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A semiosfera no escritos de Jean de Léry
Resumo
Na obra de Jean de Léry, demonstra claramente a transformação
pessoal ao encontrar uma cultura diferente da ocidental e perceber na
vida dos tupinambás, um código de ética e moral de vida diferente.
Com a nova leitura, Léry atualiza e avalia sua cultura, descodificando
os seus absolutos e codificando outra forma de leitura. Assim, o
pensamento de Léry esta ocupando novo espaço no continnum
semiótico. Aspira-se apurar os conceitos: Semiosfera de Yuri
Lotmann e o de fronteiras culturais de Roger Bastides. Desta forma,
apresentar nosso autor, através de uma pequena biografia, resumir o
livro, para o leitor conhecer esta obra. Por ser uma obra com capítulos
ricos em comparações entre as culturas é necessário escolher parte de
um capitulo para se discutir os conceitos citados. No livro existe uma
quantidade de fronteiras, onde as semiosferas descritas neste texto
obtém uma forma nova de perceber as culturas.
Palavras chaves: Semiosfera, cultura, fronteira, conceito e semiótica
Introdução
Os escritos de Léry constitui espaço semiótico em que se articulam na ligação de
várias semioses. Através delas, realidades de culturas diferentes, ocidental e nova
cultura, são construídas a partir do relato do nosso autor, que seleciona os fatos a serem
transformados em história, assim, constrói memória coletiva1 em pelo menos dois
níveis: no registro mental de determinados fatos que perpassam o tempo, mesmo que
sua obra desapareça no tempo; e pelos arquivos que geram vários suportes, que podem
ser acionados em novas semioses.
Para Michel de Certeau a história é uma elaboração linguística que emerge de
um lugar social, e, além disto, também é produzida a partir de uma prática. Neste
sentido, devemos considerar a prática imagética que se evidencia na obra de Jean de
1A memória coletiva é uma construção semiótica e se circunscreve às potencialidades auto-
organizacionais embutidas na semiose. Ela é gerada no dinamismo da entropia dos sistemas culturais:
existe graças à irreversibilidade do tempo. Não se trata apenas de um dispositivo conservador de
informação: ele tem a capacidade de disparar novos sentidos.
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Léry. Esta prática cientifica está condicionada ao lugar social que autoriza o seu
discurso, desta feita, as práticas demonstradas nas representações imagéticas de nosso
viajante apontam para as relações que antecedem e que se constituem em sua estrutura
de pensamento.
Portanto, apresentam as chaves de compreensão de suas representações
imagéticas, visto que, temos diante de nós um sujeito social que externaliza em imagens
a sua concepção de mundo e seu sistema de pensamento teológico. Por conta disso, a
memória coletiva precisa ser pensada em termos das adaptações elaboradas
comparativamente da história entre a nova cultura e a cultura ocidental escrita por Jean
de Léry.
Para melhor entendimento deste ensaio, faz-se necessário que se esclareça a
relação entre os conceitos nela embutidos. Inicio com o entendimento de semiose e
continnum semiótico. Na teoria de Peirce, a semiose significa a própria ação do signo2,
que pode ser descrita da seguinte forma: há um objeto, fora dele, que determina a sua
existência enquanto signo que, por outro lado, só se efetiva como tal na produção do
interpretante, outro signo que se gera na mente afetada pelo signo e que mantém a
relação primordial com o objeto. O interpretante3, assim que gerado, e sendo signo, terá
condição de produzir outro interpretante e este, mais outro, sucessivamente.
Estes novos signos gerados podem ser mais desenvolvidos em relação aos
iniciais e propiciariam outros desvendamentos do objeto dinâmico. Desta forma, a
semiose se processa animadamente por uma meta, uma tendência: interpretando até se
esgotar o objeto que desencadeou o movimento a partir de determinado signo ou
conjunto de signos. Processo esse, salienta-se, que traz no seu bojo um desgaste
temporal.
2 Signo para Pierce é um cognoscível que, de um lado, e assim, determinado por algo diverso dele,
chamado seu objeto, enquanto, por outro lado ele próprio determina a mente existencial ou potencial,
determinação esta que denomino o interpretante criado pelo signo. 3 Representante para Pierce é uma criatura do signo que não depende estritamente do modo como uma
mente subjetiva, singular possa vir a compreendê-lo; O interpretante não é ainda o produto de uma
pluralidade de atos interpretativos, ou melhor, não é uma generalização de ocorrências empíricas de
interpretação, mas é um conteúdo objetivo do signo.
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Para Lotman o continnum semiótico é o movimento por todo e qualquer sinal
para se tornar signo. Então, tanto o continnum semiótico como a semiose para Yuri
Lotman (1999) designa estes espaços como a semiosfera, que corresponde aquilo que na
vida entende-se como biosfera. Trata-se de um sistema dinâmico, aberto, na qual todas
as semioses tornam-se possíveis. Ao englobar o conjunto das dinâmicas culturais, é
neste espaço que se dá tanto a produção de sentido como a de memória.
O conceito de biosfera compreende um mecanismo cósmico que ocupa um
determinado lugar estrutural na unidade planetária. Disposta sobre a superfície de nosso
planeta e que envolve (integra) todo o conjunto da matéria viva, a biosfera transforma a
energia radiante do sol em energia química e física que, por sua vez, transforma a
matéria inerte de nosso planeta. Vernadski definia a biosfera como um espaço
completamente ocupado por matéria viva. “A matéria viva para ele era o conjunto de
organismos vivos” (LOTMAN, 1999, pg. 11).
Esta definição, ao que parece, permite dizer que a base do sistema é o átomo do
organismo vivo, cuja soma forma a biosfera. “A matéria viva pode ser considerada
como uma unidade orgânica – uma camada sobre a superfície do planeta – e pela qual a
diversidade de sua organização interna” (LOTMAN, 1999, pg.11) é responsável por
criar um segundo plano mais complexo – que será o mecanismo transformador da
energia irradiada pelo sol em energia química e física da Terra. Todas essas camadas
estão ligadas entre si de uma maneira estreita. Uma não pode existir sem a outra. Este
vínculo entre as diversas camadas e formas vivas, e a característica invariável das
mesmas, são um corte atemporal do mecanismo da correnteza terrestre, que se manifesta
através de um tempo geológico. Ou seja,
“a biosfera tem uma estrutura completamente definida, que determina tudo o que
ocorre nela, sem nenhuma exceção. O homem, como se observa na natureza, assim
como todos os organismos vivos, é uma função (tem um papel) na biosfera, em um
determinado espaço de tempo” (LOTMAN, 1999 pg. 12).
A biosfera existe sem depender do tempo. Porém, a atividade que se opera
dentro dela depende de um tempo cronológico (existência).
Os processos culturais, entendidos como semiosféricos, teriam a mesma
competência. Esta manifestação produz contínuos processos de transformações, alguns
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de longa duração, outros extrapolam, já que as dinâmicas culturais não são homogêneas:
há disputas de sentidos, e mais do que isso, há sentidos que se sobrepõem enquanto
outros são eliminados.
Esta tensão semiótica permanente transforma a semiosfera em uma estrutura
complexa e heterogênea que joga continuamente com o espaço que lhe é externo. Nesta
dinâmica, a cultura não só constitui sua organização interna, mas também sua
desorganização externa, o que sugere que a cultura vai explodindo seu território
continuamente, como Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira cita Lotman no final da
vida para afirma a teoria da explosão cultural.
Lotman insere um novo conceito-metafora para entender o dinamismo da cultura e
as transformações na semiosfera. Ele completa o modelo, espacial da relação centro
e periferia e da semiosfera (com conceito de fronteira) com o conceito de explosão e
de tempo deslocado. Com o conceito de explosão, Lotman permite melhor
observação do encontro de sistemas culturais totalmente diversos no tempo e
entender as drásticas transformações que qualquer previsão dos desenvolvimentos
futuros seja vedada ao historiador da cultura (NOGUEIRA, 2015, pg. 106, 107).
Nas fronteiras deste sistema, acontecem enfrentamentos tanto drásticos quanto
silenciosos, que são verdadeiros procedimentos de tradução. Dr. Paulo Nogueira
concorda com esta afirmação dizendo: “isto não significa que estas influências sejam
aceitas e recebidas num clima pacifico, mas ocorrem mesmo em um espaço de combate
e disputa, ainda que sejam inconscientes” (NOGUEIRA, 2015). Através destes embates
são processadas as reorganizações na semiosfera.
Para Lotman a questão fundamental de todo o sistema semiótico reside na
relação deste sistema com o extra sistema, com o mundo que existe para além dos seus
limites.
Contemporaneamente, o espaço semiótico expulsa estratos inteiros de cultura.
Formam fralda de resíduos para irromper novamente na cultura, a ponto esquecidos
que podem ser percebidos como novos. O intercâmbio com a esfera extra semiótica
constitui uma inesgotável reserva de dinamismo (Lotman, 1999, p. 169).
Em outros termos, isso implica em uma relação entre estática e dinâmica, ou
seja, de que maneira o sistema pode desenvolver-se permanecendo o mesmo.
A fronteira que separa o mundo fechado da semiose e a realidade extra semiótica
é, segundo Lotman (1999), penetrável. Ele se acha constantemente atravessado por
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incursões de elementos provenientes de esferas extra semióticas, que irrompem e levam
consigo a dinâmica. Eles transformam este espaço ao mesmo tempo em que são
transformados segundo suas leis.
O pensamento de Lotman está imbuído de uma perspectiva sistêmica que trata
dos sistemas abertos dinâmicos fora do equilíbrio. Do espaço disperso e caótico,
designado como extra sistêmico e, em cujas fronteiras, desencadeiam-se operações
tradutórias, configura-se, de forma auto-organizacional, um sistema cultural com
dinâmicas próprias.
Pode-se falar em semioses hegemônicas, que zelam pela permanência e
manutenção do sistema, a ponto de expulsarem para o espaço extra sistêmico, extratos
ameaçadores. Esta observação de Lotman esclarece a abordagem aqui adotada:
Um dos fundamentos da semiosfera é sua heterogeneidade. Sobre o eixo do tempo,
coexistem subsistemas cujos movimentos cíclicos possuem diferentes velocidades.
Muitos sistemas se chocam com outros e mudam de repente seu aspecto e sua órbita.
O espaço semiótico se encontra tomado de fragmentos de variadas estruturas que
conservam estavelmente em si a memória do sistema inteiro e caindo em espaços
estranhos, podem, de improviso, reconstituir-se impetuosamente. Os sistemas
semióticos dão prova, chocando-se na semiosfera, de tal capacidade de
sobrevivência e transformação, e de valores outros, como Proteo, permanecendo eles
mesmos, que convém falar com muita prudência do desaparecimento de qualquer
coisa neste espaço. (LOTMAN, 1998: 159-160).
Com afirmação acima de transformação, choque de sistemas, fragmentos de
variadas estruturas e de sobrevivência de valores outros pode-se dizer que a semiosfera
das culturas de fronteiras são ambivalentes e bilíngues, ao ponto,
de ser impossível admitir a existência de limites rígidos e precisos. Pelo contrário,
fronteiras configura uma superfície heterogênea e, portanto irregular. Formulado
para caracterizar o espaço semiótico da semiosfera, o conceito de fronteira foi
pensado no contexto da matemática: “um conjunto de pontos pertencentes
simultaneamente ao espaço interior e ao espaço exterior” (LOTMAN, 1996 pg. 24).
Difere, contudo, num aspecto: aquilo que está fora só pode integrar o espaço da
semiosfera se for traduzido. Dentro e fora só existem enquanto modelização. A
fronteira define-se, então, como um mecanismo de semiotização capaz de traduzir as
mensagens externas em linguagem interna. (MACHDO, 2003, pg. 159-160)
Portanto, Dr. Paulo Nogueira usando Lotman diz: que o espaço todo da
semiosfera é interseccionado por fronteiras de diferentes níveis, ou mesmo de textos, e o
espaço interno de cada uma dessas subsemiosferas tem seu próprio “eu” semiótico que é
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percebido como a relação de uma linguagem, grupo de textos, textos que separados, até
o espaço metaestrutural que descreve, porém sempre tendo em mente que linguagens e
textos estão a dispostos hierarquicamente, em níveis diferentes. (NOGUEIRA, 2015, pg.
106)
Então, gostaríamos de afirmar que neste ensaio vamos nos deter no conceito de
culturas de fronteiras, pensando no papel que a semiosfera executa de filtro bilíngue,
dos textos externos a serem traduzidos para o interno, encontrando as semioses, que são
a dinâmica dos signos e dos significantes, dos escritos de nosso viajante.
Nosso ponto de partida será examinar porções do capítulo XVI, para detectarmos
com maior facilidade as fronteiras de acordo com o conceito de intersecção das
semiosferas de Yuri Lotman e colocar estes conceitos em dialogo com o conceito de
Roger Bastide da imprevisibilidade entre duas culturas.
1- Uma breve biografia de Jean de Léry
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Jean de Léry nasceu em La Margelle, nas vizinhanças da abadia de Saint-Seine
de Borgonha4, no ano de 1534. Nada se sabe de sua primeira infância. Sem dúvida
pertencia a uma família de burgueses, talvez mesmo de modestos fidalgos, pois foram
estes os primeiros a seguir o movimento da Reforma, no noroeste da França. Os pais de
Jean de Léry eram adeptos das novas ideias. Sabe-se, com que rapidez se propagou tais
opiniões naquele país. A França parecia predestinada à Reforma. Léry, com 18 anos na
profissão de sapateiro, viaja à Genebra para estudar teologia sob a orientação do
reformador João Calvino.
Neste interim, o “vice-rei” e vice-almirante Nicolau Durand de Villegagnon5, em
carta, solicita a Calvino o envio à França Antártica (nome atribuído à baia da
Guanabara) os protestantes huguenotes6. “Gaffarel diz: que Villegagnon o “vice-rei” da
França Antártica escreveu diretamente à Calvino comunicando-lhe seus projetos”; a
implicação do pedido é que Calvino acolheu com carinho a imprevista solicitação7. Um
dos projetos deste "vice-rei” era construir um refúgio para os franceses perseguidos,
“que de fato, as perseguições eram tão terríveis nessa época, que muitas pessoas de
todos os sexos e condições viam por toda a parte seus bens confiscados por motivos
religiosos e eram, mesmo, não raro, queimadas vivas em obediência a éditos dos reis e
decisões do Parlamento” (LÉRY, pg 12, 1560). Com este refúgio o almirante se auto
afirmaria como vice-rei desta nova França.
4 Borgonha é uma região administrativa da França, localizada no centro leste da França, hoje em dia é
reconhecida mundialmente por ser uma das mais importantes regiões vitiviniculturas da França e seus
vinhos são consumidos em dezenas de países. 5 Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) era vice-almirante da Bretanha (noroeste da França) e
cavaleiro da Ordem de Malta, também conhecida como Ordem de São João de Jerusalém; 6 São franceses convertidos ao protestantismo no século XVI;. 7 GAFFAREL, Paul, Notícia Biográfica in Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Belo Horizonte/São
Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 20-21. Ainda em nota Gaffarel afirma que “o original desta carta
encontra-se na Biblioteca de Genebra”. Já Schalkwijk em nota explicativa afirma: “A carta-pedido
original não se preservou, mas o resultado mostra a intenção”. Frans Leonard Schalkwijk, O Brasil na
Correspondência de Calvino in Fides Reformata IX, N.º 1, São Paulo, Mackenzie, 2004. Cp. Frank
Lestringant, Le Huguenot et Le Sauvage: L’Amérique et la controverse colonial, en France, au temps des
Guerres de Religion (1555-1589), Genéve, Droz, 2004, p. 53; Francisco Adolfo de Varnhagen, História
Geral do Brasil, tomo primeiro, 5.ª ed., São Paulo, Edições Melhoramentos, 1956, p. 286; Wilton Carlos
Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e
Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 99; José Gonçalves Salvador, Vozes da História,
São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2001, p. 158.
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Assim, o reformador genebrino comissionou quatorze pessoas entre elas
teólogos calvinistas, pastores e dentre eles, Léry, e assim, partiram de Genebra em
setembro de 1556, chegando ao porto de Honfleur na França, podendo embarcar
somente em novembro do mesmo ano, para promover a fé reformada na colônia
francesa. Desta feita, nosso personagem embarca para sua aventura sem ter concluído
seus estudos.
Chegou ao Brasil em Março de 1557. Após oito meses da sua chegada em terras
ameríndias, foi expulso juntamente com seus amigos protestantes, por Villegaignon,
acusados de heresias contra a Igreja Católica. A expulsão fez Léry transpor o mar e
viver em terra firme no meio da floresta, onde encontrou uma tribo denominada
Tupinambá, convivendo com estes “selvagens” (termo usado por Léry) por
aproximadamente um ano. Após este tempo conseguiu retornar à França, terminou seus
estudos e foi nomeado pastor. Somente após dezoito anos, em razão dos manuscritos se
perderem algumas vezes e em várias partes da França, resolveu escrever suas
experiências afrontando um escritor chamado André Thevét, onde Léry denomina
Thevét de “um refinado mentiroso e um imprudente caluniador”. Em Berna, Suíça, foi
sua última residência onde se despediu da vida em 1611.
A sua experiência de viagem, a relação com Villegagnon, a perseguição e morte
dos mártires, a rápida decadência da França Antártica, resultou em um relato onde
encontramos as descrições dos primeiros habitantes, sua cultura, religião, práticas, usos
e costumes, denominada: “História de uma Viagem feita à terra do Brasil, também
chamada América”, se firmou como uma contribuição aos pesquisadores de nossa
história. Assim, encontramos em Léry uma forma de escrita não somente inovadora,
mas também, representativa da época da qual ele fazia parte, momento de rupturas e
transições, um período de transposição de fronteiras. Além disso; creio eu, estes escritos
abrem portas para outras ciências, assim como, encontrar nesta história outros saberes,
tais como: os conceitos da semiótica e de semiosfera discutida por Yuri Lotman.
Além desta obra nasceram mais dois livros: História Memorável do Cerco de Sancerre
e História Memorável da Cidade de Sancerre.
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2- Resumo dos escritos de Jean Léry
Jean de Léry escreve detalhadamente as nuances desta viagem, desde o início da
embarcação com três navios, cada qual com seus comandantes, seus tripulantes e seus
marinheiros, o nosso personagem vivencia as experiências e nos conta com muita
expertise a vivência desta viagem que deslumbra e atrai qualquer leitor.
Os detalhes internos de sua embarcação, os medos de outras embarcações e das
tempestades, as alegrias em ultrapassar barreiras e até mesmo o rito de alegria
executado quando um navio passava pela linha do equador, as inconstâncias dos ventos,
a sede, as relações violentas, e amigáveis com outras caravelas, seus embates e sua
forma de compartilhar os alimentos e as necessidades entre os marinheiros na luta pela
sobrevivência até o final da viagem.
Os detalhes ricos da vida dos seres marinhos no Oceano atlântico e como os
tripulantes preparavam suas iscas e a forma de pescar neste mar temeroso no passado,
mas agora dominado pelos homens, a diversidade dos seres marinhos e como o autor
descreve de uma forma que poderíamos tocá-los.
“Também vimos golfinhos acompanhados de várias espécies de peixes, dispostos
como uma companhia de soldados atrás de seu capitão e que pareciam de cor
avermelhada dentro d’água; e houve um que como se quisesse agradar-nos volteou
em roda de nosso navio por seis ou sete vezes. Tentamos apanhá-lo, mas com seus
negaceios batendo habilmente em retirada não nos deixou apresá-lo”.
Ao se aproximarem da costa da América, nosso autor descreve toda a costa
brasileira sua rica flora e fauna e seus habitantes de diversas localidades, de diferentes
costumes de acordo com cada lugar que passava denominado por ele (Léry) de
selvagens e violentos, mas prontos a negociar as bugigangas oferecidas pelos
tripulantes. Assim, descreve as iniciativas de aproximação dos ditos “civilizados” com
os “selvagens.”
“Não obstante a inimizade entre margaiás e franceses, muito bem dissimulada de
parte a parte, nosso mestre, que lhes conhecia um pouco a língua, meteu-se num
escaler com alguns marujos e dirigiu-se à praia cheia de selvagens. Não se fiando
nestes, entretanto, e temerosos de serem agarrados e moqueados, mantiveram-se fora
do alcance de suas flechas acenando-lhes de longe com facas, espelhos, pentes e
outras bugigangas. Ouvindo as nossas vozes apressaram-se os índios mais próximos
em vir ao encontro dos nossos, com alguns companheiros. Desse modo obteve o
nosso contramestre farinha fabricada de certa raiz, usada pelos da terra em vez de
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pão, e ainda carne de javali, frutas e mais coisas que o país produz em abundância.
Assim, depois que os margaiás admiraram as nossas peças e tudo mais que
desejaram no navio, pensando em outros franceses que por acaso lhes caíssem nas
mãos, não os quisemos molestar nem reter; e pedindo eles regresso à terra tratamos
de pagar-lhes os víveres que nos haviam trazido. Mas como desconhecessem o
pagamento em moeda, foi o mesmo feito com camisas, facas, anzóis, espelhos e
outras mercadorias usadas no comércio com os índios”
Neste argumento acima Léry declara que os selvagens são inimigos, apesar dos
interesses mútuos, acessíveis aos outros. Continuando a viagem, mais a diante, se
deparam com um forte construído para proteger a colônia portuguesa dos invasores, e
assim, o autor relata o início de ataques através de canhões, mas por causa da distância
entre eles nada aconteceu e continuam a viagem para chegar ao seu destino.
Ao aportar nas terras de Villegagnon e acreditar por alguns dias neste “vice-rei”,
a imagem do mesmo foi sendo transformada no que essa pessoa vivia verdadeiramente.
A recepção se converteu em opressão para aqueles que acabaram de chegar, a festa se
transfigurou em carregamento de pedras e terra – sem considerar o estado de debilidade
dos viajantes – para o reforço do forte Coligny, engrossando assim a população da
França Antártica.
Durante os oito meses de trabalho forçado, mas felizes por cooperar na
construção da extensão do seu país o “vice-rei” diverge com as doutrinas ensinadas
pelos protestantes, com isso, os embates se iniciaram alcançando todos os níveis desde a
cerimonia da ceia de como desfrutar da mesma, até a prisão por desacato que Léry não
se submeteu mais ao senhor daquela terra, até que o ambiente com Villegagnon se
tornou insuportável e foram expulsos do forte e tiveram que passar à terra firme.
Dessarte, nosso autor e seus amigos iniciam a relação com os tupinambás, pelos quais
foram tratados com mais humanidade do que pelos seus patrícios.
Léry descreve os moradores da terra chamada Brasil com muitos detalhes, desde
os adultos até as crianças, como vivem e se vestem, ou não. Além de descrevê-los, o
nosso autor compara os adultos e crianças do dois mundos com toda a firmeza tentando
igualar as pessoas, apesar de seus diferentes costumes.
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Assim também, compara as guerras entre os países ditos “civilizados” e as
guerras dos selvagens, dizendo sobre a ganância das pessoas ocidentais em conquistar
terras, e dos tupinambás em guerrear somente para vingarem os seus antepassados que
morreram, e assim, realizarem um rito antropofágico para se firmarem como vingadores
e guerreiros de seu povo.
A exploração é alvo dos escritos de nosso autor, onde ele declara em uma
conversa com um idoso, brasileiro, sobre as riquezas retiradas de suas próprias terras,
para serem transportadas à Europa e dessa maneira, enriquecer alguns e como o
tupinambá responde sobre o acumulo de riquezas e o suprimento da terra para sua
família:
Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e pêros
(franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes
madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade,
e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para
tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? — Sim, respondi-
lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas,
tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles
compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. — Ah!
retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem
compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não
morre? — Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes
discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me
de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os
têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos.— Na
verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que
vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes
incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar
riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra
que vos nutriu suficiente ara alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a
quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos
nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados".
Nosso autor descreve o casamento dizendo sobre a união dos tupinambás e com
quais mulheres não poderiam casar, tais como: a mãe e irmãs. Porém, as outras
mulheres da família ou qualquer outra o homem poderia se unir, mas a virgindade o pai
teria a possibilidade de entregar sua filha a outro homem.
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A fidelidade era algo prestigiado entre os americanos e a poligamia era aceita na
tribo e sinal de coragem para os homens, quanto mais mulheres mais coragem. Assim,
nosso autor descreve sobre as mulheres de sua terra que o ciúme e a inveja faria parte do
casamento se houvesse poligamia.
Léry descreve a forma alimentar dos tupinambás, como eram diferentes dos
europeus, porque, comem somente quando estão famintos, sem horário prévio. As
praticas de caçar, pescar, trazer alimentação para a família e preparar suas armas para
guerra estava focalizada no homem, mas a de plantar, cozinhar e preparar as bebidas era
somente das mulheres. Algo interessante no preparo da bebida chamada “cauim” após a
mistura de milho e aipim as mulheres mascavam até a mistura se tornar um creme e
serviam aos homens.
Quando estavam gravidas, não paravam nem mesmo quando entravam em
trabalho de parto. Alimentavam os recém-nascidos, sem muita preocupação, mostrando
a diferença entre os ocidentais e os brasileiros. Pois, os europeus quando a criança
nascia eles enrolavam a criança muito forte em uma faixa de pano para deixa-la firme,
os tupinambás além de comer o cordão umbilical deixavam o recém-nascido livre e não
amamentavam somente, mas já faziam um creme, como mingau, e a criança se
alimentava todos os dias, assim, a mesma crescia e ficava forte.
A menina não era valorizada, mas quando nascia um menino, o pai fazia armas
pequenas e pintava a criança como guerreiro e colocava as armas sobre ele, dizendo
com isso, que nasceu um guerreiro para tribo.
A doença no corpo do americano era mostrada para outra pessoa, assim, havia
um costume de chupar a doença, este papel era feito por alguém da família, ou melhor,
se fosse por um pajé, pois acreditavam que ao chupar a doença iria embora.
Enquanto o enfermo estava acamado as pessoas continuavam seus afazer e suas
danças, somente mudava o humor dos tupinambás quando qualquer pessoa morria, a
morte era algo muito triste para este povo, as danças se tornavam em choro e gritaria
pelas mulheres. O enterro era feito muito rápido, o defunto era enterrado curvado e os
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braços amarrados entre as pernas e se fosse uma pessoa importante seu tumulo era
dentro de sua casa.
No pensamento dos americanos deveriam colocar alimentos para uma
personagem chamada Anhangá, pois se a mesma chegasse ao tumulo e não encontrasse
alimentos, a mesma abriria o tumulo e comeria o cadáver, assim, os tupinambás
colocavam os alimentos para que esta personagem pudesse comer até o corpo se
deteriorar.
A viagem de regresso foi atribulada com muitas mortes, desvios de rota por se
perderem no caminho, os ventos fortes e altas ondas quase destruiu a caravela com
rombos no casco, fome por falta de alimentos, fazendo a todos, desta pequena
embarcação, comerem até mesmo os ratos. A chegada a solo francês não foi melhor.
Sem suspeitarem de nada, os missionários levavam consigo uma carta, em que
Villegagnon ordenava a prisão e execução imediata destes. Mas as autoridades
francesas, igualmente protestantes, ignoraram a ordem.
3-A semiosfera da cultura nos escritos de Jean de Léry do capítulo XVI com o
titulo: Religião dos selvagens da América; Erros em que são mantidos por certos
trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus, demonstrando as fronteiras
culturais.
Jean de Léry ao descrever a religião dos americanos, parte de seu espaço
cultural e de conhecimento de uma religião que se diz “verdadeira”. Léry fazendo uso
da tese de Cicero para construir sua teoria que norteará a análise se as crenças e os ritos
dos tupinambás é uma religião. Léry inicia este capítulo dizendo: “Sobre o que se pode
chamar religião entre os selvagens americanos: e sobre os erros em que estes são
mantidos por certos trapaceiros chamados Caraibes: é a grande ignorância de Deus em
que estão imersos” que descreve a religiosidade tupinambá, citando Cicero e mostrando
a sua dificuldade de aplicar a sua tese a este povo brasileiro do século XVI.
Embora seja aceita universalmente a sentença de Cícero, de que não há povo, por
mais bruto, bárbaro ou selvagem que não tenha ideia da existência de Deus, quando
considero os nossos tupinambás vejo-me algo embaraçado em lhe dar razão. Pois
além de não ter conhecimento algum do verdadeiro Deus, não adoram quaisquer
divindades terrestres ou celestes, como os antigos pagãos, nem como os idólatras de
hoje, tais os índios do Peru, que, a 500 léguas do Brasil, veneram o sol e a lua. Não
têm nenhum ritual nem lugar determinado de reunião para a prática de serviços
religiosos, nem oram em público ou em particular. Ignorantes da criação do mundo,
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não distinguem os dias por nomes específicos, nem contam semanas, meses e anos,
apenas calculando ou assinalando o tempo por lunações. Não só desconhecem a
escrita sagrada ou profana, mas ainda, o que é pior, ignoram quaisquer caracteres
capazes de designarem o que quer que seja.
A partir do texto acima podemos identificar o encontro de dois mundos culturais
totalmente diferentes, levando em conta que Léry avalia a religião do povo tupinambá a
partir de sua própria concepção de mundo, com uma religião instituída. Porém notamos
nos tupinambás uma religiosidade sem adorar um ser supremo, e até mesmo, sem
idolatrar uma divindade. Nisto, podemos encontrar o conceito de Lotman, as
semiosferas se chocando, formando assim, as fronteiras das culturas, uma pessoa com
uma carga de signos tentando se comunicar com outra que demonstra diferentes signos.
Além disso, tentando colocar sua religião como a correta e dominante diante de outro.
Pois era a concepção dos ocidentais da época, como diz Dr. Lauri Emílio Wirth:
“qualquer povo que não tinha a religião dos ocidentais não eram considerados seres
humanos.” (aput 2015) Podendo denomina-los neste ensaio de marginais.
Ao perceber a dificuldade de entender a complexidade da vida social dos
tupinambás, e que as estratégias não conseguem abarcar estas relações tão facilmente,
passa, através de táticas adaptadas à realidade vivenciadas a encontrar o espaço onde a
descrição da religiosidade tupinambá terá sentido, mostrando, assim, uma capacidade
singular de aplicação prática do seu sistema teórico, a escrita entra em cena como
possibilidade de transformação da realidade religiosa dos tupinambás. Ao deparar que o
índio encontra-se à margem da humanidade, Léry, diante desta encruzilhada na história
passa a transitar entre ciência e arte, no objetivo de construir a sua escrita.
Quando cheguei ao país e me pus a aprender-lhes a língua, escrevia sentenças e
depois as lia diante deles; e julgavam que era feitiçaria, e diziam uns aos outros:
"Não é maravilhoso que quem ontem não sabia uma palavra de nosso idioma possa
hoje ser entendido com um pedaço de papel?" Essa é também a opinião dos
selvagens das ilhas espanholas, que foram os primeiros a emiti-la, pois diz o autor de
sua história que vendo os espanhóis se entenderem de longe por meio de cartas os
imaginaram dotados do dom de profecia, ou que as missivas falassem. E acrescenta
ele que os selvagens, temerosos de serem descobertos, não mais mentiam aos
espanhóis e lhes obedeciam cegamente. Eis, portanto aí um tema de dissertação
suscetível de mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da África devem louvar
a Deus pela sua superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo que
os selvagens nada podem comunicar-se entre si a não ser pela palavra, nós, ao
contrário, podemo-nos entender e dizer os nossos segredos, por meio da escrita,
pelas cartas que enviamos de um a outro extremo da terra. Além da invenção da
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escrita, os conhecimentos de ciência que aprendemos pelos livros e que eles
ignoram, devem ser tidos como dons singulares que Deus nos concedeu.
Com esse plano de construir a escrita, para uma comunicação entre as culturas,
pode-se encontrar o pensamento dominante em desejar, de alguma forma, a
transformação da cultura brasileira em uma cultura ocidental. Com isso, também, a luta
de nosso autor para fazer com que os tupinambás aceitem de alguma forma sua religião
como a verdadeira. Igualmente, Léry demonstra a privação dos tupinambás da escrita e
a superioridade dos ocidentais. Mas, notamos na fala dos tupinambás que a escrita foi
interpretada diferente – como feitiçaria – este argumento vai de encontro claro ao
conceito do processo semiótico, as formas de comunicação podem ser interpretadas
diferentemente entre culturas, que construíram signos diferentes no decorrer da
construção de cada cultura.
Nosso viajante faz o tupinambá cruzar a fronteira da marginalidade rumo ao
centro, onde é colocado em evidência. Assim, a opinião de Jean de Léry vai sendo
transformada e o seu relato passa a descrever a existência de uma religião, mas
diferente daquela que está habituado a ver no seu continente, porém, uma religião.
Em verdade penso que esses selvagens pouco diferem dos brutos e que no mundo
não existem homens mais afastados de quaisquer ideias religiosas. Entretanto, ainda
alguma luz atravessa as trevas de sua ignorância. Acreditam não só na imortalidade,
da alma, mas ainda que, depois da morte, as que viveram dentro das normas
consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para
além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas de seus avós. Ao
contrário as almas dos covardes vão ter com Ainhãn, nome do diabo, que as
atormenta sem cessar.
O texto acima nos faz entender os indícios de uma religião com as
características similares a religião de Léry, tais como: imortalidade da alma, existência
de um lugar para os corajosos e outro para os covardes após a morte, lugar de felicidade
para os corajosos e um lugar de tristeza para os covardes. Com estas informações os
tupinambás se tornam seres humanos para nosso autor. Agora, existe uma possibilidade
de se encontrarem com o verdadeiro “deus” de Léry. Assim, podemos perceber no
decorrer da história que isso não acontece.
Muitas vezes, como pude presenciar, sentindo-se atormentados, exclamavam
subitamente enraivecidos: "Defendei-nos de Ainhãn que nos espanca". E afirmavam
que o viam realmente ou sob a forma de um quadrúpede, ou de uma ave ou de
qualquer outra estranha figura. Admiravam-se muito quando lhes dizíamos que não
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éramos atormentados pelo espírito maligno e que isso devíamos ao Deus de quem
tanto lhes falávamos, pois, sendo muito mais forte do que Ainhãn, lhe proibia fazer-
nos mal. E acontecia que, sentindo-se amedrontados, prometiam crer em Deus. Mas
passado o perigo zombavam do Santo, como se diz no provérbio, e não se
recordavam mais de suas promessas.
Para Certeau, o elemento decisivo é a posse ou a privação de um instrumento
capaz, ao mesmo tempo de “reter as coisas em sua pureza” (Léry diz mais adiante em
seu texto) e de se estender “até o fim do mundo”. Combinado o poder de reter o passado
– enquanto que a voz selvagem está limitada ao circulo evanescente de seu auditório – a
escrita faz a história. Por um lado ela acumula, estoca os segredos da parte de cá, não
perde nada, conserva-os intacto. É arquivo. Por outro lado ela declara, avança “até o fim
do mundo” (CERTEAU, 2007, pg. 217). A escrita, então, passa a ser um sistema
regulador interno da cultura do nosso autor, podendo dizer no pensamento de Lotman
uma conduta da semiosfera. (LOTMAN, pg.20).
Nestes escritos, também, pode-se observar o conceito de Roger Bastide sobre
instituído e instituinte, quando se atemorizam do demônio que os atacam e pedem ajuda
ao cristão. Após a libertação voltam a sua vida normal, sem se sentir prejudicado pelo
Deus do protestante.
A crise do instituído, ou seja, das igrejas, não acarreta uma crise do instituinte, ou
seja, da efervescência dos corpos e corações, da experimentação procurada da
dinâmica do sagrado. O problema é que as jovens gerações querem permanecer no
fervor do instituinte sem chegar à constituição de novos instituídos. (BASTIDE,
2006.pg. 265-266)
Além do conceito de Bastide podemos notar a criação de uma imagem do
Ainhãn que os tupinambás declaram ver e Léry ao descrevê-lo transforma seu
significante em outro para quem for ser seu leitor, fazendo assim, outro significado
nasce desta imagem. Cada vez que outro leitor se aproximar deste texto nascerá outro
significante, isso pode acontecer infinitas vezes significando um processo da semiótica
em uma semiosfera de uma cultura.
Então, podemos dizer que a nova cultura cria uma imagem, onde temem e
acreditam estarem sendo apoderados em alguns momentos por Ainhãn, mas os
tupinambás se surpreendem com o poder dos franceses para desfazer esta possessão.
Neste momento, vemos os sistemas da semiótica em processo. Assim, detectamos
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novamente o encontro das semiosferas das culturas, ou seja, na semiosfera existem
várias fronteiras.
Além disso, vemos os tupinambás adotar outro símbolo e abandoná-lo após a sua
satisfação. Parece que os personagens de uma cultura exercem liberdade de manipular
os signos de outra cultura, ou até mesmo, se apoderar do mesmo por alguns momentos.
Assim, podemos ver as interfaces das semióticas na semiosfera das fronteiras e perceber
que as culturas são permeáveis.
Medeiros em seus apontamentos declara: Roger Bastide aumenta nossa
compreensão sobre o encontro das culturas. Segundo Dr. Dario Paulo Barrera Rivera,
Bastide desenvolveu o conceito da dupla causalidade, ou seja, causalidade interna e
externa. Mostrando que as culturas possuem sua própria lógica interna, que favorece ou
impede as mudanças culturais. Sendo assim, a cultura que chega, só poderá agir por
intermédio da lógica interna da cultura afetada, pois a causalidade interna poderá se
impor. Barreira aponta que Bastide defende que no encontro das culturas elas se
estruturam, reestruturam e se desestruturam, lembrando que estas transformações não
irão ocorrer necessariamente nesta ordem. (BARREIRA, 2015).
Quando um ancião conta-lhe uma história de que há centenas de anos houve um
Mair, estrangeiro, que já lhes havia “anunciado o verdadeiro Deus”. Jean de Léry
dispensa os registros dos livros fabulosos e prefere ficar com a Escritura para interpretar
este relato: “considero com melhor fundamento a passagem do Apóstolo Paulo sobre os
apóstolos, no Salmo 19: a sua voz percorreu toda a terra e suas palavras chegaram às
extremidades do mundo”. Um relato oral como uma lembrança dos antepassados que os
índios catavam, dava conta de uma enorme enchente que Léry interpreta como o dilúvio
bíblico fazendo referencia ao tempo de Noé. As suas teorias sobre a origem dos índios e
a ocupação da América são fundadas a partir das histórias bíblicas de Noé e Adão
respectivamente.
Celebravam ainda em suas canções o fato das águas terem transbordado por tal
forma em certa época, que cobriram toda a terra, afogando todos os homens do
mundo, à exceção de seus antepassados que se salvaram trepando nas árvores mais
altas do país. Este último ponto, que muito se aproxima das Santas Escrituras, tive a
oportunidade de ouvir inúmeras vezes. É verossímil que de pais a filhos ouvissem
contar alguma coisa do dilúvio universal e do tempo de Noé e tivessem deturpado a
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verdade, como é hábito dos homens; e isso é tanto mais natural, quando, como
vimos, não tendo nenhuma espécie de escritas, difícil se lhes torna conservar a
pureza dos fatos ao transmiti-los; daí terem adicionado a fábula das árvores, tal qual
o fariam os poetas.
Nosso viajante preocupado com a origem do povo brasileiro dispõe ao leitor
uma forma de fronteira da semiosfera, quando interpreta a fala dos tupinambás da
enchente como o dilúvio bíblico, pois, desta forma podemos detectar a fronteira
semiótica, pelo motivo claro dos filtros bilíngue passando através dos quais um texto se
traduz a outra linguajem que se fala fora da semiosfera dada. (LOTMAN, pg. 12)
Lèry, maravilhado com a caridade e a hospitalidade dos tupinambás com que foi
tratado exclama: “é difícil descrever tudo o que fizeram esses selvagens para nos servir,
pode-se dizer, em suma, que fizeram então conosco o que São Lucas, nos Atos dos
Apóstolos, diz terem os bárbaros da Ilha de Malta feito com Paulo e seus companheiros
escapados do naufrágio”.
Michel de Certeau defende a tese da deslocação do pensamento teológico de
Jean de Léry, tornando-o laico, esta afirmação aponta para a transposição fronteiriça do
teórico para sua aplicabilidade prática no mundo real e concreto na existência empírica
vivida. Léry deixa claro, nos seus escritos, as mudanças ocorridas no pensamento
teológico, na forma de ver e tratar o ser humano. Nosso viajante foi transformado pelo
convívio com os tupinambás, ou se posso falar, por ser um homem fronteiriço, se
deslocou do centro de seu pensamento inicial, para viver uma mutação continua depois
deste encontro.
Considerações finais
Neste ensaio, procuramos analisar parte do capítulo XVI, da Obra de Jean de
Léry que aborda a religião dos tupinambás para compreender os pensamentos de Yuri
Lotman sobre a semiosfera e as fronteiras culturais, assim como, o de Roger Bastide
sobre a imprevisibilidade no encontro das culturas.
Concentramos esforços para compreender as aproximações entre os
pensamentos dos autores acima citados, através das anotações Léryniana – se posso
dizer desta forma – cuja intensão do autor era demonstrar as facilidades e dificuldades
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da viagem marítima entre os dois continentes, as afrontas de um vice-rei carrasco e
comparar as culturas, ocidental e a nova cultura. Com parte dos escritos, nos esforçamos
a detectar o conceito de semiosfera de fronteira, sabendo que na semiosfera se encontra
várias fronteiras e dinâmicas como foi indicado no decorrer do ensaio e as
aproximações do pensamento de imprevisibilidade das culturas de Roger Bastide.
Encontramos no nosso viajante uma transformação potencializada de sua cultura
pelo encontro com a sociedade Tupinambá, onde ele relata no inicio de sua obra a
impressão de se encontrar com os “selvagens”, mas ao viver durante um ano entre eles
pôde questionar sua própria cultura, e com isso, ser impactado com a hospitalidade e a
humanidade da sociedade brasileira.
Este ensaio chama a atenção para as variadas formas de signos encontrados nas
fronteiras dessas culturas e como um personagem da cultura dominante de religião
instituída pode se adequar aos moldes de uma nova cultura e de uma religião instituinte.
Dessarte, pode se dizer: quando as culturas se chocam, além de deslocar o personagem
do centro para a periferia de sua cultura, também o transforma.
Encontramos também no pensamento de Michel de Certeau um contra ponto
entre a história e ao pensamento dos autores indicados para este ensaio. Assim, Certeau
enfatiza no seu escrito os novos olhares da obra de Jean de Léry, clareando o nosso
entendimento sobre como nosso viajante vai se distanciando de sua cultura mãe e se
aproximando, se apropriando da nova cultura. Desta feita, nosso autor percebe como o
homem pode se igualar com outro, apesar da distância geográfica, cultural e de
conhecimento dito “intelectual” ao qual a escrita pode trazer.
Finalmente, podemos dizer que Jean de Léry foi um homem em transição do
mundo medieval para o moderno, com esta afirmação, vemos as culturas se chocando e
criando novas semiosferas e porque não dizer a irrupção de outra cultura. Assim,
encontrar várias possibilidades de entendermos e aplicarmos os conceitos de Lotman e
Bastide nos escritos do nosso viajante.
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