A Semana Machado de Assis

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A Semana Machado de Assis 1892 [98] [24 abril] NA SEGUNDA-FEIRA da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada, mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A cousa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dous atos, uma poesia, várias ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada. Tudo pede certa elevação. Conheci dous velhos estimáveis, vizinhos, que esses tinham todos os dias a sua festa artística. Um era Cavaleiro da Ordem da Rosa, por serviços em relação à guerra do Paraguai; o outro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons serviços. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: "Caro major!" -"Pronto, comendador!" — Variavam às vezes: — "Caro comendador!" -"Aí vou, Major" . Tudo pede certa elevação. Para não ir mais longe. Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tive-mos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado. o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos. Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a prin-cipa1 cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das cousas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: "Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez Tiradentes. Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião — dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.

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Livro literatura brasileira, classico de Machado de Assis

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  • A Semana Machado de Assis

    1892

    [98]

    [24 abril]

    NA SEGUNDA-FEIRA da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me aogosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada, mas o nome deproblema d dignidade, e excita para logo a ateno dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que j nofazem benefcio, mas festa artstica. A cousa a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja emnmero, seja em preo; o resto, comdia, drama, opereta, uma polca entre dous atos, uma poesia, vriasramalhetes, lampies fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato beneficiada.

    Tudo pede certa elevao. Conheci dous velhos estimveis, vizinhos, que esses tinham todos os dias asua festa artstica. Um era Cavaleiro da Ordem da Rosa, por servios em relao guerra do Paraguai; ooutro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons servios. Jogavamxadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: "Caro major!"-"Pronto, comendador!" Variavam s vezes: "Caro comendador!" -"A vou, Major" . Tudo pedecerta elevao.

    Para no ir mais longe. Tiradentes. Aqui est um exemplo. Tive-mos esta semana o centenrio do grandemrtir. A priso do herico alferes das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste pas, se hnele patriotismo, ou se esse patriotismo outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas erotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados esto vindo boas notcias. O instinto popular, de acordocom o exame da razo, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seusparceiros a meia rao da glria. Merecem, decerto, a nossa estimao aqueles outros; eram patriotas.Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutadaa pena de morte dos seus companheiros, pena que s ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado. odecapitado, esse tem de receber o prmio na proporo do martrio, e ganhar por todos, visto que pagoupor todos.

    Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidncia tem vencido, os cargos iam para os outrosconjurados, no para o alferes. Pois no muito que, no tendo vencido, a histria lhe d a prin-cipa1cadeira. A distribuio justa. Os outros tm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, umcoro igual ao das Ocenides diante de Prometeu encadeado. Relede squilo, amigo leitor. Escutai alinguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terrveis, quando o grande tito envolvido naconflagrao geral das cousas.

    Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes s ninfas amadas: "Dei ofogo aos homens; esse mestre lhes ensinar todas as artes". Foi o que nos fez Tiradentes.

    Entretanto, o alferes Joaquim Jos tem ainda contra si uma cousa a alcunha. H pessoas que o amam, queo admiram, patriticas e humanas, mas que no podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente queo tempo trar a familiaridade do nome e a harmonia das slabas; imaginemos, porm, que o alferes tempodido galgar pela imaginao um sculo e despachar-se cirurgio dentista. Era o mesmo heri, e oofcio era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser at que, com o tempo, viesse a perder asegunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgio.

  • H muitos anos, um rapazpor sinal que bonitoestava para casar com uma linda moaaaprazimento de todos, pais e mes, irmos, tios e primos. Mas o noivo demorava o consrcio; adiava deum sbado para outro, depois quinta-feira, logo tera, mais tarde sbado;dou meses de espera. Ao fimdesse tempo, o futuro sogro comunicou mulher os seus receios. Talvez o rapaz no quisesse casar. Asogra, que antes de o ser j era, pegou o pau moral, e foi ter com o esquisito genro. Que histrias eramaquelas de adiamento?

    Perdo, minha senhora, uma nobre e alta razo; espero apenas . . .

    Apenas...?

    Apenas o meu ttulo de agrimensor.

    De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu ofcio para comer? Case, que nomorrer de fome; o ttulo vir depois.

    Perdo, mas no pelo ttulo de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lna roa d-se ao agrimensor, por cortesia, o ttulo de doutor, e eu quisera casar j doutor . . .

    Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o moco. Em boa hora ofizeram. Dali a trs meses recebia o noivo os ttulos de agrimensor, de doutor e de marido.

    Daqui ao caso eleitoral menos que um passo; mas, no entendendo eu de poltica, ignoro se a ausnciade to grande parte do eleitorado na eleio do dia 20 quer dizer descrena, como afirmam uns, ouabsteno como outros juram. A descrena fenmeno alheio vontade do eleitor: a absteno propsito. H quem no veja em tudo isto mais de ignorncia do poder daquele fogo que Tiradenteslegou aos seus patrcios. O que sei, que fui minha seo para votar, mas achei a porta fechada e a urnana rua, com os livros e ofcios. Outra casa os acolheu compassiva, mas os mesrios no tinham sidoavisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questo de saber o que que nasceu primeiro, se agalinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhao de segunda-feira. Dividiram-se as opinies;uns foram pelo ovo outros pela galinha; o prprio galo teve um voto. Os candidatos que no tiveramnem um, porque os mesrios no vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro overso:

    Sara, belle d'indolence, Se balance Dans un hamac...

    [99]

    [19 junho]

    O BANCO INICIADOR de Melhoramentos acaba de iniciar um melhoramento, que vem mudaressencialmente a composio das atas das assemblias gerais de acionistas.

    Estes documentos (toda a gente o sabe) so o resumo das deliberaes dos acionistas, quer dizer umanarrao sumria, em estilo indireto e seco, do que se passou entre eles, relativamente ao objeto que oscongregou. No do a menor sensao dos movimentos e da vida dos debates. As narraes literrias,quando se regem por esse processo, podem vencer o tdio, fora de talento, mas evidentemente

  • melhor que as cousas e pessoas se exponham por si mesmas, dando-se a palavra a todos, e a cada um asua natural linguagem.

    Tal o melhoramento a que aludo. A ata que aquela associao publicou esta semana, um modelonovo, de extraordinrio efeito. Nada falta do que se disse, e pela boca de quem disse, maneira dosdebates congressionais."Peo a palavra pela ordem""Est encerrada a discusso e vai-se proceder votao. Os senhores que aprovam queiram ficar sentados." Tudo assim, qual se passou, se ouviu, sereplicou e se acabou.

    E basta um exemplo para mostrar a vantagem da reforma. Tratando-se de resolver sobre o balano,consultou o presidente assemblia se a votao seria por aes, ou no. Um s acionista adotou aafirmativa; e tanto bastava para que os votos se contassem por aes, como declarou o presidente, masoutro acionista pediu a palavra pela ordem. "Tem a palavra pela ordem." E o acionista: "Peo a V. Ex.aSr. Presidente, que consulte ao Sr. acionista que se levantou, se ele desiste, visto que a votao por aes,exigindo a chamada, tomar muito tempo". Consultado o divergente, este desistiu, e a votao se fez percapita. Assim ficamos sabendo que o tempo a causa da supresso de certas formalidades exteriores; eassim tambm vemos que cada um, desde que a matria no seja essencial, sacrifica facilmente o seuparecer em benefcio comum.

    O pior se corromperem este uso, e se comearem a fazer das sociedades pequenos parlamentos. Serum desastre. Ns pecamos pelo ruim gosto de esgotar todas as novidades. Uma frase, uma frmula,qualquer cousa, no a deixamos antes de posta em molambo. Casos h em que a prpria referncia crticaao abuso perde a graa que tinha, fora da repetio; e quando um homem quer passar por inspido (ointeresse toma todas as formas), alude a uma dessas chatezas pblicas. Assim morrem afinal os usos, oscostumes, as instituies, as sociedades, o bom e o mau. Assim morrer o universo, se se no renovarfreqentemente.

    Quando, porm, acabar o nome que encima estas linhas? No sei quem foi o primeiro que comps estafrase, depois de escrever no alto do artigo o nome de um cidado. Quem inventou a plvora? Queminventou a imprensa, descontando Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o bocejo,excluindo naturalmente o Criador, que, em verdade, no h de ter visto sem algum tdio as impacinciasde Eva? Sim, pode ser que na alta mente divina estivesse j o primeiro consrcio e a conseqentehumanidade. Nada afirmo, porque me falta a devida autoridade teolgica; uso da forma dubitativa.Entretanto, nada mais possvel que a Criao trouxesse j em grmen uma longa espcie superior,destinada a viver num eterno paraso.

    Eva que atrapalhou tudo. E da, razoavelmente, o primeiro bocejo.

    Como esta espcie corresponde j sua ndole! diria Deus consigo. H de ser assim sempre,impaciente, incapaz de esperar a hora prpria. Nunca os relgios, que h de inventar, andaro todoscertos. Por um exato, contar-se-o milhes divergentes, e a casa em que dous marearem o mesmo minuto.no apresentar igual fenmeno vinte e quatro horas depois. Espcie inquieta, que formar reinos paradevor-los, repblicas para dissolv-las, democracias, aristocracias, oligarquias, plutocracias,autocracias, para acabar com elas, procura do timo, que no achar nunca.

    E, bocejando outra vez, ter Deus acrescentado:

    O bocejo, que em mim o sinal do fastio que me d este espetculo futuro, tambm a espcie humanao ter, mas por impacincia. O tempo lhe parecer a eternidade. Tudo que lhe durar mais de algumashoras, dias, semanas, meses ou anos (porque ela dividir o tempo e inventar almanaques, h de torn-laimpaciente de ver outra cousa e desfazer o que acabou de fazer, s vezes antes de o ter acabado.

  • Compreender as vacas gordas, porque a gordura d que comer, mas no entender as vacas magras; eno saber (exceto no Egito, onde porei um mancebo chamado Jos) encher os celeiros dos anos grados,para acudir penria dos anos midos. Falar muitas lnguas, beresith, anank, habeas corpus, sem sefixar de vez em uma s, e quando chegar a entender que uma lngua nica precisa, e inventar o volapuk,sucessor do parlamentarismo, ter comeado a decadncia e a transformao. Pode ser ento que eupovoe o mundo de canrios.

    Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino, como acharmos o primeiro bocejo humano? Trevastudo. O mesmo se d com o nome que encima estas linhas. Nem me lembra em que ano apareceu afrmula. Bonita era, e o verbo encimar no era feio. Entrou a reproduzir-se de um modo infinito. Toda agente tinha um nome que encimar algumas linhas. No havia aniversrio, nomeao, embarque,desembarque, esmola, inaugurao, no havia nada que no inspirasse algumas linhas a algum, svezes com o maior fim de encim-las por um nome. Como era natural, a frmula foi-se gastandomasgastando pelo mesmo modo por que se gastam os sapatos econmicos, que envelhecem tarde. E todos osnomes do calendrio foram encimando todas as linhas; depois, repetiram-se:

    Si cette histoire vous embte

    Nous allons la recommencer.

    [100]

    [26 junho]

    ''O MINISTRIO grego pediu demisso. O Sr. Tricoupis foi encarregado de organizar novo ministrio,que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do conselho e Ministro da Fazenda..."

    Basta! No, no reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que toda a mole deacontecimentos da semana. O ministrio grego pediu demisso! Certo, os ministrios so organizadospara se demitirem e os ministrios gregos no podem ser, neste ponto, menos ministrios que todos osoutros ministrios. Mas, por Vnus! foi para isso que arrancaram a velha terra s mos turcas? Foi paraisso que os poetas a cantaram, em plena manh do sculo, Byron, Hugo, o nosso Jos Bonifcio, autor dabela "Ode aos Gregos"? "Sois helenos! sois homens!" conclui uma de suas estrofes. Homens creio,porque prprio de homens formar ministrios; mas helenos

    Sombra de Aristteles, espectro de Licurgo, de Draco, de Slon, e tu, justo Aristides, apesar doostracismo, e todos vs, legisladores, chefes de governo ou de exrcito, filsofos, polticos, acasosonhastes jamais com esta imensa banalidade de um gabinete que pede demisso? Onde esto os homensde Plutarco? Onde vo os deuses de Homero? Que dos tempos em que Aspsia ensinava retrica aosoradores? Tudo, tudo passou. Agora h um parlamento, um rei, um gabinete e um presidente deconselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da Fazenda. Ouves bem, sombra de Pricles? Pasta daFazenda. E notai mais que todos esses movimentos polticos se fazem, metidos os homens em casacaspretas, com sapatos de verniz ou cordovo, ao cabo de moes de desconfiana...

    Oh! mil vezes a dominao turca! Horrvel, decerto, mas pitoresca. Aqueles paxs, perseguidores dogiaour, eram deliciosos de poesia e terror. Vede se a Turquia atual j aceitou ministrios. Um gro-vizir,nomeado pelo padix, e alguns ajudantes, tudo sem cmara, nem votos. A Rssia tambm est livre dalepra ocidental. Tem o niilismo, verdade; mas no tem o bimetalismo, que passou da Amrica Europa,onde comea a grassar com intensidade. O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois misterioso, dramtico, pico, lrico, todas as formas da poesia. Um homem esta jantando tranqilo, entre

  • uma senhora e uma pilhria, deita a pilhria senhora, e, quando vai a erguer um brinde... estala umabomba de dinamite. Adeus, homem tranqilo: adeus, pilhria; adeus, senhora. n violento; mas obimetalismo pior.

    Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo no curta a distancia, mas daqui ao cambio umpasso; pode parecer at que no falei do primeiro seno para dar a volta ao mundo. Engano manifesto.Hoje s trato de telegramas, que a esto de sobra, norte e sul. Aqui vm alguns de Pernambuco, dizendoque as intendncias municipais tambm esto votando moes de confiana e desconfiana poltica.Haver quem as censure; eu compreendo-as at certo ponto.

    A moo de confiana, ou desconfiana no passado regmen, era uma ambrosia dos deuses centrais. Eraaqui na Cmara dos Deputados, que um honrado membro, quando desconfiava do governo pedia apalavra ao presidente, e, obtida a palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente ttrico, proferiaum discurso em que resumia todos os erros e crimes do ministrio, e acabava sacando um papel do bolso.Esse papel era a moo. De confidncias que recebi, sei que h poucas sensaes na vida iguais quetinha o orador, quando sacava o papel do bolso. A alguns tremiam os dedos. Os olhos percorriam a sala,depois baixavam ao papel e liam o contedo. Em seguida a moo era enviada ao presidente, e o oradordescia da tribuna, isto , das pernas que so a nica tribuna que h no nosso parlamento, no contandouns dous plpitos que l puseram uma vez, e no serviram para nada.

    A tm o que era a moo. Nunca as assemblias provinciais tiveram esse regalo; menos ainda as tristescmaras municipais. Mudado o regmen, acabou a moo; mas, no se morre por decreto. A moo nos vive ainda, mas passou dos deuses centrais aos semideuses locais, e viver algum tempo, at que acabede todo, se acabar algum dia. O caso grego sintomtico; o caso japons no menos. H moesjaponesas. Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; no haver mais que fechar as malas e irpara o diabo.

    Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia) foram a uma vila prxima earrebataram duas moas. A gente da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e Homero; ainda mais que Homero, que s contou o rapto de uma Helena: aqui so duas. Essa luta obscura,escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do Sul,onde a causa no uma, nem duas Helenas, mas um s governo poltico. Apuradas as contas, vem a darnesta velha verdade que o amor e o poder so as duas foras principais da terra. Duas vilas disputam aposse de duas moas; Bag luta com Porto Alegre pelo direito do mando. a mesma Ilada.

    Dizem telegramas de S. Paulo que foi ali achado, em certa casa que se demolia, um esqueleto algemado.No tenho amor a esqueletos; mas este esqueleto algemado diz-me alguma cousa, e difcil que eu omandasse embora, sem trs ou quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma histria grave, longa enaturalmente triste, por-que as algemas no so alegres. Alegres eram umas mscaras de lata que vi empequeno na cara de escravos dados cachaa; alegres ou grotescas, no sei bem, porque l vo muitosanos, e eu era to criana, que no distinguia bem. A verdade que as mscaras faziam rir, mais que asdo recente carnaval. O ferro das algemas, sendo mais duro que a lata, a histria devia ser mais sombria.

    H um telegrama... Diabo! acabou-se o espao, e ainda aqui tenho uma dzia. Cesta com eles! Vo paraonde foi a questo do benzimento da bandeira, os guarda-livros que fogem levando a caixa (outrotelegrama), e o resto dos restos, que no dura mais de uma semana, nem tanto. Vo para onde j foi estacrnica. Fale o leitor a sua verdade. e diga-me se lhe ficou alguma cousa do que acabou de ler. Talvezuma s, a palavra clavinoteiros, que parece exprimir um costume ou um ofcio. C vai para ovocabulrio.

    [101]

  • [3 julho]

    NA VSPERA de S. Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos minutos depois, passei pela igreja do Carmo,catedral provisria, ouvi o cantocho e orquestra; entrei. Quase ningum. Ao fundo, os ilustrssimosprebendados, em suas cadeiras e bancos, vestidos daquele roxo dos cnegos e monsenhores, to meuconhecido . Cantavam louvores a S. Pedro. Deixei-me estar ali alguns minutos escutando e dando graasao prncipe dos apstolos por no haver na igreja do Carmo um carrilho.

    Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li ocaptulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande esprito. que me senti(desculpem a expresso) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado. Assim se diz na igreja esprita.Ter desencarnado quer dizer tirado (o esprito) da carne, e reencarnado quer dizer metido outra vez nacarne. A lei esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir scmprc.

    Convm notar que a desencarnao no se opera como nas outras religies, em que a alma sai toda deuma vez. No espiritismo, h ainda um esforo humano, uma cerimnia, para ajudar a sair o resto. No semorre ali com esta facilidade ordinria, que nem merece o nome de morte. Ningum ignora que h casode inumaes de pessoas meio vivas. A regra esprita, porm, de auxiliar por palavras, gestos epensamentos a desencarnao impede que um supro de alma fique metido no invlucro mortal.

    Posso afirmar o que a fica, porque sei. S o que eu no sei, se os sacerdotes espritas so como osbrmanes, seus avs. Os brmanes... No, o melhor dizer isto por linguagem clssica. Aqui est comose exprime um velho autor: "Tanto que um dos pensamentos por que os brmanes tm tamanho respeitos vacas, por haverem que no corpo desta alimria fica uma alma melhor agasalhada que em nenhumoutro, depois que sai do humano; e assim pem sua maior bem-aventurana em os tomar a morte com asmos nas ancas de uma vaca, esperando se recolha logo a alma nela."

    Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote esprita, metido dentro de uma vaca, e um homem, nodesencarnado, a vender-lhe o leite pelas ruas, seguidos de um bezerro magro... No; lembra-me agora queno pode ser, porque o princpio esprita no o mesmo da transmigrao, em que as almas dos valentesvo para os corpos dos lees, a dos fracos para os das galinhas, a dos astutos para os das raposas, e assimpor diante. O princpio esprita fundado no progresso. Renascer, progredir sempre; tal a lei. Orenascimento para melhor. Cada esprita, em se desencarnando, vai para os mundos superiores.

    Entretanto, pergunto eu: no se dar o progresso, algumas vezes. na prpria terra? Citarei um fato.Conheci h anos um velho, bastante alquebrado e assaz culto, que me afirmava estar na segundaencarnao. Antes disso, tinha existido no corpo de um soldado romano, e, como tal, havia assistido morte de Cristo. Referia-me tudo, e at circunstncias que no constam das escrituras. Esse bom velhono falava da terceira e prxima encarnao sem grande alegria, pela certeza que tinha de que lhe caberiaum grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha... E quem nos pode afirmar que o Guilherme II. que aest, no seja ele? H, repetimos, cousas na vida que mais acertado crer que desmentir; e quem nopuder crer, que se cale.

    Voltemos ao carrilho. J referi que entrara na igreja, no contei; mas entende-se, que na igreja noentram revolues, por isso no falo da do Rio Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, verdade, como adaquele singular proco da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de ordens, segundo dizemtelegramas, no obedece, no se cala, e continua a paroquiar. Os clavinoteiros tambm no entram; porisso ameaam Porto Seguro, conforme outros telegramas. No entram discursos parlamentares, nem lutastalo santistas, nem auxlios s indstrias, nem nada. H ali um refgio contra os tumultos exteriores econtra os boatos, que recomeam. Voltemos ao carrilho.

    Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das nossas igrejas, no provei at certa idade as aventuras

  • de um carrilho. Ouvia falar de carrilho, como das ilhas Filipinas, uma cousa que eu nunca havia de vernem ouvir.

    Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilho. Tnhamos carrilho na terra. Outro dia, indo a passar poruma rua, ouo uns sons alegres e animados. Conhecia a toada, mas no lembrava a letra.

    Perguntei a um menino, que me indicou a igreja prxima e disse--me que era o carrilho. E, no contentecom a resposta, ps a letra na msica: era o Amor Tem Fogo. Geralmente, no dou f a crianas. Fui a umhomem que estava porta de uma loja e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depoiscalou-se e disse convencidamente: parece incrvel como se possa, sem o prestgio do teatro, as saias dasmulheres, os requebrados, etc., dar uma impresso to exata da opereta. Feche os olhos, oua-me a mim eao carrilho, e diga-me se no ouve a opereta em carne e osso:

    Amor tem fogo,

    Tem fogo amor.

    Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso.

    [102]

    [10 julho]

    S. PEDRO, apstolo da circunciso, e S. Paulo, apstolo de outra cousa, que a Igreja Catlica traduziupor gentes, e que no preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo umou dous assuntos puxarem para si todo o cobertor da ateno pblica, deixando os outros ao relento, d-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo cena to-somente a arraia-mida, as pobresocorrncias de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada annima, a estatstica morturia,as tentativas de suicdio. O cocheiro que foge, o noticirio, em suma.

    que eu sou justo, e no posso ver o fraco esmagado pelo forte. Alm disso, nasci com certo orgulho,que j agora h de morrer comigo. No gosto que os fatos nem os homens se me imponham por simesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu que os hei de enfeitar com dous ou trs adjetivos, umareminiscncia clssica, e os mais gales de estilo. Os fatos, eu que os hei de declarar transcendentes; oshomens, eu que os hei de aclamar extraordinrios.

    Da o meu amor s chamadas chapas. Orador que me quiser ver aplaudi-lo, h de empregar dessas belasfrases feitas, que, j estando em mim, ecoam de tal maneira, que me parece que eu que sou o orador.Ento, sim, senhor, todo eu sou mos, todo eu sou boca, para bradar e palmear. Bem sei que no chapisca quem quer. A educao faz bons chapiscas, mas no os faz sublimes. Aprendem-se as chapas, verdade, como Rafael aprendeu as tintas e os pincis; mas s a vocao faz a Madona e um grandediscurso. Todos podem dizer que "a liberdade como a fnix, que renasce das prprias cinzas"; mas s ochapisca sabe acomodar esta frase em fina moldura. Que dificuldade h em repetir que "a imprensa,como a lana de Tlefo, cura as feridas que faz"? Nenhum; mas a questo no de ter facilidade, de tergraa. E depois, se h chapas anteriores, frases servidas, idias enxovalhadas, h tambm (e nisto seconhece o gnio) muitas frases que nunca ningum proferiu, e nascem j com cabelos brancos. Estainveno de chapas originais distingue mais positivamente o chapisca nato do chapisca por educao.

    Voltemos aos apstolos. Que direito tinha S. Pedro de dominar os acontecimentos da semana? Estavaescrito que ele negaria trs vezes o divino Mestre, antes de cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava

  • de o negar pela terceira vez, e reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S. Paulo, tendo ensinado apalavra divina s igrejas de Siclia, de Gnova e de Npoles, viu que alguns a sublevaram para torn-lasao pecado (ou para outra cousa), e lanou uma daquelas suas epstolas exortativas; concluindo tudo porser levado o conflito a Roma e a Jerusalm, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdadedas cousas.

    So negcios graves, convenho; mas h outros que, por serem leves, no merecem menos. Na Cmarados Deputados, por exemplo, deu-se uma pequena divergncia. de que apenas tive vaga notcia, por nopoder ler, como no posso escrever; o que os senhores esto lendo, vai saindo a olhos fechados. Ah!meus caros amigos! Ando com uma vista (isto grego; em portugus diz-se um olho) muito inflamada, aponto de no poder ler nem escrever. Ouvi que na Cmara surdiu divergncia entre a maioria e a minoria,por causa da anistia. A questo rimava nas palavras, mas no rimava nos espritos. Da confuso, difuso,absteno. Dizem que um jornal chamou ao caso um beco sem sada; mas um amigo meu (pessoa dada aaventuras amorosas) diz-me que todo beco tem sada; em caso de fuga, salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro prximo, ou cai-se do outro lado. Coragem e pernas. No entendi nada.

    A falta de olhos tudo. Quando a gente l por olhos estranhos entende mal as cousas. Assim que, portelegrama, sabe-se aqui haver o governador de um Estado presidido extrao da loteria; depois, supusque o ato fora praticado para o fim de inspirar confiana aos compradores de bilhetes.

    A segunda hiptese a verdadeira, acudiu o amigo que me lia os jornais. No v como as agnciassrias so obrigadas a mandar anunciar que, se as loterias no correrem no dia marcado, pagaro osbilhetes pelo dobro?

    verdade, tenho visto.

    Pois isto. Ningum confia em ningum, e o nosso mal. Se h quem desconfie de mim!

    No me diga isso

    No lhe digo outra cousa. Desconfiam que no ponho o seio integral aos meus papis: verdade ( eno sou nico ); mas, alm de que revalido sempre o selo quando necessrio levar os papis a juzo, aquem prejudico eu, tirando ao Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos modernos, detodos ns. Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no outro. Lus XIV dizia: "O Estado sou eu!"Cada um de ns um tronco mido de Lus XIV, com a diferena de que ns pagamos os impostos, eLus XIV recebia-os... Pois desconfiam de mim! So capazes de desconfiar do diabo. Creio que comeo aescrever no ar e ...

    [103]

    [31 de julho]

    Esta semana furtaram a um senhor que ia pela rua mil debntures; ele providenciou de modo que pdesalv-los. Confesso que no acreditei na notcia, a princpio; mas o respeito em que fui educado para coma letra redonda fez-me acabar de crer que se no fosse verdade no seria impresso. No creio emverdades manuscritas. Os prprios versos, que s se fazem por medida, parecem errados, quando escritos mo. A razo por que muitos moos enganam as moas e vice-versa escreverem as suas cartas, eentreg-las de mo a mo, ou pela criada, ou pela prima ou por qualquer outro modo, que no meu tempo,era ainda indito. Quem no engana o namorado da folha pblica; "Querida X, no foste hoje ao lugardo costume; esperei at s trs horas. Responde ao teu Z." E a namorada "Querido Z. No fui ontem pormotivos que te direi vista. Sbado, com certeza, hora costumada; no faltes. Tua X". Isto srio,claro, exato, cordial.

  • A razo que me fez duvidar a princpio foi a noo que me ficou dos negcios de debntures. Quandoeste nome comeou a andar de boca em boca, at fazer-se um coro universal, veio ter comigo umchaparreiro aqui da vizinhana e confessou que, no sabendo ler, queria que lhe dissesse se aquelespapis valiam alguma coisa. Eu, verdadeiro eco da opinio nacional, respondi que no havia nada melhor,ele pegou nas economias e comprou uma centena de delas. Cresceu ainda o preo e ele quis vend-las;mas eu acudi a tempo de suspender esse desastre. Vender o qu? Deixasse estar os papis que o preo iasubir por a alm. O homem confiou e esperou. Da a tempo ouvi um rumor; eram as debntures quecaam, caam, caam... Ele veio procurar-me, debulhado em lgrimas; ainda o fortaleci com uma ou duasparbolas, at que os dias correram, e o desgraado ficou com os papis na mo. Consolou-se um poucoquando eu lhe disse que metade da populao no tinha outra atitude.

    Pouco tempo depois (vejam o que o amor a estas cousas!) veio ter comigo e proferiu estas palavras:

    Eu j agora perdi quase tudo o que tinha com as tais debntures, mas ficou-me sempre um cobrinho nofundo do ba, e como agora ouo falar muito em habeas corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se essesttulos so bons, e se esto caros ou baratos.

    No so ttulos.

    Mas o nome tambm estrangeiro.

    Sim, mas nem por ser estrangeiro, ttulo; aquele doutor que ali mora defronte estrangeiro e no ttulo.

    Isso verdade. Ento parece-lhe que os habeas corpus no so papis?

    Papis so; mas so outros papis.

    A idia de debnture ficou sendo para mim a mesma cousa que nada, de modo que no compreendia queum senhor andasse com mil debntures na algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca doladro. Acreditei por estar impresso. Depois mostraram--me a lista das cotaes. Vi que no se vendemtantas como outrora, nem pelo preo antigo, mas h algum negociozinho, pequeno, sobre alguns lotes.Quem sabe o que elas sero ainda algum dia? Tudo tem altos e baixos.

    O certo que mudei de opinio. No dia seguinte, depois do almoo, tirei da gaveta algumas centenas demil-ris, e caminhei para a Bolsa, encomendando-me ( intil diz-lo ) ao Deus Abrao, Isaac eJac.Comprei um lote, a preo baixo, e particularmente prometi uma debnture de cera a S. Lucas, se mefizer ganhar um cobrinho grosso. Sei que imitar aquele homem que, h dias, deu uma chave de cera a S.Pedro, por lhe haver deparado casa em que morasse; mas eu tenho outra razo. Na semana passada faleide uns casais de pombas, que vivem na igreja da Cruz dos Militares, aos ps de S. Joo e S. Lucas. Umadelas, vendo-me passar, quando voltava da Bolsa, desferiu o vo, e veio pousar-me no ombro; mostrou-semeio agastada com a publicao, mas acabou dizendo que naquela rua, to perto dos bancos e da praa,tinham elas uma grande vantagem sobre todos os mortais. Quaisquer que sejam os negcios, arrulhou-me ao ouvido, o cmbio para ns est sempre a 27.

    No peo outra cousa ao apstolo; cmbio a 27 para mim como para elas, e ter a debnture de cera, cominscries e alegorias. Veja que nem lhe peo a cura da tosse e do coriza que me afligem, desde algumtempo. O meu talentoso amigo Dr. Pedro Amrico disse outro dia na Cmara dos Deputados, propondo acriao de um teatro normal, que, por um milagre de higiene, todas as molstias desaparecessem, "nohaveria faculdade, nem artifcios de retrica capazes de convencer a ningum das belezas da patologianem da utilidade da teraputica". Ah! meu caro amigo! Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz

  • livre e um peito desabafado. Creio na utilidade da teraputica; mas que deliciosa cousa no saber queela existe, duvidar dela e at neg-la! Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que notossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo para tossi; e, continuo a escrever de boca abertapara respirar. E falam-me em belezas da patologia... Francamente eu prefiro as belezas da Batalha deAva.

    A rigor, devia acabar aqui; mas a notcia que acaba de chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas,trs ou quatro. Promulgou-se a Constituio, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente doEstado. Com exceo do Par e Rio Grande do Sul, creio que no falta nenhum. Sono tutti fatti marchesi.Eu, se fosse presidente da Repblica, promovia a reforma da Constituio, para o nico fim de chamar-me governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao contrrio dos Estados Unidos daAmrica, e fazendo lembrar o imperador Napoleo, vestido com a modesta farda lendria, no meio dosseus marechais em grande uniforme.

    Outra notcia que me obriga a no acabar aqui, a de estarem os rapazes do comrcio de S. Paulofazendo reunies para se alistarem na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedirdispensa de tal servio. Questo de meio; o meio tudo. No h exaltao para uns nem depresso paraoutros. Duas cousas contrrias podem ser verdadeiras e at legtimas conforme a zona. Eu, por exemplo,execro o mate chimarro, os nossos irmos do Rio Grande do Sul acham que no h bebida maissaborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra cousa? No; segue-se o meio;o meio tudo.

    [104]

    [14 agosto]

    SEMANA e finanas so hoje a mesma cousa. E to graves so os negcios financeiros, que escrever istos, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever.Mas o leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele nodispensa aqui os assuntos mnimos, se os houve, e, se os no houve, a reflexes leves e curtas. Fora reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet... Perdo, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave quenunca.

    E por que no sei eu finanas? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao cu distinguir-meentre os homens, no possuo a cincia financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do cmbio,e mal distingo dez mil-ris de dez tostes? Nos bonds que me sinto vexado. H sempre trs e quatropessoas (principalmente agora) que tratam das cousas financeiras e econmicas, e das causas das cousas,com tal ardor e autoridade, que me oprimem. ento que eu leio algum jornal, se o levo, ou ro as unhas, vcio dispensvel; mas antes vicioso que ignorante.

    Quando no tenho jornal, nem unhas, atiro-me s tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, comoquem estuda o comrcio e a indstria, a pintura e a ortografia. E no novo este meu costume, em casosde aperto. Foi assim que um dia, h anos, no me lembra em que loja, nem em que rua, achei umatabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este ttulo era uma nova edio daesfinge. Pensei nele, estudei-o, e no podia dar com o sentido, at que me lembrou vir-lo do avesso: AoDestino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se umdestino ao planeta em que pisamos... Talvez a cincia econmica e financeira seja isto mesmo, o avessodo que dizem os discutidores de bonds. Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz estareflexo, exultei. Grande consolao persuadir-se um homem de que os outros so asnos.

    E a esto quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto no sei bem qual seja, tantos so eles eto opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o ch, e naturalmente tratou da

  • questo da raa chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu no tenho opinio; mas nunca ouso falarde raas, que me no lembre do Honrio Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidadealem. Iam com ele moas e homens a cavalo viram uma flor muito bonita no alto de uma rvore,Bicalho ou outro quis colh-la, apoiando os ps no dorso do cavalo, mas no alcanava a flor. Porfortuna, vinha da povoao um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.

    Vem c, trepa quela rvore, e tira a flor que est em cima. . .

    Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemo, que no entendia portugus. Quando Bicalhoentrou na cidade, e no ouviu nem leu outra lngua seno a alem, a rica e forte lngua de Goethe e deHeine, teve uma impresso que ele resumia assim: "Achei-me estrangeiro no meu prprio pas!"Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e esprito.

    Isto, porm, no tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente com aquela moa que acabade impedir a canonizao de Colombo. Ho de ter lido o telegrama que d notcia de haver sido posta delado a idia de canonizao do grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com umajudia. Todos os escrpulos so respeitveis, e seria impertinncia querer dar lies ao Santo Padre emmatria de economia catlica. Colombo perdeu a canonizao sem perder a glria, e a prpria Igreja osublima por ela. Mas...

    Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento escapa-se, rompe os sculos evai farejar essa judia que tamanha influncia devia ter na posteridade. E compe a figura pelas queconhece. H-as de olhos negros e de olhos garos, umas que deslizam sem pisar no cho, outras que atamos braos ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e asque matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Moiss, e pergunta como que aquele grande e piogenovs, que abriu f crist um novo mundo, e no se abalanou ao descobrimento sem encomendar-sea Deus, podia ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, deleitoso, se querem, mas deentontecer a perder uma alma por todos os sculos dos sculos.

    Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompatveis, fizeram um acordo para dissimular epecar. Combinaram em ler o Cntico dos Cnticos; mas Colombo daria ao texto bblico o sentidoespiritual e teolgico, e ela o sentido natural e molemente hebraico.

    O meu amado para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi.

    Os teus olhos so como os das pombas, sem falar no que est escondido dentro. Os teus dous peitosso como dous filhinhos gmeos da cabra montesa, que se apascentam entre as aucenas.

    Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mos destilavam mirra.

    Os teus lbios so como uma fita escarlate, e o teu falar doce.

    O cheiro dos teus vestidos como o cheiro do incenso.

    Quantas unies danadas no se mantm por acordos semelhantes, em conscincia, s vezes! H umagrande palavra que diz que todas as cousas so puras para quem puro.

    Tornemos gente crist, s eleies municipais, senatorial, aos italianos de S. Paulo que deixam a terra,a D. Carlos de Bourbon que aderiu Repblica Francesa, em obedincia ao Papa, aos bonds eltricos, subida ao poder do old great man, a mil outras cousas que apenas indico, to aborrecido estou. Pena daminha alma, vai afrouxando os bicos; diminui esse ardor, no busques adjetivos, nem imagens, nobusques nada, a no ser o repouso, o descanso fsico e mental, o esquecimento, a contemplao que

  • prende com o cochilo que expira no sono...

    [105]

    [2 outubro]

    TANNHUSER e bonds eltricos. Temos finalmente na terra essas grandes novidades. O empresrio doTeatro Lrico fez-nos o favor de dar a famosa pera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogotomou a peito transportar-nos mais depressa. Cairo de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende dascircunstncias.

    J a esta hora algumas das pessoas que me lem, sabem o que a grande pera. Nem todas; h sempreum grande nmero de ouvintes que faro ao grande maestro a honra de no perceber tudo desde logo, eentend-lo melhor segunda, e de vez terceira ou quarta execuo. Mas no faltam ouvidosacostumados ao seu oficio, que distinguiro na mesma noite o belo do sublime, e o sublime do fraco.

    Eu, se l fosse, no ia em jejum. Pegava de algumas opinies slidas e francesas e metia-as na cabeacom facilidade; s no me valeria das muletas do bom Larousse, se ele no as tivesse em casa; mas haviade t-las. Cai aqui, cai acol, faria uma opinio prvia, e noite iria ouvir a grande partitura do mestre.Um amigo:

    Afinal temos o Tannhuser; eu conheo um trecho, que ouvi h tempos...

    Eu no conheo nada, e quer que lhe diga? melhor assim. Fao de conta que assisto primeirarepresentao que se deu no mundo. Tudo novo.

    O que eu ouvi, soberbo.

    Creio; mas no me diga nada, deixe-me virgem de opinies, Quero julgar por mim, mal ou bem...

    E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso, irrequieto, sem atinar com o binculo para a revista doscamarotes. Talvez nem levasse binculo; diria que as grandes solenidades artsticas devem ser estremesde quaisquer outras preocupaes humanas. A arte uma religio. O gnio o sumo sacerdote. Em vo,Amlia, posta no camarote, em frente me, lanaria os olhos para mim, assustada com a minhaindiferena e perguntando a si mesma que me teria feito. Eu, teso, espero que as portas do templo seabram, que as harmonias do cu me chamem aos ps do divino mestre; no sei de Amlia no quero saberdos seus olhos de turquesa.

    Era assim que eu ouviria o Tannhuser. Nos intervalos, visita aos camarotes e crtica. Aquela entrada dosfagotes, lembra-se? Admirvel! Os coros, o duo, os violinos, oh! o trabalho dos violinos que cousaadorvel, com aquele motivo obrigado: l, l, l tra, l, l, l, tra, l, l. . . H neste ato inspiraes queso, com certeza, as maiores do sculo. De resto, os prprios franceses emendaram a mo dando aWagner o preito que lhe cabe, como um criador genial...

    As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Amlia sente-se honrada com a indiferena de h pouco,vendo que ela e a arte so o meu culto nico.

    Ao fundo, o pai e um homem de suas falam da fuso do Banco do Brasil com o da Repblica. O irmo,encostado diviso do camarote, conversa com uma dama vizinha, casada de fresco, ombros magnficos.Que tenho eu com ombros, nem com bancos? L, l, l, tra, l, l, l, tra, l, l . . .

    Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para continuar a minha crtica. Dous homens, sempre ao

  • fundo, conversam baixo, um recitando os versos de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outroesperando a aplicao. A aplicao a Cmara Municipal de S. Paulo, que acaba de tomar posse solene,com assistncia do presidente e dos secretrios do Estado... Interrupo do segundo: "Pode comparar-se ocaso dos dous secretrios conciliao que o poeta fez das duas rosas?" Explicao do primeiro: "No;refiro-me inaugurao que a Cmara fez dos retratos de Deodoro e Benjamim Constante. Uniu os dousrivais pstumos em uma s comemorao, e a histria ou a lenda que faa o resto".

    No espero pelo resto; falo s senhoras no duo e na entrada dos fagotes. Bela entrada de fagotes. Oscoros admirveis, e o trabalho dos violinos simplesmente esplndido. Ho de ter notado que a msicareproduz perfeitamente a lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma s inspiraogenial. Aquele motivo obrigado dos violinos a mais bela inspirao que tenho ouvido: l, l, l, tra, l,l, l, tra...

    Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo. Pormenores tcnicos. Ao fundo, dous homens, quefalam de um congresso psicolgico em Chicago, dizem que os nossos espritas vo ter ocasio deaparecer, porque o convite estende-se a eles. Tratar-se- no s dos fenmenos psicofsicos, como sejamas pancadas, as oscilaes em mesas, a escrita, e outras manifestaes espritas, como ainda da questoda vida futura. Um dos interlocutores declara que os nicos espritas que conhece, so dous, moram ao pdele e j no pertencem a este mundo; esto nos intermndios de Epicuro. Andam c os corpos, porefeito do movimento que traziam quando habitados pelos espritos, como aqueles astros cuja luz aindavemos hoje, estando apagados h muitos sculos...

    A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao ato, e fao a mesma peregrinao no intervalo; mudos as citaes, mas a crtica sempre verdadeira. Ouo os mesmos homens, ao fundo, conversando sobrecousas alheias ao Wagner. Eu, entregue crtica musical, no dou pelas rusgas da intendncia, noatendo s candidaturas municipais agarradas aos eleitores, no dou por nada que no seja a grande pera.E sento-me, recordo prontamente o que li sobre o ato, oh! um ato esplndido!

    Fim do espetculo. Corro a encontrar-me com a famlia de Amlia, para acompanh-la carruagem. Douo brao me e crtico o ltimo ato, depois resumo a crtica dos outros atos. Elas e o pai entram nacarruagem; despedidas portinhola; aperto a bela mo da minha querida Amlia... Pormenores tcnicos.

    [106]

    [9 outubro]

    Eis a uma semana cheia. Projetos e projetos bancrios, debates e debates financeiros, priso de diretoresde companhias, denncia de outros, dous mil comerciantes marchando para o palcio Itamarati, a p,debaixo d'gua, processo Maria Antnia, fuso de bancos, ala rpida de cmbio, tudo isso grave,soturno, trgico ou simplesmente enfadonho. Uma s nota idlica entre tanta cousa grave, soturna, trgicaou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan. A de Tennyson, que tambm foi esta semana, notrouxe igual carter, apesar do poeta que era, da idade que tinha. Uma gravura inglesa recente d, emdous grupos, os anos de 1842 e 1892, meio sculo de separao. No primeiro era Southey que fazia opapel de Tennyson, e o poeta laureado de 1842, como o de 1892. acompanhava os demais personagensoficiais do ano respectivo, o chefe dos tories, o chefe dos whigs, o arcebispo de Canturia. A rainha que a mesma. Tudo instituies. Tennyson era uma instituio, e h belas instituies, Os seus oitenta e trsanos no lhe tinham arrancado as plumas das asas de poeta; ainda agora anunciava-me um novo escritoseu. Mas era uma glria britnica; no teve a influncia nem a universalidade do grande francs.

    Renan, como Tennyson, despegou-se da vida no espao de dous telegramas, algumas horas apenas. Nopenso em agonias de Renan. Afigura-se-me que ele voltou o corpo de um lado para outro e fechou osolhos. Mas agonia que fosse, e por mais longa que haja sido, ter-lhe- custado pouco ou nada o ltimo

  • adeus daquele grande pensador, to plcido para com as fatalidades, to prestes a absolver as cousasirremissveis.

    Comparando este glorioso desfecho com aquele dia em que Renan subiu cadeira de professor e soltouas famosas palavras: "Alors, un homme a paru... ", podemos crer que os homens, como os livros, tm osseus destinos. Recordo-me do efeito, que foi universal; a audcia produziu escndalo, e a punio foipronta. O professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as instituies polticastombaram, outras vieram, e o professor morre professor, aps uma obra vasta e luminosa, universalmenteaclamado como sbio e como artista. Os seus prprios adversrios no lhe negam admirao, eporventura lhe faro justia. J'ai tout critiqu (diz ele em um dos seus prefcios) et quoi qu'on en dise, yj'ai tout maintenu. O sculo que est a chegar, criticar ainda uma vez a crtica, e dir que o ilustreexegeta definiu bem a sua ao.

    A morte no pode ter aparecido a esse magnfico esprito com aqueles dentes sem boca e aqueles furossem olhos, com que os demais pecadores a vem, mas com as feies da vida, coroada de flores simples egraves. Para Renan a vida nem tinha o defeito da morte. Sabe-se que era desejo seu, se houvesse detornar terra, ter a mesma existncia anterior, sem alterao de trmites nem de dias. No se podeconfessar mais vivamente a bem-aventurana terrestre. Um poeta daquele pas, o velho Ronsard, paraigual hiptese, preferia vir tornado em pssaro, a ser duas vezes homem. Eu (fale-mos um pouco demim), se no fossem as armadilhas prprias do homem e o uso de matar o tempo matando pssaros,tambm quisera regressar pssaro.

    No voltou o pssaro Ronsard, como no voltar o homem Renan. Este ir para onde esto os grandes dosculo, que comeou em Frana como o autor de Ren, e acaba com o da Vida de Jesus, pginas tocaractersticas de suas respectivas datas.

    No fao aqui anlises que me no competem, nem cito obras, nem componho biografia. O jornalismodesta capital mostrou j o que valia o autor de tantos e to adorveis livros, falou daquele estiloincomparvel, puro e slido, feito de cristal e melodia. Nada disso me cabe. A rigor, nem me cabe cuidarda morte. Cuidei desta por ser a nica nota idlica, entre tanta cousa grave, soturna, trgica ousimplesmente enfadonha.

    Em verdade, que posso eu dizer das cousas pesadas e duras de uma semana, remendada de cdigos epraxistas, a ponto de algarismo e citao? Prises, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu comeles? No dirijo companhia alguma, nem annima, nem pseudnima; no fundei bancos, nem medisponho a fund-los, e, de todas as cousas deste mundo e do outro, a que menos entendo, o cmbio.No que lhe negue o direito de subir; mas tantas lstimas ouvi pela queda, quantas ouo agora pelaascenso, no sei se s mesmas pessoas, mas com estes mesmos ouvidos.

    Finanas das finanas, so tudo finanas. Para onde quer que me volte, dou com a incandescente questodo dia. Conheo j o vocabulrio, mas no sei ainda todas as idias a que as palavras correspondem, e,quanto aos fenmenos, basta dizer que cada um deles tem trs explicaes verdadeiras e uma falsa.Melhor crer tudo. A dvida no aqui sabedoria, porque traz debate rspido, debate traz balana decomrcio, por um lado, e excesso de emisses por outro, e, afinal, um fastio que nunca mais acaba.

    [107]

    [16 outubro]

    NO TENDO assistido a inaugurao dos bonds eltricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei emalgum, mais tarde, para receber as impresses da nova trao e cont-las. Da o meu silncio da outrasemana. Anteontem, porm, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos eltricos,

  • que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.

    Para no mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos dohomem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Posto nofosse feio, no eram as prendas fsicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convico de queinventara, no s o bond eltrico, mas a prpria eletricidade. No meu ofcio censurar essas meiasglrias, ou glrias de emprstimo, como lhe queiram chamar espritos vadios. As glrias de emprstimo,se no valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Paraque arrancar um homem a essa agradvel sensao? Que tenho para lhe dar em troca?

    Em seguida, admirei a marcha serena do bond, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisainvisvel e amiga. Mas, como amos em sentido contrrio, no tardou que nos perdssemos de vista,dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso operdi de memria. A gente do meu bond ia saindo aqui e ali, outra gente entrava adiante e eu pensava nobond eltrico. Assim fomos seguindo; at que, perto do fim da linha e j noite, ramos s trs pessoas, ocondutor, o cocheiro e eu. Os dous cochilavam, eu pensava.

    De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-me (ia nobanco da frente); eram eles mesmos. Como eu conheo um pouco a lngua dos Houyhnhnms, pelo quedela conta o famoso Gulliver, no me foi difcil apanhar o dilogo. Bem sei que cavalo no burro; masreconheci que a lngua era a mesma. O burro fala menos, decerto; talvez o transita daquela grandediviso animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:

    Tens e no tens razo, respondia o da direita ao da esquerda.

    O da esquerda:

    Desde que a trao eltrica se estenda a todos os bonds, estamos livres, parece claro.

    Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferena grande. Tu no conheces a histria da nossaespcie, colega; ignoras a vida dos burros desde o comeo do mundo. Tu nem refletes que, tendo osalvador dos homens nascido entre ns, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natalescapamos da pancadaria crist. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.

    Que tem isso com a liberdade?

    Vejo, redargiu melancolicamente o burro da direita, vejo que h muito de homem nessa cabea.

    Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.

    O cocheiro, entre dous cochilas, juntou as rdeas e golpeou a parelha.

    Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bonds entraram nestacidade, vieram com a regra de se no empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde que seviu burro andar sem chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cnticos de alegria e abenoaram aidia os trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. No conheciam o homem.

    Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rdeas. Sei tambm que, em certoscasos, usa um galho de rvore ou uma vara de marmeleiro.

    Justamente. Aqui acho razo ao homem. Burro magro no tem fora; mas, levando pancada, puxa.Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente Shannon? Mandou isto: "Engorde os burros d-

  • lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeioem ao servio;oportunamente mudaremos de poltica, all right!"

    Disso no me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos trabalho, quando estou repleto.Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois do bond eltrico?

    O bond eltrico apenas nos far mudar de senhor.

    De que modo?

    Ns somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, no somos j precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente s carroas.

    Pela burra de Balao! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? nenhum prmio?nenhum sinal de gratificao? Oh! mas onde est a justia deste mundo?

    Passaremos s carroas continuou o outro pacificamente onde a nossa vida ser um poucomelhor; no que nos falte pancada, mas o dono de um s burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, avelhice, a lazeira, qualquer cousa que nos torne incapaz restituir-nos- a liberdade...

    Enfim!

    Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que a deixem crescer para recreioda vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre viosa? Enfraqueceremos; a idade ou alazeira ir-nos- matando, at que, para usar esta metfora humana, esticaremos a canela. Entoteremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de trs, a vizinhana comea a notar que o burro cheira mal;conversao e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pedeuma reclamao. No quinto dia sai a reclamao impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica aexatido da notcia; no stimo, chega uma carroa, puxada por outro burro, e leva o cadver.

    Seguiu-se uma pausa.

    Tu s lgubre, disse o burro da esquerda. No conheces a lngua da esperana.

    Pode ser, meu colega; mas a esperana prpria das espcies fracas, como o homem e o gafanhoto; oburro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raa essencialmente filosfica. Ao homem que andasobre dous ps, e provavelmente guia, que voa alto, cabe a cincia da astronomia. Ns nunca seremosastrnomos. Mas a filosofia nossa. Todas as tentativas humanas a este respeito so perfeitas quimeras.Cada sculo...

    O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rdeas, e travou o carro. Tnhamoschegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dous interlocutores. No podia crer que fossem elesmesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para lev-la ao outro ladodo carro; aproveitei a ocasio e murmurei baixinho, entre os dous burros:

    Houyhnhnnms!

    Foi um choque eltrico. Ambos deram um estremeo, levantaram as patas e perguntaram-me cheios deentusiasmo:

    Que homem s tu, que sabes a nossa lngua?

  • Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe no espantasse os animais.Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro daesquerda, ainda agora: Onde est a justia deste mundo?

    [108]

    [23 outubro]

    TODAS AS COUSAS tm a sua filosofia. Se os dous ancios que o bond eltrico atirou para a eternidadeesta semana, houvessem j feito por si mesmos o que lhes fez o bond, no teriam entestado com oprogresso que os eliminou. duro dizer; duro e ingnuo, um pouco La Palisse; mas verdade. Quandoum grande poeta deste sculo perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criao era uma rodaque no podia andar sem esmagar algum. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobresveculos?

    H terras, onde as companhias indenizam as vtimas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadasquantias, tudo ordenado por lei. justo; mas essas terras no tm, e deviam ter, outra lei que obrigasse osferidos e as famlias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbao que os desastres trazemao horrio do servio. Seria um equilbrio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como notemos a primeira lei, no precisamos da segunda, e vamos morrendo com a nica despesa do enterro e onico lucro das oraes.

    Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha viva indenizar ou serindenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que nopassava pela frente de um bond, sem calcular a hiptese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se echegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas doPena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o clculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiateprximo. Prximo pode ser longe, mas muito mais longe a eternidade.

    Em todo caso, no vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teramos de condenar todas asmquinas, e, visto que h naufrgios, queimar todos os navios. No, senhor. A necrologia dos bondstirados a burros assaz comprida e lgubre para mostrar que o governo de trao no tem nada com osdesastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa,dizendo que tinha de chegar ao ponto hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar ascousas, espaando os prazos e aparelhando carros novos, eltricos ou muares, para acudir necessidadepblica. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem s de po vive o acionista, mas tambm daalegria e da integridade dos seus semelhantes.

    Convenho que, durante uns quatro meses, os bonds eltricos andem muito mais aceleradamente que osoutros, para fugir ao riso dos vadios e toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade uma verso do processo culinrio la minute, e podem vir a enlamear o veculo com alcunhas feias.Lembra-me (era bem criana) que, nos primeiros tempos do gs no Rio de Janeiro, houve uns dias de luzfrouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gs virou lamparina. E o dito ficou e imps-se, e euainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, s belezas murchas, a todas as cousas decadas.

    Ah! se eu for a contar memrias da infncia, deixo a semana no meio, remonto os tempos e fao umvolume. Paro na primeira estao, 1864, famoso ano da suspenso de pagamentos (ministrio Furtado);respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das aes atacou a esta pobre cidade, que s arribou forado quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...

    Aonde? Posso ir at antes do meu nascimento, at Law. Grande Law! Tambm tu tiveste um dia decelebridade, depois, viraste embromador e caste na casinha da histria, o lugar dos lava-pratos. E assim

  • irei de sculo a sculo, at o paraso terrestre, forma rudimentria do encilhamento, onde se vendeu aprimeira ao do mundo. Eva comprou-a serpente, com gio, e vendeu-a a Ado, tambm com gio, atque ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraso terrestre, ao Fiat lux, que, bem, estudado aogs do entendimento humano, foi o princpio da falncia universal.

    No; cuidemos s da semana. A simples ameaa de contar as minhas memrias diminuiu-me o papel emtal maneira, que preciso agora apertar as letras e as linhas.

    Semana quer dizer finanas. Finanas implicam financeiros. Financeiros no vo sem projetos, e eu nosei formular projetos. Tenho idias boas, e at bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito2%, muito lastro, muito resgate, toda a tcnica da cincia; mas falta-me o talento de compor, de dividir asidias por artigos, de subdividir os artigos em pargrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso eatrapalhado. Mas por que no farei um projeto financeiro ou bancrio, lanando-lhe no fim as palavras davelha praxe: salva a redao? Poderia baralhar tudo, certo, mas no se joga sem baralhar as cartas; deoutro modo embaraar os parceiros.

    Adeus. O melhor ficar calado. Sei que a semana no foi s de finanas, mas tambm de outras cousas,como a crise de transportes, a carne, discursos extraordinrios ou explicativos, um projeto de estrada deferro que nos pe s portas de Lisboa, e a mulher de Csar, que reapareceu no seio do parlamento. Vientrar esta clebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri porta edetive-a: "Ilustre Pompia, que vieste fazer a esta casa? "-"Obedecer ainda uma vez citao da minhapessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos ossculos a amigos, conhecidos e desconhecidos."

    [109]

    [30 outubro]

    TEMPOS DO PAPA! tempos dos cardeais! No falo do papa catlico, nem dos cardeais da santa IgrejaRomana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. F. Otaviano, ento jornalista, foi quem achou aquelasdesignaes para o Senador Eusbio e o estado-maior do Partido Conservador. Era eu pouco mais quemenino...

    Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou pessoas antigas, estava sempre na infncia, se que serianascido. No me faam mais idoso do que sou. E depois, o que idade? H dias, um distinto nonagenrioapertava-me a mo com fora e contava-me as vivas impresses que lhe deixara a obra de Bryce acercados Estados Unidos; acabava de l-la, dous grossos volumes, como sabem. E despediu-se de mim, e lse foi a andar seguro e lpido. Realmente, os anos nada valem por si mesmos. A questo saber agent-los, escov-los bem, todos os dias, para tirar a poeira da estrada, traz-los lavados com gua de higiene esabo de filosofia.

    Repito, era pouco mais que um menino, mas j admirava aquele escritor fino e sbrio, destro no seuofcio. A atual mocidade no conheceu Otaviano; viu apenas um homem avelhantado e enfraquecido peladoena, com um resto plido daquele riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem resto, umasombra de resto, talvez uma simples reminiscncia deixada no crebro das pessoas que o conheceramentre trinta e quarenta anos.

    Um dia, um domingo, havia eleies, como hoje. Papa e cardeais tinham o poder nas mos, e, sendo oregmen de dous graus, entraram eles prprios nas chapas de eleitores, que eram escolhidos pelosvotantes. Os liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e osdesbarataram. O pontfice, com todos os membros do consistrio, mal puderam sair suplentes. EOtaviano, frtil em metforas, chamou-lhes esquifes. Mais um esquife, dizia ele no Correio Mercantil,

  • durante a apurao dos votos. Luta de energias, luta de motejos. Rocha, jornalista conservador, riacausticamente do lencinho branco de Tefilo Otni, o clebre leno com que este conduzia a multido,de parquia em parquia, aclamando e aclamado. A multido seguia, alegre, tumultuosa, levada porseduo, por um instinto vago, por efeito da palavra, um pouquinho por ofcio. No me lembra bem sehouve alguma urna quebrada; possvel que sim. Hoje mesmo as urnas no so de bronze. No vou aoponto de afirmar que no as houve pejadas. Que a poltica seno obra de homens? Crescei e multiplicai-vos.

    Hoje, domingo no h a mesma multido, o eleitorado restrito; mas podia e devia haver mais calor.Trata-se no menos de que eleger o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que ainda e ser acapital verdadeira e histrica do Brasil. No eleio que apaixone, concordo; no h paixes puramentepolticas. Nem paixes so cousas que se encomendem, como partidos no so cousas que se evoquem.Mas (permitam-me esta velha banalidade) h sempre a paixo do bem e do interesse pblico. Eia, animai-vos um pouco, se no tarde; mas, se tarde, guardai-vos para a primeira eleio que vier. Contanto queno quebreis urnas, nem as fecundeis a conselho meu, agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vosum tanto mais.

    Por hoje, leitor amigo, vai tranqilamente dar o teu voto. Vai anda, vai escolher os intendentes quedevem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade. Eu, se no estiver meioadoentado, como estou, no deixarei de levar a minha cdula. No leias mais ainda, porque bempossvel que eu nada mais escreva, ou pouco. Vai votar; o teu futuro est nos joelhos dos deuses, e assimtambm o da tua cidade; mas por que no os ajudars com as mos?

    Outra cousa que est nos joelhos dos deuses saber se a terceira prorrogao que o Congresso Nacionalresolveu decretar, a ltima e definitiva. Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso umpasso, e passo curto; mas eu prefiro ir Constituinte, que o mesmo Congresso avant la lettre. Por quediabo fixou a Constituinte em quatro meses a sesso anual legislativa, isto , o mesmo prazo daConstituio de 1824? Devia atender que outro o tempo e outro o regmen.

    Felizmente, li esta semana que vai haver uma reviso de Constituio no ano prximo. Boa ocasio paraemendar esse ponto, e ainda outros, se os h, e creio que h. Nem faltar quem proponha o governoparlamentar. Dado que esta ltima idia passe, preciso ter j de encomenda uma casaca, um par decolarinhos, uma gravata branca, uma pequena mala com alocues brilhantes e andinas, para as grandesfestas oficiais, e um Carnot, mas um Carnot autntico, que vista e profira todas aquelas cousas semsignificao poltica. Salvo se arranjarmos um meio de combinar os presidentes e os ministrosresponsveis, um Congresso que mande um ministrio seu ao presidente, para cumprir e no cumprir asordens opostas de ambos. Enfim, esperemos. O futuro est nos joelhos dos deuses.

    Mas no me faas ir adiante, leitor amado. Adeus vai votar. Escolhe a tua intendncia e ficars com odireito de gritar contra ela. Adeus.

    [110]

    [6 novembro]

    VOU CONTAR s pressas o que me acaba de acontecer.

    Domingo passado, enquanto esperava a chamada dos eleitores, sa Praa do Duque de Caxias(vulgarmente Largo do Machado) e comecei a passear defronte da igreja matriz da Glria. Quem noconhece esse templo grego, imitado da Madalena, com uma torre no meio, imitada de cousa nenhuma? Aimpresso que se tem diante daquele singular conbio, no crist nem pag; faz lembrar, como nacomdia, "o casamento do Gro Turco com a repblica [de] Veneza". Quando ali passo, desvio

  • sempre os olhos e o pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes, contra a torre e contra o templo,mandando-os ambos ao diabo, com escndalo da minha conscincia e dos ouvidos das outras pessoas.

    Daquela vez, porm, no foi assim. Olhei, parei e fiquei a olhar. Entrei a cogitar se aqule ajuntamentohbrido no ser antes um smbolo. A irmandade que mandou fazer a torre, pode ter escrito, sem o saber,um comentrio. Sups batizar uma sinagoga (devia crer que era uma sinagoga), e fez mais, comps umaobra representativa do meio e do sculo. No h ali s um sino para repicar aos domingos e dias santos,com afronta dos pagos de Atenas e dos cristos de Paris, h talvez uma pgina de piscologia social epoltica.

    Sempre que entrevejo uma idia, uma significao oculta em qualquer objeto, fico a tal ponto absorto,que sou capaz de passar uma semana sem comer. Aqui, h anos, estando sentado porta de casa, ameditar no clebre axioma do Dr. Pangloss que os narizes fizeram se para os culos, e que porisso que usamos culos, sucedeu cair me a vista no cho, exatamente no lugar em que estava umaferradura velha. Que haveria naquele sapato de cavalo, to comido de dias e de ferrugem?

    Pensei muito, no posso dizer se uma ou duas horas, at que um claro sbito espancou as trevasdo meu esprito. A figura velha, mas no tenho tempo de procurar outra. Cresci diante de Pangloss. Ogrande filsofo, achando a razo dos narizes, no advertiu que, ainda sem eles, podamos trazer culos.Bastava um pequeno aparelho de barbantes, que fsse por cima das orelhas at nuca. Outro era o casoda ferradura. S o duro casco do animal podia destinar-se ferradura, uma vez que no h meio de faz-la aderir sem pregos. Aqui a finalidade era evidente. De concluso em concluso, cheguei s ave-marias,tinham-me j chamado para jantar trs vzes; comi mal, digeri mal, e acordei doente. Mas tinhadescoberto alguma cousa.

    Fica assim explicada a minha longa meditao diante da torre e do templo, e o mais que me aconteceu.Cruzei os braos nas costas, com a bengala entre as mos, apoiando-me nela. Algumas pessoas que iampassando, ao darem comigo, paravam tambm e buscavam descobrir por si o que que chamava assim aateno de um homem to grave. Foram-se deixando estar; outras vieram tambm e foram ficando, atformarem um grupo numeroso, que observava tenazmente alguma cousa dignssima da ateno doshomens. assim que eu admiro muita msica; basta ver o Artur Napoleo parado.

    Nem por isso interrompi as reflexes que ia fazendo. Sim, aquela juno da torre e do templo no erasmente uma opinio da irmandade.

    No tenho aqui papel para notar todos os fenmenos histricos, polticos e sociais que me pareceramexplicar o edifcio do Largo do Machado; mas, ainda que o tivesse de sobra, calar-me-ia pela incertezaem que ainda estou acrca das minhas concluses. Dous exemplos estremes bastam para justificao dadvida. A nossa independncia poltica, que os poetas e oradores, at 1864, chamavam grito de Ipiranga,no se pode negar que era um belo templo grego. O tratado que veio depois, com algumas de suasclusulas, e o seu imperador honorrio, alm do efetivo, poder ser comparado torre da matriz daGlria? No ouso afirm-lo. O mesmo digo do quiosque. O quiosque, apesar da origem chinesa, pode sercomparado a um; templo grego, copiado de Paris; mas o charuto, o bom caf barato e o bilhete de loteriaque ali se vendem, sero acaso equivalentes daquela torre? No sei; nem tambm sei se os foguetes queali estou-ram, quando anda a roda e eles tiram prmios, representam os repi-ques de sinos em dias defesta. H hesitaes grandes e nobres, mi-nha pobre alma as conhece.

    Pelo que respeita especialmente ao caso da matriz da Glria, con-cordo que ele exprima a reao dosentimento local contra uma inovao apenas elegante. Ns mamamos ao som dos sinos e somosdesmamados com eles; uma igreja sem sino , por assim dizer, uma bca sem fala. Da nasceu a torre daGlria. A questo no achar esta explicao, complet-la.

  • No me tragam aqui o mestre Spencer com os seus aforismos so-ciolgicos. Quando ele diz que "o estadosocial o resultado de tdas as ambies, de todos os interesses pessoais, de todos os mdos, vene-raes, indignaes, simpatias, etc. tanto dos antepassados, como dos cidados existentes" no sereieu que o conteste. O mesmo farei se ele me disser, a propsito do templo grego:

    Posto que as idias adiantadas, uma vez estabelecidas, atuem sbre a socie-dade e ajudem o seuprogresso ulterior, ainda assim o estabelecimento de tais idias depende da aptido da sociedade parareceb-las. Na prtica, o carter popular e o estado social que determinam as idias que ho de tercurso- no so as Idias correntes que determinam o estado social e o carter...

    Sim, concordo que o templo grego sejam as idias novas, e o car-ter e o estado social a torre, que h desobrepor-se por muito tempo as belas colunas antigas, ainda que a gente se oponha com tda a fra aovoto das irmandades

    Neste ponto das minhas reflexes, o sino da torre bateu uma pan-cada, logo depois outra. . . Estremeo,acordo, eram ave-marias. Sem saber o que fazia. corro igreja para votar

    Para qu? diz-me o sacristo.

    Para votar.

    Mas eleio foi domingo passado

    Que dia hoje?

    Hoje sbado.

    Deus de misericrdia

    Senti-me fraco, fui comer alguma cousa. Sete dias para achar a explicao da torre da Glria, umasemana perdida. Escrevo este artigo a trouxe-mouxe, em cima dos joelhos, servindo-me de mesa umexemplar da Bblia, outro de Cames, outro de Gonalves Dias, outro da Constituio de 1824 e outro daConstituio de 1889, dous templos gregos, com a torre do meu nariz em cima.

    [111]

    [27 novembro]

    UM DOS MEUS velhos hbitos ir, no tempo das cmaras, passar as horas nas galerias. Quando no hcmaras, vou municipal ou intendncia-, ao jri, onde quer que possa fartar o meu amor dos negciospblicos, e mais particularmente da eloqncia humana. Nos inter-valos, fao algumas cobranas,ouqualquer servio leve que possa ser interrompido sem dano, ou continuado por outro. J se me tmoferecido boas empregos, largamente retribudos, com a condio de no freqentar a5 galerias dascmaras. Tenho-os recusado todos; nem por isso ando mais magro.

    Nas galerias das cmaras ocupo sempre um lugar na primeira fila dos bancos, leva-se mais tempo a sair,mas como eu s saio no fim, e s vzes depois do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A van-tagem enorme, tem-se um parapeito de pau, onde um homem pode encostar os braos e ficar a gosto. O chapuatrapalhou-me muito no primeiro ano ( 1857), mas desde que me furtaram um, meio novo, resolvi aquesto definitivamente. Entro ponho o chapu no banco e sento-me em cima. Venham c busc-lo!

    No me perguntes a que vem esta pgina dos meus hbitos. ler, se queres. Talvez haja uma concluso.

  • Tudo tem concluso neste mundo. Eu vi concluir discursos, que ainda agora suponho estar ouvindo.

    Cada cousa tem uma hora prpria, leitor feito s pressas. Na gale-ria, meu costume dividir o tempoentre ouvir e dormir. At certo ponto, velo sempre. Da em diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto,cerro os olhos e passo pelo sono. H dias em que o guarda vem bater-me no ombro.

    Que ?

    Saia da, j acabou.

    Olho, no vejo ningum, recompondo o chapu e saio. Mas estes casos no so comuns.

    No Senado, nunca pude fazer a diviso exata, no porque l falas-sem mal, ao contrrio, falavamgeralmente melhor que na outra Cmara. Mas no havia barulho. Tudo macio. O estilo era to apurado,que ainda me lembro certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei bancria ade 1860. Creio que era ento Ministro da Guerra, e dizia, referindo-se a um senador: "Eu entendo, Sr.presidente, que o nobre senador no entendeu o que disse o nobre Ministro da Marinha, ou fingiu que noentendeu. O Visconde de Abaet, que era o presidente, acudiu logo: "A palavra fingiu acho que no prpria." E o Ferraz replicou: "Peo perdo a V. Ex., retiro a palavra."

    Ora, dem l interesse s discusses com estes passos de minuete! Eu, mal chegava ao Senado, estavacom os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador para c, caluniador para l, eis o que pode manter ointeresse de um debate. E que a vida seno uma troca de ca-chaes?

    A Repblica trouxe-me quatro desgostos extraordinrios; um foi logo remediado; os outros trs no. Oque ela mesma remediou, foi a desastrada idia de meter as cmaras no palcio da Boa Vista. Muitopoltico e muito bonito para quem anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me a pagar dous nqueis depassagem por dia, ou a ir a p, era um despropsito. Felizmente, vingou a idia de tornar a pr as cmarasem contacto com o povo, e descemos da Boa Vista.

    No me falem nos outros trs desgostos. Suprimir as interpelaes aos ministros, com dia fixado eanunciado; acabar com a discusso da resposta fala do trono; eliminar as apresentaes de ministriosnovos . . .

    Oh! as minhas belas apresentaes de ministrios! Era um regalo ver a Cmara cheia, agitada, febril,esperando o novo gabinete. Moas nas tribunas, algum diplomata, meia dzia de senadores. De repente,levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministrio com ochefe frente, cumpri-mentos direita e esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos mem-bros dogabinete anterior e expunha as razes da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava ahistria da subida, e definia o programa. Um deputado da oposio pedia a palavra, dizia mal dos dousministrios, achava contradies e obscuridades nas explicaes, e julgava o programa insuficiente.Rplica, trplica, agitao, um dia cheio.

    Justia, justia. H usos daquele tempo que ficaram. s vezes, quando os debates eram calorosos,eprincipalmente nas interpelaes, eu da galeria entrava na dana, dava palmas. No sei quandocomeou este uso de dar palmas nas galerias. Deve vir de muitos anos. O presidente da Cmara bradavasempre: "As galerias no podem fazer manifestaes!" Mas era como se no dissesse nada. Na primeiraocasio, tornava a palmear com a mesma fora. Vieram vindo depois os bravos, os apoiados, os no-apoiados, uma bonita agitao. Confesso que eu nem sempre sabia das razes do clamor, e no raro meaconteceu apoiar dous contrrios. No importa, liberdade, antes confusa, que nenhuma.

    Esse costume prevaleceu, no acompanhou os que perdi, felizmente. Em verdade, seria lgubre, se, alm

  • de me tirarem as interpelaes e o resto, acabassem metendo-me uma rolha na boca. Era melhorassassinar-me logo, de uma vez. A liberdade no surda-muda, nem paraltica. Ela vive, ela fala, ela bateas mos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu na galeria no posso dar um berro, onde que o hei de dar? Na rua, feito maluco?

    Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer crescer o meu direito poltico; mas estava longe deesperar o reconhecimento imediato, pleno e absoluto que me deu a intendncia nova. Tinha ganho muitona outra galeria; enriqueci na da intendncia, onde o meu direito de gritar, apupar e aplaudir foibravamente consagrado. No peo que se ponha isto por lei, porque ento, gritando, apupando ouaplaudindo, estarei cumprindo um preceito legal, que justamente o que eu no quero. No que eu tenhadio lei; mas no tolero opresses de espcie alguma, ainda em meu benefcio.

    O melhor que h no caso da intendncia nova, que ela mesma deu o exemplo, excitando-se de talmaneira, que fez esquecer os mais belos dias da Cmara. Em minha vida de galeria, que j no curta,tenho assistido a grandes distrbios parlamentares; raro se ter aproximado das estrias da novarepresentao do municpio. No desmaie a nobre corporao. Berre, ainda que seja preciso trabalhar.

    Pela minha parte, fiz o que pude, e estou pronto a fazer o que puder e o que no puder. Embora no tenhaa superstio do respeito, quero que me respeitem no exerccio de um jus adquirido pela von-tade econfirmado pelo tempo. J'y suis, j'y reste, como tenho ouvido dizer nas cmaras. Creio que latim oufrancs. Digo, por linguagem, que ainda posso ir adiante; e finalmente que, se h por a alguma frasemenos incorreta, reminiscncia da tribuna parlamentar ou judiciria. No se arrasta uma vida inteira degaleria em galeria sem trazer algumas amostras de sintaxe.

    [112]

    [18 dezembro}

    ONTEM, querendo ir pela Rua da Candelria, entre as da Alfndega e Sabo (velho estilo), no me foipossvel passar, tal era a multido de gente. Cuidei que havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas no era.A massa de gente tomava a rua, de uma banda a outra, mas no se mexia; no tinha a ondulao naturaldos cachaes. Procisso no era; no havia tochas acessas nem sobrepelizes. Sujeito que mostrasse artesde macaco ou vendesse drogas, ao ar livre, com discursos, tambm no.

    Estava neste ponto, quando vi subir a Rua da Alfndega um digno ancio, a quem expus as minhasdvidas.

    No nada disso, respondeu-me cortesmente. No h aqui procisso nem macaco. Briga, no sentidode murros trocados, tam-bm no h,pelo menos, que me conste. Quanto suposio de estar aalguma pessoa apregoando medalhinhas e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor, esquinada do Carmo ou da Primeiro de Maro, menos ainda.

    J sei, uma seita religiosa que se rene aqui para meditar sobre as vaidades do mundo,um troo debudistas...

    No, no.

    Advinhei: um meeting.

    Onde est o orador?

    Esperam o orador.

  • Que orador? que meeting? Oua calado. O senhor parece ter o mau costume de vir apanhar as palavrasdentro da boca dos outros. Sossegue e escute.

    Sou todo ouvidos.

    Este o clebre encilhamento.

    Ah!

    V? H mais tempo teria tido o gosto dessa admirao, se me ouvisse calado. Este o encilhamento.

    No sabia que era assim.

    Assim como?

    Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno fechado, particular ou pblico, no este pedao derua estreita e aborrecida. E olhe que nem h meio de passar; eu quis romper, pedi licena. . . Entretanto,creio que temos a liberdade de circulao.

    No.

    Como no?

    Leia a Constituio, meu senhor, leia a Constituio. O art. 70 o que compendia os direitos dosnacionais e estrangeiros; so trinta e um pargrafos: nenhum deles assegura o direito de circulao... Odireito de reunio, porcm7 positivo. Est no 8.: "A todos lcito reunirem-se livremente e semarmas, no podendo intervir a polcia, seno para manter a ordem pblica". Estes homens que aqui estotrazem armas?

    No as vejo.

    Esto desarmados. no perturbam a ordem pblica, exercem um direito, e, enquanto no infringiremas duas clusulas constitucionais s a violncia os poder tirar daqui. Houve j uma tentativa disso. Eu,se fosse comigo, recorria aos tribunais, onde h justia. Se eles ma negassem, pedia o jri, onde ela indefectvel, como na velha Inglaterra. Note que a violncia da polcia j deu algum lucro. Como asmolculas do encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de dispersados, a polcia,para impedir a recomposio fazia disparar de quando em quando duas praas de cavalaria. Mal sabiamelas que eram simples animais de corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegariaprimeiro a certo ponto. da esquerda. a da direita. Quinhentos mil-ris. Aceito. Pronto. Chegou a da esquerda: d c o dinheiro.

    De maneira que a prpria autoridade...

    Exatamente. Ah! meu meu caro, dinheiro mais forte que amor. Veja o negcio do chocolate.Chocolate parece que no convida a falsificao: tem menos uso que o caf. Pois o chocolate hoje toduvidoso como O caf. Entretanto, ningum dir que os falsificadores sejam homens desonestos neminimigos pblicos. O que os leva a Falsificar a bebida no o dio ao homem. Como odiar o homem, seno homem est o fregus? o amor da pecnia.

    Pecnia? chocolate?

  • Sim, senhor. um negcio que se descobriu h dias. O senhor, ao que parece, no sabe o que se passaem torno de ns. Aposto que no teve notcia da revoluo de Niteri?

    Tive.

    Eu tive mais que notcia, tive saudades. Quando me falaram em revoluo de Niteri, lembrei-me dostempos da minha mocidade, quando Niteri era Praia Grande. No se faziam ali revolues, faziam-sepatuscadas. Ia-se de falua, antes e ainda depois das primeiras barcas. Quem ligou nunca Niteri e S.Domingos a outra idia que no fosse noite de luar, descantes, moas vestidas de branco, versos, uma ououtra charada? Havia presidente, como h hoje; mas morava do lado de c. Ia ali s onze horas,almoado, assinava o expediente, ouvia uma dzia de sujeitos cujos negcios eram todos a salvaopblica, metia-se na barca, e vinha ao Teatro Lrico ouvir a Zecchinni. Havia tambm uma assemblialegislativa; era uma espcie do antigo Colgio de Pedro II, onde os mocos tiravam carta de bacharelpoltico, e marchavam para S. Paulo, que era a assemblia geral. Tempos! tempos!

    Tudo muda, meu caro senhor. Niteri no podia ficar eternamente Praia Grande.

    De acordo; mas a lgrima livre.

    talvez a cousa mais livre deste mundo seno a nica. Que liberdade pessoal? O senhor vinhaandando, rua acima. encontra-me, fao-lhe uma pergunta, e aqui est preso h vinte minutos.

    Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilhes! So grilhes de ouro.

    Agradeo-lhe o favor. Nunca o favor to honroso e grande como quando sai da boca ungida pelosaber e pela experincia; por-que a bondade e prpria dos altos espritos.

    Julga-me por si; o modo certo de engrandecer os pequenos.

    O que engrandece os pequenos o sentimento da modstia, virtude extraordinria; o senhor a possui.

    Nunca me esquecerei deste feliz encontro.

    Na verdade, bom que haja encilhamento; se o no houvesse, a rua era livre, como a lgrima, eu teriaido o meu caminho, e no receberia este favor do cu. de encontrar uma inteligncia to culta. Aqui esto meu carto.

    Aqui est o meu. Sempre s suas ordens.

    Igualmente.

    ( parte ) Que homem distinto!

    ( parte ) Que estimvel ancio!

    [113]

    [25 dezembro]

    DESENGANAR. Gente que mamou leite romntico, pode meter o dente no rosbife naturalista; mas emlhe cheirando a teta gtica e oriental, deixa o melhor pedao de carne para correr bebida da infncia.Oh! Meu doce de leite romntico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem novamente

  • as figuras areas que outrora vi ante os meus olhos turvos.

    Com efeito enquanto vs outros cuidveis da reforma financeira e tantos fatos da semana, enquantopercorreis as salas da nossa bela exposio preparatria da de Chicago, eu punha os olhos em umtelegrama de Constantinopla; publicado por uma das nossas folhas. Mo so raros os telegramas deConstantinopla; temos sabido por eles como vai a questo dos Dardanelos; mas desta vez alguma cousame dizia que no se tratava de poltica. Tirei os culos, limpei os, fitei o telegrama. Que dizia otelegrama?

    "Cinco odaliscas. . ." Parei; lidas essas primeiras palavras, senti-me necessitado de tomar flego. Cincoodaliscas! Murmura esse nome, leitor faze escorrer da boca essas quatro slabas de mel, e lambe depoisos beios, ladro. Pela minha parte, achei-me, em esprito. diante de cinco lindas mulheres, como o vutransparente no rosto. as calas largas e os ps metidos nas chinelas de marroquim amarelo, babuchas,que o prprio nome. Todas as orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro esndalo. Cinco odaliscas, Mas que fizeram essas cinco odaliscas? No fizeram nada. Tinham sidomandadas de presente ao sulto. Pobres moas! Entraram no harm, l estiveram no sei quanto tempo,at que foram agora assassinadas... Sim, leitor compassivo, assassinadas por mandado das outrasmulheres que j l estavam, e por cimes...

    No, aqui fora interromper o captulo, por um instante. No continuo sem advertir que o ano bissexto, ano de espantos. Mseras odaliscas! Assassinadas por cimes, no do sulto, que tem maisque fazer com o grande urso eslavo: por cimes dos eunucos. Singulares eunucos! eunucos de anobissexto! Todo o harm posto em dio, em tumulto, em sangue, por causa de meia dzia de guardas que osulto tinha o direito de supor fiis ao trono e cirurgia.

    O mundo caduca reflexionou tristemente um dia no sei que cardeal da Santa Igreja Romana; e fezbem em morrer pouco depois, para no ouvir da parte do oriente este desmentido de incrus: O mundoreconstitui-se. O sulto tem ainda um recurso, dissolver n corpo dos seus guardas, como fizemos aquicom o corpo de polcia de Niteri, e recomp-lo com os companheiros de Maom II. Eis acudiro chamada do imperador; os velhos ossos cumpriro o seu dever, atarraxando-se uns nos outros, e, com asrbitas vazias, com o alfanje pendente dos dedos sem carne. correro a vigiar e defender as odaliscasantigas e recentes.

    Ossos embora, ho de ouvir as vozes femininas, e, pois que tiveram outra funo social, estremecero aoeco dos sculos extintos. A frase vai-me saindo com tal ou qual ritmo que parece verso. Talvez por causado assunto. Falemos de um triste leito, que ouvi grunhir agora mesmo no Largo da Carioca. Ia atadopelos ps, dorso para baixo. seguro pela mo de um criado. que o levava de presente a algum: vsperade Natal. Presente cristo. costume catlico. parece que adotado para fazer figa ao judasmo. Ser comidoamanh, domingo: ira para a mesa com a antiga rodela de limo, maneira velha. Pobre leito! Berravacomo se j o estivessem assando. Talvez o desgraado houvesse notcia do seu destino, por algumasrelaes verbais que passem entre eles de pais a filhos. Pode ser que eles ainda aguardem uma desforra.Tudo se deve esperar na terra. Tout arrive, como dizem os franceses.

    No quero dizer dos franceses o que me est caindo da pena. Melhor cal-lo. Como se no bastassem aessa briosa nao os delitos de Panam, est a desmoralizar-se com o escndalo de tantos processos.Corrupo escondida vale tanto como pblica; a diferena que no fede. Que que se ganha emprocessar? Fulano corrompeu Sicrano. Pedro e Paulo uniram-se para embaar uma rua inteira, fizeramvinte discursos, trinta anncios, e deixaram os ouvintes sem passo que o silncio, alm de ser outro,conforme o adgio rabe, tem a vantagem de fazer esquecer mais depressa. Toda a questo que osempulhados no se deixem embair outra vez pelos empulhadores.

  • 1893

    [114]

    [22 janeiro]

    A QUESTO Capital est na ordem do dia. Tempo houve em que na Repblica Argentina no se faloude outra cousa. L, porm, no se tratava de trocar a capital da provncia de Buenos Aires por outra, masde tirar cidade deste nome o duplo carter de capital da provncia e da Repblica. Um dia resolveramfazer uma cidade nova La Plata, que dizem ser magnfica, mas que custou naturalmente emprstimosgrossos.

    Entre ns, a questo mais simples. Trata-se de mudar a capital do Rio de Janeiro para outra cidade queno fique sendo um prolongamento da Rua do Ouvidor. Convm que o Estado no viva sujeito ao botode Diderot, que matava um homem na China. A questo escolher entre tantas cidades. A idialegislativa at agora Terespolis; assim se votou ontem na assemblia . Era a do finado capitalistaRodrigues, que escreveu artigos sobre i