasião de comentar. Era uma forma de impedir o acesso à nobreza, ou às elites
locais, dessa fração social, dita de “sangue impuro”, pela “mácula” do judaísmo, do
maometanismo, ou das ascendências negra e índia. Torna-se inegável que, em tais
procedimentos, estavam inclusas ações de proteção aos privilégios e ao acesso aos cargos
públicos, antes de quaisquer sentimentos preconceituosos, sejam raciais ou religiosos.
Arno e M.J.Wehling (WEHLING,, 1994; p.224), indicam que a estratificação social
no Brasil Colônia era função da cor da pele, de tal modo que em São Vicente (séculos XVI e
XVII), distinguiam-se: portugueses, índios e mestiços; no litoral da Bahia (séculos XVII e
XVIII) distinguiam-se: brancos, negros e mestiços. Indo além de uma simples classificação
tipológica, a população estabelecia uma verdadeira gradação da importância e valor social
dos grupos de população, dada pela cor da pele e que era aceita pelos próprios mestiços:
Branco ⇒ Mulato ⇒ Caboclo⇒ Cabra⇒ Preto⇒ cafuzo⇒ Índio
Entendia-se por mulato, o filho de branco com preto; caboclo, o filho de branco com índio
(também chamado de mameluco); cabra, era o filho de preto com mulato( também
denominado de pardo); cafuzo era o filho de preto com índio( também denominado curiboca
ou caboré). Ressalve-se, contudo, que o mameluco não era comumente encontrado na região
das minas, os primeiros ali estabelecidos tendo origem na migração dos bandeirantes
paulistas.
Portanto, quando um documento sobre a conquista do território das minas do ouro
fala em paulistas, está se referindo a portugueses e mamelucos, grupo social que se destacava
pela aptidão ao bandeirismo e cujo elemento português era cioso de suas origens nobres, ou
enobrecidas pelos feitos de descravamento dos sertões; 18 quando fala em baianos, refere-se a
brancos, mulatos e pardos. Contudo, deve ser observado que, no Nordeste da Colônia, os
portugueses tornaram-se latifundiários e pouco se deram às aventuras extra conjugais; já, o
17- Jerônimo de Albuquerque foi cognominado de “Adão pernambucano”, tão incisiva foi a sua contribuição ao povoamento daquela Capitania.18- Não obstante o “orgulho de suas origens nobres”, devemos levar em consideração que grande parte desses bandeirante paulista era de cristãos-novos. Dessa forma, sabemos que eles não poderiam ter pretendido qualquer condição nobiliárquica, em Portugal. Nas condições do grande esforço Nacional que foi a colonização portuguesa, é possível ter havido nobilitações pelos serviços militares prestados ao Soberano; contudo, não dispomos de elementos para afirmá-lo. Ver: FERNANDES, Neusa. Obras citadas, passim;
41
mulato, quando um liberto, carregava a pecha da escravidão; fazer fortuna tornara-se um dos
seus mais importantes objetivos de vida. De natureza perspicaz, realizava-se, decidido e
intimorato, na busca dos seus ideais. Eis aí as diferenças fundamentais da mentalidade dos
mulatos da Bahia e a dos mamelucos paulistas.
Ao se defrontarem na região das minas com os paulistas, era natural e previsível o
atritamento desses dois grupos, que se tornaram antagônicos: o primeiro, exercendo o
espírito estamental e mercantilista escravocrata do Reino; o segundo, de espírito urbano
empreendedor, precursor do capitalismo, embora também escravocratas, malgrado a sua
ascendência escrava de origem.
Na região de Caeté, que inicialmente fora habitada pelos paulistas e pelos baianos, a
presença destes últimos tornara-se dominante. Baseando-nos em recenseamento regional
realizado em 182119, podemos inferir que a população de Caeté, no ano citado, se constituía
em cerca de 43% de brancos, 49% de mulatos libertos e 8% de pretos escravos. Porém, em
início do século XVIII, considerando toda a região das minas, a predominância de pardos e
negros era ainda maior, registrando-se: brancos, 22%; pardos, 25% e negros escravos, 53%.
Percebe-se que uma das consequências do declínio da mineração foi aquela da redução da
população negra, escrava, e a consolidação do predomínio da população parda.20 Mas,
principalmente, foi a diversificação das atividades econômicas que contribuiu para a
transformação da nascente fração social, essencialmente urbana, com as características de
um pré-capitalismo, nascente e, que propendia ao estímulo das iniciativas no pequeno
comércio, na própria agricultura e na fixação local de um conjunto de profissões liberais,
tomando certo vulto. Referimo-nos à participação ativa dos forros e coartados nessa
sociedade, como estudado por Eduardo F. PAIVA, em trabalho marcante e desmistificador
do período de que tratamos.21
Todas essas novas situações urbanas bem sucedidas eram, contudo, conflitantes
com a estrutura estamental da sociedade portuguesa, aqui representada por sua fração
paulista. Estes eram os “homens bons”, de “sangue limpo”, que tinham acesso à
representação política da Vila, contrapondo-se aos “oficiais mecânicos”, como eram
considerados os tropeiros, os comerciantes e os artesãos, legalmente excluídos delas,
embora economicamente atuantes e se constituindo na base do seu desenvolvimento.
Eram estes, pois, fatores poderosos para conduzir os ressentimentos e malquerenças
desses dois grupos sociais, mormente porque, o grupo que compreendia os baianos crescia
de modo mais rápido, sendo engrossado, inclusive, pelos portugueses recém-chegados, não
só da metrópole, como das Ilhas e até das colônias nas Índias, de Goa e da África.
Formavam um grupo pejorativamente denominado de Emboabas, pelos paulistas, e o seu
19- Revista do Arquivo Público Mineiro.Belo Horizonte: Imp. Oficial do E.M.G., Vol. IV, p.174; 20 - Ver:PAIVA, Eduardo França. Alforrias e discriminação social: séculos XVIII, XIX e XX/ In: Annais do X Encontro Regional de História.ANPUH-MG. LPH-Revista de História. Ouro Preto: 1996’n.6, p.210;21- PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia. Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001, pp. 27; 43; 45;47-48;
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atritamento continuado produziu malquerenças e desconfianças crescentes, desembocando
no episódio da Guerra dos Emboabas(BARBOSA, 1985; p.87-verbete:Emboaba) .22
No dia a dia desse agrupamento social, verificava-se o fato de que grandes
comerciantes conviviam com grandes mineradores e, não raras vezes, o comerciante
também se tornava minerador como resultado da diversificação das atividades que lhe
permitiam uma importante acumulação de capital. Formava-se uma sociedade urbana
próspera, embora muito violenta, cujos meios de produção eram centrados na mão de obra
escrava; este fato foi o responsável pelos danos econômicos sofridos por esta sociedade
durante a fase do esgotamento do ouro de aluvião, fase do período da exploração aurífera
conhecida como da decadência das minas.
A violência foi particularmente intensa, durante as primeiras décadas da formação
dessa sociedade; a ausência de um sistema judicial localmente estruturado e presente,
favorecendo a impunidade era a grande responsável por aquele estado de coisas, muito
embora os próprios governadores gerais estimulassem a presença de elementos violentos,
como garantia para atingir os objetivos de governo. A miséria pontual tornou-se, também,
parte do cotidiano das povoações. Mas, ao lado dessa miséria, aparecia o trabalho dos forros,
assumindo mais importância, e de tal forma que o próprio Conde de Galvêas, em 1732, já
advertia as autoridades metropolitanas de que esse trabalho dos forros, seja na mineração,
seja na agricultura, seja na pecuária, rendia importantes quintos ao Real Erário.(FRIEIRO,
1957; p.64 – PAIVA,2001; p.39).
A riqueza tornou-se acentuadamente concentrada em mãos de poucos, haja vista o
fato de que cerca de metade das lavras pertenciam a cerca de 1/5 dos proprietários de
escravos, consequência dos critérios para a concessão de datas, que era a do número de
escravos possuídos. Um outro aspecto curioso é que, para esses proprietários, o luxo não era
um sinal de irracionalidade, mas de poder e status, indispensáveis à consolidação e
ampliação do poder de mando. Tal comportamento era resultante da própria conformação
geológica dos solos das lavras que não exigiam maquinaria para a sua exploração,
condicionando os investimentos `a aquisição da mão de obra escrava. Escravos eram, pois,
parte importante da exploração, podendo representar até 50% do produto bruto obtido na
atividade exploratória. Ora, cálculos expeditos, considerando as despesas com impostos,
materiais e outras não quantificáveis, demonstrariam que os resultados da exploração eram,
geralmente, negativos. Daí porque poucos fizeram fortuna nessa atividade, salvo quando
recebiam datas de excepcional riqueza. E estes foram, realmente, poucos mas, a cultura da
22- Waldemar de A. Barbosa pesquisou detalhadamente a origem do apelido Emboaba. Citando as contribuições de Teodoro Sampaio, Basílio de Magalhães, Cândido Mendes e Batista Caetano, no sentido de esclarece-lo. Cita as primeiras interpretações do próprio Teodoro Sampaio( Emboaba= Homem de botas) e de Diogo Vasconcelos( Emboaba= Pinto-calçudo), rejeitando-as. Conclui pelo significado de um apelativo grupal, não indicativo de um ou outro indivíduo, mas de todo o grupo de pessoas que não era paulista. Dessa forma, Emboaba era o indivíduo que se opunha ao paulista; emboabas era o grupo de opositores;
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necessidade de se guardar as aparências para obter e manter o crédito pessoal atingiu a
grande maioria dos mineradores (PAIVA, 2001; pp.41-57).
É fato que, no período da decadência das minas, entre 1776 e 1821, a população
mineira cresceu de 319.769 habitantes para 514.104. . Ao mesmo tempo, observa-se ter
havido uma redução na importação de bens de consumo demandados pela região, o que se
evidencia pelos levantamentos da documentação dos diversos “registros” que controlavam os
“quintos”.(CHAVES, 1999;pp.36 e seg.). Portanto, os fenômenos econômicos ligados à
“decadência das minas” devem ser cuidadosamente considerados em sua totalidade: um
aumento de população, como o mostrado acima, não pode conviver com uma sensível queda
no consumo interno de bens indispensáveis à conservação da vida. É claro que aí está a mais
cabal demonstração da migração de atividades, que passou da extração mineral para a
produção agropastoril.
Em monografia de importância indiscutível,Wilson Cano (CANO, 1977. pp.91-109),
situa a economia do ouro como fraca geradora de efeitos econômicos secundários, salvo
aqueles relativos à urbanização e ao desenvolvimento do aparelhamento burocrático e militar
do Estado. Insiste em que a economia do ouro não engendrou segmentos produtivos, “in
loco”, posto que se importava a maior parte das necessidades de consumo, dado não haver
produção local das mesmas; assim, não houve retenção dos excedentes da produção.
Entretanto, atentemos para o fato de que a circulação monetária nas minas, era
realizada pelos pagamentos em ouro em pó; a “oitava” funcionava praticamente como moeda
divisionária ( era equivalente a 3,56 g. de ouro). A origem desse ouro circulante poderia ser
a legal, correspondendo ao excedente da produção; como também poderia ser produto da
escamoteação ao erário real, o que também era considerável. De qualquer forma, ela se
constituía em uma parcela da riqueza que, efetivamente, foi aplicada em bens de raiz,
como o demonstrou as pesquisas de Eduardo F. Paiva ( PAIVA, 2001;pp.41-67). Entre
outros exemplos citados por esse autor, colhemos os de Alexandre Correia, casado, pai de 5
filhos, minerador , senhor de 12 escravos e residente na vila de S. João Del Rei. Em
testamento realizado em 1761, Alexandre declarava sua condição de preto forro, mas que
galgara a escala social, então fazendo parte de uma classe média urbana, tendo investido em
propriedades diversas. Em outro extremo da escala social, colhemos o exemplo do Coronel
Martinho Afonço (sic) de Mello, fazendeiro e criador de gado bovino, com propriedades na
região de Pitangui; pelo seu testamento, em 1741, ficamos sabendo que investira em terras
nas várias regiões de Minas e, inclusive, em Sergipe Del Rei e em Mato Grosso. Um outro
exemplo nos vem do testamento de Manoel Pereyra (sic) Castro, em 1717; português e
casado, era fazendeiro e minerador, morando em Sabará, onde possuía um sítio com lavras
de ouro, mas onde também plantava milho; possuía outra fazenda, onde plantava cana e
possuía alambique. Ainda em 1780, o Coronel ( com Patente) Jozé (sic) Vieira de Almeida,
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paulista, fazendeiro, pecuarista, minerador e agricultor, o Coronel era possuidor de várias
fazendas, pelas quais distribuía cerca de 89 escravos.
São estes, exemplos que contradizem a afirmação de W. Cano e mostram o porquê
de a decadência da mineração não ter significado a decadência de Minas Gerais, apenas
afetando a sua vida econômica urbana. Contudo, para a decadência desta, outro fator de
importância atuou, que foi a permanência da escravidão.
Com a decadência da extração, é óbvio que a “moeda” constituída pelo ouro em pó
escasseou; e não tendo sido substituída por nenhuma outra até 1803, as transações
comerciais quase se extinguiram, restando o escambo como possibilidade de diversificação
do consumo. E tal convivência foi possível, porque o regime regulador dos meios de
produção era o escravocrata: muito pequena era a diversificação da demanda; não havia
consumo de massa, razão pela qual os fenômenos econômicos pouco repercutiam nas
comunidades que se tornavam agropastoris e autônomas quanto à própria subsistência,
inserindo-se naquele ritmo da História a que F. Braudel caracterizou como “movimentos
seculares”(BRAUDEL, 1949; pp.XII-XIII-Prefácio)..
De qualquer forma, mesmo considerando a grande expansão das atividades agro-
pastoris da região, das atividades manufatureiras, produtoras domésticas de tecidos,
geralmente grosseiros, para a escravaria, não há que o negar: efetivamente, houve uma
estagnação no desenvolvimento urbano das cidades da região das minas, pelo menos no
período aqui examinado.
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