A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
A representação sócio-cultural do cotidiano dos sisaleiros nas
manifestações culturais do município de São Domingos na década
de 1990.
Campo de sisal, Fazenda Riacho do Cedro no município de São Domingos – BA.
Iracema Lopes Alves
Conceição do Coité
2010
2
Iracema Lopes Alves
A representação sócio-cultural do cotidiano dos sisaleiros nas
manifestações culturais do município de São Domingos na década
de 1990.
Monografia apresentada a Universidade
do Estado da Bahia – Campus XIV como
requisito parcial para obtenção do título
de graduado em Licenciatura em História
sob a orientação do professor Aldo José
Morais Silva.
Conceição do Coité
2010
3
AGRADECIMENTOS
À minha família que contribui decisivamente na minha formação acadêmica e pelo
aprendizado que me ensinaram e que levo pra toda a vida.
Ao meu noivo Edigenildo que esteve ao meu lado em todas as etapas da pesquisa de
campo, e pela força e incentivo dado nos momentos mais difíceis na realização do trabalho.
Aos meus colegas da turma de Licenciatura em História de 2006.1 do campus XIV da
UNEB que contribuíram significativamente nessa longa jornada de estudos e aprendizados,
pela qual passamos nesse período em que estivemos juntos. Em especial, a Vera Lúcia, Iara e
Milene parceiras de todas as horas que iniciaram comigo o projeto de pesquisa, o qual
originou o presente estudo.
Agradeço também a todos os professores que ao longo desses anos nos proporcionaram
aprendizados que serão levados por toda a vida. Em especial, a Aldo José Moraes pela
orientação e pela força dada para que esse trabalho viesse a ser concebido.
Ainda sou grata a Milena e muitas outras pessoas que me estimularam, apoiaram e
encorajaram na realização desse trabalho.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que mediante seus depoimentos proporcionaram a
concretização desse trabalho com suas histórias de vida, compartilhadas e revividas nos
momentos da pesquisa.
4
Eu sou da região esquecida
Onde homens de fibra sobrevivem da fibra
Onde o signo de libra a balança não pesa
Onde o arco-íris é do povo que reza
A semente e a terra com rara harmonia
O calor e seu uso uma arma letal
O falo: divisor de fronteiras da ação
Velhas de anágua e meninas de minissaia
Garotos de boné e homem de chapéu de palha
As tradições curvam-se agora mais que nunca
Mais o suor ainda é o mesmo
(...)
Moséis Neto, Poema “O sisaleiro”.
5
RESUMO
Este estudo busca entender como a rotina de trabalho de sisaleiros se expressa em suas
manifestações culturais no município de São Domingos, cujas transformações e adaptações
foram mais acentuadas na década de 1990. Período este, que ocorreu várias mudanças na
sisalicultura e consequentemente causou um impacto nos costumes e modo de vida de muitos
trabalhadores e trabalhadoras rurais que sobreviviam dessa atividade econômica. Inicialmente,
exponho a chegada do agave no país até a sua introdução no semi-árido baiano. Após a
contextualização desse vegetal na região, abordo os diversos sentidos que foram atribuídos ao
termo sertão, bem como a construção de uma imaginada comunidade do sisal e a importância
que as canções populares possuem na vida dos sertanejos/nordestinos. E, finalizo o trabalho
com a análise de músicas, das manifestações em estudo, presentes tanto no local de trabalho
como nos ambientes de festas e lazer dos sisaleiros e sisaleiras são-dominguenses.
Palavras-chave: manifestações culturais – trabalho – sisal – São Domingos.
6
ABSTRACT
This study search to understand as the routine of sisaleiros work it is expressed in your
cultural manifestation in the municipal district of São Domingos, whose transformations and
adaptations were more accentuated in the decade of 1990. Period this, that happened several
changes in the sisalicultura end consequently it caused an impact in the habits and way of
many workers that survived of that economical activity. Initially, I expose the arrival of the
agave in the country until your introduction in the semi-arid baiano. After a contextualização
on the plant of the area, I approach the several senses that were attributed to the term interior,
as well as an imagined community‟s of the sisal construction and the importance that the
popular songs possess in the life of the setanejos/nordetinos. I conclude the work with it
analyzes of music, of the manifestations in study, presents so much in the work places as in
the atmospheres of parties and leisure of the sisaleiros and sisaleiras sãodomiguense.
Key words: cultural manifestations – work – sisal – São Domingos.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................9
CAPÍTULO I – Panorama Socioeconômico da Sisalicultura
no Nordeste Baiano ................................................................................................14
1.1 Histórico sobre a cultura do sisal ......................................................................... 14
1.1 As relações sociais de produção no coração da sisalândia ........................................17
1.2 As influências do capital externo na economia sisaleira .......................................... 23
1.3 Fibras de agave: cordas do progresso ................................................................... 25
CAPÍTULO II – Manifestações artísticas e musicais ................................................ 28
no sertão nordestino.
1.1 Cultura popular nos sertões do Brasil .................................................................... 28
1.3 O sertão como lugar ........................................................................................... 33
1.4 As canções musicais na vida do sertanejo .............................................................. 37
1.5 Cultura e identidade regional no semi-árido baiano ................................................. 38
CAPÍTULO III – Sisal e Sociedade Rural:
Manifestações Culturais no Território do Sisal ........................................................ 45
1.1 A música popular no cotidiano do sisaleiro ........................................................... 45
1.2 Grupos de Reisados no município de São Domingos .............................................. 54
1.3 Cantadeiras de roda ...........................................................................................63
1.4 Entre rezas e brincadeiras ................................................................................... 69
1.5 Perdas ou permanências? ................................................................................... 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 77
REFERÊNCIAS ....................................................................................................80
FONTES .............................................................................................................. 84
ANEXOS .............................................................................................................. 85
8
INTRODUÇÃO
O agave no Nordeste Baiano tornou-se símbolo de sobrevivência para muitas famílias
que não possuíam alternativa de emprego. A partir da década de 1940 com sua exuberância na
paisagem local, atraia muitos olhares e expectativas de dias melhores para a população de um
modo geral, pois o “verde do agave” seduzia, quebrando a rotina da paisagem local marcada
por vegetais acinzentados e retorcidos. Todavia, a sisalicultura não trouxe somente esperança
e prosperidade para a região, também se mostrou agressiva nas condições de trabalho e
alterou profundamente o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Dessa forma, o propósito desse estudo consiste em compreender como a rotina de
trabalho dos sisaleiros se expressa em suas manifestações culturais no município de São
Domingos. Como teria originado essas manifestações no ambiente de trabalho? Por que os
lavradores tentavam veemente transmitir seus costumes nessas expressões culturais? Como
essas manifestações resistiram e/ou transformaram-se ao longo do tempo nos campos do
município? Enfim, como essas canções populares retratam os costumes de trabalhadores
rurais das comunidades em estudo?
Para estudar os significados que os sisaleiros e sisaleiras atribuíram ás manifestações e às
experiências no trabalho com o agave, utilizei fontes impressas e orais. Com relação aos
documentos escritos consultei o jornal “Folha do sisal”, editado pela APAEB, a revista
“Territórios rurais” e as Atas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar
de São Domingos (SINTRAF). Assim, no primeiro momento procurei informações e dados
sobre as condições e relações de trabalho da sisalicultura no município.
No que diz respeito às fontes orais, busquei conversar com pessoas que possuíam uma
experiência de muito tempo nos campos de sisal e que tivessem vivido na época do auge das
manifestações culturais no setor rural de São Domingos. Pois, este fator era primordial para
realização do estudo da temática referente à década de 1990.
Usei principalmente os registros orais porque os considero fundamentais para a
elaboração do discurso historiográfico. Heródoto, considerado o pai da história, já reconhecia
a importância de ouvir as pessoas que vivenciaram os fatos narrados. Contudo, este
procedimento gerou críticas mesmo entre historiadores gregos e, no mundo moderno, os
positivistas denunciavam a subjetividade na construção do conhecimento.
Essa discussão - objetividade/subjetividade – ainda permanece nos debates acadêmicos.
Para Nunes “a pretensa vontade de traduzir o passado para o presente, realimentada no mundo
9
moderno pelo mito da razão e da comprovação, possibilitou que as fontes orais fossem
desqualificadas enquanto documentos”. Ela ainda comenta que “delimitaram-se as fronteiras e
se estabeleceram as dicotomias: objetividade/subjetividade, verdade/mentira,
ficção/realidade”.1
Diante disso, foi a partir dos Annales que a noção tradicional de documento passou a ser
questionada, apontando para a inexistência de hierarquias entre as fontes, sejam escritas ou
orais, o que permitiu que a história oral readquirisse o status de documento no discurso
historiográfico.
Além do interesse pessoal por este tema, percebe-se ainda a sua importância para a
historiografia local, pois existem poucos textos sobre este assunto no referido município e
região. Tais trabalhos, comumente, foram produzidos por economistas como Humberto
Miranda do Nascimento, cuja sua preocupação foi a de estudar a formação e atuação da
Associação de Pequenos Agricultores do Município de Valente (APAEB) e muito
particularmente as estratégias de convivência com o semi-árido baiano. 2
Outra obra de grande significância para compreensão da agaveicultura no Nordeste
Baiano é o livro “O sisal baiano: entre a Natureza e Sociedade: uma visão multidisciplinar”,
organizado pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, e o livro de José Filho Ramos,
“Sisal: sua história entre nós”, imprescindíveis para a realização de estudos sobre o sisal na
Bahia. Embora algumas dessas obras busquem um diálogo com a história social, nota-se que,
de um modo geral, estas abordagens enfatizam mais os aspectos produtivos, não priorizando
itens relacionados à cultura dos trabalhadores, ás suas experiências cotidianas, enfim, as
expressões culturais nesses ambientes. “Uma história de baixo para cima”, como escreveu
Eric Hobsbawm. 3 Ressaltando os costumes de sujeitos ocultos, cujas histórias não aparecem
apenas como fragmentos de vidas em si mesmas, mas em uma trama ampla: as histórias dos
homens e mulheres interligados às cordas do agave e ao grande emaranhado de costumes
expressos diariamente e perpetuados por gerações.
Assim, realizo os estudos presentes neste trabalho dentro de uma perspectiva cultural da
história social. Desse modo, em uma área muito ampla fazem-se necessário expor alguns
teóricos que auxiliaram no desenvolvimento dessa investigação. Peter Burke, ao falar sobre
1 NUNES, Mariângela de Vasconcelos. Entre o capa verde e a redenção: A cultura do trabalho com o agave no
Cariris Velhos (1937-1966, Paraíba). Universidade de Brasília – UNB. Programa de Pós-Graduação em História,
Brasília, 2006, p. 27. 2 NASCIMENTO, Humberto Miranda do. Conviver o sertão: origem e evolução do capital em Valente/BA.. São
Paulo: Annablume, 2003, p.35. 3 HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo; Companhia das Letras, 1998, p.216.
10
cultura, resume que esta por sua vez só pode ser definida em termos da nossa própria cultura.4
O fato é que o conceito de cultura vem mudando ao longo do tempo. Para os historiadores, o
termo cultura, no século XIX, estava ligado à arte, à literatura, às idéias e aos sentimentos.
Tratava-se de uma definição extremamente elitista desta categoria. Portanto, a idéia de cultura
era extremamente restrita e baseada na noção de alta cultura, assim, sendo desprezada a
cultura dos grupos subalternos.
No entanto, Nunes comenta que “esta corrente sofreu severas críticas, pois ela não só
ignorava a produção cultural dos segmentos sócio-economicamente mais frágeis como
também não dialogava com a cena econômica-política-social na qual estava inserida a
cultura”. 5 O historiador Edward Thompson, no século passado, apresentou outro conceito de
cultura, no qual a definiu como um conjunto de ações que constituem o cotidiano, as
experiências dos sujeitos, ressaltando o seu papel na história, as suas vivências. 6
Nas últimas décadas do século XX, uma nova dimensão de história cultural foi
consolidada ficando conhecido como “nova história cultural”, cujo objetivo é compreender o
sentido que os homens, em diferentes momentos atribuíram, ao mundo, como disse o
historiador Roger Chartier: “A História Cultural, tal como a entendemos, tem como principal
objeto identificar no mundo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler”.7 Esta vertente se aproxima da antropologia.
Tal aliança baseou-se na incorporação, por parte dos historiadores, da dimensão simbólica.
Assim como os antropólogos, os historiadores começaram a se referir à cultura no plural,
atacando a noção de hierarquização cultural. Ademais, o contato com aqueles possibilitou
uma redefinição do significado de cultura, que passou a ser entendida de uma forma mais
ampla, como disse Peter Burke:
Em outras palavras, estendeu-se o sentido do termo para abranger uma variedade
muito ampla de atitudes do que antes não apenas a arte mas a cultura material, não
apenas a escrita, mas a oral, não apenas o drama mas o ritual, não apenas a filosofia
mas as mentalidades das pessoas comuns. 8
4 BURKE, Peter. Variedades da história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.13.
5 NUNES, op. cit.,2006, p. 18.
6 THOMPSON apud NUNES, ibdem, p.18.
7 CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro:
Betrand, 1982. 8 BURKE,. op. cit., 2000, p.13.
11
Graças a este diálogo, os historiadores também aprenderam a valorizar o uso da memória
como interpretação do passado. O recurso da memória ainda nos permite ultrapassar as
fronteiras do individual, adentrando assim em um território amplo, como destacou Maurice
Halbawachs:
É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou noções comuns
que se encontrem tanto no nosso espírito como nos dos outros, porque elas passam
incessantemente destes para aqueles e reciprocamente, o que só é possível se
fizerem e continuarem a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim,
podemos compreender que uma lembrança passa a ser, ao mesmo tempo,
reconhecida e reconstruída. 9
Nesta compreensão, foi possível, a partir das memórias individuais, entender como os
trabalhadores rurais se organizavam cotidianamente, como e quando realizavam as
manifestações culturais na comunidade, como viviam suas frustrações, alegrias, enfim, se
integravam às rodas da história.
Sendo assim, proponho analisar a representação das experiências sociais dos sisaleiros
através das suas manifestações culturais do município de São Domingos na década de 1990.
Este trabalho consta três capítulos.
No primeiro, estudei a vida dos trabalhadores rurais no referido município, com a
introdução do sisal na região, mostrando como viviam os lavradores, como organizavam seu
trabalho e seu cotidiano, fornecendo assim, paisagens históricas da região sisaleira e da cidade
em estudo, que serviram para iluminar a compreensão dos capítulos seguintes.
No segundo capítulo, trato do significado que ao longo do tempo foi sendo atribuído ao
termo sertão. E mais especificamente aos significados e olhares que se direcionavam para o
sertão nordestino. Além disso, abordo a imagem que foi construída por muito tempo a
respeito do semi-árido baiano e, após o desenvolvimento da agaveicultura e a conseqüente
construção de uma imaginada comunidade do sisal. Exponho, também, brevemente a
significância que as canções musicais possuem na vida do sertanejo.
Já no terceiro capítulo, trabalhei com as manifestações culturais presentes na vida dos
sisaleiros e sisaleiras no Território do Sisal e, especialmente, em São Domingos. Nessa etapa,
pode-se entender o cotidiano dessas pessoas que expressam nas “rezas e brincadeiras”, os
costumes e o cotidiano de trabalho como forma de resistência à situação que lhes era imposta.
9 HALBAWACHS apud NUNES, op. cit., 2006, p.20.
12
Delimitei como marco temporal a década de 1990 em virtude das bruscas mudanças que
ocorreram no manejo com o sisal, bem como as constantes flutuações de preço no mercado
interno e externo. Todavia, o que mais pesou nessa escolha foram as intensas transformações
ocorridas nas manifestações, na área rural, nesse período em relação às décadas anteriores.
Portanto, como afirma Ecléa Bosi: “feliz o pesquisador que se pode amparar em
testemunhos vivos e reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época!”. 10
Sendo
assim, o conhecimento pautado na oralidade nos proporciona hoje ter acesso às lembranças
destes indivíduos que em suas narrativas nos ensinam sobre os festejos que envolvem:
músicas, danças, trabalho, alegria, distração... Enfim, são costumes herdados de longas
gerações e/ou reelaborados dentro de um novo contexto histórico.
10
BOSI, Ecléa. O Tempo vivo da Memória; ensaios de psicologia social. 2º ed. São Paulo: Ateliê editorial, 2004,
p.16-17.
13
CAPÍTULO I – PANORAMA SOCIOECONÔMICO DA
SISALICULTURA NO NORDESTE BAIANO.
O sisal representa um recurso perfeitamente
adaptado às condições climáticas do semi-árido e de
difícil substituição, já que a cultura se constitui na
maior fonte de produção e de subsistência da região.
Maria Auxiliadora da Silva
Neste capítulo encontra-se um panorama geral da introdução da sisalicultura no Brasil e
na Bahia. Logo após, trato das relações de trabalho e as condições de vida dos sisaleiros, bem
como as crises cíclicas do agave e sua expansão na área de estudo, principalmente na década
de 1990. Posteriormente, retrato algumas possibilidades de convivência com o semi-árido e
transformações socioprodutivas na região sisaleira.
1.1 Histórico sobre a cultura do sisal
O sisal (Agave Sisalana) 11
é uma planta originária de península de Yucatan, no México.
As várias espécies dessa planta foram usadas pelos índios em fabricação de objetos
domésticos e de bebidas alcoólicas, tais como a tequila, o pulque e o mexical. Dessa forma,
esse vegetal caracteriza-se como resistente à seca, e por isso que no Nordeste encontrou lugar
propicio para a sua implantação. Por ter sido bem adaptada à região semi-árida era
considerada como uma planta nativa.
Benedita Pereira Andrade 12
, em trabalho de síntese sobre a implantação do sisal na
Bahia informa que as primeiras mudas foram trazidas da Flórida (EUA) pelo industrial
Horácio Urpia Junior no começo do século, precisamente em 1903. Nesse mesmo ano,
algumas mudas foram levadas para a Bahia principalmente por sua beleza e sua utilidade para
fazer cercas que impedia o gado de alcançar as plantações. Das mudas que chegaram ao
território baiano, algumas foram enviadas para a Paraíba em 1911, e foi nesse estado que, a
11
O agave (que vem do grego agavos = magnífico admirável) é um gênero de plantas de consistência herbácea e
escapo floral saliente, que dá origem a várias espécies fibrosas, entre elas o sisal, que é uma fibra dura foliar.
Alias, há somente o conhecimento de duas espécies de Agave com valor comercial: a sisalana e a foucroydes.
Quando menciono à denominação genérica “sisal”, estarei falando da espécie sisalana. 12
ANDRADE, Benedita Pereira. Sisal e Sociedade Rural: o caso de Valente e Santa Luz - Bahia. In: LAJES,
Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e
sociedade: uma visão interdisciplinar. Salvador: UFBA _ Instituto de Geociência, 2002, p. 71-74.
.
14
partir de 1937, o sisal passou a ser cultivado com finalidade econômica, enquanto na Bahia,
isso ocorreu em 1939/1940, trinta e seis anos após a iniciativa pioneira de Horácio Urpia.
No nordeste baiano, o sisal obteve maior produtividade em virtude do clima e solo
favorável ao cultivo, distribuindo-se especialmente por 20 municípios que posteriormente
passam a integrar o Território do Sisal. Voltado, sobretudo para a exportação, após passar por
um beneficiamento, o sisal, pouco a pouco, tornou-se a atividade econômica da região.
“Disseminaram-se assim as primeiras sementeiras do „Agave Sisalana‟ sem que Pacífico e os
demais roceiros conhecessem as legítimas riquezas da variedade botânica que aparecia nos
sertões”. 13
Esse vegetal começa a ser cultivado em Valente na década de 1920, sendo este município
pertencente, na época, a cidade de Conceição do Coité. O Sr. Pacifico José dos Santos foi o
pioneiro na plantação de agave na região, mas, inicialmente a sua utilidade era apenas como
adorno ou com finalidade de servir de cerca para separar as propriedade e guardar os
animais.14
A partir disso, ocorre uma progressiva ampliação desse plantio na região e,
consequentemente o beneficiamento da fibra do sisal para a fabricação de diversos produtos,
sendo estes exportados até mesmo para fora do país. Diante da falta de emprego que atingia
grande parte da população, fazia-se necessário o cultivo de uma lavoura permanente e que
resistisse às inclemências das secas.
No final da década de 1930 e início de 1940 houve por parte do governo estímulos
iniciais para o cultivo do sisal, o qual se espalhou pelas terras semi-áridas do país. O
Ministério da Agricultura e do governo do Estado ofereciam prêmios para os maiores
plantadores e beneficiadores, essas atitudes contribuíram significativamente para o aumento
das áreas plantadas. “Em poucos anos, as plantações chegaram até perto do rancho.
Expulsando a hortinha, as galinhas e a mandioca”. 15
No entanto, com esses estímulos iniciais a produção ficou nas mãos de pequenos e médios
produtores, e o governo ausentou-se do apoio esperado para a experimentação e pesquisa com
a planta. Além disso, concessão de créditos para a lavoura era praticamente inexistente.
Nenhuma tecnologia foi oferecida aos agricultores para compensar o seu esforço. Para extrair
a fibra, o sertanejo recorreu a sua capacidade criativa: inventou o farracho, instrumento
rústico, rudimentar, que faz lembrar o tempo da pedra lascada, mas que serviu para os
13
RAMOS, José Filho. Sisal: sua história entre nós. Salvador: S.A. Artes Gráficas, 1965, p. 11. 14
GALVÃO, Almiro. Valente, estrela do Semi-Árido. Valente, abril, 2004, p. 15-16. 15
LIMA, Jorge Pinto. Correio Rural. São Paulo, 1952, p. 50.
15
primeiros desfibramentos, até que foi substituída pelas máquinas atuais, apelidadas de
paraibanas, dada sua origem, as quais têm decepado dedos e mãos dos operadores, gerando a
triste multidão dos mutilados do sisal. Quanto à intervenção governamental Nonato Marques
comenta:
Tudo foi feito na base da improvisação, enquanto o Governo modorrava na sua
inércia, à espera dos tributos arrancados de um produto embebido do suor de
milhares de nordestinos espoliados pela especulação violenta dos intermediários
gananciosos. [...] Mas mesmo assim, produtores fizeram com que, a partir de 1946,
o sisal passasse a figurar nas estatísticas baianas para delas jamais sair. 16
Mas, mesmo assim, produtores fizeram com que, A partir de 1946, as exportações
aumentassem substancialmente, favorecidas, após a II Guerra Mundial, pelo aumento de
mercados, devido às necessidades geradas pelo conflito e, sobretudo, devido ao incremento da
agricultura na América do Norte e nos novos mercados da Europa Oriental e Ocidental. Em
1946, o Brasil tornou-se exportador de sisal e, em 1951, assumiu a vice-liderança na produção
mundial. A Paraíba ocupava o lugar de maior exportadora do Brasil até a década de 60,
quando é superada pela Bahia. Nessa mesma década houve um período de alta de preços,
provocada pelos acontecimentos políticos que explodiram na África, mas logo em 1965, o
mercado mundial de fibra mergulhou em profunda crise, com a redução das colheitas e
“devido ao surgimento de sucedâneos sintéticos derivados do petróleo (...) o avanço da
indústria química e a produção de grande escala reduz substancialmente o preço da fibra
sintética, inviabilizando a indústria periférica do sisal”. 17
Apesar da relevância econômica e social do sisal, a exploração da cultura, durante o
período em questão, foi realizada com baixo índice de modernização e capitalização,
resultando em acentuado declínio, tanto da área plantada quanto da produção. Um outro fator
limitante é o alto custo de produção, devido ao baixo aproveitamento da planta.
Assim, diante da contextualização do sisal no Brasil e na Bahia fazem-se necessário
abordar brevemente a introdução desse vegetal na cidade em estudo. O território atual que se
configura no município de São Domingos, junto com Valente, pertencia primeiramente a
Conceição de Coité. Desse modo, quando Valente emancipa-se em 1958, o povoado de São
Domingos passa a pertencê-la. Mas, antes mesmo da passagem do território são-dominguense
para o município de Valente já havia evidências da sisalicultura nas terras dessa localidade,
16
MARQUES, Nonato. Histórico sobre a cultura do sisal. In: LAJES, Creuza Santos; ARGOLO João
Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e sociedade, Salvador, 2002 p. 16. 17
Estudo da Base Econômica Territorial: Território sisal, Bahia, Jun./2005.
16
aumentando sua produtividade nas décadas seguintes. Na Fazenda do Sr. Pacifico, localizada
em Valente, havia alguns trabalhadores da referida comunidade que já trabalhavam com o
sisal para fins econômicos. E assim, esses sisaleiros aprendiam as técnicas e o modo de
cultivar a planta para depois trazerem para os campos de sisal, do então povoado, em que
centenas de famílias passaram a depender fortemente dessa atividade econômica. 18
1.2 As relações sociais de produção no coração da sisalândia
O semi-árido baiano ocupa a região central do estado, representando 60% da superfície
territorial, abrangendo 258 municípios. 33 destes municípios compunham a chamada região
do sisal, que recebe esta denominação devido a sua principal atividade econômica. Essa
região enfrentou um período de decadência após os anos 70 em que as pedreiras, a pecuária
extensiva e a agricultura familiar de subsistência, ficam sujeitas aos longos períodos de seca
que ciclicamente atingem a região, agravando os problemas sociais. 19
No sertão da Bahia destaca-se um terreno de grande potencial para o cultivo desse
agave, conhecido como sisalândia. Esse território apresenta características peculiares em
relação às demais localidades do estado, diferenças estas referentes às relações sociais de
produção e intenso cultivo do sisal. Portanto, o termo sisalândia nas palavras de Jacques
Hubschmar caracteriza-se da seguinte forma:
Essa designação é, às vezes, aplicada ao coração do espaço sisaleiro, à área
sertaneja no qual se concentra o grosso da produção de fibra. Trata-se, de Serrinha,
particularmente da parte ocidental, que se estende entre os rios Itapicuru, ao Norte,
e Jacuípe, ao sul, onde se encontram os dois municípios vizinhos de Valente e
Santa Luz. Na verdade, essas terras de sisal são, também, arquétipos do sertão, que
se assemelham a um espaço relativamente limitado, mas com os mesmos traços
característicos do interior do Nordeste. 20
Desse modo, o município de São Domingos encontra-se localizado nesse espaço de
grande produção do agave, o qual foi por muito tempo distrito da cidade de Valente
18
Depoimento do Sr. Manuel Moséis de Oliveira, 69 anos, neto do Sr. Pacifico José dos Santos. 19
RAMOS, Alba Regina; NASCIMENTO, Antonio Dias. Características culturais. Resgatando a infância. A
trajetória do PETI na Bahia. Salvador: MOC/OIT/UNICEF, 2001. 20
HUBSCHMAR, Jacques. Olhar sobre o sisal: As pesquisas e a sociedade no sertão sisaleiro da Bahia. In:
LAJES, Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre
natureza e sociedade, Salvador, 2002, p.2.
17
emancipando-se apenas em 1989, localizando-se numa distância de 261 km da capital do
estado – Salvador. Este município na década de 1990 possuía 10.276 habitantes, sendo sua
população rural correspondente a 66,5% deste total (IBGE, 1991). O Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) nesse período é considerado muito baixo – 0, 531, quando
comparado à média nacional.
A região sisaleira é também denominada como Território do Sisal. E por essa
denominação entende-se que “território é o espaço que se estrutura em virtude de uma ação
social e que compreende os aspectos econômico, social e político. (...) os territórios são
compreendidos por ações sócio-políticos regionalizadas”. 21
Nesse sentido, Brandão em seu
livro “Território e Desenvolvimento” faz uma crítica e discute a questão do desenvolvimento
local e o “localismo” que muitas vezes posto como panacéia para o problema do
desenvolvimento nacional. Na sua concepção, a análise regional deve estar pautada numa
abordagem territorial. O grande desafio é encontrar uma maneira de tratar ao mesmo tempo e
numa perspectiva multiescalar as heterogeneidades estruturais de um país subdesenvolvido e
as diversas alternativas de avanço social, político e produtivo. E observa que:
Nunca as diversidades produtivas, sociais, culturais, espaciais (regionais, urbanas e
rurais) foram usadas no sentido positivo. Foram tratadas sempre como
desequilíbrios, assimetrias e problemas. A equação político-econômica imposta ao
país pelo pacto de dominação oligárquica das elites, cuja lógica aponto muito
sinteticamente neste texto, travou o exercício da criatividade “dos de baixo”,
procurando impedir sua politização. 22
Brandão enfatiza, então, a necessidade de construção democrática de estratégias de
desenvolvimento e aponta para os limites teóricos que desafiam a noção de desenvolvimento
territorial. Dentro dessa idéia de território como local de redes socioespaciais, é que são
buscados pelas organizações, agentes públicos e atores sociais novas perspectivas de análise
para o Desenvolvimento Rural. Nesse contexto, destacam-se no território do sisal as ações da
Associação de Pequenos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB/Valente) e o Movimento
de Organização Comunitária (MOC), ambos os mecanismos responsáveis por transformações
socioprodutivas nos municípios do nordeste baiano e na vida de muitos sisaleiros da região.
A APAEB surge da luta contra a cobrança extorsiva do ICM aos pequenos produtores
rurais, com a atuação regional de defesa econômica e ação sócio-politica. Esse período
21
Estudo da Base Econômica Territorial: Território sisal, Bahia, Jun./2005. 22
BRANDÃO, A. C. Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.205.
18
também foi marcado por constantes crises e baixa do preço do sisal. Algumas das mudanças
promovidas pala instituição foi a introdução da batedeira comunitária, adoção de uso racional
do solo e da propriedade, visando o aumento da produtividade. Em 1993, a APAEB funda a
cooperativa de crédito que opera, além do significado econômico, produz um valor simbólico
e pedagógico muito importante. 23
Dessa forma, após a sua estruturação, passa a atuar em
outros municípios circunvizinhos rompendo as fronteiras de Valente, onde encontra instalada
sua sede.
Com as ações desse organismo na região sisaleira houve mudanças no modo de trabalhar
com o sisal. O sisaleiro Luís da Silva relata que “existe uma mudançinha sim, por que de um
certo dia pra cá a gente tá aprendendo até a trabalhar mais, inclusive, através de alguns
cursos que a gente tomou na APAEB espalhar o resíduo que ninguém espalhava. Hoje
também é... fazer a „silagem do sisal‟24
e utiliza pra gente ter um burrego de corte dar ração
no coxo”.
As ações do MOC também se realizam com grande eficácia na região. Criado em 1967, a
partir do trabalho da Igreja Católica, esse organismo busca incentivar a emancipação social e
a criação de grupos organizados para o exercício da cidadania. O desenvolvimento de
atividades de apoio e fortalecimento de associações comunitárias rurais e urbanas, a
contribuição do desenvolvimento sustentável da região sisaleira e o auxilio para a atuação
qualificada na gestão de políticas publicas são algumas dos trabalhos do MOC. Na
perspectiva de convivência com o semi-árido, a instituição desenvolveu os programas de
“Água e segurança alimentar”, “Agricultura familiar”, “Comunicação”, “Crianças e
adolescentes”, “Educação do campo”, “Gênero”, e “Políticas publicas”. 25
A região de Valente/São Domingos e Santa Luz a sisalicultura contribuiu decisivamente
para manter, nesses municípios, milhares de famílias sertanejas que, na ausência do sisal
engrossariam os fluxos migratórios em direção as grandes cidades. Alguns dados mostram de
que forma eram ocupadas as terras com o plantio do agave sisalana.
23
SANTOS, Vilbégina Monteiro dos. A construção de uma comunidade imaginada do sisal. In: V ENECULT,
Faculdade de Comunicação/UFBA, maio de 2009, p.6. 24
Consiste numa técnica denominada de ensilagem que utiliza o resíduo da fibra do sisal (mucilagem), que foi
anteriormente desfibrado no “motor”, para alimentar criações de gado caprino e ovino. A ensilagem pode ser
feita ma forma de monte, sobre o solo, coberto com lona; ou em silos do tipo trincheira; ou, ainda, em sacos
plásticos, caso em que é necessário que se faça a compressão do material ensilado, com vista a expulsar o ar
contido na massa. Ensilada em regiões semi-áridas, 10 dias são suficientes para completar o processo de
fermentação, sendo então, adicionado mais substâncias transformando-se numa ração nutritiva para alimentar os
animais da região sisaleira. 25
MOC - Homepage. Disponível em: www. moc.org. br. Acesso em nov. - dez. de 2009.
19
Em 1975, o sisal foi uma das principais bases de sustentação da economia regional,
responsável pela subsistência de 50% a 60% da população e pela permanência do
homem no campo [...] A ocupação do solo com o sisal era de ordem 49,71% em
Valente/São Domingos e 21,08% em Santa Luz. 26
A cadeia produtiva do sisal compreende uma numerosa quantidade de pessoas, no qual
abriga sisaleiros desde crianças, mulheres e homens que desempenham diversas funções no
manejo com este vegetal. O processo inicia-se com atividades de manutenção das lavouras,
colheitas, desfibramento e beneficiamento da fibra e termina com a industrialização e a
confecção de artesanatos. Para cada função há uma ou mais pessoas para desempenhá-la,
contudo no campo é realizado a plantação e o desfibramento do sisal. O sucesso do vegetal na
região deve-se a intensa procura do mercado interno e externo pela fibra dessa planta sendo
utilizada para a fabricação de cordas de todos os tipos (cabos marítimos, cordas, cordões e
outros produtos similares), diversos tipos de tapetes, sacolas e outros artigos domésticos.
A pecuária é uma atividade econômica típica do interior brasileiro, no que se refere a
questão agrária, no entanto devido as condições climáticas adversas para a criação de gado em
larga escala no sertão baiano prevalece a agricultura de subsistência e predominantemente o
cultivo do sisal. Para Adaltina Araújo Santana27
é possível plantar outros tipos de vegetações
nas terras da região sisaleira, todavia salienta que “vem o plantio do milho, feijão, quiabo,
abóbora, mas quando tá chovendo... o que permanece mesmo é o sisal”. A escassez de chuva
na região reduz significativamente as alternativas de emprego oferecidas aos trabalhadores
rurais. Por isso, deve-se levar em conta um conjunto de fatores que influenciam no cotidiano
desta população, que por sua vez acarreta no desenvolvimento econômico, social e cultural da
região sisaleira.
Nos minifúndios (áreas de 1 a 10 há), o fracionamento da propriedade é constante. Toda
a família ocupa-se dos trabalhos agrícolas e muitos trabalham em outras propriedades para
aumentar a renda familiar. O sisaleiro Luis da Silva relata que “o que realmente existe aqui é
o motô de sisal ou quando algum fazendeiro quer pagar uns dias de roça, mas é muito
pouco.” Diante disso, percebe-se que mesmo trabalhando no manejo com o agave a renda não
se torna suficiente para manter a família, sendo então necessário complementá-la com
atividades extras, até mesmo devido aos constantes períodos de seca nos quais os motores de
26
MOREIRA, Maria Auxiliadora. Nova dinâmica de ocupação do solo no sertão sisaleiro da Bahia. In: LAJES,
Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e
sociedade., Salvador, 2002, p.21. 27
Ex-trabalhadora do sisal, atualmente funcionária do Sindicato de Trabalhadores de São Domingos.
20
sisal param em virtude da escassez da planta e do seu baixo desenvolvimento e
aproveitamento na cadeia de produção.
A cultura do sisal é uma atividade que exige uma grande aplicação de mão-de-obra. O
desfibramento é feito pelo motorzinho ou máquina paraibana, nas propriedades. Geralmente,
os sisaleiros trabalham nas terras de outras pessoas, no qual prestam serviços temporários e
não assalariados, ou seja, utilizados para as tarefas bem precisas e no tempo determinado. O
nível de emprego de mão-de-obra temporária é maior nas pequenas empresas rurais e
familiares, onde o sisal é a cultura dominante. Os trabalhadores são pagos por tarefa ou
quantidade produzida. Não existe contrato, e os acordos são feitos verbalmente. Os
proprietários preferem o trabalho temporário, porque permite reduzir sensivelmente os custos
de produção e as despesas exigidas pelos encargos sociais.
A primeira etapa do processo de colheita do sisal consiste no corte periódico de
determinados números de folha da planta, por meio de instrumentos adequados. (...)
O transporte das folhas colhidas para o local de desfibramento deve ser realizado na
menor distância possível. Na região sisaleira, esta operação é realizada com auxílio
de asininos e muares, dispondo as folhas colhidas sobre cangalhas com cambitos
(gancho, tipo V, de madeira) ao seu dorso. Um animal pode transportar em torno de
130 a 180 kg. 28
As práticas utilizadas nesse tipo de agricultura são transmitidas de geração a geração. As
mulheres e as crianças representam uma força de trabalho importante, cuja participação é
constante durante uma longa jornada de trabalho, porém com pouco valor econômico. Estas
por sua vez, realizam todas as atividades, exceto as do “cortador”, do “cevador” (operador do
motorzinho) e do “bagaceiro” (encarregado de retirar as polpas residuais), que geralmente são
feitas pelos homens. As mulheres, geralmente, realizam o trabalho conhecido como “estender
fibras”, no qual consiste em colocar para secar as fibras do sisal que foram passadas
anteriormente na máquina no processo de desfibramento. Esse processo acontece da seguinte
forma:
O desfibramento consiste na eliminação da polpa das fibras mediante a raspagem
mecânica da folha, através de rotores raspadores acionados por um motor a diesel.
A principal desfibradora dos campos do sisal do Nordeste brasileiro é a máquina
denominada “motor de agave” ou “máquina paraibana”, que tem baixa capacidade
operacional.esta máquina desfibra em torno de 150 a 200kg de fibra seca em turno
de 10 horas de trabalho, desperdiçando em média, 20% a 30% da fibra; além disso,
envolve um número elevado de pessoas para sua operacionalização. A rusticidade
28
ANDRADE, Wilson (org.). O sisal do Brasil. SINDIFIBRAS – Sindicato das Indústrias de Fibras Vegetais da
Bahia; Brasília: APEX – Brasil – Agência de Promoção de Exportações e Investimentos, 2006.
21
da máquina exige grande esforço do operador (puxador), que poderá ser uma ou
duas pessoas. Em operação normal desfibram-se, em média, 20 a 30 folhas/min, ou
1.200 a 1 800 folhas/h. A fadiga. Aliada à falta de segurança da máquina, expõe os
operadores a constantes riscos de acidentes, o que constitui um dos principais
problemas da máquina e da operação propriamente dita. 29
O desgaste físico decorrido do trabalho no processo de desfibramento do sisal pode
acarretar também na questão das mutilações (mãos e braços) que ocorrem com freqüência em
toda região sisaleira. Fato este provocado, em virtude do intenso trabalho que o Cevador 30
pratica na máquina chamada “paraíbana” para obter uma renda semanal maior, pois se ganha
por produção. Além disso, o baixo nível de capitalização da lavoura sisaleira, somada a falta
de recursos financeiros, cria um estado de vulnerabilidade perante os oligopólios comerciais,
industriais e exportadores, culminando, ao longo do tempo, com o entrave à modernização
tecnológica desta cultura.
No município de São Domingos na década de 1990 as mutilações nos campos de sisal,
segundo os sisaleiros da localidade, foi reduzido bastante comparado-a com décadas
anteriores. Os motivos foram os mais diversos que vão desde as modificações realizadas na
máquina como pelo cuidado e atenção maior dada pelos trabalhadores no manejo com a
mesma. É importante salientar que as mutilações acontecem em sua grande maioria em
pessoas do sexo masculino, pois estes exercem a função mais perigosa no processo de
desfibramento. A ex-trabalhadora do sisal Adaltina Araújo Santana já presenciou o
acontecimento e relata que “o momento é muito difícil por que eu acho que a dor é tanta que
a pessoa adormece, ele nem geme, depois é que vem gemer, por que a velocidade da máquina
é tão rápida que ele perde a mão e nem vê.” Comenta ainda das mudanças ocorridas no
chamado “motor de sisal” sendo um fator da provável redução de acidentes no município “a
boca da máquina diminuiu mais, de primeiro era feita a machado, a boca da máquina
passava duas mãos se fosse possível.”.
O trabalho infantil nos campos de sisal na década de 1990 foi bastante freqüente e
intenso, mas os sisaleiros do município relatam que com o surgimento do Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) em 1997 e demais programas do governo reduziram
significativamente o trabalho de crianças na zona rural. Além disso, estimulou e aumentou a
freqüência nas escolas da localidade. Luís da Silva com 46 anos de idade, trabalhador do sisal,
29
Idem. Ibdem. 30
Cevador é homem responsável pelo desfibramento do sisal. Sendo este quem sofre com o problema de
mutilação ao manejar a fibra na máquina paraíbana.
22
tece o seguinte comentário sobre a questão do trabalho infantil fazendo analogia com o
trabalho na sua época de infância:
Naquele período eu estudei lá em Zazá era uma légua e meia, a gente ia e vinha de
péis e quando estudei na casa de vó Martim era uma légua e a gente não tinha a
chance que tem hoje. Hoje todos lugares os carros passam para pegarem as
crianças. Naquele tempo, a gente ia de péis, montando jegue... E hoje em dia tem
uma grande tranqüilidade dos meninos, até mesmo a bolsa escola que ajuda a
comprar uns materiais. E depois da escola vão pro PETI e aí os meninos hoje em
dia... qual o menino hoje em dia que quer aprender pegar uma fibra. Antigamente
começava pegando fibra depois ajudando os pais às vezes a cortar uma palha daí
com 15 e 16 anos já encarava. Eu quando comecei cevar tinha dezesseis anos, eu
não tinha interado dezessete anos, eu aprendi a cevar ai pronto tô até hoje. E graças
a Deus não tenho arrependimento não, peço a Deus que quero ter a saúde, tendo a
saúde o resto não tem pressa.
1.3 As influências do capital externo na economia sisaleira
A sisalicultura não depende apenas do mercado interno. As fibras que se produzem no
Brasil destinam-se a exportação, principalmente para os Estados Unidos e a Europa.
Consequentemente, o país torna-se dependente das decisões dos países consumidores e da
oferta dos países produtores no mercado internacional. As constantes flutuações dos preços
das fibras do sisal se refletem em toda a cadeia de produção, principalmente, na base desse
sistema, no qual se encontra o sisaleiro.
Em novembro de 1990, o sisal estava em crise. Inúmeras batedeiras em Valente e Santa
Luz pararam as suas atividades. Na tentativa de minorar a crise do sisal, os agricultores, os
trabalhadores e os representantes sindicais lançaram uma campanha intitulada os
sisaleiros pedem socorro, seguida de um desfile, de reuniões e de um conjunto de
reivindicações. 31
O preço do sisal durante a década de 1990 oscilou bastante em virtude de dois fatores
principais: o panorama econômico internacional e os constantes períodos de seca que assolava
a região nessa década. Durante esse período, ocorreram várias reuniões envolvendo os
Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), associações e autoridades municipais objetivando
juntos encontrarem um saída para a crise que enfrentavam , no qual uma das alternativas
poderia advir de recursos governamentais destinados a região sisaleira.
31
ANDRADE, Benedita Pereira. Sisal e sociedade rural: o caso de Valente e Santa Luz - Bahia In: LAJES,
Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano entre natureza e
sociedade, Salvador, 2002, p.75.
23
A seca está provocando falta de sisal para as indústrias e batedeiras. Por isto, o
governo está colocando no mercado parte do sisal adquirido pelo Programa de
preços Mínimos. Para evitar desemprego na BATEDEIRA COMUNITÁRIA, a
APAEB/Valente comprou 460 toneladas de sisal em dois leilões realizados
recentemente pela bolsa de Mercadorias da Bahia. 32
O município de São Domingos atravessou um período de dificuldades econômicas em
virtude da seca que afetava a região e, pelas constantes crises do preço do sisal na década de
1990. Durante todo o ano de 1993 foi buscado apoio governamental para amenizar a situação
de calamidade que o município enfrentava nesse período. Para isso, mobilizou-se o Sindicato
de Trabalhadores Rurais de São Domingos, autoridades municipais e membros da Igreja
Católica com o intuito de criar uma comissão municipal de assistência a seca, no qual
receberia uma verba enviada pelo governo estadual, em parceria com o poder federal, para
desenvolver o programa denominado de “Frente de Serviço ou Frente Produtivas”. 33
Esse Projeto criado no governo de Itamar Franco consistia em amenizar a fome e o
desemprego gerado pela seca na região Nordeste, para tal finalidade eram disponibilizados
durante alguns meses desse ano recursos financeiros, que por sua vez, revestiam-se em
empregos para pessoas de baixa renda. Essas pessoas recebiam meio salário mínimo mensal
para trabalharem realizando serviços públicos e capinando estradas na localidade. É
importante salientar que a geração de empregos provisórios atendia a população rural e urbana
como medida de emergência nas cidades que mais sofriam com a seca naquele período, o
município de São Domingos empregou nessa época quatrocentos e cinqüentas habitantes no
referido programa. 34
Em março de 1995 o jornal Folha do Sisal anuncia “Preço do sisal bate recorde histórico
no mercado mundial”. A reportagem aborda o melhor preço que o agave obteve nos últimos
10 anos. Isso em virtude do aumento do consumo do produto no mercado externo,
principalmente pela valorização da celulose e, também, por se tratar de um produto,
biologicamente degradável (Gráfico 02 e 03). Porém, mesmo com este aumento, a situação
dos trabalhadores do sisal continuou difícil, pois as constantes secas provocaram a paralisação
de motores e batedeiras em muitos municípios, inclusive, em São Domingos que a maior
geração de emprego advém da agaveicultura.
32
Jornal BATEDEIRA COMUNITÁRIA, p. 01, nº. 13, Valente, Abril de 1993. 33
Sindicato de Trabalhadores Rurais de São Domingos. Atas das reuniões realizadas durante o ano de 1993. 34
Idem. ibdem.
24
O sisal sempre pára de vez em quando, todo mundo sabe é a seca né? Por que
sempre baixa o preço do sisal, mas se tiver chovendo sempre continua o motô
rodando, por que nesse município, nessa região sisaleira a renda é o sisal, mesmo,
ou seja, bom ou seja ruim de preço tem que rodar, só pára em tempo de seca.35
Gráfico 02 – Exportação de Fibras e Manufaturados Gráfico 03 – Exportação de Tapetes
Fonte: Sindifibras
As crises periódicas na sisalicultura é uma característica constante no país, apesar do
dinamismo do Brasil nesse setor, os preços ficam a mercê das flutuações do mercado. Em
1995 a área plantada de agave sisalana reduziu-se a metade do que já havia sido cultivado em
anos anteriores. Nesse mesmo ano foram plantados 92. 807 hectares de sisal espalhados por
Campo Formoso, Conceição do Coité, Itiúba, Jacobina, Mirangaba, Ourolândia, Queimadas,
Retirolândia, Santa Luz, São Domingos, Valente, Várzea Nova e outros. 36
1.4 Fibras de agave: cordas do progresso
O agave sisalana representa para a região do nordeste baiano um meio de
sobrevivência e mais do que isso um progresso no setor econômico, social, político e
cultural. O sisal pode ser a solução de muitos problemas do semi-árido nordestino, pois
apresenta várias possibilidades de desenvolvimento sustentável para os municípios que
realizam a sisalicultura e seu beneficiamento.
A APAEB transforma as fibras produzidas na região sisaleira em fios, que através
dos teares são transformados em tapetes e carpetes. Isso agrega valor ao produto e gera
600 postos de emprego, no qual inclui pessoas de vários municípios vizinhos de Valente.
Além disso, são desenvolvidos vários projetos e cooperativas que trabalham com a fibra
do agave na confecção de diversos produtos artesanais. Dentre estes, se encontra a
35
Depoimento de Adaltina Araújo Santana, ex-trabalhadora rural. 36
Jornal FOLHA DO SISAL, Ano 8, nº. 40, Outubro de 1997, p.2.
25
cooperativa “Mulheres de Fibra”, essas mulheres saíram do motor do sisal e constituíram
com o apoio de sindicatos, sociedade civil e entidades públicas, a Cooperativa Regional de
artesãs de fibras do sisal (Cooperafis), por isso a denominação bastante sugestiva
mulheres de fibras. O trabalho delas realiza-se da seguinte forma:
São colchas bordadas, bolsas e chapéus de fibra fina de sisal, variados objetos de
decoração. O sucesso foi imediato e ultrapassou as fronteiras locais. Chegou a
Salvador, São Paulo e começa a ganhar o mundo. Dignidade e cidadania cresceram
frutos de trabalho e dedicação. Atualmente são 122 cooperadas distribuídas em
nove núcleos de produção, nos municípios de Araci, são Domingos e Valente. 37
A agaveicultura pode também transformar a vida dos pequenos produtores e sisaleiros
que vivem no sertão baiano mediante ações e investimentos aplicados em instalações de
indústrias que utilizem a fibra do agave na fabricação de diversos produtos para exportação.
“A fibra do sisal pode ser utilizada na fabricação de pasta celulósica, empregada na fabricação
do papel Kraft, de alta resistência, e de outros tipos de papéis finos. Pode também ser
empregado na indústria automotiva, de móveis e eletrodomésticos e na construção civil.” 38
As atividades econômicas e as associações existentes na região sisaleira, especialmente
no município de São Domingos, são desenvolvidas basicamente em torno do sisal. Esse fato
está intimamente relacionado à quantidade de pessoas que sobrevivem direta ou indiretamente
do: cultivo, desfibramento, beneficiamento, exportação ou atividade artesanal nos principais
centros produtores de agave da Bahia. Além do desenvolvimento e contribuição desse produto
no setor primário e secundário, nas últimas décadas nota-se uma crescente urbanização e
progresso no setor terciário, pois este por sua vez, depende consideravelmente do capital
movimentado nos município proveniente da sisalicultura.
Na verdade, se o sisal é por um lado uma preciosidade e riqueza para muitos produtores,
por outro lado é visto pelos sisaleiros como meio de sobrevivência e esperança de um futuro
mais próspero com grandes plantações do agave nas suas pequenas propriedades. Sendo
assim, mesmo diante de precárias condições de trabalho, dos constantes períodos de seca e
das cíclicas crises no preço do sisal o sisaleiro acredita que as fibras do agave são cordas do
progresso. Todavia, para que isso ocorra é necessário um planejamento na questão do
desenvolvimento rural em regiões semi-áridas, posto que muitas estratégicas de sobrevivência
praticadas e propagadas, por guardarem relação de similaridade com formas de convivência
37
RECENA, Luiz. Sisal o território da esperança. In: Territórios rurais, nº1, jan./jun., 2005, p.19. 38
ANDRADE, Op. cit., 2006.
26
no semi-árido, não resultam em estratégias de convivência do semi-árido propriamente dita. A
distinção pode ser explicada da seguinte forma:
Para que fique claro a distinção, podemos dizer que as estratégias de sobrevivência
são práticas de valência social da população local, em geral, para conviver com as
privações infortúnios no(grifo do autor) Semi-Árido. Ao contrário, as estratégias de
(grifo do autor) Convivência com o Semi-Árido são modos de superar as mazelas
do subdesenvolvimento naquilo que têm de mais especifico no Semi-árido
brasileiro: o agravamento da dependência e da exploração, o aumento das
vulnerabilidades socioambientais e a situação de insustentabilidade de certos meios
e modos de vida. 39
As estratégias de desenvolvimento rural no nordeste baiano são primordiais para se
efetivar verdadeiramente as ações governamentais e/ou privadas que alcancem e promova
progresso no âmbito social, econômico e cultural. Para isso, é de extrema importância que
esse sujeito, o sisaleiro, seja colocado no centro das discussões dessas estratégias de
planejamento rural no sertão da Bahia e, a partir disso, possa ser percebido as organizações e
atores locais que refletem contextos sócio-espaciais específicos e interesses em disputa em
torno da questão do desenvolvimento. Portanto, o ambiente cultural deste trabalhador do sisal,
antes de tudo um sertanejo, diz muito sobre seu cotidiano e sua vida de um modo geral.
A cultura é a parte importante do capital social porque os saberes acumulados, as
tradições, os modos de vínculos com a natureza e as capacidades naturais de auto-
organização são de grande valia para as populações pobres, pois são suas dotações
iniciais. A democratização cultural, com a criação de espaços de vivência e
convivência acessíveis aos setores mais desfavorecidos, pode abrir canais de
integração social. 40
Ao longo dos últimos dez anos, houve um desenvolvimento nas associações das
comunidades rurais, o que propiciou o surgimento de formas e estratégias econômicas, sociais
e culturais de convivência na região sisaleira. Diante disso, o estereotipo em torno do semi-
árido baiano é visto de modo simplificado, como uma região problemática em que as soluções
estão distantes ou inacessíveis da população. No entanto, as alternativas muitas vezes, estão
tão próximas e não utilizadas como deveriam para beneficiar a região, procurando até mesmo
na revitalização da produção sisaleira e, em escala mais ampla, na revitalização do território.
39
NASCIMENTO, Humberto Miranda. A convivência com o semi-árido e as transformações socioprodutivas na
região do sisal – Bahia: por uma perspectiva territorial no desenvolvimento rural. XLVI congresso da Sociedade
Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. UCSAL: Salvador. S.d., p. 4. 40
Idem. Conviver o sertão: origem e evolução do capital em Valente/BA. São Paulo: Annablume, 2003, p.22.
.
27
Capítulo II – MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS E MUSICAIS NO
SERTÃO NORDESTINO
Em vez de pensar as culturas nacionais como
unificadas, deveríamos pensá-la como constituindo
um dispositivo discursivo que representa a diferença
como unidade ou identidade.
Stuart Hall
Este capítulo enfoca o significado que ao longo do tempo foi atribuído ao sertão
nordestino. A partir disso, discute a imagem que também foi conferida ao semi-árido baiano e
a importância das expressões culturais na vida dos sertanejos, os quais retratam seus costumes
nas manifestações artísticas existentes no seio de sua comunidade.
2.1 Cultura popular nos sertões do Brasil
O termo cultura popular configura-se numa gama de definições e conceitos que lhes
foram atribuídos em diferentes épocas e contextos distintos, que envolvem disputas teóricas e
políticas na História. Para Martha Abreu o conceito de cultura popular não está engessado em
definições imutáveis. Na sua concepção “pode ser visto como uma perspectiva, no sentido de
ser mais um ponto (de vista) para se observar a sociedade e sua produção cultural”. 41
Nesse sentido, a cultura popular é um instrumento da história que serve para evidenciar
diferenças e ajudar a pensar a realidade social e cultural de uma determinada sociedade. Nas
palavras de Chartier “a cultura popular é uma categoria erudita” 42
, devido a dificuldade ou
impossibilidade de detectar o que é genuinamente do povo, ou mesmo de se precisar a origem
social das manifestações culturais, em função da histórica relação e do intercâmbio entre os
mundos sociais, em qualquer período da história. Segundo Chartier correndo o risco de
simplificar ao extremo, é possível reduzir as diversas definições de cultura popular em dois
grandes modelos de descrição e interpretação.
O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a
cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona
segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O
segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que
41
ABREU, Martha. Cultura Popular: um conceito e várias historias. In: ABREU, Martha, SOIHET, Rachel
(orgs.). Ensino de Historia: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Cada da Palavra, 2003, p.84. 42
CHARTIER, Roger. “Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”. Revista Estudos Históricos
(Rio de Janeiro), vol. 8, n. 16 (1995), p. 179.
28
organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e
carências em relação à cultura dos dominantes. 43
As idéias postas por Ginzburg em muito contribuíram para resgatar o mundo da cultura
na história como também promoveu estudos sobre uma “história vista de baixo”, no qual
passaram a ser discutidos questões como o de circularidades culturais e apropriações de
sujeitos históricos com uma variável e razoável autonomia. Dentro dessa perspectiva cultural
e das constantes interações e compartilhamento entre culturas, o historiador inglês Peter
Burke lança o termo “biculturalidade” para abordar o intercâmbio de práticas culturais
populares assimiladas por membros da elite, ao mesmo tempo em que preservavam a própria
cultura. Apresenta ainda várias contribuições significativas no campo da Nova História
Cultural e trás uma excelente discussão no seu livro “O que é história cultural?”. Na sua
perspectiva, qualquer definição de História Cultural passa pelo o campo interdisciplinar, local
e momento em que a noção de Cultura sofre modificações para oferecer aos historiadores
algum potencial analítico e explicativo.
Na verdade, o termo “cultura” e “cultura popular” não possuem definições prontas e
estabelecidas, iguais aos verbetes em dicionários. Os conceitos foram sendo ampliados com o
passar do tempo e assim recebendo novas atribuições de significados. Para Peter Burke o
vocábulo “cultura” ainda é mais problemático do que o termo “cultura popular”, pois
caracterizar e definir o que não é cultura tornam-se uma tarefa mais difícil do que classificá-
lo. Sendo assim, o conceito em geral é usado para referir à “alta” e “baixa” cultura, as ciências
e artes, seus equivalentes populares (músicas folclóricas, medicina popular, e assim por
diante.), uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, etc.) e práticas (conversar, ler,
dentre outros). 44
Sobre “cultura popular” Burke comenta:
Os especialistas várias vezes sugeriram que as muitas interações entre cultura
erudita e popular eram uma razão para abandonar de vez os dois adjetivos. O
problema é que sem eles é impossível descrever as interações entre o erudito e o
popular. Talvez a melhor política seja empregar os dois termos sem tornar muito
rígida a posição binária, colocando tanto o erudito como o popular em uma
estrutura mais ampla. 45
43
Idem, ibdem, p.179. 44
BURKER, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.42-43. 45
Idem, ibdem, p.42.
29
Enfim, essa discussão sobre a definição de “cultura” não é o foco deste trabalho, mas
como coloca Thompson “não podemos esquecer que a „cultura‟ é um termo emaranhado, que,
ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar
distinções que precisam ser feitas” 46
. Então, conceitos a parte, a História de modo geral
sempre estará recebendo novas conceituações e inovações em seus campos de estudo, em
virtude dos constantes questionamentos e pesquisas suscitadas em contextos históricos
distintos.
Diante disso, o conceito perpassa várias conjunturas e épocas históricas de maneira que a
partir das décadas de 1940-1950, a cultura popular é utilizada sob uma perspectiva mais
política associada ao populismo bastante difundido na América Latina. No Brasil, a partir do
final do século XIX a expressão cultura popular se difunde entre folcloristas, antropólogos e
sociólogos, entre outros intelectuais da época que discutiam a construção de uma determinada
identidade cultural para o país.
A cultura popular brasileira possui uma estreita relação com a difusão das idéias
folclóricas no país, visto que, como na Europa e também na América Latina serviu para a
formação das novas nações do século XIX e XX, resgatando assim o passado e os sentimentos
populares do período. Dessa forma, atrelado a questão da valorização e exaltação da produção
artística nacional apropriou-se fortemente da produção dos sertanejos e dos caboclos do
interior, objetivando enfatizar o que permanecia como traços de uma identidade cultural e
étnica, pautada pela integração cultural sincrética das três raças. No entanto, a partir de 1960
severas criticas são feitas as produções folcloristas, no qual eram vistas como simplórias e não
detectavam a fundo os problemas das classes populares em foco e muito menos sobre o
processo de dominação presente na sociedade da época. Na verdade, após esse período
recebeu “significados negativos, assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedótico e ao
ridículo”. 47
Se a discussão em torno da cultura dos setores não desapareceu, atrelou-se, em
grande parte, ás avaliações sobre os aspectos que levaram à sua alienação ou não
consciência de classe, o que possibilitou a consolidação de uma série de visões
preconceituosas sobre a cultura popular: cultura fragmentada, conservadora, presa
às tradições, obstáculos a mudanças sociais, conformista e supersticiosa. As
reflexões sobre as manifestações culturais dos homens e mulheres comuns
acabaram ficando, mais uma vez, prisioneiras das armaduras ideológicas de seu
próprio tempo. 48
46
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo; Companhias
das Letras, 1998, p.22. 47
ABREU, Martha. Op. cit., p.87. 48
Idem, ibdem, p.88.
30
Os primeiros estudos no Brasil relativos à cultura popular voltaram-se para o campo da
poesia. As pesquisas foram inicialmente conduzidas por correntes filosóficas e científicas
vigente na Europa e que marcaram época entre os intelectuais brasileiros como, por exemplo,
o positivismo que foi bastante significativo nos estudos dos fatos folclóricos no país.
No que tange ao papel da cultura popular idealizada por muitos pesquisadores na
construção da identidade nacional, deve-se atentar para as possíveis homogeneizações feitas
em todo o território brasileiro com relação ao valor que determinadas práticas e
representações culturais significam para população do país. Pois, a diversidade cultural
precisa ser levada em conta no que se refere à idéia de regionalidade e, acima de tudo, aos
aspectos econômicos, sociais e culturais que marcam a identidade e o modo de vida de uma
determinada população de uma região ou território brasileiro dentro de um marco histórico.
Essa questão é detectada por Fressato quando menciona que “a cultura popular em que se
baseiam os intelectuais para formulação da identidade nacional é típica dos centros urbanos
do sudeste, notadamente de São Paulo e do Rio de Janeiro, não considerando as
especificidades das culturas regionais”. 49
Dentre tanta diversidade cultural existente no território nacional encontra-se uma que
está profundamente arraigada na cultura brasileira, seja na arte e literatura popular ou ainda no
imaginário do povo, no qual está presente a idéia de “sertão”. A etimologia da palavra ainda
não possui uma definição única e limitada. Segundo Janaína Amado o vocábulo deriva de
deserto (deserto, desertão, sertão), atrelado a essa hipótese e dando-lhe maior ênfase estão as
características naturais e humanas ligadas aos termos: aridez, despovoamento, travessia.
Segundo outros autores, o termo suscitaria do latim clássico serere, sertanum (traçado,
entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor, aquele que sai da fileira e da ordem) e
desertanum (lugar desconhecido para onde foi o desertor). 50
No Brasil, desde o período colonial, a palavra sertão recebeu a conotação de interior
do território brasileiro e por isso foi empregado para representar as mais diversas áreas
dependendo da localização do qual fala enunciante. Dessa forma, em virtude de sua
abrangência e imprecisa definição de delimitação territorial segundo a história brasileira pode,
então, ser denominado de sertão o interior de São Paulo e da Bahia, os estados de Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, além do sertão nordestino, o qual é conhecido e popularmente
49
FRESSATO, Soleni Biscouto. Cultura popular: reflexões sobre um conceito complexo. Oficina Cinema-
História. Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-história. S. d., p.5. 50
AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 4.
31
assim denominado devido a condições morfoclimáticas e características peculiares fortemente
presente na região. A designação de sertão pode ser caracterizada da seguinte forma:
Marcado pela baixa densidade populacional e, em alguns lugares, pela aridez da
vegetação e do clima, o sertão assinala a fronteira entre dois mundos, o atrasado e
o civilizado. Marcha imprecisa que recobre o interior do Brasil, melhor seria a
referência a “sertões”, no plural. Pode-se afirmar que relativo ao espaço geográfico
ou ao imaginário social, sertão é sempre plural. 51
No período de colonização, o sertão foi, de modo geral, visto com significados negativos
como espaços distantes povoado por indígenas, animais e mitos. Tornou-se também refúgio
para os expulsos da sociedade colonial, incluíam-se degredados, criminosos, fugitivos que
buscavam um local para reconstruir suas vidas. 52
O movimento bandeirante, em fins do
século XVII e inicio do XVIII, suscita dois fatores fundamentais no povoamento do sertão: a
exploração das minas e o desenvolvimento da pecuária bovina, cuja conseqüência, dentre
outras, foi a ocupação de vários territórios que se estendiam do estado de Minas Gerais ao
oeste da Bahia.
Além de todos esses estereótipos que foram ao longo do tempo inseridos na imagem
popular, o sertão também recebe características pejorativas como “uma terra sem lei, lugar da
violência, do indistinto e da desordem. O perfil do sertanejo surgia em comportamentos
condizentes com o meio social, distante as autoridades régias”. 53
Outro traço bastante
característico dessas regiões diz respeito ao ideário de pobreza, atestada nas casas simples e
humildes com poucos móveis. Parte dessa população era composta de trabalhadores volantes,
que buscavam moradia de favor junto a algum grande proprietário ou que optavam vagar
pelos campos desertos, fazendo roçados para sobrevivência com suas famílias. 54
É importante
salientar que muitas dessas características permanecem posteriormente ao período de
colonização e povoamento do interior do país e se estende pelos séculos seguintes.
A cultura dos sertões manifesta-se na religiosidade popular; na literatura de cordel, que
transmite lendas, contos e “causos”; nos rodeios e vaquejadas; na comida; na poesia; na
maneira de vestir; nas danças e na música, com semelhanças e peculiaridades por todo o país.
51
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música
popular. S.d., Disponível em: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html. Acessado em nov. de 2009. 52
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, Ed. Graal, 2ª ed.,
Rio de Janeiro, 1986, p. 85. 53
ALENCAR, Op.cit. p. 2. 54
ARAÚJO, Emanuel. Tão vasto, Tão Ermo, Tão Longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro:
Campus, 2000, p.145.
32
Todas essas representações da cultura popular sertaneja trazem, sobretudo, o seu modo de
vida expressando o cotidiano e o contexto socioeconômico ao qual está inserido.
No século XX, apesar do rápido avanço das frentes de expansão e do progresso de
modernização que atingiu o sertão brasileiro, o sentimento de inferioridade ainda mantinha-se
em relação ao litoral. Os atributos pejorativos foram assim carregados pela população dessas
regiões como uma identidade negativa e inferior no que diz respeito às outras regiões do
Brasil por serem considerados do interior, caipira e sertanejo. Como já foi mencionada
anteriormente essa visão preconceituosa com relação ao sertão brasileiro passa a ser utilizada
de maneira inversa quanto à significância que o termo é atribuído. No final do século XIX,
mais propriamente na década de 1870, a cultura sertaneja torna-se um elemento de relevância
no contexto identitário da nação em processo de construção.
A oposição á dicotomia litoral-sertão fez surgir uma produção intelectual que,
expressando a preocupação com a construção de uma nação unificada, procurava
superar aquela dicotomia. Sertão se tornou, então, categoria essência do
pensamento brasileiro. Na cultura do interior do país, esses autores encontravam as
fontes mais puras da racionalidade. 55
As manifestações culturais expressas na música saem das ruas para os salões junto com
uma maior valorização das danças rurais postas como componentes da música popular. Mário
de Andrade escreveu sobre esse período: “A música popular cresce e se define com uma
rapidez incrível, tornando-se violentamente a criação mais forte e a caracterização mais bela
da nossa raça”. 56
Esse fato pode ser constatado no período Vargas (1930-1945), no qual o
Estado brasileiro se fez presente, de forma enfática, na direção da incorporação do sertão
como forma de construção da nação e a ideologia nacionalista atingiram momentos de
euforia.
2.2 O sertão como lugar
Os conceitos, definições e abordagens do termo sertão ao longo da história brasileira foi
permeada por expressões pejorativas, ou então, serviu de elemento inerente em determinadas
conjunturas políticas para finalidades identitárias. Desse modo, os dados apresentados nos
55
ALENCAR, op.cit., p. 5. 56
ANDRADE apud ALENCAR, ibdem, p 4.
33
permitem evidenciar a existência de sertões diferenciados, com peculiaridades, dinâmicas e
relações sociais diferenciadas umas das outras. Nesse caso, o sertão nordestino, bem como
todas as demais regiões assim denominadas, não pode ser enquadrado nessa visão
generalizante de sertão, apesar da característica marcante ligado ao desenvolvimento da
atividade agropecuária, cada sertão brasileiro possui aspectos econômicos, geográficos,
sociais, culturais e políticos distintos e de interações diferenciados em escala nacional.
O vocábulo “sertão” também em alguns casos recebe uma conotação institucionalizada
referente ao espaço no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
(IBGE), esse termo pode ser designado oficialmente como uma das subáreas nordestinas,
árida e pobre, situada a oeste das duas outras, a saber: “agreste” e “zona da mata”. Nesse
sentido, comumente no imaginário popular relaciona-se o termo a região mais sofrida e seca
do Nordeste. Esse estereótipo, muitas vezes, é construído quando se considera essa parte do
território brasileiro como marginalizado do “progresso” ou desenvolvimento cultural e
econômico do país.
Por muito tempo na história brasileira relacionou-se o conceito de caipira ao universo
pertencente ao sertanejo. E assim, ganharam espaços no país personagens como Jeca Tatu, de
Monteiro Lobato, como uma figura que deixava o espaço rural que era personificação do
atraso, do caipirismo sertanejo, emperrando o desenvolvimento nacional. Como se o homem
do campo, do interior (sertão) devesse ser adaptado a conjuntura urbana e sulista do país.
Todavia, o sertanejo/nordestino apresenta características diferenciadas dessa concepção
difundida do caipira na sociedade brasileira. Isso não significa que especulações e estenótipos
sejam amenizados, O historiador Durval Muniz Alburquerque Jr. no seu livro “A Invenção do
Nordeste e outras artes” comenta sobre a imagem construída do nordestino e o necessário
deslocamento dos lugares fixos de opressor/oprimido e inventor/inventado, promovendo
assim um questionamento em torno da produção imagético-discursiva criada em torno dos
Nordeste. 57
Desse modo, nota-se a discrepância entre o “Brasil de cima” - Norte/Nordeste - e o
Brasil de baxo” - Sul/Sudeste. 58
Essa diferença é fundamentada na sobreposição de uma
região sobre outras, no qual baseia e propaga-se a imagem de um povo nordestino carregado
de estigmas como: tabaréu, miserável, agressivo, anti-social, intelectualmente inferior, dentre
57
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009, p.
153. 58
Patativa do Assaré apud VASCONCELOS, Claudia Pereira. A construção da imagem do nordestino/sertanejo
na construção da identidade nacional. II ENECULT, Faculdade de Comunicação /UFBA, Salvador, maio de
2006, p.7.
34
outras caracterizações. Enquanto, exalta e afirma um Sul como o espaço concentrador de
desenvolvimento, moderno, educado e altamente superior no que se refere a “cultura”
brasileira.
Alburquerque Jr. retrata também essa imagem construída historicamente do Norte, que
englobava o Nordeste, e do Sul visto como centro político, econômico e cultural do país. Esse
discurso-imagético é exposto no subcapítulo “Norte versus Sul”, na sua obra já mencionada,
no qual expõe o discurso construído e disseminado por décadas de um Norte atrasado,
marcado pelo barbarismo, pela miséria e pela seca que se tornava o ponto de discussão para
atrair investimentos. Além disso, o cangaço e o messianismo também eram concebidos
pejorativamente como elementos próprios da natureza da região. Por outro lado, o Sul seria o
fundamento da nação onde toda a alta cultura se formava e permanecia. De acordo com os
parâmetros naturalistas as questões do meio e da raça eram responsáveis pelo distanciamento
entre ambas as divisões regionais do país.
Esse mesmo autor aborda ainda a imagem que o sertão passa a possuir quando
relacionado ao Nordeste. “O sertão deixa de ser aquele espaço abstrato que se definia a partir
da „fronteira da civilização‟, como todo o espaço interior do país, para ser apropriado pelo
Nordeste. Só o Nordeste passa a ter o sertão e este passa a ser apropriado pelo nordeste”.
Então, o sertão era sinônimo de péssimas condições de vida e um local atribuído,
principalmente, a uma região desfavorecida e marcada pelos estereótipos excludentes e, assim
marginalizada do restante do país. Na verdade, “o espaço nordestino vai sendo dotado de uma
visibilidade e dizibilidade; desenhado por um agrupamento de imagens rurais ou urbanas, do
litoral ou do sertão, domadas em sua diversidade pelo trabalho integrativo de poetas e
escritores”. 59
Diante disso, o homem que retrataria o Nordeste, segundo o movimento regionalista,
seria o sertanejo como um ser forte, acima de tudo, revestido de coragem, um herói como
coloca Euclides da Cunha que para sobreviver precisa enfrentar rotineiramente as mais
adversas situações no ambiente em que vive. Segundo Alburqueque Jr.,
O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional voltado para a
preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... Se situa na
contramão do mundo moderno, rejeita as suas especificidades, sua vida delicada e
histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos:
um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril, capaz de
retirar a sua região da situação de passividade e subserviência em que se
encontrava. 60
59
ALBUQUERQUE Jr., Op. cit., p. 134. 60
Idem, ibdem, p. 162.
35
Outra diferenciação de sertões caracteriza-se pela vertente cultural, que apresenta
aspectos peculiares de perceber o sertão e o modo de vida sertanejo. Para este ponto
convergem fundamentalmente expressões como a literatura e a música. Segundo Janaína
Amado “„sertão‟ ocupa ainda lugar extremamente importante na literatura brasileira,
representado tema central na literatura popular, especialmente na oral e de cordel, além de
correntes e obras literárias cultas”. 61
A denominada “geração de 1930” composta essencialmente por Graciliano Ramos,
Raquel de Queirós, José de Lins Rego, Jorge Amado e muitos outros consagrados literatos
foram, por sua vez, responsáveis pela construção de conturbados e desafiadores sertões
nordestinos, de forte significado social. No entanto, muitos historiadores destacam João
Guimarães Rosa como um dos mais renomados autores ligado ao tema, o qual aponta um
sertão singular, marcado por conflitos e contradições humanas que aparecem de forma mais
intensa sobre a proteção da crueza do território geralmente áspero. E assim, “[...] com
Guimarães o sertão deixa de ser o indesejável para se converter no inevitável. [...], o sertão é o
espaço privilegiado do entendimento do ser humano”. 62
A importância de Guimarães Rosa é incontestável quanto à ressignificação do
imaginário do sertão em nível nacional. Todavia, deve-se acrescentar autores como Antonio
Gonçalves da Silva, Patativa do Assaré, o guardião de saberes e sensibilidade do povo
nordestino. Recebeu tal apelido por ter nascido no município de Assaré (Ceará) e por
desenvolver uma poesia comparada, pela espontaneidade, com o canto sonoro da patativa.
Aprendeu a tocar viola, desenvolveu o gosto pela arte cantando e versejando com famosos
cantadores do Nordeste.
Uma das obras mais conhecidas “Cante lá que eu canto cá” publicada em 1978, o poeta
fica conhecido nacionalmente e tem seu nome registrado na história da cultura popular
brasileira. Os fatos que sucedem em sua carreira são marcas do reconhecimento oriundo da
sua maneira ímpar de fazer poesia. Isso ocorre porque a figura de Patativa traz em si
características da oralidade. Os poetas formais escrevem seus versos, o recurso utilizado era
disposto pela memória e pela fala; o que dizia ou cantava era transcrito por outras pessoas
para o papel, porém seu texto permaneceu na história através de uma manifestação fiel aos
códigos da expressão oral. Característica esta bastante comum entre os nordestinos,
trabalhadores na roça, que mal sabem escrever seu próprio nome, mas carregam consigo a arte
61
AMADO, Op. cit., 1995, p.3. 62
PIMENTEL, Sidney Valadares. O chão é o limite: a festa de Peão de Boiadeiro e a domesticação do sertão.
Editora UFG. Goiás, 1997, p.19.
36
e as cantorias expressas em versos sobre um sertão carregado de estigmas e esperanças de
uma vida melhor.
Na verdade Patativa retratava na sua fala a vida simples no sertão, a coragem de falar das
coisas erradas e a poesia engajada a esses aspectos são objetos de estudos para muitas
pesquisas que envolvem o sertanejo. Outro autor que aborda essa temática é Graciliano
Ramos, no qual inscreve o sertão nordestino no imaginário nacional. Em “Vidas seca”,
emerge um sertão árido, difícil, onde homens e mulheres lutam contra a seca e contra a
exploração social. A opressão da seca ao lado da opressão apresentada pelos fazendeiros e
pelo Estado. Já na obra Os Sertões de Euclides da cunha o nordestino é representa da seguinte
maneira na visão de Cláudia Vasconcelos:
É neste cenário de organização de imagem opostas do nordeste e nordestino que a
celebre obra de Euclides da Cunha Os Sertões, publicada em 1902, pode servir
como uma das fundamentações para ambos os argumentos, completamente dispares
entre si. O seu discurso ambíguo e contrastante oferece substrato suficiente para
produzir tanto uma estereotipia negativa em que se inferioriza o sertão/nordeste,
quanto uma estereotipia positiva em que se enaltece esta região e o seu povo. 63
Dessa forma, os discursos sobre o sertanejo/nordestino nem sempre é posto na literatura
brasileira como genuinamente positivo e enaltecedor. Essas características, sejam elas
exaltadoras ou preconceituosas, estão presentes também em outras artes como a pintura, o
teatro, o cinema e, em especial, a música e em diversos meios de comunicação e programas
humorísticos. A difusão desse ideário posto, muitas vezes, como inerente a cultura brasileira
encontra sua significância quando Guimarães Rosa (1965) comenta: “o sertão está em toda
parte; o sertão está dentro da gente”. Contudo, isso não significa que a cultura nordestina seja
aceita e respeitada, de modo geral, como identidade nacional e igualada ao centro sul do país,
apesar das diversas tentativas, outrora ou mais recentemente, para sua inserção como parte
integrante da unidade brasileira ainda precisa romper obstáculos e ser reconhecida e
valorizada em âmbito nacional.
O historiador Alburquerque Jr. também problematiza esse nordestino tão difundido e
esboçado no “romance de trinta” que se institui com “temas regionais”. Ele discute justamente
essa imagem disseminada de um Nordeste vitimizado pelas condições climáticas, onde a seca
passa a ser o fator causador de um meio homogêneo que, portanto, teria também originado
uma sociedade homogênea. Tudo isso, na concepção do referido historiador, gerou uma série
63
VASCONCELOS, Op. cit., 2006, p.5.
37
de imagens em torno da seca e, produziram por sua vez uma visibilidade e dizibilidade que as
a produção cultural posterior não conseguiu fugir e perpetuarão ao longo do tempo.
Para Alburquerque Jr. não se trata de buscar uma identidade na cultural nacional ou
regional, mas afirmar as diferenças culturais. Dessa forma, as diversas expressões artísticas
que se voltaram constantemente para a reprodução dessas imagens pejorativas,
preconceituosas e homogeneizantes a cerca do Nordeste, na verdade, buscava no passado uma
reposta para as necessidades do período e conseqüentemente uma invenção de tradições
explicitadas nessas obras artísticas, como lembranças de uma região, que não mais expressa a
pluralidade, mas a singularidade de cada indivíduo. Assim, os estereótipos e discursos
produzidos também na literatura regionalista pautaram-se nas busca incessante pela
manutenção de uma sociedade, muitas vezes, patriarcal, escravista e vitimizada pela seca.
Sendo assim, ele afirma que:
A busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva à necessidade
de inventar uma tradição. Inventando tradições tenta-se estabelecer um equilíbrio
entre a nova ordem e a anterior; busca-se conciliar a nova territorialidade com
antigos territórios sociais e existenciais. A manutenção de tradições é, na verdade,
sua invenção para novos fins, ou seja, a garantia da perpetuação de privilégios e
lugares sociais ameaçados. 64
2.3 As canções na vida do sertanejo
Esse processo de “ressignificação” ocorre também no campo da produção musical, com
o surgimento e a afirmação de um novo gênero ligado diretamente ás tradições culturais e ao
cotidiano do sertão brasileiro. Por volta de 1930 surgem no cenário nacional a música caipira
representando as tradições, o modo de vida, o trabalho e o cotidiano do caipira das regiões sul,
sudeste e centro-oeste. Sendo assim, esse novo gênero musical é utilizado também para
construir uma imagem do caipira dissociado da imagem do “mau sertão” brutalizado, e como
uma tentativa de conduzir a um imaginário da sociedade caipira, rural e agrícola. 65
No que tange as manifestações musicais populares no sertão nordestino, estas por sua
vez, apresentam peculiaridades quanto a seu modo de criação e estilo nas cantorias quando
comparadas com o gênero caipira. Até mesmo devido às condições geográficas, culturais e
64
ALBUQUERQUE JR, op. cit. 2009, p. 90. 65
VIEIRA, Natã Silva. Cultura de vaqueiros: o sertão e a música dos vaqueiros nordestinos. III ENECULT,
Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador, maio de 2007, p. 6.
38
humanas que permitem evidenciar uma considerável diferenciação entre os sertões brasileiros.
Porém, um aspecto comum nesses ambientes rurais brasileiros quanto à produção musical
popular diz respeito ao ato de ambos expressarem as condições de vida e costumes de uma
determinada região, território ou localidade do Brasil nessas canções. Então, a respeito das
festas populares, pode ser evidenciado no país desde e período colonial, no qual Mary Del
Priore destaca:
Procissões, festas ou quaisquer outros momentos de lazer na Colônia acabaram por
revelar o quanto era duro o cativeiro para os escravos e difícil o cotidiano para os
colonos pobres. A alegria que irrompia de maneira impetuosa e descontrolada
nesses momentos revelava a necessidade que esses grupos sentiam de encontrar
formas de expressar sua cultura e o estado de opressão em que viviam. 66
As canções no sertão nordestino como em qualquer outra região do Brasil está
intimamente ligado com o estilo de vida de cada população e os costumes que são por estas
passadas para as gerações vindouras. E assim, Thompson ao estudar a sociedade inglesa do
século XVIII constata alguns costumes e práticas culturais presentes na vida dos plebeus
desse período, e comenta que “muitos desses „pobres‟ se negava ao acesso à educação, ao que
mais eles podiam recorrer senão á transmissão oral, com sua pesada carga de costumes” 67
.
Esse fato também pode ser evidenciado entre o povo sertanejo/nordestino, no qual a maior
parte dessas tradições populares é transmitida pela oralidade, no entanto, quanto ao acesso a
educação lhe é negado ou impossibilitado em razão do intenso ritmo de trabalho ou pelo
distanciamento das escolas no local em que vivem.
Nessa região brasileira a música ganha vida e expressão artística, representando os
costumes do povo que a compõe. Dentre tantos ritmos e danças peculiares ao povo do
Nordeste, no sertão dessa região encontra-se uma das festas mais típicas do sertanejo, a
vaquejada. Esse tipo de festa popular mescla a vida do campo e a urbana, além do mais, teve
forte influência do estilo country disseminado pelo interior do país. Na verdade, essas músicas
são representativas de um “novo sertão”, de “um novo sertanejo”, empreendedor, moderno, ao
mesmo tempo rural e urbano. Aquele que faz na década de 80 o caminho de volta da cidade
para o sertão, trazendo as influências americanas conquistadas nas cidades, para as quais os
seus pais migraram nas décadas anteriores. 68
No entanto, apesar dessas influências
66
DEL PRIORE, Mary. Religião e Religiosidade no Brasil - colonial. São Paulo: Ática, 1995. 67
THOMPSON, E. P. Op. cit,, 1998, p.15. 68
VIEIRA, Op. cit, 2007, p. 6-7.
39
estrangeira e urbana a identidade e os costumes permanecem arraigados nesse sertanejo
“modernizado”.
O povoamento do interior do Nordeste, o Nordeste semi-árido ou ainda o sertão,
caracteriza-se pela sua forma desordenada, estabelecendo grandes propriedades de
terra com pouca densidade populacional, com a criação de gado como principal
base econômica. As fazendas de gado empregavam um número reduzido de
trabalhadores, dada a peculiaridade desta atividade. As aglomerações urbanas eram
poucas povoadas, localizando-se próximas de rios e outras fontes de água, e
também das paradas durante o transporte do gado e o comércio de primeiras
necessidades. 69
Desse modo, percebe-se que a maneira como o interior do Nordeste foi povoado
influenciou decisivamente no universo cultural desse sertanejo. A atividade econômica
desenvolvida nesse espaço propiciou o surgimento de um personagem comumente encontrado
nas caatingas e cerrado do agreste ou sertão nordestino, o vaqueiro. A sua figura vive no
imaginário popular como um ser forte e corajoso com sua vestimenta típica de couro, uma
forma de proteção, montado num cavalo. Esse personagem suscita no momento em que os
fazendeiros passam a habitar cidades do interior próximas de suas fazendas, precisando então
de uma pessoa para cuidar do gado.
Na época da seca temos o período mais duro e difícil tanto para o gado como para o
vaqueiro, o qual se utiliza da vegetação mais abundante na região nessa época, os cactáceas
(cactos, macambiras, palmas e xique-xique), que devem ser preparados para poder ser
consumidos pela criação. Fato este bastante característico da região sisaleira em que o
trabalhador rural também lança mão dessa vegetação típica da região para alimentar a
pequena criação e, muitas vezes para sua própria sobrevivência. Todavia, o diferencial está no
manejo com o sisal, o qual possibilita uma alternativa de sobrevivência.
No nordeste baiano é comum a Festa de Vaqueiros, sendo a maior parte dos sisaleiros
participantes dessa manifestação popular. Em alguns casos, a mesma pessoa que exerce a
função de sisaleiro também trabalha como vaqueiro nas terras do próprio dono do “motô”,
ambas as funções, muitas vezes, são complementares e interligadas para aumentar a renda da
família.
Uma característica desta festa é um canto denominado de aboio muito usado também
pelo trabalhador rural na roça. O aboio é um canto de trabalho utilizado pelo vaqueiro para
tocar a boiada durante as migrações, durante as apartações, etc., além de também ser um
elemento voltado para a interação entre os próprios vaqueiros, quando estes abóiam juntos em
69
PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, p.153.
40
consonância. 70
Há também o aboio de roça muito ligado ao trabalho nas plantações no semi-
árido, entoada durante a bata de feijão e do milho.
Portanto, as músicas dos cantadores fornecem elementos que levam a compreensão do
cotidiano vivido pelos nordestinos, e em plano mais geral, as próprias relações sociais
travadas no sertão; e ainda descobrir características muito singulares deste sertão e de seus
sujeitos. Assim, essas melodias expressam a vida e os costumes de um Nordeste de grande
exuberância cultural.
2.4 Cultura e Identidade regional no nordeste baiano
Todos os homens têm uma identidade que recebem dos diversos grupos em que vivem. O
Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada
vez mais particular. Organizada em torno de situações que propiciam diversas manifestações
da arte, a região inspira um povo que produz a partir das dificuldades enfrentadas no ambiente
em que vive.
Dentro dessa imensa Região Nordeste, encontram-se várias particularidades e
identidades culturais que compõe esse espaço marcado fortemente pelo multiculturalismo.
Dentre estes está a baianidade, sendo também utilizada em muitos casos como discurso de
identidade comum a toda a população baiana, sem levar em conta as diversidades dentro de
um mesmo estado. Claúdia Vasconcelos em seus estudos sobre o sertão, em particular o da
Bahia, traz essa problemática e abre uma discussão de que “apesar de pensar criticamente
sobre esta imagem da Bahia, estes estudos tem se centrado no recôncavo, tendo como
principal referência a cidade de Salvador, problema que se reproduz em importantes estudos
históricos”. 71
Diante disso, Vasconcelos alerta para o reducionismo que é construído em torno de uma
imagem de identidade oficial da Bahia. Pois, na sua concepção, mesmo ocorrendo estudos
culturais pautados na alteridade e no respeito às diferenças dentro das academias, estas não
são suficientes para problematizar sobre a questão da diversidade baiana. Esse fato torna-se
evidente quando se opõe o litoral com o interior do estado, principalmente o semi-árido
baiano, sendo este último estigmatizado e considerado irrelevante para a construção da
baianidade, até mesmo devido à discrepância entre ambas as regiões no que refere aos seus
estilos de vida.
70
CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1984, p. 245. 71
VASCONCELOS, Op. cit. 2006, p.11.
41
Essa visão é reforçada ao se produzir uma imagem hegemônica e oficial do estado,
em que as belezas e os elementos ligados a modernidade se concentram em um só
espaço, a capital e seu recôncavo, em contraponto a toda uma região culturalmente
muito rica que passa a ser um desconhecido, ou mesmo um não lugar, dentro de um
mesmo território (estado). 72
No cenário de paisagens físicas e humanas bastante heterogêneas que caracterizam o
Estado da Bahia o Território do Sisal emerge com peculiaridades marcadamente distintas das
demais regiões que servem de berço para o multifacetado povo baiano. Os traços da grande
nação nordestina encontram-se presente nessa região seja por suas características
fisiográficas, encravada que está no meio do sertão semi-árido, seja pela história e pelos
costumes que forjam a identidade de seus habitantes, que se construiu a identidade do povo
sisaleiro.
Nesse sentido, percebe-se o território construído como um espaço de relações sociais,
onde há o sentimento de pertencimento dos atores locais à identidade construída, e associada
ao espaço de ação coletiva e de apropriação, onde são criados laços de solidariedade entre
seus atores. 73
Dessa forma, a identidade e a cultura do povo sisaleiro, no imaginário social,
conferiu-lhe características próprias, como o desenvolvimento social, político e econômico
pautado na agaveicultura, que cria a imagem de distinção entre estes e os habitantes de outras
regiões da Bahia, sem que isto lhe tire ou lhe diminua a legitima condição de baiano – até
porque a singularidade dentro da pluralidade é a característica principal da “baianidade”.
Os trabalhos desenvolvidos e as tradições e costumes preservadas pelos trabalhadores do
sisal servem como espelho para a alma dessa gente, que cultiva um forte sentimento de
pertencimento ao lugar onde nasceu. Esta idéia de pertencimento bastante difundida e
apropriada por classes sociais, políticos e entidades faz com que seja proferido um discurso
em que o sertanejo, visto como um ser forte possa resistir ás adversidades naturais e não
abandonar o seu lugar. Desse modo, a sociedade sisaleira já estabeleceu a idéia de que a fibra
do sertanejo é tão forte quanto à fibra do sisal.
No entanto, as condições de vida e de dominação do sertanejo/sisaleiro no nordeste da
Bahia, sempre interferem no campo cultural e identitário desse povo. Vilbégina Santos coloca
que uma “região que terá sua visibilidade e „ divisibilidade‟ moldada por interesses dos
72
Idem, ibdem, p.12. 73
MENDES, Murilo. A identidade cultural do território como base de estratégias de desenvolvimento – uma
visão do estado da arte. Contribuição para o Projeto de Desenvolvimento Territorial Rural a partir de Serviços e
produtos com a identidade. RIMISP, março de 2006, p.5.
42
grupos dominantes, que através do tempo, com estilos diferentes, irão repetir o estereótipo do
povo sofrido, resignado e sempre castigado pelas secas, „mas antes de tudo um forte‟”. 74
Sendo assim, reforçando essa idéia Moreira afirma que “a identidade sertaneja que se
constitui histórica e hegemonicamente é pautada na assimilação da lógica dominante,
trazendo no silêncio e na resignação suas formas mais perceptíveis”. 75
Vilbégina Santos ainda comenta sobre a idéia de vitimização da seca atribuída aos
sertanejos habitantes do território do sisal que carregam consigo interesses que perpassam a
construção de uma comunidade imaginada que une os sertanejos na dor, no sofrimento, numa
paisagem de aridez não só geograficamente, mas especialmente social. Esse discurso
difundido pela mídia, igreja e escritores da região acaba sendo apropriado pelos sisaleiros que
introduzem na comunidade em que vive essa idéia contraditória de serem ao mesmo tempo
vítimas e heróis em um ambiente marcado por uma busca incessante de identidade territorial e
coletiva que, muitas vezes, é forjada com intuito de trazer conquistas políticas e econômicas
para a região.
A identidade conformada pelos movimentos sociais é essencializada nas raízes da
história, fazendo um apelo à realidade de um passado possivelmente reprimido e
obscurecido, no qual a identidade que vem á tona no presente è revelada como um
produto da história. Historicizam também a experiência, enfatizando as diferenças
entre grupos marginalizados como uma alternativa à universalidade da opressão.
Consideramos, portanto, a política de identidade a partir do movimento social como
uma estratégia de legitimação do território do sisal. 76
A identidade dos sisaleiros, construída e disseminada por gerações, se faz presente
também nas manifestações culturais realizadas pelos os mesmos, no qual expressa seus
costumes e um contexto histórico específico em que se constitui como identidade e expressão
de uma cultura. Apesar das constantes influências culturais recebidas pelos trabalhadores do
sisal no seu cotidiano, estes por sua vez, se esforçam para manter suas tradições por meio de
várias representações artísticas que, muitas vezes, vão de encontro aos costumes da classe
dominante.
Apesar da hierarquia presente na cadeia de produção do sisal, os sisaleiros que se
encontram na base da mesma buscam incessantemente legitimar suas expressões culturais por
meio da música e da dança, dentre outras práticas cotidianas. Considerando as devidas
74
SANTOS, Op. cit., maio de 2009, p.6. 75
MOREIRA, Gislene. Identidade de fibra e resistência: os caminhos da comunicação no desenvolvimento do
território do sisal. Programa em Cultura e Sociedade da UFBA, 2007, p. 50. 76
SANTOS, Op. Cit. 2009, p.6.
43
proporções do tempo e espaço histórico. Thompson, ao analisar a sociedade inglesa do século
XVIII comenta sobre a relação cultural entre classe dominante e os plebeus e evidência: “que
quer que tenha sido essa hegemonia, ela não envolvia a vida dos pobres, nem os impedia de
defender seus próprios modos de trabalho e lazer, de formar seus próprios rituais, suas
próprias satisfações e visão de mundo” 77
.
Diante disso, percebe-se que a identidade cultural dos sisaleiros perpassa, muitas vezes,
conjunturas econômicas e políticas para assim afirmar o modo de vida de um determinado
grupo social que por muito tempo, na região sisaleira, ficou relegada e distanciada das
práticas sociais consideradas dominantes. Todavia, dentro desse Território do sisal há
peculiaridades locais quanto às relações de trabalho e de manifestações culturais presentes em
cada espaço distinto.
O saber-fazer local seria uma própria forma de expressão cultural local, que define
a identidade, através da qual se estabelecem as relações de indivíduos e grupos. A
cultura local se refere às relações sociais existentes em espaços delimitados e
pequenos, onde se estabelecem formas específicas de representação, com códigos
comuns. 78
Dessa forma, o cenário sóciopolítico e econômico da maioria dos municípios que
compõe o Território do sisal apresenta muitas características comuns, porém, é preciso levar
em conta as especificidades quanto às relações de trabalho e as manifestações culturais
existentes em cada localidade para assim se entender o contexto histórico e o universo cultural
dessas comunidades sisaleira.
77
THOMPSON, E. P. Op. cit., 1998, p.78. 78
MENDES, Op. cit. 2006, p.5.
44
CAPÍTULO III – SISAL E SOCIEDADE RURAL: MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS NO TERRITÓRIO DO SISAL
Esta cultura é nossa
Temos que valorizar
Foram nossos pais que deixou
Não pode acabar
Foi trabalhando na roça
Que aprendemos cantar.
Elza Leonice79
O presente capítulo aborda a importância e o significado que as canções populares
possuem na vida dos sisaleiros no município de São Domingos. Expõe também o cotidiano
dos trabalhadores rurais nos campos de sisal, mediante o estudo de algumas manifestações
culturais existentes nas comunidades do referido município. E assim, mostra as
transformações e permanências dessas expressões artísticas no interior dessa sociedade
encravada no semi-árido baiano.
1.6 A música popular no cotidiano do sisaleiro
A região sisaleira é fortemente marcada por diversas manifestações culturais que
representam o povo que habita nesse território. Uma das tantas maneiras de expressão artística
dessas comunidades, principalmente no espaço rural, é a música produzida no dia-dia da vida
no campo, quando fazem do labor do cotidiano uma expressão rica em poesia e musicalidade.
Mais do que entretenimento os folguedos e cantos populares são momentos onde as
comunidades musical-culturais se reúnem e celebram entre si costumes e sua própria
identidade.
A utilização da música como expressão cultural das sociedades tem sido ao longo do
tempo uma referência na produção estética da humanidade. Assim a música, é comumente
usada pelas sociedades não-letradas para manifestarem a sua sensibilidade quanto à realidade
captada no cotidiano e nos costumes perpetuados por gerações. Esse fato sempre esteve
presente nas diversas organizações socioculturais humana, basta citar os agrupamentos
indígenas que se utilizam da música acoplada á dança para celebrarem os seus ritos, mitos e
desejos. Como afirma Ernest Fischer referindo-se a função social da música primitiva:
79
Trabalhadora rural na agaveicultura e componente do grupo Cantiga de Roda. Estes versos estão estampados
na camisa que leva o nome do grupo.
45
Foi propósito da música, em seu inicio, o evocar emoções coletivas, o atuar como
estímulo para o trabalho, para o gozo sexual e para guerra. A música era um meio
de atordoar ou excitar os sentidos, um meio de aprender por encantamento ou
impelir á ação. Servia para pôr os homens em um estado diferente e não para
refletir os fenômenos do mundo exterior. 80
A música surge no Território do Sisal em meio a um ambiente adverso marcado
fortemente pela seca, pobreza e miséria, mas o sertanejo encontra inspiração na força criativa
dos versos e melodias que renovam a esperança de dias melhores. “Assim pensar as
linguagens musicais da cultura regional torna-se oportuno na medida em que representam
uma das mais importantes facetas da nossa canção popular”. 81
Dentre várias linguagens musicais presente no universo do sisaleiro, personagem típico
dessa região, apresenta-se o “aboio de roça” que surgem da espontaneidade e, ao mesmo
tempo, com caráter poético, possibilitando condições para o desenvolvimento das melodias
que nas vozes dissonantes aparecerão os versos dando forma a canção popular. Esse estilo de
expressão musical é bastante utilizado no trato com o gado conduzindo-o a um destino
especifico, como também no trabalho da roça com a finalidade de excitar a produção e obter
animação para a realização do trabalho. Todavia, não somente o aboio é cantado no ambiente
de trabalho, como também diversas outras cantorias herdadas de seus antepassados ou
improvisadas no momento. Tais como:
Domingo é dia de pescaria
Que levava eu
De camisa e saburá
Maré tá cheia
Pescar na areia
Que na areia
Tem mais peixe
Que no mar
Todo bom pescador
É um só
Todo bom pescador
Pesca em pé
Não precisa pescar de anzol
Estou com os olhos feitos jacaré, é.
80
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 212. 81
SANTOS, Ricardo Ferreira dos. A representação sócio-cultural do cotidiano rural na produção artística do
grupo da Quixabeira. In: III ENECULT, Faculdade de Comunicação /UFBA, Salvador, maio de 2007, p.3.
46
Esses versos retratam o dia que era destinado ao lazer, o domingo, em que o termo
pescaria mencionada nessa canção pode obter duplo sentido. Pois, além do sentido
comumente utilizado de pescar o peixe, também fica subtendido a idéia de pescar ou
conquistar uma mulher, sendo que, o cantador refere-se a uma pesca fora da areia, que não
precisa necessariamente de anzol. Então, essas simples palavras colocadas em forma de
canção, além de representar uma cena real da vida do trabalhador, também proporcionavam a
descontração no ambiente de trabalho, que assim era seguido por mais versos de outras
pessoas até o final da jornada de trabalho. É importante salientar que em todo o percurso até
chegar ao destino do trabalho e no retorno para casa, cantava-se o tempo todo.
E assim, na definição de cultura popular de Alfredo Bosi, há uma clarividência da relação
entre o universo material e o universo espiritual ou simbólico do povo sertanejo:
Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação homem-
mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de
parentesco, a divisão das tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as crenças,
os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, os
modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o
modo de sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as
promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de
plantar feijão, milho e mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e chorar,
de agredir e de consolar (...). 82
Esses elementos estão presentes no contexto dos trabalhadores rurais do sisal que
formam os diversos grupos de reisados e cantigas de roda no município de São Domingos. A
vida simples e inventiva conjuga-se com o imaginário do povo sertanejo. As canções surgem
da própria experiência de vida, e falam de suas relações com o meio, onde o físico e humano
estão imbricados, proporcionando uma avalanche de sons, ritmos, versos, danças que
envolvem todas as gerações num universo musical que alegra e reanima o sertanejo a
continuar sua caminhada apesar das adversidades existentes na região sisaleira. Desse modo,
com muita alegria e falando sempre em paixões e namorados ou namoradas, os versos surgem
de forma improvisada ou memorizados, ao presenciar as cantorias dos mais velhos:
Borboleta tá no tanque
Com pena de voar
Quem tem amor bonito
Tem pena de deixar.
82
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. Das Letras, 1992, p.324.
47
O sol girooô (2x)
Tomaram meu amor
Eu vou na porta buscar
Isso é um desaforo
Eu amar e outra tomar.
A maioria das canções falava de amor e eram cantadas pelas mulheres no trabalho na
roça. Posteriormente, com o apogeu do sisal, essas cantorias foram transferidas para os
campos de agave e, principalmente no setor em que se estendia a fibra da planta, pois era uma
função comumente ocupada por mulheres. Os homens também participavam das cantigas de
roda no momento do trabalho, mas o “aboi de roça” tinha se tornado o estilo musical mais
praticado e difundido entre os trabalhadores rurais. Esse estilo de música exige uma voz
extremamente afinada e alta, sendo as melodias entoadas para chamar a boiada da seguinte
forma:
Esse boi saiu do meu currá
Que saiu do meu currá
Esse boi careta
Esse boi capeta
Esse boi de treta
Pulou a cerca
E a cerca balançar
Saí pelo caminho
E encontrei o vizinho
Eu consegui, meu boi laçar
Meu boi lacei
Da corda puxei
Escorreguei, e amarrei
Na purteira do currá
E esse boi desata menino
Na hora que ele chegou.
Oh, ah... Ô boi!
A maioria das canções era feita naquele momento específico de cantoria. A improvisação
era uma característica marcante dessas manifestações, pois mesmo transmitidas por gerações
estas recebiam sentidos diferenciados em cada contexto e espaço vivenciado, além das
transformações nas letras e melodias que eram reelaborados pelas novas gerações de
aboiadores e sambadores do município.
As letras das canções retratavam bastante a criação de gado, visto que, por muito tempo
esta permaneceu como a principal atividade econômica da região sisaleira. Porém, em virtude
48
dos constantes períodos de seca e a introdução da agaveicultura na região, a pecuária passa a
ocupar uma posição secundária no panorama econômico regional, e por sua vez local. Apesar
da diminuição gradativa da criação de gado e o aumento do criatório de cabras, devido à
resistência desse animal à seca, o apego e apreço desses trabalhadores rurais pelo gado é
evidente nas músicas, mesmo no manejo com o sisal. Isso se tornava comum, pois muitos
sisaleiros possuíam no seu pedaço de terra alguns animais para sustento da família, ou então,
os que não possuíam almejavam muito poder adquirir algumas “cabeças” de gado. Na
verdade, possuir gado e terras era sinônimo de riqueza, conferindo-lhe poder político e
econômico, além do prestígio na comunidade. Segue assim, alguns versos de uma canção que
remetem a utilidade e importância desses animais para a família dos trabalhadores rurais:
Eu vou prender meu gado
No curral do alazão (2x)
Se minha vaca mineira
É da cor de leiteira
Tire o leite pra manteiga
Pra café e requeijão.
A música popular está tão arraigada nos costumes dos sisaleiros que se torna impossível
dissociá-la das relações sociais de produção no Território do sisal. No município de São
Domingos há em quase todas as comunidades rurais um grupo de reisado, de cantiga de roda
ou samba ligados a uma associação ou como organização independente. E como relata
Marisete de oliveira83
“a gente trabalhava cantando o dia todinho. Cantando pra distrair
porque quanto mais você relaxava e não sentia o cansaço e nem a hora passar, porque você
cantando e trabalhando ia embora. Você tinha agilidade no trabalho”.
As temáticas das canções originadas e transmitidas no local de trabalho raramente
abordavam diretamente o cotidiano de trabalho. Os sisaleiros e sisaleiras cantavam sobre
amores, paixões, aboiavam e criavam versos que servissem para distração, ou seja, toda essa
cantoria era realizada, na maioria das vezes, como uma “fuga” da realidade na qual estavam
inseridos. Esse fato não se pode generalizar, mas o cotidiano fatigante e pesado aparece em
poucos versos de músicas presentes nessas manifestações, o que não significa que as canções
sejam destoantes do contexto em que são cantadas. Pelo contrário, como “fuga” ou retrato da
realidade esses versos acabavam refletindo os costumes e o cotidiano desses trabalhadores e
83
Organizadora de eventos culturais por meio do Projeto Ponto de Cultura da Bahia.
49
trabalhadoras do sisal. Um dos raros versos que se refere ao trabalho com o sisal mostra as
conseqüências do manejo com a referida planta e os seus danos à saúde, já que o contato
constante com o agave causava uma série de doenças, tais como: mal estar, alergia, problemas
respiratórios, coceiras na pele, dentre outros malefícios que poderiam ser adquiridos, em todo
o processo de desfibramento, desde a extração até o contato com a fibra seca do sisal.
Papagaio louro
Sabiá da praia
Valdir cabelo loiro
Ele é cortador de paiá
Eu perguntei a ele
Tá sentindo alguma dor
Está amarelecendo
É o resíduo do motô
Algumas canções conseguem reunir várias temáticas, tais como amor e trabalho, na
mesma estrofe. Isso em virtude de muitas vezes estes elementos estarem imbricados no
momento da criação ou cantoria. Os versos seguintes enfocam justamente os seis dias de
constante e exaustivo trabalho realizado pelo lavrador, que objetivava com seu suor agradar e
sustentar a mulher amada, mas esta o rejeitava e dispensava o seu amor.
Olé, olé, olé, olá.
A semana tem seis dias
Vou morrer de trabalhar
Morrer de trabalhar
Pra sustentar essa mulher
O pago que ela me dar
É dizer que não me quer.
Essa característica musical marcante na vida do trabalhador do sisal lhe confere uma
identidade não somente no ambiente e nas relações de trabalho, como também pela
importância que as canções populares contribuem para o lazer desses indivíduos. Os
encontros e as cantorias iniciam-se no ambiente de trabalho e perpassa as fronteiras do
município onde esses grupos realizam apresentações. Dessa forma, o espaço de produção está
intimamente relacionado com as manifestações culturais desenvolvidas no referido município.
Analisando o processo de colheita dos trabalhadores camponeses da Inglaterra do século
XVIII, Thompson chama atenção para o reducionismo nos enfoques históricos, em que a
50
predominância se restringe ao aspecto econômico, perdendo de vista a dimensão artístico-
cultural própria desses lugares sociais produtivos:
E também é verdade que o bom moral dos trabalhadores era mantido graças aos
bons ganhos que conseguiam nas colheitas. Mas seria um erro ver a situação das
colheitas apenas em termos de respostas a estímulos puramente econômicos. É
também um momento em que os velhos ritmos coletivos se entrelaçam nos novos:
em que o peso do folclore e dos costumes da gente do campo são chamados a
participar na satisfação psicológica das pessoas e nas funções rituais da colheita. 84
Nesse sentido, as manifestações culturais no semi-árido baiano, especialmente em São
Domingos, ocorriam em diversas datas do ano. As cantorias eram feitas para celebrarem
aniversários, após as rezas, em batizados e em encontros casuais entre amigos que pretendiam
se divertir naquela noite. Além do entretenimento que propiciava aos trabalhadores rurais,
esses encontros exerciam também a função de transmitir a cultura popular local ou mesmo
regional, onde os mais novos aproveitavam para aprender e incorporar as linguagens musicais
ao seu contexto e universo cultural.
Na perspectiva de Renato Ortiz a cultura popular:
(...) é plural, e seria talvez mais adequado falarmos em culturas populares. No
entanto se tomarmos como ponto de partida cada evento folclórico em particular
(um reisado, uma congada), a comparação com os cultos afro-brasileiros é legítima.
A memória de um fato folclórico existe enquanto tradição, e se encarna no grupo
social que a suporta. É através das sucessivas apresentações teatrais que ela é
realimentada. Isto significa que os grupos folclóricos encenam uma peça de enredo
único que constitui sua memória coletiva. 85
A oralidade é o principal instrumento de transmissão das manifestações culturais nessa
localidade, e permanecendo guardadas na memória coletiva dessas comunidades, em especial
pela memória dos velhos da região. Essa memória coletiva é aqui compreendida como “um
conjunto de representações sociais que têm a ver com o passado, produzidas, guardadas e
transmitidas por um grupo pela interação com seus membros”. 86
Dessa forma, esse termo
emerge enquanto espaço de registro continuamente reconstruído, no âmbito do qual os
sujeitos reconhecem e valorizam determinadas experiências. A memória também é seletiva,
84
THOMPSON, E. P. O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.). Trabalho, Educação e pratica social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas,
1991, p.50-51. 85
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.134. 86
JEDLOWSKI apud FREIXO, Alessandra Alexandre; TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. As “fibras” da História:
memória de velhos na região sisaleira da Bahia. S.d., p. 1.
51
por isso o indivíduo ou grupo que está sob enfoque precisa ser inserido no contexto em que
viveu e/ou vive para se entender o seu universo cultural. Considere-se ainda, nesta perspectiva
que:
A memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma
representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do individuo
somente, mas de um individuo inserido num contexto familiar, social, nacional.
Portanto, toda memória é, por definição “coletiva”. 87
É importante salientar, que as expressões musicais disseminadas por décadas pelos
trabalhadores rurais aos seus descendentes remetem-se, em grande parte, ao período das casas
de farinha. Anterior ao apogeu da sisalicultura no município de São Domingos, a agricultura
familiar baseava-se na plantação de mandioca88
em grande quantidade e, na produção da
farinha de tapioca, beiju e outros produtos alimentícios importantes na alimentação de toda a
família do agricultor. Sendo assim, todo o processo de plantação da mandioca até a obtenção
do produto final era executado por todos os membros da família, desde os mais velhos até as
crianças participavam dessa grande festa nos ambientes onde se produzia a farinha.
A plantação da mandioca foi predominante até final da década de 60. Após esse período
o cultivo do produto diminui em virtude da escassez de chuvas na região, e o sisal passa a
predomina devido a sua resistência aos extensos períodos de seca no município. Como relata a
senhora Isaura Alvino Araújo, ex-trabalhadora rural, “no tempo da mandioca a gente vivia
porque a gente tinha criação de cabra, muita cabra, só comia coisa da roça, da fazenda
mesmo, ninguém comprava carne. Vivia mais matando os criatórios da gente mesmo”.
Os trabalhadores rurais são-dominguenses relatam que, naquele período, as famílias
viviam basicamente da agricultura e do criatório. A colheita da mandioca era realizada
anualmente onde reuniam familiares, amigos e vizinhos para transformar a raiz em farinha. O
trabalho era dividido e feito em várias etapas, iniciava-se pela colheita da planta realizada
pelos homens que levavam a mandioca em cargas no jegue para um galpão conhecido como
casa de farinha. A próxima etapa era executada em grande parte pelas mulheres, cuja função
era ralar a mandioca e extrair a goma e, logo após, os homens espremiam a massa numa
prensa que era depois peneirada pelas mulheres e torrada em uma fornalha dando origem a
tapioca.
87
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes
(coordenadoras). Usos & abusos da história oral. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p.94. 88
Mandioca (Aipim ou Macaxeira) é o nome pelo qual é conhecida espécie comestível e mais largamente
difundida do gênero Manihot, composto por diversas variedades de raízes comestíveis.
52
Para obter o produto final, a farinha, os trabalhadores rurais passavam um dia e uma
noite na produção adentrando pelo dia seguinte. Durante todo o decorrer do processo de
fabricação eram entoadas cantorias, e estas por sua vez, acompanhadas de rodas e consumo de
bebidas que animavam os trabalhadores na realização do trabalho. Na verdade, tornava-se um
momento de grande festa para a população próxima à casa de farinha. E na maioria das vezes,
esses ambientes exerciam a função de transmitir e ensinar aos mais novos a tradição da
fabricação da farinha e também dos costumes, incluindo as músicas, presentes nesses espaços
de festa e alegria.
A partir disso, contata-se que as manifestações culturais ligadas ao cotidiano dos
trabalhadores rurais no município de São Domingos antecedem a implantação da
agaveicultura na cidade. Contudo, reelaborada e num contexto diferenciado é que os sisaleiros
foram incorporando esses costumes ao local de trabalho. No que tange as transformações
socioeconômicas de uma determinada sociedade, considerando as devidas especificidades,
Thompson evidencia na sociedade inglesa impulsionada no século XVIII pela industrialização
que “não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento
ou mudança de uma cultura. E o desenvolvimento da consciência social, como o
desenvolvimento da mente de um poeta, jamais pode ser em última análise planejado”. 89
É de extrema importância entender a íntima relação existente entre os lavradores rurais
com o trabalho e sua incorporação na vida dos mesmos, constituindo-se assim como um
sentido de sua existência. O ritmo intenso e o desgaste do trabalho no campo, muitas vezes
causam a dor, mas retiram-se dessas condições adversas de sobrevivência algumas alegrias
que são identificadas na produção estético-musical das comunidades rurais sisaleiras do
referido município. Fica evidente no momento que Ecléa Bosi faz a seguinte colocação:
Na raiz da compreensão da vida do povo está a fadiga. Não há compreensão
possível do espaço e do tempo do trabalhador manual se a fadiga não estiver
presente e a fome e a sede que dela nascem. E as alegrias que advém desta
participação no mundo através do suor e da fadiga: o sabor dos alimentos, o
convívio da família e a vizinhança, o trabalho em grupo, as horas de descanso. 90
Essas circunstâncias compõem o cenário em que os sisaleiros produzem suas alegrias
manifestadas nas melodias e cantos. O cotidiano exaustante impulsiona a imaginação artística,
e esta por sua vez expressa o contexto sócio-cultural no qual o povo exprime seus ritmos, sons
89
THOMPSON, E. P. op. cit., 1998, p. 304. 90
BOSI, Alfredo. op. cit., 1992, p. 27.
53
e sentidos, ou seja, a sua arte. Dessa forma, a natureza está extremamente imbricada com o
universo cultural presente na vida dos trabalhadores do sisal.
1.7 Grupos de Reisados no município de São Domingos
Os reisados surgem num contexto intenso de religiosidade e com características
européias. No livro de Mateus, na bíblia, há passagens que retratam superficialmente os reis
magos, conhecida popularmente como a “Adoração dos Reis Magos”. Porém, essa passagem
da Escritura Sagrada apresenta alguns enigmas quanto às características, nomes e outros
elementos referentes aos reis magos. Esse fato ensejou infindáveis reinterpretações sobre essa
narrativa bíblica ao longo dos tempos e, assim, torna-se inspiração para as mais variadas
interpretações nas letras e nas artes, contribuindo para o desenvolvimento de tradições
populares mais diversas.
Este contexto levou Mâle, no século XIX, á seguinte reflexão:
A imaginação popular cedo foi aos evangelhos, tentando complementá-los, no que
faltava. As lendas originaram-se nos mais antigos séculos da cristandade. Elas
nasceram do amo, de um tocante desejo de conhecer mais Jesus e aqueles próximos
[...]. O povo achava os evangelhos muito sucintos [...]. Nenhuma das cenas da
infância de cristo forneceu mais rico material para o povo que a Adoração dos
Magos. Suas misteriosas figuras, mostradas veladamente nos evangelhos,
despertavam ávida curiosidades nas pessoas. 91
Após um longo período de questionamentos e curiosidades bispos e, principalmente
papas, atribuíram alguns aspectos inexistentes ao texto bíblico, como o título de Reis aos
magos do Oriente, a quantidade dos mesmos e posteriormente os nomes. As tradições
populares do ciclo natalino era comum em toda a Europa Cristã. E assim, representações de
rituais litúrgicos relativos aos magos, que, a princípio, eram realizados no interior das igrejas
são popularizados e transportados para praças e ruas. Nos povoados rurais grupos levavam a
mensagem do nascimento de Jesus Cristo, representado nas figuras dos Reis (magos), de casa
em casa. 92
Desse modo, atravessando o oceano essas tradições de cunho religioso desembarcam no
Brasil no período colonial. Os colonizadores conjuntamente com os jesuítas vindos com o
91
MALÊ apud TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Folia de Santos Reis. Programa SALTO
para o futuro: Aprender e Ensinar nas Festas Populares. Secretária da Educação à Distância. Ministério da
Educação, abril 2007 p. 15-16. 92
Idem.
54
primeiro Governador Geral Tomé de Souza, em 1549 e em anos seguintes, trouxeram esses
costumes da Península Ibérica.
A folia, como a música e o drama, foi usada pelos jesuítas para a catequese. Os
padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta usavam as folias e outras danças nas
procissões e nos autos, muitos escritos na língua geral. Com a consolidação da
colonização, os rituais usados na catequese do índio disseminaram-se entre colonos
portugueses, negros escravos e mestiços de toda a sorte e foram incorporados às
festas dos padroeiros. 9933
Na medida em que o povoamento expandiu-se, essas manifestações se ramificaram e se
difundiram por todo o território colonizado. Com o passar do tempo “essas tradições
sofreram, gradativamente, a influência local pela incorporação dos elementos da cultura negra
e indígena, através de hibridismos religiosos e culturais”. 94
No Brasil, as tradições populares
do ciclo natalino, influenciados pelos costumes religiosos ibéricos, são conhecidas por
reisados. Segundo Câmara Cascudo “[...] sem especificação maior refere-se sempre aos
ranchos, ternos e grupos que festejam o Natal e Reis. O Reisado podem ser apenas a cantoria
como também possuir enredo” 95
. É importante salientar que nem todas as manifestações que,
são habitualmente chamadas de reisados, retratam a temática dos Reis Magos e Menino Jesus,
mas possuem na sua essência o ritmo e danças características dessa tradição.
Na verdade, as características dos grupos de reisados variam de região para região em
todo o território brasileiro, representando os costumes e universo de cada comunidade que
expressa nessas manifestações o seu cotidiano e modo de vida. Então, os reisados representam
a singularidade e identidade de um determinado grupo social e assim tornam-se
“representação coletiva” numa dada sociedade. Roger Chartier aborda a expressão
“representação coletiva” da seguinte forma:
[...] três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de
classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas
quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que
compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer
uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar
simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e
objetivadas em virtude das quais “representantes” ( instâncias coletivas ou
93
RIOS, Sebastião. Os cantos da festa do reinado da nossa Senhora do Rosário e da folia de Rei. Sociedade e
Cultura, jan. - jun., a no/v. 09, n. 001. Universidade Federal de Goiás: Goiânia, 2006 p. 67. 94
TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Op. Cit. abril 2007 p. 17. 95
CASCUDO apud TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Op. Cit. abril 2007 p. 18.
55
indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuo a existência do grupo, da
comunidade ou da classe. 96
A diversidade e formas de reisados existentes dificultam a conceituação e classificação
do mesmo. Em cada canto do território brasileiro há denominações diferenciadas e
peculiaridades quanto à maneira que se expressa essa tradição. Na Bahia é comumente
denominado de Terno de Reis característico da região metropolitana e Recôncavo. Já na
região sisaleira essa manifestação é conhecida como Reisado ou Folia de Reis.
No município de São Domingos essas manifestações, bem como em todo o Território do
sisal, estão intimamente ligadas ao trabalho com o sisal nos campos da cidade. Essas
expressões culturais são passadas de geração em geração e assim eram realizadas desde o
período das plantações intensas de feijão, milho, mandioca... até a cultura que a partir da
década de 1980 passa a prevalecer no referido município, a sisalicultura.
De acordo com as pesquisas realizadas em São Domingos na década de 1990 havia em
torno de oito grupos de reisados espalhados por todo o território municipal. Isso evidencia
uma significativa redução desses grupos em relação há décadas anteriores. Os reisados a
princípio eram cantados entre o dia 24 de dezembro a 6 de janeiro por um grupo de músicos,
cantadores e dançadores que de porta em porta anunciavam simbolicamente o nascimento de
Jesus e homenageavam os Três Reis Magos. Depois de certo tempo o ritmo e alguns versos
dessa manifestação passam a ser inserido nas tarefas cotidianas e, principalmente, nas festas
das comunidades rurais como momento de descontração e lazer.
O mutirão cumpria um papel social bastante importante na vida do sertanejo.
Adotado em pequenas propriedades, era utilizado para a derrubada da mata, a
semeadura, a limpeza da roça, a colheita, a edificação de casas (...). Mas não era só
isso, o mutirão não era exclusivamente uma atividade árdua, cumpria uma função
ética e lúdica: alem de traduzir-se num compromisso dos que pertenciam àquela
coletividade, também ensejava um dia de festa, pois o trabalho não se dissociava da
alegria e nem da satisfação em ajudar o próximo. 97
Nesses espaços de produção familiar e ajuda comunitária tornava-se constante os
reisados e outras expressões culturais. Então, toda família trabalhava na roça e, quando esta
não dava conta do trabalho surgiam os “batalhões” ou “boi roubado” – mutirões e em troca, o
dono da casa matava ou se “roubavam” um boi e o servia como almoço aos trabalhadores
96
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Revista Annales, 1991, p. 183. 97
NASCIMENTO, Op. cit., 2003, p.35.
56
voluntários. Esta prática dos batalhões, mais que momentos de trabalho, eram festas que
podiam se estender por dias quando se cantavam, dançavam e “batucavam” (ver em anexo as
canções do “Boi roubado”). O senhor Dermival Trabuco da Silva relata essa experiência do
mutirão da seguinte forma:
Muitas vezes, você é vizinha da gente aí tem um trabalho pra fazer, aí quer fazer
aquele selviço de uma vez só. Aí a gente junta, convida um bucado de amigo e ás
vez até sem você saber sem nada, né? Sabe que você gosta de diversão também e
quer o selviço feito. Aí junta os amigos e quando é de madrugada vai lá e sortá um
bucado de fuguete e aí pega canta um boi de madrugada. Aí quando o dia amanhece
toma o café e aí bora trabalhar e cantar, soltar fuguete o dia todinho. Aí meio-dia
pegar a bóia e... Quando é de tarde, à hora quando terminou é hora de cantar
bandeira e sambar a noite todinha é grande diversão.
Nessa manifestação as músicas são aboios que retratam o trabalho cotidiano dos
sisaleiros. Além disso, retratam também os amores que são lembrados no momento da
cantoria, e assim o saudosismo surge nas cantigas como forma de reviver o passado e resistir
ao presente, em que o trabalho árduo é esquecido por um instante ou maquiado por alguns
momentos de alegria e muita música. Alguns sucessos musicais eram reelaborados de maneira
que recebiam uma nova melodia e entonação no trabalho diário:
Que beijinho doce que ela tem
Depois que beijei ela
Nunca mais beijei ninguém
Que beijinho doce foi ela quem trouxe
De longe pra mim.
Um abraço apertado
Suspiro dobrado que amor sem fim.
Algumas canções tornaram-se típica do trabalhador rural, quase um hino nas
manifestações no campo, cantadas tanto na rotina de trabalho quanto nas festas de reisados,
cantigas de roda, “bandeira”, “boi roubado” e sambas nos finais de semana:
Como faz, como faz
Um passarinho
Que fez um ninho e avuou, vôo
E eu fiquei sem teu carinho
Sem teu amor.
57
Após o término da “roubada de boi” segue ao entardecer a “bandeira”. Essa etapa da
manifestação consiste em festejar juntos homens e mulheres. É importante ressaltar ainda a
questão de gênero que pode ser observadas a partir dos papéis atribuídos às mulheres e aos
homens nos batalhões. O “trabalho da roça”, entendido como “trabalho duro” era atribuição
dos homens, enquanto que a preparação das refeições estava delegada às mulheres.
Para a realização da “bandeira” as mulheres confeccionavam uma bandeira branca e
outra vermelha, ambas com enfeites, e levavam para o local onde acontecia o batalhão. Então,
ao terminar o dia de trabalho, os homens retornavam cantando para a casa do dono da fazenda
e, encontravam as mulheres postas em fila na frente da casa, esperando-os com vários
instrumentos nas mãos (prato, pandeiro, bebida e etc.) e a bandeira branca carregada pela
princesa da festa que se posicionava a frente das demais mulheres. Os homens também
traziam uma bandeira vermelha que seria trocada no decorrer da manifestação.
Após a formação das duas colunas, uma de frente para a outra, se inicia a festa. Uma
dupla de cantadores, que fazem a primeira e segunda voz, se desloca da fileira e aproxima-se
de uma das mulheres fazendo versos, que pode ser também improvisados, e trocam
primeiramente as bandeiras na abertura. Logo após, repete-se a ação quantas vezes for
necessário até que termine todos os objetos que estão com as mulheres (ver em anexo as
canções da “Bandeira”). “Acabou ali agora trocou as bandeiras e agora tocou um batuque, e aí
agora vai fazer uma roda ali. As mulheres tudo marchando e os homens também e aí depois
entra pra dentro de casa e vai sambar”. 98
Na verdade, a bandeira possui alguns traços do reisado, pois são utilizados os mesmos
instrumentos para produzir os sons, sendo o ritmo das cantorias semelhante ao dos reis. Uma
das diferenças entre as manifestações refere-se ao período e ambiente onde são realizados. A
bandeira acontece sempre após um “boi roubado”, ou seja, é o ponto culminante de todo dia
de trabalho comunitário seguido de um samba. Já o reisado era realizado apenas no período
natalino, mas com as constantes transformações e organização dos grupos de reisados tornou-
se comum suas apresentações durante o ano todo, seguidas também é seguido do samba de
roda depois da apresentação e entrada na casa ou instituição convidada para realizar a
manifestação.
Essa tradição também foi incorporada ao trabalho do sisaleiro que realizava com
freqüência essas manifestações em décadas anteriores. A partir de 1990, contudo, percebe-se
uma redução das apresentações desses grupos nas comunidades rurais do município. Em
98
Depoimento do trabalhador rural Dermival Trabuco da Silva, membro do grupo de reisado da Ladeira.
58
contrapartida, nota-se uma organização maior dos mesmos, muitas vezes ligados a
associações das comunidades em que vivem. Isso faz com que as demonstrações de reisados
ultrapassem as fronteiras rurais e locais e lhes confira visibilidade na sociedade urbana.
Na Folia de Reis, apresentação é concebida como o ponto máximo de demonstração
do valor do saber e da fé do folião, lócus de exibição do que foi aprendido,
ensaiado e incorporado, muitas vezes durante uma vida. É a oportunidade do folião
de mostrar para a comunidade sua arte, sua religiosidade, sua fé e, principalmente,
demarcar o seu lugar na sociedade que muitas vezes o ignora por ser pessoa de
pouca escolaridade e de baixa renda. 99
Nas últimas duas décadas essas manifestações culturais passam a ser reconhecidas e
valorizadas no ambiente urbano. Um caso que chama atenção no município é o grupo da
Ladeira fundado em meados da década de 1990, o qual reúne componentes de dois municípios
vizinhos, Valente e São domingos, nos quais habitam músicos e sambadores da Fazenda
Algodões e Riacho do Cedro, sendo respectivamente comunidades das referidas cidades. Esse
grupo de reisado é o ponto de interseção cultural entre ambas as localidades, além do mais, as
duas comunidades situam-se nas divisas municipais.
O grupo de reisado Ladeira recebe esse nome em virtude de o organizador da
manifestação residir na Fazenda Ladeira, sendo então homenageado pelos seus colegas de
cantoria que são ao todo oito homens. O surgimento desse grupo aconteceu da seguinte
maneira:
[...] a gente sempre brinca e tem aquele negócio de reis de corrida. Além de ... do
reis de corrida a gente já fizemos aquele grupo pra gente sambar em todas as
brincadeiras e a gente cantar reis indiferente desses dias e continuar com aquele
grupinho certo, né? Aí tem, por exemplo, o grupo da Ladeira, aí começamos, todo
ano nós canta o reis de corrida. O reis de corrida é assim começa no dia 1º de
janeiro até o dia 6. A gente canta a noite todinha (...) cantou ali saiu o reis passou
pra outra casa, aí um dá um agrado um dá outro, aí a gente vai passando (...) Aí
agora nós temos esse grupo da gente que a gente continua. Um convida pra gente
levar um reis, ir na casa de um a gente vai, canta o reis, samba a noite todinha e vai
as mulheres e canta roda também e aí uma diversão da gente, há muitos anos é...
dos avôs da gente, né? Dos pais... Aí a gente continua nessa vida. 100
Dois componentes da Ladeira participam do grupo da Quixabeira de Valente, sendo um
grupo de grande tradição e visibilidade no cenário baiano e nacional. Esse grupo surgiu no
99
GONÇALVES, Maria Célia da Silva. Folias de reis: o eco da memória na (re) construção da performance e
identidade dos foliões em João Pinheiro, estado de Minas Gerais. IV ENECULT, Faculdade de Comunicação
/UFBA, Salvador, maio de 2008, p.8. 100
Depoimento do trabalhador rural Dermival Trabuco da Silva, membro do grupo de reisado da Ladeira.
59
ano de 1989 com os preparativos para a gravação de um disco. No ano de 1992 produziu o
vinil denominado “Da Quixabeira pro berço do rio”, logo após, em 1994 fez o lançamento em
formato de CD. Além disso, suas canções foram regravadas por diversos artistas como:
Carlinhos Brown, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Marisa Monte e
as bandas Cheiro de Amor e Harmonia do Samba. 101
O grupo da Quixabeira é uma expressão cultural que caracteriza a reunião de
aproximadamente quinze comunidades rurais localizadas em Feira de Santana - BA
e região sisaleira. Essas comunidades além de valorizarem o trabalho do campo
desenvolvem uma estética musical calcada nos valores musicais do sertão e
recôncavo baiano. Cada comunidade tem seu líder que organiza o repertorio e as
apresentações do grupo. 102
Esses grupos de manifestações populares tanto de reisados (Ladeira) quanto o de cantiga
de roda (Quixabeira) realizam apresentações em vários municípios da região e fora do estado,
como em São Paulo. Dessa forma, como observa Bourdieu “os ritos conseguem fazer crer aos
indivíduos consagrados que eles possuem uma justificação para existir, ou melhor, que sua
existência serve para alguma coisa” 103
. Fazer parte do ritual dessas manifestações é sair da
invisibilidade social, é passar a fazer parte de um grupo que tem prestígio, por exercer uma
função social de auxílio à manutenção de outras pessoas menos abastadas, tornando na visão
de Bourdieu um “porta-voz autorizado”.
Outro grupo de reisado de grande visibilidade no município é o grupo da Alegria,
composto por dezessete mulheres e cinco homens tocadores de reis. O grupo surge em 1949
trazido por uma ex-moradora da cidade de Senhor do Bonfim que passa a residir na
comunidade de Santo Antônio. A existência de um grupo de reisado de mulheres, nessa
época, era um fato excepcional, que chamava a atenção de toda a população, pois estas
mulheres cantavam, tocavam e lideravam as cantigas de reis que sempre eram seguidas por
um samba, assim como em todas as manifestações ligadas ao campo, com um ritmo mais
frenético e com versos que se repetiam inúmeras vezes com muita alegria. Isso se tornava um
episódio pouco comum em meio a uma sociedade extremamente guiada e liderada por
homens, mesmo em manifestações culturais havia uma divisão bastante nítida que era
retratado nos versos das cantigas:
101
SANTOS, op. cit. , 2007, p.1-2. 102
Idem. Ibdem, p. 13. 103
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1986, p.106.
60
As mulheres na roda
E os homens no samba
Generador bamba. (2x)
O grupo da Alegria também se apresenta juntamente com o grupo de Reisado União,
criado na década de 1980 e composto apenas por homens. Essas mulheres, todas ex-sisaleiras
que nos campos de agave cantavam as rodas, passam a partir de então a participar de reisados
e sambas, os quais outrora eram espaços somente de trabalhadores. A Srª. Marli da Silva 104
comenta que incorporou as cantorias a sua rotina desde os sete anos de idade, quando
começou a trabalhar na sisalicultura, estendendo fibra, e assim presenciava as cantigas das
senhoras que também trabalhavam no mesmo ambiente e as repetia, além da sua facilidade de
improvisação de tantas outras músicas no local de trabalho ou nos eventos que participava.
Tais improvisos eram como estes:
Queremos agradecer
A riqueza deste evento
A todos agricultores
Que nos fornece alimentos.
E também o homem do campo
Um grande agricultor
Aqui em nosso município
Tem homem trabalhador.
No seu depoimento também aborda a disciplina que seu pai cobrava no momento que
realizava o trabalho na “roça”, pois o patriarca da família não aceitava que seus filhos
trabalhassem de “cara feia” o que poderia prejudicar o desempenho na tarefa lhes incumbida e
interpretada por ele como preguiça e desobediência. Para a Srª. Marli essa exigência de seu
pai lhes conferiu valores de honestidade espelhados no trabalho digno do homem do campo e,
além disso, o gosto por essas manifestações valorizadas por seus pais e incorporadas a seu
modo de vida.
Os trabalhadores do sisal envolvidos nessas expressões culturais relatam que os
constantes períodos de seca e crise do agave não interferem nas apresentações ou nas
melodias populares. Em contrapartida, nota-se que as cantigas no local de trabalho foram
reduzidas em virtude da diminuição também do trabalho nos campos de sisal e das constantes
104
Ex-trabalhadora do sisal e componente do grupo de Reisado da Alegria há quarenta anos.
61
intervenções dos motores. E assim, os encontros e o contato entre os sisaleiros, tornam-se
mais difíceis em razão do distanciamento entre eles.
Dentre as referidas manifestações o reisado, mais especificamente, não recebeu tantas
influências da sisalicultura nas letras de suas canções, pois esta manifestação retrata a visita
dos reis magos ao menino Jesus. Sendo assim, a temática das canções de certa forma é fixa,
não sofrendo tanto improviso como as outras expressões culturais (ver as canções do Reisado
em anexo). Mas, o samba que sempre segue o reisado é marcado pelo o improviso e assim
reflete profundamente os acontecimentos do momento e suas canções são mais utilizadas nos
trabalho com a fibra.
Além disso, raramente se canta as músicas do reisado no local de trabalho, pois estas
possuem uma característica mais de festa, realizada de porta em porta ou mesmo antes de um
samba, sendo realizado com mais freqüência no período natalino. Apesar disso, o ritmo dessas
melodias é constantemente utilizado para compor outras canções cantadas cotidianamente,
além do contato que os componentes dos grupos estabelecem no ambiente de trabalho.
É importante salientar a importância que comumente os sambadores e cantadores de
“aboio de roça” atribuem a matriarca da família. Seja num samba ou no cotidiano da
agaveicultura esses trabalhadores homenageiam e lembram da mãe como um ser humano
superior aos demais, sendo esta responsável pelas conquistas alcançadas na vida dos
sisaleiros, valorizando assim, o papel dessas mulheres de fibra na formação e educação que
lhes foi dada, além do esforço das mesmas para garantir o sustendo da família, mesmo em
períodos difíceis de seca. Esses traços podem ser percebidos nos seguintes versos:
Oh, mãe querida!
Oh, mãe amada!
Sem mamãe não tenho nada (2x)
Eu vivo feliz nesse mundo
Porque tenho a minha mãezinha
Peço pra deus que dê vida e saúde
Pra minha mãezinha
Oh! Mamãe!
Se você tá me ouvindo agora
Estar essa valsinha bonita
Que eu fiz, mamãe!
Eu ofereço a senhora
Eu sei que ela vive pensando
Aonde tá o filho seu.
62
As letras das canções (em anexo) dessas manifestações são em grande parte herdadas
pelos antepassados da família e disseminadas pelas gerações vindouras. Todavia, no momento
da cantoria seja do samba ou da cantiga de roda ocorre à improvisação de versos, os quais
retratam sobre o ambiente ou situação que estão cantando. E em alguns casos acaba ocorrendo
uma mescla entre o tradicional e a improvisação, ou seja, o passado e o presente se entrelaçam
e origina uma manifestação com características próprias daquele período e contexto histórico.
Portanto, para Abreu é fundamental “observar que as festas são sempre recriadas e
reapropriadas, contendo as paixões, os conflitos, as crenças e as esperanças de seus próprios
agentes sociais”. 105
1.8 Cantadeiras de roda
O Brasil é conhecido nacional e internacionalmente como o país do samba, porém é
importante salientar que dentro dessa nação há diferentes modalidades de samba. Nesse caso,
trataremos da cantiga de roda, uma manifestação popular de tradição oral e com algumas
semelhanças com o samba de roda nascido na Bahia, especificamente na região denominada
Recôncavo Baiano.
O samba é inserido no território nacional mediante as transformações ocorridas nos
batuques ao longo da história cultural dos negros africanos estabelecidos no país. Desse
modo, os batuques herdados da tradição africana têm no território brasileiro uma diversidade
de ritmos, de coreografias, de instrumentos, de significados, etc., influenciando práticas
culturais em várias manifestações populares por todo o Brasil.
O samba de roda é uma matriz afro-brasileira, pois apresenta peculiaridades na sua
maneira de existir e também incorpora traços da cultura do povo africano. Desse modo, não se
trata de uma dança genuinamente africana, configura-se como uma manifestação popular de
caráter festivo que apresenta aspectos de uma “reconceitualização” dessa cultura dentro de um
novo território. Todavia, não há como negar a forte, marcante e predominante presença dos
ritmos africanos no samba de roda. 106
105
ABREU, Marta. O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 38. 106
AMOROSO, Daniela Maria. Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do Recôncavo.
Programa de Pós-Graduação em Artes Ciências/UFBA.
63
Além disso, essa vertente do samba também possui elementos da cultura portuguesa
como a viola e o fado lusitano:
Todos sabem o que é o fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece
filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que o
instrumento algum para efeito. O Fado tem diversas formas, cada qual mais
original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum
tempo, fazendo passos dificultosos, tomando as mais ariosas posições,
acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco a
pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante umas negaças ou
viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que enfim acompanha-se de
novo. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado. 107
Dessa forma, esses ritmos deixaram marcas na cultura afro-brasileira e propiciaram a
continuidade dessa herança, expressa numa outra roda: o samba de roda. Não se pode
esquecer que essa manifestação popular é típica do Recôncavo sul da Bahia. E assim esse
estilo de música e dança baiana influencia várias outras regiões do estado que imprimem uma
identidade e peculiaridade a essa manifestação. Para Amoroso o samba de roda não se define
se experimenta, mas numa perspectiva bastante subjetiva, o caracteriza desta forma:
A dança está no samba de roda, o ritmo, o canto, a cachaça, a comida, a festa, a
cidade, a roça também. (...). Estar num samba de roda é entrar na roda sambando,
depois de ser chamada por uma umbigada, uma pernada ou um simples gesto e
reverenciar os tocadores, fazer um miudinho, uma “corridinha”, uma mexidinha nos
ombros, um giro, ás vezes. É também ver os rostos dos mais velhos, bocas sem
dentes, corpos vividos e consumidos pelo trabalho e pela falta de recursos soltando
uma voz tão forte, tão cheia de poesia, entoando melodias empolgantes. 108
Diversos grupos de cantigas de roda na região sisaleira expressam seus costumes nessas
manifestações, sendo um dos raros momentos de lazer e entretenimento para o sisaleiro ou
sisaleira. No município de São Domingos os grupos de cantigas de roda são em número
menor do que os grupos de reisados. Há também uma nítida divisão nesses espaços em que
mulheres, em sua grande maioria, compõem os grupos de cantiga de roda e os homens dos
reisados. Estes por sua vez, também participam das rodas, cuja função é tocar os instrumentos
que são os mesmos utilizados nos reisados, tais como: viola ou violão, cavaquinho, pandeiros,
reco-reco, triângulo, prato e faca ou simplesmente as palmas da mão.
107
ALMEIDA apud AMOROSO, op. cit, p.6. 108
Idem, ibdem, p.7
64
A diferença básica entre a cantiga de roda e o reisado pode ser evidenciada no relato da
senhora Isaura Alvino de Araújo de 77 anos:
A diferença é que o canto de roda é cantado aquele grupo rodando lá... Um bando
de gente cantando a roda e dizendo verso. E o reisado vai pra porta aí canta o reis.
Aí depois entra pra dentro pra... Final de ano, né? Aí a gente canta o reis na porta e
depois entra pra dentro de casa e vai dançar. (...) Tem o reisado de homem e de
mulher. O homem participa da cantiga de roda, mais é pouco, não participa como a
mulher não. Mistura também, mais no samba o homem sabe mais do que a mulher.
E as mulheres canta mais.
Na verdade, as apresentações realizadas pelas mulheres, como as rodas, configuram-se
como o ponto de culminância de todo uma cantoria que se inicia nos campos de sisal. No
local de trabalho, geralmente estendendo fibra, as sisaleiras cantam o dia todo praticamente as
mesmas melodias das cantigas de roda. É nesse ambiente de trabalho exaustivo e de sol
quente que, muitas vezes, surgem os grupos de cantigas de roda, conjugando ao mesmo tempo
alegria, cansaço, desgaste físico e do divertimento presentes diariamente na vida dessas
pessoas marcadas pela intensa jornada de trabalho. Essas cantigas tinham uma importância
muito grande na vida dessas mulheres, como pode ser evidenciado nas palavras da ex-
trabalhadora do sisal Adaltina Araújo Santana:
Cantar representa minha vida. Eu acho na vida de todos nós uma alegria. Enquanto
a gente tá cantando não tá pensando nada, enquanto a gente tá cantando se tiver ali
com pensamento contrariado em alguma coisa, aquilo distrai e faz bem pra saúde.
Por isso a gente cantava no trabalho pra ficar mais divertido.
Uma característica marcante das cantigas de roda era as temáticas dos versos que
retratavam, em sua grande maioria, os namoros e paixões vividas no momento das rodas ou
do trabalho. Como os grupos de cantigas de roda são formados por mulheres, estas
incorporam às músicas traços fortes de sua rotina, dos anseios e desejos como se observa nos
seguintes versos:
Quem me dera ter agora
Um cavalinho de vento
Pra dar um galopinho
Onde está meu pensamento.
Minha mãe não quer que eu vá
65
Na casa do meu amor
Eu vou perguntar a ela
Se ela nunca namorou.
A imaginação ganha vida nos versos proferidos por essas trabalhadoras rurais. Uma
simples estrofe pode ser o mais singela possível e ainda assim tornar-se uma representação do
estilo de vida, da mentalidade e dos costumes de uma época. Nesse caso, os versos acima
retratam um contexto em que os namoros surgiam a partir dos encontros entre a vizinhança
nessas manifestações, e assim, cantar um verso naquele momento significava muitas vezes,
uma declaração implícita para algum pretendente que se encontrava naquele ambiente, ou
mesmo, servia para externar um sentimento muito forte de alegria, saudade, tristeza e/ou
amor.
Diante disso, levando-se em conta algumas exceções, pode-se perceber a presença e
participavam de homens nas cantigas de rodas ou das cantorias das mulheres no local de
trabalho. Os sisaleiros também cantavam versos envolvendo as mulheres nas melodias:
Eu joguei meu limão verde
Por cima da sacristia
Caiu no colo da moça
Isso mesmo que eu queria.
As cantigas também abordam outros assuntos diversos, com menor freqüência, sendo
estes geralmente improvisados de acordo com o local de apresentação ou ambiente de
trabalho. Dessa forma, são raros os versos que se referem ao trabalho com o sisal. Quando há
canções desse tipo, são feitas em alguns eventos específicos, como este verso composto por
um grupo de cantiga de roda da associação de Pedra Bonita, em uma das suas apresentações:
O sisal é um produto
De boa qualidade
Oh, Pedra Bonita
Vou deixar muita saudade.
O impressionante na cantiga de roda (realizada por mulheres) ou no samba de roda
(organizados geralmente por homens), em São Domingos, é a energia e o ritmo frenético dos
dançarinos, de pés descalços, acompanhados pela música contagiante, palmas e batuques. Há
66
também a presença da cachaça, bebida motivadora para os tocadores e sambadores que
amanhecem o dia com bastante empolgação no espaço que já se tornou uma festa.
O centro da roda é o palco da festa, o sambador ou as cantadeiras de roda sapateiam
agitando todo o corpo e, em poucos minutos, “tira-se” outra pessoa do círculo para dançar
mais alguns minutos, revezando-se os pares, embora a dança seja “solta”. Para a música, há o
“puxador” do samba ou “puxadora” da roda, papel geralmente atribuído a pessoas de voz bem
afinada com capacidade também de improvisação, estes por sua vez são acompanhados pelo
coro formado pelo grupo, ao som de palmas.
É importante atentar para idéia de coletividade que está intimamente presente nessas
manifestações. O sisaleiro pode até ser um indivíduo singular e solitário em seu ambiente de
trabalho ou marginalizado socialmente, mas no momento em que se junta com outras pessoas
para formar um grupo que represente algo realizado diariamente pelos mesmos, estes passam
a adquirir visibilidade e valor artístico que individualmente poderia não alcançar. De forma
nenhuma o seu valor enquanto indivíduo singular está sendo diminuído, mas quando se trata
do espaço cultural e musical no referido município, associa-se rapidamente estes
trabalhadores do sisal ás sua manifestações populares apresentadas e representados
maravilhosa e verdadeiramente por esses homens e mulheres de fibra.
O samba é coletivo, não que seus versos sejam feitos em conjunto, alguns versos
são criados por um individuo, mas só existe na roda, com o suporte dos
instrumentos com a interpretação na dança com respostas das palmas. Aqui é o
limite do individuo humano com o saber coletivo. 109
O samba de roda, bem como outras manifestações populares, pode ser compreendido
como uma prática cultural, na qual são vivenciados valores como a solidariedade, a
fraternidade e o pertencimento que vão contribuir para a construção e afirmação das
identidades sejam dos afro-descedentes no Recôncavo Baiano ou dos sisaleiros no Nordeste
da Bahia. Pela via do “dom do discurso”, explorando as diversas linguagens que lhes são
acessíveis, ainda que muitos deles não dominem a escrita, conseguem imprimir suas marcas
identitárias nas suas canções, falando da afetividade, dores, amores, críticas, angústia e fé.
Além disso, a relação homem-mulher aparece em quase todas as letras do samba ou das
cantigas de roda que são tocados, por exemplo:
109 CRUZ, Alessandra Carvalho da. “O samba na roda”: Samba e cultura popular em Salvador 1937-195.
Salvador, 2006. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal da Bahia. p. 68.
67
Quando eu passo ela fica me olhando
Admirada com vontade de chamar
Nosso amor já está tão enraizado
Que é difícil de nóis dois separar
Ela tem o amor que eu lhe dou
E eu só tenho o amor que ela me dar.
Ai, ai amor.
Lê, lê, lê leô...
É perceptível o sentimento de pertença dos moradores de cada comunidade, do referido
município, em relação às manifestações culturais que desenvolvem nesses espaços. Desse
modo, é através dessas expressões culturais e da própria localidade que eles se identificam e
expõem as suas práticas construídas cotidianamente, que se reconhecem enquanto
pertencentes a um espaço, que é seu e ao mesmo tempo é compartilhado com tantos outros
que também construíram suas histórias de vida.
Para essas mulheres trabalhadoras do sisal a vida delas está intimamente relacionada com
as cantigas, seja no momento da realização do trabalho nos campos do sisal ou nas festas
organizadas para o divertimento familiar e entre amigos. A sensação de participar e organizar
esses grupos de cantigas de roda é uma experiência única e prazerosa para essas guerreiras de
fibra, como relata dona Isabel Maria da Silva 110
:
A sensação melhor que eu acho é que já nasci com isso, na cultura, brincando,
cantando roda. Até hoje o que sinto da minha parte, uma coisa que eu mais tenho
sentimento na minha vida é o dia 7 de setembro na casa da véia Isabel de Zacarias.
Nossa senhora! Nós começava a boca da noite, chamava o pessoal todo e
começava, as mulheres cantando roda. Quando era mais logo vai rezar, aí parava a
roda ia rezar, terminava a reza aí agora começava o reis. Os homens ia sambar e as
mulheres cantar roda até o dia amanhecer, cansamo de amanhecer o dia. Eta roda
boa! Eu sinto saudade viu? Pense numa coisa que eu sinto saudade.
No entanto, nas últimas décadas esses grupos de cantigas de roda também ultrapassaram
as fronteiras do território municipal e realizam apresentações em várias cidades da região
sisaleira. Para essas mulheres a realização de apresentações fora de sua comunidade é o
reconhecimento de sua música e dança pela sociedade. Diante disso, percebe-se que a música
é o elemento imprescindível e motivador para realização do trabalho cotidiano, além de ter
também se tornado a força propulsora de alegria e vitalidade na vida desses sisaleiros e
sisaleiras são-dominguenses. É mediante essas manifestações que por alguns momentos esse
110
Trabalhadora do sisal e componente do Grupo cantiga de roda.
68
povo esquece os constantes períodos de seca, acarretando na baixa do preço do sisal e
consequentemente o surgimento do desemprego em massa, gerado em virtude do não
funcionamento dos motores de sisal na zona rural do município. Por isso que:
Cantando, criamos ordenações no espaço/tempo, projetamo-nos combinando notas,
expressamos o que sentimos e o que sabemos sobre o sentimento humano. Nossos
sonhos, utopias e desventuras, são compartilhados. Através do canto, resgatamos a
unidade, o território analógico, a intensidade de viver. 111
As cantigas de roda eram as canções mais difundidas nos campos de agave, pois as
mulheres raramente trabalhavam sem cantar. As melodias impulsionavam essas trabalhadoras
e trabalhadores na realização da tarefa diária tornando o ambiente alegre e descontraído, no
qual as moças cantavam e sonhavam com um grande amor e um provável casamento. E assim,
esses anseios e expectativas eram postos nas letras das canções transmitidas pelos mais velhos
e readaptadas num novo contexto ou criadas naquele momento de intensa cantoria.
1.9 Entre rezas e brincadeiras
A vida dos sisaleiros, não se resumia apenas ao trabalho. Como já foi dito anteriormente,
estendia-se também ao lazer, como cerimônias religiosas, vaquejadas, reisados, cantigas de
roda, “bandeiras”, “boi roubado”, entre outras. As rezas na zona rural eram freqüentes nos
finais de semana, mas os períodos de maior festa religiosa segundo a Srª. Isaura Alvino de
Jesus era a novena de: São João e Santo Antônio, São Cosme e Damião e Nossa Senhora
Aparecida. Essas festas religiosas ocorriam respectivamente nos meses de junho, setembro e
dezembro.
Na voz da Sr.ª Isaura percebe-se a fé vivida com bastante intensidade, que também pode
ser constatada ao mencionar o mês dedicado a Maria, quando as pessoas se reuniam na casa
do vizinho para rezar um rosário. Estas, por sua vez, dedicavam-se às coisas do mundo
sagrado e reforçavam seu pacto com Deus. Oravam, pediam clemência pelos pecados
cometidos, clamavam por um ano bom de inverno, entre tantas outras solicitações e gestos de
devoção, já escassos na década de 1990 na região.
111
MILLECO FILHO, L. A.; BRANDÃO R. M.; MILLECO R. P. É preciso cantar: musicoterapia, cantos e
canções. Rio de Janeiro: Enelivros, 2001, p. 11.
69
De acordo com as entrevistas realizadas, as noites de novenas também eram noites de
festas, pois, após as rezas, muitas vezes, ocorria uma festança de cantorias em que as pessoas
bebiam, comiam e dançavam alegremente até amanhecer o dia seguinte. Sobre estas rezas, o
Sr. Dermival disse:
Assim tem a reza aí depois quer que a gente cante um reis e aí amanhece o dia
sambando e bebendo, porque toda diversãozinha tem uma bebida no meio. Não tem
jeito, quem canta principalmente, porque a gente canta não segura a garganta tem
que tomar um pouquinho. Era bom se não bebesse nada, mas não tem jeito.
Assim, as novenas, embora fossem momentos de encontros dos homens e das mulheres
com Deus, também eram festas, que se realizavam, principalmente, no mês de maio, e
deixavam marca na memória daqueles que as vivenciavam, que sorriam, brincavam,
começavam e terminavam namoros, enfim, suspendiam provisoriamente o seu cotidiano, e,
por uma boa causa: a novena de Maria. Estes acontecimentos, que misturavam fé e diversão,
tornaram-se marcantes para muitas pessoas, pois estes eventos chamavam atenção, mexiam
com a comunidade, que começava a criar expectativas sobre as noites de maio, muito antes
destas chegarem. Essas rezas, especificamente, possuíam uma temporalidade própria, mas
havia também muitos outros festejos ou reuniões religiosas que ocorridas sem datas fixas.
A lembrança do passado a todo o momento trás para esses trabalhadores rurais a
nostalgia de um tempo que não retorna mais. Ou seja, o outrora é um tempo para lembrar, de
recordar, isto é, trazer de volta as experiências vividas, cultivando a emoção, inventando a
saudade: o roçado, as novenas, o namoro e as festas, visto que as emoções, os gostos, as
preferências não eram tão passageiras como na contemporaneidade.
Conforme os dados obtidos no campo, aos poucos com o passar dos anos, agravando-se
nas últimas duas décadas, as festas vão perdendo gradativamente as suas características
originais e freqüência na zona rural do município. Segundo os trabalhadores e trabalhadoras
rurais, um dos fatores que contribuem para esses resultados é a falta de interesse dos jovens
em perpetuar essas tradições familiares e da localidade em que vivem. Os mais velhos das
comunidades rurais lembram com saudosismo e lamentações o período de festas e
brincadeiras naquele tempo de infância, como coloca a srª. Isaura Alvino de Araújo:
Oh, vamo pra festa, a festa, meu pai, por exemplo, todo ano ia e levava a gente num
jegue, levava as crianças, todo mundo ia pra festa de janeiro. Aí ele pegava um
animal botava um cassuá do lado e do outro colocava os meninos dentro do cassuá,
era festa da igreja, levava lenha pra cozinhar. Lá naquele tempo não tinha energia e
nem fogão, era fogão de lenha mesmo. Aí ia a meninada toda, passava aqueles três
70
ou quatro dias tudo lá em Valente assistindo missa, procissão, só vinha depois da
procissão. A diversão era essa, livrando as brincadeiras com os bonequinhos ali
dentro da casa, as festas e os samba.
Nessa época do depoimento, década de 1940, São Domingos pertencia ao município de
Valente, por isso que nas festas de padroeiro da cidade as pessoas dos povoados deslocavam-
se para centro urbano a fim de rezar e se divertir com toda a família. Mesmo enfrentando
dificuldades, o esforço era feito, pois um dos únicos momentos de diversão e lazer ocorria
nessas festas religiosas anualmente, além é claro das rezas na roça e as diversas manifestações
que acontecia o ano todo. Mas nada se comparava, na visão desses trabalhadores e
trabalhadoras, as procissões na sede do município, na qual se usava as melhores roupas e
calçados para ir àquela seqüência de missas.
A srª. Isaura também relata as brincadeiras das crianças nesse período:
Brincar de boneca, boneca de pipuco (risadas), de boneca normal não. Pegava o
milho desbuiava (risadas). Era, botava, fazia a camisa e ia brincar de boneca. Fazia
aquelas bonequinhas de pauzinho e distraía. E tinha também as bonequinhas de
pano, mais as bonequinhas de pano já era uma coisa mais civilizada, né? A gente
mandava fazer porque eu mesmo não sabia fazer (risadas).
Esses relatos demonstram que muitos desses costumes foram adaptados ou reelaborados
com o passar do tempo, principalmente com a introdução da sisalicultura na região. E o
processo de modificações de muitos dessas tradições foram mais acentuadas a partir das
décadas de 1980 e 1990 em que ocorre um aumento rápido da urbanização, a chegada da
energia elétrica no campo e os recursos tecnológicos tornaram-se mais acessíveis às novas
gerações das comunidades rurais da referida cidade. Todavia, na perspectiva dos mais velhos
é imprescindível lutar para que não desapareçam essas tradições herdadas há várias gerações,
sendo que, muitos destes não conseguem compreender a dinâmica da cultura, pois algumas
dessas práticas foram incorporadas a outros valores e costumes dos mais novos. Mesmo
assim, “é imprescindível reconhecer o papel da memória numa cultura de tradição oral. A
memória mesmo se reconstruída ou imaginada é o alicerce de instituições como a família, o
candomblé, as festas, etc.”. 112
112
CRUZ. Op. Cit. , 2006, p. 71.
71
1.10 Perdas ou permanências?
A memória é o elemento fundamental na transmissão dos costumes as novas gerações e o
ponto de partida para se conhecer o passado. Mas, esse “passado, que já não aparece tão
estático a partir dessa concepção dinâmica e plural de memória, deve ser então, a todo o
momento, reconstruído, abrindo portas para uma percepção de presente” 113
. É importante
salientar que os acontecimentos selecionados e guardados na memória estão estreitamente
relacionados com o universo cultural dos sujeitos, demonstram assim que as memórias
individuais são marcadas essencialmente por um caráter social.
Em seus estudos sobre memória coletiva Ecléa Bosi narra brilhantemente as lembranças
de velhos sobre lugares e práticas sociais da cidade de São Paulo, ao longo do século XX.
Bosi aborda em seu livro, “Memória e sociedade; lembranças de velhos”, o papel crucial das
narrativas no processo de construção social da memória:
Um dos aspectos mais instigante do tema é o da construção social da memória.
Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar
esquemas coerentes de narração e de interpretação de fatos, verdadeiros “universos
de discurso”, “universos de significados”, que dão ao material de base uma forma
histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos. O ponto de vista do
grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a História. 114
O trabalho de Bosi também denúncia esse modelo excludente de sociedade pós-moderna,
globalizante, na qual os velhos são postos a margem do convívio social e condenados a viver
no esquecimento:
A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra.
Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor. [...]. O velho
não participa da produção, não faz nada: deve ser tutelado como um menor.
Quando as crianças absorvem tais idéias da classe dominante, agem como loucas
porque delineiam assim o seu próprio futuro. 115
No entanto, Bosi ao revelar as lembranças dos velhos como um dado significativo do
mundo social, revela que estes sujeitos exercem uma função primordial na e para a sociedade.
Nesse sentido, o velho é a peça fundamental na construção da memória coletiva e da
113
FREIXO; TEIXEIRA. Op. cit. S.d. 114
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, 1983, p.27. 115
Idem. Ibdem, p. 35-36.
72
identidade do seu grupo, pois mediante a recordação desses indivíduos especialmente, que
surge um elemento de resistência cultural e de enraizamento das comunidades.
De acordo com os depoimentos de sisaleiros e sisaleiras são-dominguense, um dos
maiores empecilhos para transmissão dessas manifestações culturais aos mais novos é a
desvalorização ou repulsão dos mesmos aos saberes dos mais velhos. Em geral, esses
trabalhadores do sisal são analfabetos ou semi-analfabetos, mas acreditam que, independente
disso, possuem saberes que podem transmitir as outras pessoas, inclusive as manifestações
populares enraizadas na vida desses indivíduos. O mais preocupante é que toda essa carga de
costumes é guardada na memória e perpetuada pela transmissão oral, ou seja, se não houver
jovens que queiram aprender e participar dessas festas ou cantorias, mesmo de forma
diferenciada ou assimilada a seu estilo e contexto de vida, estas por sua vez serão extintas nas
comunidades do município.
A insistência desses trabalhadores rurais em transmitir essas tradições torna-se evidente
nas palavras de Sr. Dermival:
A gente tá lutando pra ver se não só acaba mesmo, mas nunca é como a gente...
Antigamente era reisado, era brinquedo de roda, era a noite todinha no tempo da
minha mãe, misericórdia! Era uma boa. As mulheres tudo dedicava naquilo, as
moças e hoje não ninguém quer mais. Hoje em dia quem canta as rodas é as
mulheres véia, as moças não canta nada, os jovens não quer de jeito nenhum. Só tá
cantando ainda por causa dos véio, quando vê assim... Porque não tem um novo que
queria ir numa brincadeira... No tempo da minha murdenagem ajuntava as moças
tudo até as casadas e brincava de anel, brincava de casamento francês e... É tudo
brincadeira, divertia com a reza, chegava na reza, quando terminava a reza ia
sambar, ia cantar roda, ia brincar.
Desse modo, as festas como elaboração da identidade sócio-cultural dos grupos
populares que as produzem, historicamente constituídas e reproduzidas nos contextos das
sociabilidades rurais, passaram e continuam passando por transformações e acréscimos de
novos significados, na medida em que se tornam produto do mercado de consumo e são
transportadas para territórios distantes.
Os grupos de reisados e de cantiga de roda enquanto expressões culturais nas últimas
décadas estão sofrendo mudanças decorrentes de um processo comercial, o que implica numa
conseqüente perda da sua originalidade. As apresentações, seguidas de ganhos financeiros,
nem sempre são vistas como um incentivo cultural, mas como um produto exposto à venda
nos espaços urbanos.
73
A diferença das manifestações culturais de antigamente para as ocorridas a partir da
década de 1990 são gritantes como relata Marisete de Oliveira:
Muita diferença, porque antigamente as pessoas se dedicavam a essas coisas na
roça. Vai ter a reza na casa de seu Antônio, aí hoje a reza na casa de se Antônio,
tudo era dispensado para ir para a reza de seu Antônio. Só que Hoje o povo se liga
mais nas festas eletrônicas e suas culturas vivas tá ficando adormecida. Então, não
digamos um resgate, porque a cultura ela não precisa de resgate, ela precisa está em
pratica dia-a-dia, porque a cultura é viva está presente em cada um de nós todos os
dias de nossa vida.
Alguns componentes dos grupos de reisados do município, nos depoimentos realizados,
afirmam que não houve mudanças quanto à maneira de apresentar o reis. Além disso,
comentam também que ainda permanecem as mesmas músicas, com ressalva para àqueles
versos compostos no momento da apresentação. Todavia, estes sisaleiros relatam que houve
alterações quanto à quantidade de participantes nos grupo e a freqüência das apresentações
que foram bruscamente reduzidas. No local de trabalho, a cantoria permanece também com
menor intensidade, pois a maioria desses trabalhadores e trabalhadoras do sisal já se encontra
aposentados e o legado dessas cantorias, em parte foi inevitavelmente e naturalmente
modificado pelas novas gerações no decorrer do tempo na região.
Um traço interessante nos grupos de reisados do município é a ausência, em grande
parte, da ligação com a religião. Os trabalhadores da agaveicultura se declaram católicos, mas
relatam que o hábito de rezar antes da manifestação não ocorre mais, estes por sua vez,
designam a festa como “beba de cantoria”, em virtude da grande quantidade de bebida que era
consumida nessas cantorias.
Poucos grupos seguiram com o costume de realizar uma oração ou reza antes das
manifestações. Após uma festa religiosa na casa de um trabalhador rural era comum ocorrer
um reisado, mas isso se tornou uma dos momentos da manifestação que sofreu fortes
transformações. Apesar de alguns raros cantadores de reis e samba, muito devotos do
catolicismo, ainda cantarem um ou dois versos que se assemelham às rezas:
É como a chuva que lava
É como fogo que arrasa
Tua palavra é assim
Não passa por mim
Sem deixar um sinal.
74
Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos jovens dessas expressões culturais
nas comunidades foram as constantes migrações para os estados de Mato Grosso e Goiás.
Esses jovens, em sua grande maioria filhos de sisaleiros, destinam-se para a região centro-
oeste em busca de trabalho nas plantações, geralmente, de cana-de-açúcar. Muitos destes
passam pela experiência dos campos de sisal, mas com as cíclicas crises da planta e o trabalho
exaustivo optam pela saída, por alguns meses, do município. O Sr. Luís da Silva comenta
sobre a saída do seu filho mais velho para Mato Grosso: “aqui, veja bem, pra quem é muderno
sair fora é... ele trabalha um período quando chega aqui... ele traz algum trocadinho para
guardar. Alguma coisa e aqui é serviço pesado”.
Assim, saindo da comunidade por um tempo, os vínculos com as tradições deixados
distanciam os mais novos desses costumes. Até mesmo em razão da incorporação de novos
valores e o contato com outro universo cultural. Então, é importante salientar que sendo a
cultura dinâmica, estes jovens ao retornarem à sua terra natal trazem também experiências e
ritmos que, muitas vezes, são incorporados ás práticas locais. Entretanto, para a Srª. Isabel
“enquanto tiver os velhos pode durar até mais uns tempos, mas pela juventude acabou.
Quando a gente fala, mas que nada menina, isso é coisa de cafona, quero isso nada! É!”. No
entanto,
O “boi roubado” e a “bandeira” são as manifestações que mais sofreram com as
transformações evidenciadas na década de 1990. Ambas as expressões culturais eram
realizadas com freqüência nos períodos de colheita da mandioca ou na limpeza dos campos de
sisal. Esses mutirões seguidos de festas tornavam-se o momento mais prazeroso de toda
aquela cansativa jornada de trabalho. Além disso, o “boi roubado” ocorria, geralmente, de
forma inesperada para o dono da propriedade em que os trabalhadores rurais da vizinhança
reuniam-se de madrugada, e assim, deslocavam-se para a fazenda que estivesse necessitando
de mão de obra para trabalhar. É importante salientar, que o dono da fazenda deveria gostar
de muita cantoria, pois durante o dia era trabalhando e cantando, e ao anoitecer acontecia a
bandeira e o samba até o sol nascer. Mas, ao longo dos anos essa manifestação perdeu seu
caráter de surpresa e a animação. E o caráter inesperado atribuído à festa foi substituído pela
combinação entre os trabalhadores/cantadores e o proprietário da roça, quando raramente
acontecia.
A oralidade e a memória possuem um papel imprescindível na transmissão e
conservação desses costumes familiares e da comunidade. Só que, essas manifestações não
estabelecem na maioria dos casos uma relação direta com o saber escolar, nem com o saber
75
não escolar, mas sim com a vivência cotidiana, ou seja, com os processos sociais de
aprendizagem, assim definido por Brandão:
As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-
faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam
os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os
tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. 116
Nas últimas décadas surgiram vários questionamentos no que diz respeito às perdas e
permanências dessas manifestações populares dentro das comunidades do município. Os mais
velhos afirmam que houve transformações e extinção de muitos destes costumes herdados dos
antepassados, e assim acreditam que a luta é necessária para que não se perca ainda mais essas
expressões culturais. Contudo, o que se deve levar em conta é que esses costumes não podem
ser resgatados, visto que também não se pode transplantar a sociedade na qual foi originado.
Por isso, conviver com adaptações e atualizações desses hábitos e modos de vida distintos,
causa para estes trabalhadores mais velhos a sensação de esvaziamento de sua cultura.
No que tange a essas mudanças culturais no seio de uma determinada classe social,
Thompson tece o seguinte comentário sobre a sociedade inglesa do século XVIII:
Sem dúvida, nenhuma cultura reaparece da mesma forma. Se as pessoas vão ter de
satisfazer ao mesmo tempo as exigências de uma indústria automatizada altamente
sincronizada e de áreas muito ampliadas de “tempo livre”, devem de algum modo
combinar numa síntese de elementos do velho e do novo, descobrindo um
imaginário que não se basei nas estações, nem no mercado, mas nas necessidades
humanas. 117
Portanto, nota-se que nenhuma cultura sobrevive, tal como surgiu, por um longo tempo
na História. As transformações culturais acompanham as mudanças do campo econômico,
social e político de cada sociedade. O tempo/espaço em que um indivíduo vive difere do
contexto ao qual a geração futura irá depara-se, e assim as transformações são inevitáveis. No
entanto, o desaparecimento de um dado costume de um grupo social pode ser evitado e
reelaborada dentro de um novo panorama sem perder alguns dos traços marcantes de uma
comunidade.
116
BRANDÃO, E.R. O que é educação. 25 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.18. 117
THOMPSON E. P. Op. cit. 1998, p.303.
76
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os saberes construídos por pessoas que viveram no anonimato em tempos passado, e
assim ignorados pela história dos grandes fatos e personagens históricos, adquire novos
valores, através dos olhares sensíveis dos observadores da história cultural e social do
presente.
Na luta pela sobrevivência nas terras áridas do sertão baiano, homens e mulheres buscam
em muitas manifestações artísticas e culturais resistir as exaustivas condições de trabalho e,
assim, persistindo para não perecer diante dos períodos que a chuva tarda a chegar e resulta
nas secas que causa uma série de conseqüências e marcas sociais, econômicas e culturais que
o tempo não consegue suplantar.
Esses agentes históricos persistiram na criação de estratégias que lhe proporcionassem
mecanismos capazes de assegurar a permanência na lida de seu cotidiano. Esse fato tornou-se
nítido quando cantaram, sambaram e dançaram expressando sua capacidade criadora e
reveladora de traços de autênticos artistas que externaram em suas sutilezas a cultura de um
povo que na sua espontaneidade expressaram os sentimentos e saberes arraigados nos corpos
e nas almas dos sisaleiros.
Desse modo, analisar as cantorias que desde sempre fizeram parte da vida dos
trabalhadores rurais é perceber o espaço enquanto o local vivido, que se constrói
cotidianamente e que faz sentido justamente nas dinâmicas das relações. Pensar a cultura é
pensar também o espaço em que esta se desenvolve, percebendo-o enquanto territórios de
saber, é notar que toda construção de saberes de um povo mantém-se numa relação direta com
o local em que vivem.
As manifestações culturais, citados no decorrer do estudo, surgiram como uma extensão
das músicas presentes no local de trabalho. E posteriormente, essas cantigas foram
transferidas para os finais de semana como diversão e entretenimento. Assim, homens,
mulheres letradas e iletradas inventaram seus modos e suas esperanças dentro de um quadro
sócio-histórico-cultural, entrecruzando experiências e tradições, sendo a própria experiência
compreendida a partir das representações culturais.
Pode-se constatar ainda na pesquisa de campo, a luta incessante de sisaleiros e sisaleiras
em transmitir essas manifestações pra as gerações mais novas nas últimas décadas, tornando-
se uma tarefa muito difícil e delicada. Pois, os mais velhos não aceitam e não querem deixar
que esses costumes se percam das práticas culturais da comunidade, mas os jovens assimilam,
77
na medida do possível, esses costumes dentro do seu universo cultural e inserem novas
experiências e valores a essas expressões culturais. Essas realidades distintas não são aceitas
pelos mais velhos que interpretam como a perda dos costumes da comunidade na qual estão
inseridos, por isso o discurso marcante desses trabalhadores e trabalhadoras em lutar para não
extinguir essa “cultura”.
Diante disso, as perdas ou permanências dessas manifestações no período em estudo foi
um ponto delicado da pesquisa. Isso em virtude de que os elementos ou dados colhidos não
são suficientes para concluir até que ponto e/ou grau essas canções, mais propriamente, foram
assimiladas pelos mais novos e a participação destes nessas manifestações. Até mesmo por ser
uma questão bastante complexa, pois analisar esse fato em vista da dinâmica da cultura entre
comunidades, grupos sociais ou sociedades distintas, carrega em si peculiaridades, que devem
ser levadas em conta no tempo e espaço em que cada indivíduo histórico vive.
Evidencia-se também que as transformações nas festas, rezas e brincadeiras dos
trabalhadores rurais tornaram-se inevitáveis nas comunidades de São Domingos. No entanto,
o que não se pode negar é a grande importância que essas manifestações culturais ainda
continuaram tendo no seio dessa sociedade, pois mesmo com tantos estereótipos em torno da
região Nordeste e, principalmente, nos sertões dessa região, as expressões culturais são tão
fortes e significantes como em qualquer outra parte ou região do país. A imagem da seca e das
condições miseráveis de vida, onde pessoas vivem desoladas e vitimadas, por muito tempo
enraizado no imaginário popular, começa a ser contestada pela imagem de sujeitos produtores
de sua própria história e em sintonia com as mudanças e inovações tecnológicas, culturais,
econômicas no país.
E assim, através de histórias de vida e da percepção do ambiente de estudo o presente
trabalho buscou mostrar algumas manifestações e sua importância no cotidiano desses
sisaleiros e sisaleiras são-dominguense, que utilizavam diariamente as canções populares
como incentivo e animação na realização do trabalho com o agave. A partir disso, foi possível
perceber que nas canções estavam muito de seus costumes e ideais de vida, que uma vez
postos em forma de cantigas aliviavam os desejos reprimidos e os sentimentos eram, então,
externados com muita alegria pra superar as adversidades do trabalho, ou mesmo demonstrar
as afetividades guardadas no intimo do ser humano.
Um fato inesperado que foi captado nas pesquisas e posto no trabalho remete-se ao
aparecimento de algumas manifestações não planejadas, inicialmente, que surgiam nos
depoimentos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Tais como a “Bandeira”, “Boi
Roubado” e as cantorias nas Casas de Farinha que possuíam uma íntima relação com as
78
Cantigas de roda e o Reisado, objetos mais específicos de estudo. Desse modo, todas essas
manifestações surgiram antes da introdução da sisalicultura no município, sendo essas
expressões já existentes no trabalho do campo seja na atividade agrícola ou na pecuária.
No entanto, com o desenvolvimento dos campos de sisal muitas dessas manifestações
foram adaptadas a um novo ambiente de trabalho, pois as demais atividades econômicas
passam a ser realizadas em segundo e terceiro plano. Sendo assim, como o período de estudo
compreende a década de 1990, em que a agaveicultura predomina no município, o estudo
enfoca principalmente os sisaleiros. Todavia, as manifestações existentes com mais
intensidade, nas décadas anteriores, foram de grande importância para entender melhor as
Cantigas de roda e os Reisados, presentes mais fortemente, no período em estudo. Isso não
significa que estas últimas manifestações tenham permanecido sem alterações ou atualizações
pelas novas gerações.
Sabe-se que um tema ou problemática de estudo pode ser vista e analisada sob várias
perspectivas. Além disso, o potencial de exploração de uma temática de pesquisa é infinito,
pois o ser humano é dotado de extrema capacidade de enxergar um mesmo objeto de
diferentes formas, dependendo do lugar e contexto em que esteja o pesquisador. Por isso, o
tema em foco nesse trabalho pode e deve ser bastante explorado e analisado sob outros
enfoques ou correntes teóricas.
Portanto, espera-se que em muito venha contribuir esse trabalho para a história de São
Domingos e região sisaleira. Pois, as carências nessa área de estudo são evidentes e pode ser
em breve modificado por outras pesquisas, em que múltiplas e diferentes histórias de vida
possam retratar culturalmente o trabalho com o sisal, e sua influencia na vida de trabalhadores
e trabalhadoras de fibra no semi-árido baiano.
79
REFERÊNCIAS
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SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de Historia: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de
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__________ O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro
1830-1900. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 2009.
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Cultura e identidade nos sertões do Brasil:
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83
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Revista:
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Atas:
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Atas das reuniões ordinárias e extraordinárias realizadas durante o ano de 1993.
Fontes orais:
Entrevistas 118
Adaltina Araújo Santana, março de 2009.
Dermival Trabuco Silva, dezembro de 2008 e fevereiro de 2009.
Isabel Maria Silva, novembro de 2009.
Isaura Alvino Araújo, setembro de 2009.
Joaquim Rozendo Santana, junho de 2009.
José Lopes Araújo, março de 2009.
Luís da Silva, março de 2009.
Landualdo Araújo Machado, dezembro de 2008.
Marisete de Oliveira, maio de 2009.
Marivalda Araújo Silva, janeiro de 20010.
Marli Silva Cardoso Silva, dezembro de 2009.
Manuel Moséis de Oliveira, agosto de 2009.
Nilton do Santos Araújo, agosto de 2009.
Renilda Lopes de Oliveira, março de 2009.
118
Todos os depoimentos foram coletados nos povoados e comunidades do município de São Domingos.
84
ANEXOS
85
A - Cantiga de roda
Chove chuva
Caí sereno
Viajei 60 léguas
Na pisada do moreno.
Domingo é dia de pescaria
Que levava eu
De camisa e saburá
Maré tá cheia
Pescar na areia
Que na areia
Tem mais peixe
Que no mar
Todo bom pescador
É um só
Todo bom pescador
Pesca em pé
Não precisa pescar de anzol
Estou com os olhos feitos jacaré, é.
Eu joguei meu limão verde
Por cima da sacristia
Caiu no colo da moça
Isso mesmo que eu queria.
A casa da vovó
É feita de cipó
O café tá demorando
Concerteza não tem pó.
O sol girooô (2x)
Tomaram meu amor
Eu vou na porta buscar
Isso é um desaforo
Eu amar e outra tomar.
Maria Tereza,
Aonde você mora
Lá em Itaparica
Lá na rua da vitória
Se a rua fosse perto
Eu ia passear
Lá não se namora
Eu não que não vou lá.
Papagaio louro
Sabiá da praia
Valdir cabelo loiro
Ele é cortador de paia
Eu perguntei a ele
Tá sentindo alguma dor
Está amarelecendo
É o resíduo do motô
Borboleta tá no tanque
Com pena de voar
Quem tem amor bonito
Tem pena de deixar.
Olé, olé, olé, olá.
A semana tem seis dias
Vou morrer de trabalhar
Morrer de trabalhar
Pra sustentar a mulher
O pago que ela me dar
É dizer que não me quer.
A flor da laranjeira
É branca e cheira
As meninas tá dizendo
Eu sou faceira.
Quem me dera ter agora
Um cavalinho de vento
Pra dar um galopinho
Onde está meu pensamento.
E você
Onde vai morar?
No berço do rio
Do lado de lá.
As mulheres na roda
E os homens no samba
Generador bamba. (2x)
Tirei um galho da roseira
As baianas balançou
A raiz da quixabeira
Pisa a baiana
Menina dos olhos pretos
Sobrancelha de veludo
Seu pai é pobre
Mais seus olhos vale tudo.
Menino boca de leite
86
Cuado na porcelana
Um beijinho da tua boca
Me sustenta três semana.
Desci riacho abaixo
Para tirar uma flor
Não tem riacho sem baixa
Nem morena sem amor.
Joguei meu lenço pra cima
Nos ares virou sucena
Só me caso com rapaz
Da corzinha bem moreno
Menina diz a teu pai
Que não coma de colher
Que ele tá pra ser meu sogro
E você minha mulher.
Pisa, pisa na primeira
A baiana apresentou
A cultura brasileira
No dia 31 eu fui numa festa
Numa casa nova
A primeira foi essa.
Laranjeira
Com que roupa?
Paletó e jaquetão tá na moda.
O sisal é um produto
De boa qualidade
Oh, Pedra Bonita
Vou deixar muita saudade.
Tu de cá e eu de lá
Passa um riachinho no meio
Tu de lá dá um suspiro
Eu de cá um suspiro e meio.
Minha mãe não quer que eu vá
Na casa do meu amor
Eu vou perguntar a ela
Se ela nunca namorou.
Meu benzinho é bonitinho
Bonitinho ele é
Parecendo Jesus cristo
Nos braços de são José.
Eu gosto de cor morena
Cor morena delicada
Quem amar cor morena
Não tem inveja de nada.
Fui no tanque beber água
O capim cortou meu pé
Deu um nó na fita verde
No coração de José.
87
B - “Boi roubado” Na fazenda de totó
Hoje tem um “boi roubado” (2x)
Nem perô que me chamou
Meu amigo e camarada
Mate um boi e faça a conta
Que eu vou sair na porta
Do acesseiro e do roçado.
Oh, mãe querida!
Oh, mãe amada!
Sem mamãe não tenho nada (2x)
Aquela colcha de retalho que tu me deste
Cortada em pedaços em pedaço foi costurada
E quando chegar o frio seu corpo inteiro
Tu é de lembrar da colcha e também de nós.
Oh! Oh!
Eu gosto de cantar boi
Onde tem cantador famado (2x)
Faço cantor virar galinha
E correr descarrerado
Mas o cantor que vem
Pra dá em mim no caminho
Topou espinho
E voltou todo espinhado (2x).
Quando meu amor partiu
Meu coração chorou
Meus olhos se cobriu de lágrima
Foi ela que me abandonou.
Esse boi saiu do meu currá
Que saiu do meu currá
Esse boi careta
Esse boi capeta
Esse boi de treta
Pulou a cerca
E a cerca balançar
Saí pelo caminho
E encontrei o vizinho
Eu consegui, meu boi laçar
Meu boi lacei
Da corda puxei
Escorreguei, e amarrei
Na purteira do currá
E esse boi desata menino
Na hora que ele chegou.
Meu amor tá com raiva de mim
Volte pra longe vamo vê seu pessoá
Se eu morrer vou ficar sem o meu xodó (2x)
Sofro tanto e ninguém tem dó. (2x)
Tô com medo de perder você
Isto dói muito em mim
Eu não vou te obrigar
De você gostar de nós.
Se eu tivesse o puder de Jesus
Não deixava minha mãe morrer. (5x)
Simbora minha moreninha
Você é meu bem querer
Amanhã eu vou me embora
Vou me embora como você.
Oh, ah...
Eu vou prender meu gado
No curral do alazão (2x)
Se minha vaca mineira
É da cor de leiteira
Tire o leite pra manteiga
Pra café e requeijão
O meu boi pintado
É de cor de briselado
Eu não deixo mal tratado
Por que meu boi não é ladrão
Meu bisa é um mineiro
Filho da vaca leiteira
Quando entra na porteira
Já encosta no mourão.
Eu vou vender meu gado
Com pequeno resultado
Só porque tô avexado
Pra me mudar pro sertão.
Eu tenho um filho
Que estava no ginásio
Quando soube do passado
Chegou em casa avexado
Sabendo da decisão
Papai, não venda seu gado.
Não venda seu gado não.
Mandei buscarem ouro
Não demorou de chegar
Um barquinho de ouro
Pro meu amor passear
Ensinei de tudo a ela
Dirigir e navegar.
Vou pra Petrolina
Vou vê meu gado
88
Eu vou pra jacobina e Petrolina
Vou vê meu gado
Meu gado quando me vê
Menino tu pode crer
Não comeu ficou pasmado
Vou inficar mourão
Lá no meu sertão
E assegura durão
Quando eu tô preparado
Mas já disse que é duro
Mais duro é aço
Amarrei o mal criado
De amarrei também
Marrou, ô, ô, oh...
Que beijinho doce que ela tem
Depois que beijei ela
Nunca mais beijei ninguém
Que beijinho doce foi ela quem trouxe
De longe pra mim.
Um abraço apertado
Suspiro dobrado que amor sem fim.
Esse boi galopado (2x)
Só não canta quem não quer (2x)
Carié, cara, carié, a cadeira
Tatei uma porteira e caí em pé
E aqui hoje tem dois chapadeiro
Cantando maneiro
Sem perder um pé
Jesus por deus
Que não tenho medo
De cantor lá do coité.
Você sabe mulher
Você sabe
Porque eu vivo cantando, oh, oh...
Você sabe mulher
Você sabe
Pro você vivo chorando, oh, oh...
Boa casa, bom terreiro
Bom salão pra eu vadiar. (5x)
89
C - “Bandeira” Vou seguir essa bandeira
Que aqui hoje vou cantar
Mas no meio do pessoá
Que uma bandeira bem cantada
E faz quem tem amor chorar
E o senhor dono da casa
E como passa e como está?
E como tá sua família?
E como passa e como tá
Sua família?
E o senhor ladrão do boi
E faça parte ou venha cá
E tome bandeira vermeiá
E dê a branca pra cá.
Eu nunca cantei bandeira
Hoje aqui eu vou cantar
Quero dar passinho pra frente
Dona rebeca venha cá
Tanta manga, tanta mandara
Quanta falta de farinha
Tanta morena bonita
Eu não sei qual é a minha
Me dê esse instrumento
Mas, eu sei tocar
Vou pedir a belinho
Que pra ele me ensinar
Ele é grande professor
De guitarra e bandolinho
E a senhora dona rebeca
Lhe ofereço um casamento
Ô, ô, ô... Boi!
Me desculpe meus amigos
Me desculpe vou falar
Eu cheguei nessa bandeira
Vou louvar o pessoá
Respeitando a região
É coisa do meu destino
É porque não tenho dinheiro
Se eu pudesse
Eu fazia uma estrada no Brasil
Da Bahia ao rio de janeiro
Vou chegando bem pra perto
Que o destino é presepeiro
E pedindo a deus do céu
Meu destino é faceiro
Dona moça dê licença
Tenha santa paciência
Me ofereça esse pandeiro
Eu vou lhe jogar uma praga
Deus lhe ajude que pegue
Tenha dinheiro no bolso (2x)
Que dois burros não carregue.
Tem fé nessa bandeira
Com amor que me convém
Eu nunca cantei bandeira
Que tenho medo de errar
To cantando aqui hoje
No meio do pessoá
Tem amigo Sr. Totó
Tá no primeiro lugar
Eu sair pra passear
Me encontrei com sr. Li
E também Sr. Tutu
A senhora dona moça
Me ofereça esse pitú
Menina vou te dizer
Menina vou te falar
Deus te dê boa saúde
E seu todo pessoá
Tem a deus um bom condutor
Pra senhora se casar
Ê, ô...
Bandeira branca
E as coisas autorizada (2x)
Boa noite pro povo todo
Dá um passinho pra frente
Pula aí que nem um gato
A senhora dona moça
Me ofereça esse prato
E se queira se casar
Cuidado com os cabeludos
É danado pra enrolar
E se case com um cantor
Ele sabe lhe amar
Oh, ô...
Saudade da minha terra (3x)
Oh, ô...
Bandeira branca meu amor
Já vai chegar
Eu moro nos algodões
E meu nome é dermival
Já trocaram a bandeira
Não tenho mais o que trocar
Peço uma salmas de palmas
Pra salvar esse pessoá (2x)
Boa noite minha gente
Boa noite pessoá (2x)
Tá chegando minha hora
Não tenho mais o que cantar
90
Dona moça me desculpe
E me dê esse copo pra mim (2x)
A senhora dona moça
Deus quem é de lhe pagar (2x)
Deus lhe dê muito dinheiro
E um carro pra carregar.
Tô aqui mais totó
Passo bem não passo mal
Mais meu bom camaradeiro
Veja aqui vou lhe falar
Eu aqui tô estranheiro
No lugar que eu chegar
Passo bem não passo mal
Me dê a flor pra cá
Ê, ê, eh, eh...
Bandeira branca
Ela sempre me aparece
Pelo jeito que to vendo
Eu nunca cantei bandeira
Hoje aqui eu vou cantar
Boa noite o povo todo
Boa noite o pessoá
Vou cantar essa bandeira
Nessa mesma pancadinha
Na fazenda de totó
E a senhora dona Licinha
Toda moça me dê licença
Me ofereça essa enxadinha
Dona moça deus lhe dê
Um bom casamento
Arrume um rapaz direito
De um bom procedimento
Ele seja
Rico ou pobre
Mas não seja ciumento.
91
D - Samba
É como a chuva que lava
É como fogo que arrasa
Tua palavra é assim
Não passa por mim
Sem deixar um sinal.
Eu vivo feliz nesse mundo
Porque tenho a minha mãezinha
Peço pra deus que dê vida e saúde
Pra minha mãezinha
Oh! Mamãe!
Se você tá me ouvindo agora
Está essa valsinha bonita
Que eu fiz, mamãe!
Eu ofereço a senhora
Eu sei que ela vive pensando
Aonde tá o filho seu.
Dono da casa me passe esse reis
Sou inglês, mas não sou alemão
Sou alemão, mas não sou inglês
Me dê um aperto de mão
Que eu canto aqui outra vez.
Quando eu passo ela fica me olhando
Admirada com vontade de chamar
Nosso amor já está tão enraizado
Que é difícil de nóis dois separar
Ela tem o amor que eu lhe dou
E eu só tenho o amor que ela me dar.
Ai, ai amor.
Lê, lê, lê leô...
Oh, helena vem vê
Oh, helena vem cá
Que eu quero
Te dar um beijo
Vou te ensinar a namorar.
A Bahia pegou fogo
Deu trabalho pra apagar
Eu não vou apagar fogo
Que eu não tenho parente lá.
Boa noite gente
Que eu cheguei aqui agora
Cheguei nesse salão
Eu vou contar uma estória
Quando eu vinha no caminho
Eu ouvi o som da viola
E eu ouvi o som do pandeiro
Buliu com a minha caixola
Não sou daqui
Se esse samba for bom
Eu sambo a noite toda
E de manhã vou me embora.
Hoje é noite de festa
A noite de são João
Aquela que foi minha noiva
Que segurei sua mão. (2x)
Oh, ô, ô, ô...
Quem é que não tem saudade
Do primeiro amor.
Ô mulher
Tu vem morar mais eu
Teu pai e tua mãe te ama
Mas não ama como eu
Mulher vem morar mais eu.
É de madrugada que o galo canta
Quando o galo canta
É de amanhecer cedo
Que se levanta.
Menina faceira
Me alembro como se fosse agora
Daquele tempo que ia pra escola
Só pra ver você chorar, amor.
Quando eu era criançinha
Que eu não sabia trabalhar
Eu vivia pelo mundo
Com o que meió deus me dar.
Água de barragem vai e vem
A menina me chamou
Pra onde tu vai meu bem
Se você for eu vou também.
Quando vejo meu amor
Aí que dor no coração. (10x)
Como faz, como faz
92
Um passarinho
Que fez um ninho e avuou, vôo.
E eu fiquei sem teu carinho
Sem teu amor.
Ô pega fogo no curral
Ronca o porco no terreiro
Berra a ovelha no cercado
Pega o milho no roçado
Que é pra fazer de comer.
Entra na roda Maria e José
Entra na roda
Maria entrou no samba
Maria bateu no pé
Quando chega madrugada
Dança homem e mulher
Pega o boi
Amarra o boi
Meu cavalo tá selado
Pega o boi
Amarra o boi
Na quejada de gado.
Já é meia noite
Eu não posso cochilar
Meu amor tá me esperando
Eu não posso demorar.
93
E - Reisado
Despertai povo
Que habita neste vasto continente
Acordai quem está dormindo
Boa noite nobre gente. (bis)
Na chegada desta casa
Uma formosa bandeira
Que nela vem retratada
A mãe de deus verdadeira.
Belo dia festejado
Pela noite de natal
Aceitai o santo reis
Que Jesus mandou cantar
Numa noite de natal
Noite de muita alegria
Que nasce menino deus
Filho da virgem Maria.
Bateu asas e cantou galo
Meia noite deu sinal
Desabrocha a primavera
Nesta noite de natal.
Foram cantar missa nova
Pelas portas de Belém
Quem corre com reis na porta
Corre com Jesus também.
São José santa Maria
Do Egito se mudou
Por causa do rei Herodes
Que foi seu perseguidor.
Sairão as três Marias
De noite pelo luar
Procurando Jesus cristo
Sem nunca poder achar.
Os três reis foi procurar
Pensando não encontrar
Foram encontrar ele em Roma
Revestido no altar.
São José foi muito triste
Porque foi pelas montanhas
Maria foi muito alegre
Levou Jesus nas entranhas.
O primeiro trouxe ouro
Para seu trono dourar
E o segundo trouxe incenso
Para seu trono incensar
O terceiro trouxe mirra
Por saber que era imortal
Vamos ver o reis do mundo
O primeiro sem igual
São José santa Maria
Diz que foi pra Belém
Diz que foram cantar reis
Cantaremos nós também.
Cantar reis não é pecado
Foi coisa que deus deixou
Quando deus andou no mundo
Os três reis também cantou.
Os três reis como eram santos
Uma estrela lhes guiou
Para junto de Belém
Todos eles caminhou.
Deus lhe dê uma boa noite
Alegremente cantando
Por despedida de festa
Entrada de novo ano.
Esta é bem feita
Os telhados são de vidro
Muitos anos viva nela
A mulher com seu marido.
Dono da casa repare
E preste bem atenção
Somos catadores de reis
Daqui mesmo do sertão.
E também Sr. Fulano
É do rio de janeiro
Por chegar
Um reis na porta
Não tenha pena de dinheiro
94
E também dona fulana
Renda fina na janela
Eu aqui não vejo outra
Que se compare com ela.
E também Sr. Fulano
Alvos dentes de marfim
Seu sorriso se encontra
Nos seus lábios de carmim.
E também Sr. Fulano
Tesourinha de bom corte
Peço a deus nossa senhora
Que lhe dê uma boa sorte.
E também Sr. Fulano
É a flor da laranjeira
Quanto mais o vento dá
Mais ela balança e cheira.
E também Sr. Fulano
Cabecinha sem chapéu
Quando entra na igreja
Os anjinhos cantam no céu.
E também Sr. Fulano
É cordão de ouro fino
Delicado do meu peito
Resplendor do seu divino.
O menino pequenino
No seu leito multicor
Vá dormir o seu soninho
E sonhar com seu amor.
A todos que estão aqui
Não se dê por agravado
Quem ficou por derradeiro
É por ser mais estimado.
Esta foi por derradeiro
Por ter quem mais louvar
Adeus senhor e senhora
Até a noite de natal.
Senhora dona da casa
Abra a porta e acenda a luz
Venha receber seus reis
Para sempre amém Jesus.
95
F – Chula
Abre a vossa porta
Queremos entrar
Viemos de longe
Queremos brincar. (bis)
Abre a vossa porta
Também a janela
Queremos tomar
Licor de canela
Vamos entrando
Já na carreira
Vamos puxando
Nossa fileira
Assim dona da casa
Ela é boa, ela dá
Uma garrafa de vinho
E um docinho de araçá.
A dona da casa
Ela é boa ela é bela
Viemos passar
Uma noite com ela.
Assim dona da casa
Viemos lhe ver
Viemos de longe
Queremos beber.
Assim dona da casa
Queremos falar
Depois da folia
Queremos jantar.
Assim dona da casa
Queremos dizer
Depois da folia
Queremos beber
O meu estandarte
Que trago na mão
Não quero barulho
Só quero união.
Nós temos castanholas
E pandeiros também
Que corre da festa
Prazeres não tem.
96