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52 A Representação Social da Violência na Literatura de Cordel Sobre Cangaço 1 Social representations of violence in “String Literature” about Cangaço Renata Lira dos Santos Aléssio psicóloga, bacharel em Psicologia, professora substituta da Universidade Federal de Pernambuco. Doze Green Resumo: O cangaço é uma forma de banditismo social típica do Nordeste brasileiro, cujas histórias, veiculadas nos folhetos de cordel, transmitem representações acerca dos mais diversos objetos sociais, dentre eles a violência. O objetivo deste trabalho foi investigar a representação social da violência em cordéis sobre o cangaço. Foram pesquisados 12 (doze) folhetos, cuja análise, a partir do software ALCESTE, produziu quatro classes de palavras, agrupadas em dois eixos: o primeiro, ligado à narrativa jornalística do cangaço, e o segundo eixo, fortemente marcado por idéias que indicam um julgamento moral dos atores sociais envolvidos, forjando uma identidade social para nordestinos, sertanejos e cangaceiros. Palavras-Chave: Representações sociais, violência, cordel, banditismo. Abstract:Cangaço is a sort of social banditism, typical of the Brazilian Northeast, whose stories published at the cordel´s pamphlets can communicate the social representation about many types of social objects, including violence. The main objective of this work was to research the social representation of violence at the cordel´s pamphlets about cangaço. Twelve (12) pamphlets were examined by the software ALCESTE which produced four (4) word classes grouped in two axes: the first one is related to the journalistic narrative of cangaço and the second axis is strongly characterized by ideas that indicate a moral judgment about the social actors involved, producing a social identity to northeastern people, “sertanejos” and “cangaceiros”. Key Words: Social representation, violence, cordel, banditism. PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (4), 52-59 Di Cavalcante

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A Representação Social da Violência naLiteratura de Cordel Sobre Cangaço1

Social representations of violence in “String Literature” about Cangaço

Renata Lira dos SantosAléssio

psicóloga, bacharelem Psicologia,

professora substituta daUniversidade Federal de

Pernambuco .

Doz

e G

reen

Resumo: O cangaço é uma forma de banditismo social típica do Nordeste brasileiro, cujas histórias,veiculadas nos folhetos de cordel, transmitem representações acerca dos mais diversos objetos sociais,dentre eles a violência. O objetivo deste trabalho foi investigar a representação social da violência emcordéis sobre o cangaço. Foram pesquisados 12 (doze) folhetos, cuja análise, a partir do software ALCESTE,produziu quatro classes de palavras, agrupadas em dois eixos: o primeiro, ligado à narrativa jornalística docangaço, e o segundo eixo, fortemente marcado por idéias que indicam um julgamento moral dos atoressociais envolvidos, forjando uma identidade social para nordestinos, sertanejos e cangaceiros.Palavras-Chave: Representações sociais, violência, cordel, banditismo.

Abstract:Cangaço is a sort of social banditism, typical of the Brazilian Northeast, whose stories published atthe cordel´s pamphlets can communicate the social representation about many types of social objects,including violence. The main objective of this work was to research the social representation of violence atthe cordel´s pamphlets about cangaço. Twelve (12) pamphlets were examined by the software ALCESTEwhich produced four (4) word classes grouped in two axes: the first one is related to the journalisticnarrative of cangaço and the second axis is strongly characterized by ideas that indicate a moral judgmentabout the social actors involved, producing a social identity to northeastern people, “sertanejos” and“cangaceiros”.Key Words: Social representation, violence, cordel, banditism.

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (4), 52-59

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e

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Se pudéssemos entrar na máquina do tempo eviajar até o início do século XX, a manchete acimapoderia ser de uma notícia da última investida dobando de Lampião, de Corisco ou de AntônioSilvino. Saques, roubos e incêndios depropriedades realizados pelos grupos cangaceirosguardariam alguma semelhança com o “terror”veiculado cotidianamente em nossos meios decomunicação em relação ao tão anunciado altoíndice de violência.

A violência não é um tema novo nos debates travadosna mídia, na academia, nas ruas, casas e escolas.Fala-se, hoje, de violência, como talvez nunca setenha falado, discutido ou pensado. Esse tema temdespertado grande interesse tanto do ponto de vistaacadêmico, na medida em que se constitui objetoatual de debates entre intelectuais, quanto noâmbito social, uma vez que se constitui em fonte depreocupação para a sociedade como um todo.

Como um fenômeno social, a violência tem suasraízes nas relações humanas; é, por isso, umfenômeno sujeito às mudanças históricas e sociaisque ocorrem nas culturas e sociedades. Se,atualmente, a sociedade trava debates sobre otráfico de drogas, o crime organizado, o alto índicede menores infratores, a violência doméstica e outrasformas de violência, até décadas atrás, o País conviviacom um certo tipo de “marginal”, misto de justiceiroe vingador: o bandido social.

O banditismo social é fenômeno que parece serum dos mais universais da História, guardando, emdiferentes contextos e países, uma raríssimauniformidade. Segundo Hobsbawn (1975), osbandidos sociais são oriundos de sociedadescamponesas e encarados como criminosos peloEstado, porém mantêm-se como membros dacomunidade, sendo por ela temidos, sustentados eadmirados.

Para Hobsbawn (op. cit.), o banditismo socialrepresentava um fenômeno com o qual a populaçãoprecisava estabelecer um modo de vida. Por terocorrido em áreas onde não existia um mecanismoregular de manutenção à ordem, apoiar e sustentaro banditismo tornava-se mais seguro do que chamara atenção do Estado, com suas forçasexpedicionárias, que arrasavam a economia e apopulação em intensidade superior a qualquerinvestida dos bandos locais.

Facó , por exemplo, relata a violência das volantes(milícias contra bandos de cangaceiros): “onde querque a polícia tenha chegado para perseguircangaceiros ou ‘fanáticos’, praticou contra aspopulações rurais crimes mais hediondos do queos cangaceiros mais sanguinários” (Facó,1976,p.36).

A Representação Social da Violência na Literatura de Cordel Sobre Cangaço

O cangaço é uma forma de banditismo socialcaracterística do Nordeste brasileiro, que surgiuentre 1870 e acabou em 1940, data em quemorreu Corisco (Dória, 1982, Hobsbawn, op. cit.).O banditismo, no Nordeste, tem como uma desuas causas principais a crise econômica pela qualpassavam as cidades do interior.

As sociedades onde surgiram os bandidos sociaiseram sistemas culturais nos quais existia uma fortetradição moral, ligada à propriedade da terra,patriarcal e tradicional. Esse complexo de valoresconservadores convivia, de forma conflituosa, coma industrialização e a crescente capitalização dascidades interioranas.

Os bandidos sociais surgiram como defensores dosvalores morais da família, combatendo a injustiçacausada pela crescente desigualdade social.Podem ser identificados, pela população simples,como ladrões nobres ou, simplesmente, justiceiros.

O cangaço significava violência e medo, para uns,e heroísmo, valentia ou justiça para outros,revelando-se, portanto, como um objeto polimorfocercado de significações das mais diferentes. É umobjeto social que se encontra enraizado naspráticas culturais do homem nordestino, estandosua representação em constante reelaboração.

As formas de circulação e comunicação de idéiassobre a violência também estão sujeitas àstransformações complexas pelas quais passa essefenômeno ao longo da história social. Há algumasdécadas, destacava-se, no Brasil, uma formapeculiar de comunicação de massa: os folhetos decordel.

Inicialmente, narravam histórias fantásticas, porém,pouco a pouco, tornaram-se responsáveis peladivulgação das notícias e acontecimentos recentes,antes do advento do jornal, ao incorporar essesfatos sociais como temas do seu enredo.

Não se sabe ao certo a origem dos folhetos decordel no Brasil; segundo Galvão (2001, p.27), “adenominação ‘literatura de cordel’ foi atribuídaaos folhetos brasileiros, pelos estudiosos, a partirde um tipo de literatura semelhante encontradoem Portugal”. Na Espanha e em Portugal,costumava-se pendurar livretos em cordões oubarbantes nas feiras ou mercados populares.

São desconhecidas, também, as razões pelas quaiso cordel conheceu grande desenvolvimento noNordeste brasileiro. Para Galvão (op. cit.), emergede muitas explicações a naturalização doNordeste, que aparece de maneirahomogeneizada, a-histórica e predominantementerural.

“Oito carros e vinte eseis ônibus foramqueimados. Pelomenos 13 pessoasficaram feridas, em22 bairros. Beira-Maré suspeito de terarticulado as ações”

Jornal do Commércio,2003

1 Este trabalho é parte demonografia para conclusão dobacharelado em Psicologia e foiorientado pela professoraFátima Santos, a quemagradecemos profundamente.

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Nesse sentido, o grande desenvolvimento docordel explicar-se-ia por ser o Nordeste uma regiãode atraso, imobilidade, folclore e ruralismo. Aliteratura de cordel, nessa perspectiva, seria umaprodução rude, ingênua, rústica, arcaica e rural,cuja existência seria ameaçada pelo “progresso”da vida moderna.

Segundo Dória (op. cit., p. 07), “a arte reinterpretao cangaço transformando-o num outro conjuntode significados (...) atualiza o tema do modo a torná-lo elemento da moderna cultura nacional”. A arte,como a literatura de cordel, é um produto humanoque confere novos sentidos a fenômenoscoletivamente compartilhados e implicados nocotidiano social, como a violência.

Nesse sentido, apreender o mundo popularsignifica mergulhar nos significados produzidospelos objetos sociais no interior de determinadogrupo social. O cordel, como um sistema desímbolos articulados, é uma forma ampla deconhecimento que encerra outras formas de sabercomo teorias de senso comum. Essas teorias podemser chamadas de representações sociais.

As representações sociais configuram-se comosistemas de interpretação da realidade queproduzem e se constituem de valores, crenças eatitudes (Jodelet, 2001). De acordo com Moscovici(1961, apud Jodelet, op. cit., p.22), “as sociedadescontemporâneas caracterizadas por: intensidade efluidez das trocas e comunicações, desenvolvimentoda ciência, pluralidade e mobilidade sociais”apresentam, como especificidade, a construção defenômenos representacionais.

A comunicação social assume uma “condição depossibilidade e de determinação das representaçõese do pensamento sociais” (Jodelet, op.cit., p. 30),visto que, em primeiro lugar, “desempenha um papelfundamental nas trocas e interações que concorrempara a criação de um universo consensual”, e, emsegundo lugar, “remete a fenômenos de influência ede pertença sociais decisivos na elaboração dossistemas intelectuais e de suas formas”.

Se, por um lado, as representações são fenômenosque contribuem para a comunicação do grupo,por outro, elas são construídas nesse processo decomunicação. É através da comunicação que asrepresentações são transmitidas no interior de umgrupo social. “As representações sociais circulamnos discursos, são trazidas pelas palavras eveiculadas em mensagens e imagens midiáticas,cristalizadas em condutas e em organizaçõesmateriais e espaciais” (Jodelet, op. cit., p.17).

A comunicação social exerce, assim, funçõesprimordiais na construção e disseminação de

representações, pois “engaja processos de interaçãosocial, influência, consenso ou dissenso epolêmica” (Jodelet, op. cit., p.32).

A literatura de cordel, como meio decomunicação, caracteriza-se por ser um diálogoou uma narrativa na qual o cordelista tem aintenção de travar, com o ouvinte ou leitor, umaconversa. A comunicação entre o ouvinte e ocordelista é marcada pela intenção do último deconvencer o público acerca da veracidade de suashistórias. Ao mesmo tempo em que cria mitos oulendas em torno do cangaço, o cordel contribuipara a reelaboração constante desse fenômeno,objetivando e transformando uma realidade social.O presente estudo teve como objetivo, portanto,investigar como as idéias sobre violência circulamnos folhetos ao apreender a representação socialda violência na literatura de cordel sobre ocangaço, revelando seus mecanismos de formaçãoem termos de objetivação e ancoragem.

Metodologia

Foram analisados 12 (doze) folhetos de cordelsobre o cangaço, pertencentes ao catálogo daFundação Joaquim Nabuco – PE:

1.Bode, cangaço e lutas – Dila e José Cavalcanti

2.A chegada de Antonio Silvino na VilaMacaparana – José da Costa Leite

3.Amantes de cangaceiro – Dila

4.Encontro de Dúbal Ribeiro com o bandido ZéCabelo – Severino Cesário

5.O encontro de Antonio Silvino com o valenteNicácio da Vila Trapiá – João de Barros

6.Jararaca, o cangaceiro – Dila

7.O interrogatório de Antonio Silvino – João Martinsde Ataíde

8.A história de Antônio Silvino e o negro Corrupião– Francisco A. Martins

9.O terror do banditismo e o defensor da honrasertaneja – Manoel Camilo dos Santos

10.O terror dos cangaceiros da Paraíba do Norte –João Severo da Silva

11.Lampião e Maria Bonita tentados por Satanás –João de Barros

12.A vida de Lampião e Maria Bonita – José daCosta Leite

Renata Lira dos Santos Aléssio

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Os cordéis foram gravados e, posteriormente, transcritos para análise textual através do software ALCESTE.Esse software divide o texto em classes de palavras hierarquizadas através do teste qui-quadrado, que revelaas oposições de vocabulário mais fortes, extraindo, então, as palavras de cada grupo. A análise dos dadosrealizada neste estudo procurou reconstituir os sentidos das classes de palavras à luz da teoria dasrepresentações sociais.

Os Sentidos da Violência

É grande a tentação de se classificar a produção literária do cordel como uma atividade rústica, arcaica,própria do meio rural, este último objetivado enquanto espaço do exótico e pitoresco, “atrasado” porexcelência, sobretudo quando se fala do interior nordestino.

Nessa perspectiva, o autor do folheto não sabe bem o que escreve, não segue uma lógica formal deraciocínio, e as ambigüidades próprias da manifestação de uma cultura popular são apenas identificadas,desconsiderando-se as raízes que cimentam as idéias veiculadas nas histórias acerca dos mais variadosobjetos.

Os pesquisadores interessados em estudar a literatura de cordel sob o prisma da teoria das representaçõessociais devem, assim, retornar a Moscovici (1986) em suas discussões acerca do sábio ingênuo e do sábioprofissional, ou seja, acerca das propriedades do conhecimento do senso comum e das propriedades doconhecimento científico. É Moscovici quem inaugura uma perspectiva na qual as representações não sãotomadas como categorias lógicas e invariantes, porém como uma forma de conhecimento dinâmica.

Os resultados encontrados neste trabalho foram interpretados com a intenção de apreender a representaçãosocial da violência presente nos folhetos estudados e reconstituir valores, normas e crenças a ela subjacentes.

A análise dos cordéis pelo ALCESTE produziu quatro classes de palavras, como mostra o dendrograma2

abaixo. É preciso ressaltar, primeiramente, que os dados analisados se apresentam divididos entre doisgrupos: o primeiro, concernente às classes 1 e 2, e o segundo, relativo às classes 3 e 4.

A Representação Social da Violência na Literatura de Cordel Sobre Cangaço

2 Logo acima, encontra-se umvalor R. Esse valor varia de 0 a1, sendo o número 0 atribuídoa todo o corpus de análisedevido à ausência declassificação e conseqüentediferenciação entre as palavras.Quanto mais nos aproximamosdo 01, os resultados indicamhaver uma grandediferenciação entre as palavras,e, por conseguinte, maiorrelação entre as classes.

Essas palavras não são todasas produzidas pela análise, masaquelas selecionadas tendo emvista sua maior significância,medida pelo teste qui-quadrado.

Fato Jornalístico Julgamento Moral

R = 0,6 R = 0,4

Palavras Khi² Palavras Khi² Palavras Khi² Palavras Khi²cabra 15,31 Cabroeira 25,02 maria 55,49 história 15,33porta 15,25 Correndo 14,92 cajueiro 15,07 dinheiro 12,58bandido 18,61 Correu 14,92 céu 44,43 mil 10,24defendeu 16,58 Demorou 19,95 cristo 37,57 sertão 10,57gritou 16,58 Feio 30,12 Lampião 27,16 valente 10,94hora 16,75 Fugiu 30,12 Pedro 41,61 verdade 13,45moça 22,51 Inspetor 19,95 satanás 25,93 leitor 15,18moço 19,31 Matei 25,34 Jesus 25,93 contar 10,02punhal 17,19 Notícia 14,92 senhor 11,01 certo 10,02rapaz 22,51 Povoado 19,95 preciso 17,12 Antônio 7,89bala 11,50 Soldado 24,18 pena 22,00 mundo 10,94falou 11,50 Soube 25,02 pode 12,88 rei 13,61ligeira 13,01 Tropa 19,95 recebeu 29,43 sendo 11,73matou 10,96 Vila 8,08 vivo 13,65 comida 10,02atirando 8,18 Povo 11,53 justiça 8,26 ação 6,64ficaram 8,18 Estrada 14,43 cuidado 17,12 em 15,55

Classe 01 Classe 02 Classe 03 Classe 04Crime Ambiente Religião Honra

Dendrograma do corpus cangaço

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A Narrativa Jornalística da Violência

A classe 01 corresponde a 33, 12% do corpusanalisado, e apresenta as seguintes palavras comoumas das mais significativas: atirando, bala, bandido,gritou, ouviu, tiro, pulo, punhal, rifle, terreiro, moça.Essa classe parece estar ligada à narrativa e descriçãodos crimes, ataques, lutas e enfrentamentostravados entre bandidos, cangaceiros, autoridadesdas mais diferentes patentes e instituições e pessoascomuns, que ora são vítimas dos cangaceiros orasão salvas pelos bandidos.

Numa primeira leitura, as palavras podem parecerdesconectadas, porém é possível recuperar o seusentido reinserindo-as no contexto do qual foramextraídas: “a moça foi e voltou/ trazendo a corda eligeiro / o rapaz enforcou o moleque bandoleiro”,“[ele] desamarrou o bandido / e um punhal lheentregou”, “meteu o rifle no rosto / cinco tirosdisparou / foi cinco balas perdidas / aí Silvino gritou”.

A classe 2, por sua vez, corresponde a 16, 88% docorpus analisado, e agrupa palavras ligadas aoambiente das histórias - as cidades visitadas pelosbandidos, as rotas de fuga e as descrições doslugares e das situações em que ocorreram as ações,como podemos observar a partir das palavras daclasse chegou, correu, correndo, estrada, fugiu, Ingá,Pajeú, perto, povo, soube, Trapiá, vila, viu, bem comoa partir dos contextos de onde as mesmas foramdestacadas: “quase que morre de sede / atravessandoum grutão /, numa estrada esquisita / não existia umcristão / viajando fatigado / naquele vasto sertão” .

Ao cordel está associada a idéia de jornal do povodevido à característica de ser uma narrativa de fatosocorridos nas cidades e nos povoados. A narrativa

jornalística caracteriza-se, no cordel, porapresentar a descrição de um fato (a investida doscangaceiros, por exemplo) tomado como verídico(os autores insistem que suas histórias sãoverdadeiras) e proveniente de uma fonte segura.Esse primeiro eixo, formado pelas classes 01 (relativaà descrição dos crimes e enfrentamentos) e 02(descrição dos cenários), parece, então, estar ligadoà narrativa jornalística dos acontecimentosrelativos à atividade do cangaço.

O Julgamento Moral da Violência

Enquanto o primeiro eixo está ligado à descrição eao relato de formato jornalístico, o segundo eixo,formado pelas classes 03 e 04, está fortementemarcado por idéias que indicam um julgamentomoral dos atores sociais envolvidos no cangaço.

É o que podemos observar na classe 03 (12.10 %do corpus) a partir das palavras: justiça, céu, cajueiro,cristo, cuidado, encontra, Pedro, satanás, senhor, vivo.A influência da religião é a idéia subjacente a essaclasse, como podemos conferir a partir doscontextos dos quais as palavras dessa classe foramdestacadas: “baixou a várias sessões / mas nunca foiapoiado / no lugar onde chegava / sempre erarecusado / sofreu até que ficou / sem dever nenhumpecado / Resolveu ir para o céu / ver se achava umlugar / Tocou a campainha São Pedro / mandouentrar / mas disse o senhor / aqui no céu não podeficar! ”

Idéias ligadas à religião delimitam não só essa classe.A religião, em seus valores e crenças ligados aopensamento cristão, aparece como fio condutorda representação de violência e apresenta umafunção de divinização e naturalização do tempo eda vida social.

À violência, encontra-se atrelado um imagináriomágico-religioso que naturaliza e diviniza asrelações sociais. Nessa perspectiva, o cangaceiro é“naturalmente” um bandido, pois já nasceu assim:“o bandido apresentou-se com o seu instintomalvado”, “na sombra da injustiça, trilhando seumal destino”.

Poderíamos supor que essa divinização enaturalização, ancoradas em valores religiosos,forneceriam os elementos para florescimento daperspectiva na qual o Nordeste é representadoenquanto espaço do pitoresco, do exótico e doarcaico.

É preciso ressaltar, antes de tudo, que essaatribuição de causalidade encontrada no cordelnão é um erro de lógica nem tampouco umartifício do exótico. Trata-se de mecanismos deinterpretação da realidade construídos através da

À violência, encontra-se atrelado um

imaginário mágico-religioso que

naturaliza e divinizaas relações sociais.

Nessa perspectiva, ocangaceiro é

“naturalmente” umbandido, pois jánasceu assim: “o

bandido apresentou-se com o seu instinto

malvado”, “nasombra da injustiça,

trilhando seu maldestino”.

Renata Lira dos Santos Aléssio

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cultura e da História e compartilhados em forma deum saber que diz algo sobre um estado da realidade.

Não podemos esquecer que os elementos religiososfortemente arraigados na sociedade sertaneja enordestina, de forma geral, resultam de um longoprocesso de colonização no qual as empreitadaseconômicas e religiosas tiveram ascensão.

Uma concepção de sociedade ancorada nosditames católicos herdados do Brasil colônia ecaracterizada pelo patriarcalismo encontra-sesubjacente à representação de violência - objetivadasegundo a perspectiva do delito e do crime:assassinatos, torturas, “deflorações”, atentadoscontra a propriedade.

Nos folhetos analisados, existiam,predominantemente, três tipos de histórias: uma,na qual o cangaceiro é desafiado por um “valentão”que é ora uma vítima em busca de vingança, ora épago pelo Estado para capturá-lo; uma segunda,na qual o “valentão” salva mulheres ou famílias dasgarras do “bandido malvado”, representado pelocangaceiro, e uma terceira, caracterizada pelo relatodas ações violentas dos bandos de cangaceiroschefiados por Lampião ou por Antônio Silvino.

A violência, nos folhetos, é re-significada em funçãodo contexto no qual ocorre a ação: é representadacomo valentia, coragem, restabelecimento da morale da ordem quando o ator é “bem intencionado” eprocura defender-se ou salvar uma vítima indefesaou, ainda, quando procura vingar a morte defamiliares. Nesses casos, o autor é um vingador,justiceiro, um herói.

Entretanto, se o ato se configura como um atentadoà lei, à tradição, ao patriarcado, a violência érepresentada como crime, delito, e o autor assume,então, o papel do bandido cruel, um cangaceiroinfame e perverso cujo caminho para a violênciafoi traçado pelo destino.

Dessa forma, o respeito à moral, aos bons costumese à religião fornece a instrumentalização social darepresentação de violência. A atribuição de sentidosà violência é realizada tendo em vista a adequaçãodos comportamentos dos atores sociais aos valorese às normas vigentes.

A construção desse herói cangaceiro em seus valoresde valentia e coragem foi, por sua vez, enfatizada naclasse 04. As categorias de vingador, justiceiro, heróiou pistoleiro, matador, bandido e fora-da-lei sãoconstruídas ancoradas nas diferentes atribuições de

A Representação Social da Violência na Literatura de Cordel Sobre Cangaço

sentido da violência. Subjacente a essa construção,encontra-se uma visão de homem como ser providode valentia, coragem, bravura e habilidade: “o povodeve saber / quem foi Antonio Silvino / valente masgeneroso / embora que assassino / tinha boasqualidades / desde o tempo de menino”.

Os valores de valentia, coragem, fama e prestígiosão elementos que conferem uma base delegitimidade social às ações violentas praticadaspelos homens com o objetivo de punir, vingar oudefender sua honra. Nesse contexto, o homemque não defende a sua honra e não se vingaencontra-se moralmente morto. A violênciaconstitui-se, nesse quadro, em um elemento queconstrói e organiza a identidade do homemsertanejo, do cangaceiro e, em última instância,do nordestino.

Considerações Finais

É preciso, inicialmente, salientar alguns dos limitesdeste trabalho. O primeiro deles é relativo à datados folhetos. A ausência das datas de publicação ede confecção dos cordéis significa aimpossibilidade de reconstituir o contexto decriação dos folhetos e de traçar, mesmo quesuperficialmente, um quadro dos elementoshistóricos, sociais e culturais que poderiaminfluenciar o processo de criação artística.

Um segundo limite diz respeito à classificação doscordéis. Tendo em vista a dificuldade em seclassificar a produção de folhetos em temasespecíficos – tarefa que ultrapassaria os objetivosdeste trabalho pela complexidade e polêmica –optou-se por utilizar a classificação temáticaproposta pela Fundação Joaquim Nabuco, porémsão desconhecidos os critérios que foram utilizadosnessa classificação.

Sobre as classificações realizadas por algunsautores, Menezes (1999) afirma que, geralmente,estas sofrem de uma a-historicidade, pois nãoconsideram as mutações pelas quais passam osautores e consumidores da literatura de cordel aolongo do tempo social. O autor sugere que essaclassificação seja realizada levando emconsideração etapas históricas da literatura decordel, revelando temáticas predominantes de cadaépoca.

É possível, atualmente, encontrar “folhetos virtuais”,difundidos e veiculados na internet, sobre os maisvariados temas, evidenciando que odesenvolvimento de tecnologias da comunicaçãotem produzido mutações no que nos habituamoschamar “poesia popular”.

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Renata Lira dos Santos Aléssio

Em face de tantas modificações, os conceitos depopular, erudito, arcaico, moderno são algumasdas categorias de análise que se tornam, pouco apouco, mais complexas e de difícil elucidação.

Como expressão da comunicação social, osfolhetos analisados fabricam, reproduzem edisseminam representações sociais sobre aviolência, justificando, coordenando e ordenando,

em seu interior, a identidade de grupos tais comoos nordestinos, os sertanejos e os cangaceiros.

As obras artísticas, como produtoras de saber, desentidos, de significados, colaboram para areelaboração constante da realidade social. Tem-se, assim, uma literatura dita não-oficial, a literaturapopular, produzindo e instaurando uma realidadetambém “não-oficial”: a história recordada emarginal dos bandidos sociais.

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Recebido 07/04/04 Aprovado 25/08/04

Renata Lira dos Santos AléssioR. Dr. Otávio Bandeira, 117 IPSEP

Cep.:51190-140 Recife/PEE-mail:[email protected]

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Referências

A Representação Social da Violência na Literatura de Cordel Sobre Cangaço