A REPRESENTAÇÃO DO CAIPIRA NA UNESP FM · "Circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te...
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Wellington Csar Martins Leite
A REPRESENTAO DO CAIPIRA NA UNESP FM
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Comunicao,
da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicao da Universidade
Estadual Paulista Jlio de Mesquita
Filho, Campus Bauru-SP, como
requisito para obteno do Ttulo de
Mestre em Comunicao, desenvolvido
sob orientao do Prof. Dr. Mauro de
Souza Ventura.
Bauru
2013
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Leite, Wellington Csar Martins.
A Representao do caipira na UNESP FM / Wellington
Csar Martins Leite, 2013
335 f.
Orientador: Mauro de Souza Ventura
Dissertao (Mestrado)Universidade Estadual
Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicao, Bauru, 2013
1. Caipira. 2. Rdio. 3. Sertanejo. 4. UNESP FM. 5. Comunicao. I. Universidade Estadual Paulista.
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao. II.
Ttulo.
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Este trabalho dedicado a minha famlia, especialmente a minha me, Regina, minha
mulher, Isabela, e aos meus dois filhos.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus.
Ao meu carssimo orientador Mauro de Souza Ventura, pela confiana e elegncia.
banca de qualificao, composta pelos professores Dra. Maria Cristina Gobbi e Dr.
Cludio Bertolli, pelas preciosas dicas, correes e incentivos.
Aos professores Dra. Alice Mitika Koshiyama, que integrou a banca que analisou a
dissertao final (junto com a professora Dra. Maria Cristina Gobbi) e Dr. Maximiliano
Martin Vicente pelas preciosas correes e dicas e pelo apoio.
Aos professores do programa de ps-graduao em Comunicao da UNESP Bauru,
fundamentais na minha formao.
Aos queridos colegas de classe pela amizade e nimo.
Ao poeta Lzaro Carneiro e aos amigos do Clube da Viola.
Aos colegas da rdio UNESP FM.
professora Clia Retz e suas alunas de Relaes Pblicas, especialmente, Cristiane
Versuti, pela contribuio.
Aos funcionrios da Ps-graduao, sempre apostos e gentis.
Aos familiares que me ajudaram a multiplicar meu tempo, s vezes, abdicando de suas
prprias obrigaes: minha me e Marcelo e meus sogros Flvia e Afonso.
E, finalmente, a todos que indiretamente ajudaram-me a concretizar esse projeto.
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"Circulad de ful ao deus ao demodar que deus te guie
porque eu no posso gui eviva quem j me deu circulad de
ful e ainda quem falta me d
soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso
um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a
pino mas para outros no existia aquela msica no podia
porque no podia popular aquela msica se no canta no
popular se no afina no tintina no tarantina e no entanto
puxada na tripa da misria na tripa tensa da mais megera
misria fsica e doendo doendo como um prego na palma da
mo um ferrugem prego cego na palma espalma da mo
corao exposto como um nervo tenso retenso um renegro
prego cego durando na palma polpa da mo ao sol [...]
o povo o inventalnguas na malcia da mestria no matreiro da
maravilha no visgo do impriviso tenteando a travessia azeitava
o eixo ao sol[...]
e no pea que eu te guie no pea despea que eu te guie
desguie que eu te pea promessa que eu te fie me deixe me
esquea me larga me desamargue que no fim eu acerto que no
fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e
se ver que estou certo e se ver que tem jeito e se ver que
est feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento
se no guio me lamento pois o mestre que me ensinou j no d ensinamento"
Circulad de Ful - msica de Caetano Veloso e texto de Haroldo de Campos (do livro
Galxia) - CD Circulad de Ful, reeditado em 2002.
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LEITE, Wellington. C. M. A Representao do Caipira na UNESP FM. 2013, 335f
Dissertao (Mestrado em Comunicao). Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicao Universidade Estadual Paulista (UNESP). Bauru, 2013.
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto alisar o programa "Vida Caipira" da UNESP FM.
Nosso intuito verificar traos da cultura caipira idealizada pelos produtores do
programa radiofnico "Vida Caipira", analisando trinta gravaes. Para tanto, usamos
os pressupostos de Carlos Brando, Emlio Willems, Jess Martn-Barbero, Nstor
Canclini, Amadeu Amaral, Mario Kapln e Mikhail Bakhtin em diferentes momentos
da pesquisa: primeiramente para compreender o que significa a cultura caipira (oriunda
do Estado de So Paulo, mas com traos fortes da cultura medieval europeia); depois,
para identificar a importncia da mediao na Comunicao. E, finalmente, caracterizar
o objeto plasticamente (como ele se apresenta em termos de estilo e esttica
radiofnica) e analisar as falas do programa, com o foco em uma comunicao popular
e transformadora.
Palavras-chave: caipira, comunicao, rdio, sertanejo, UNESP FM
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LEITE, Wellington. C. M. The representation of the rustic culture in UNESP FM.
2013, 335f. Dissertation (Master's Program in Communication). Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicao Universidade Estadual Paulista (UNESP). Bauru,
2013.
ABSTRACT
The present study has as object the radio program "Vida Caipira" (Cracker Barred Life,
in a free translation) of UNESP FM. Our focus is find some rustic features idealized by
the program productors, researching thirty records of it. To reach our goal, some authors
were importants, like Carlos Brando, Emlio Willems, Jess Martn-Barbero, Nstor
Canclini, Amadeu Amaral, Mario Kapln and Mikhail Bakhtin, in different moments of
the research: first, to understand what the meaning of the rural culture from So Paulo
State (closely related to european culture of Middle Age); second, identify the
importance of mediation in Communication; finaly, describe and analyse the records of
the speaking of the radio program, focusing in a popular and transforming
communication.
Keywords: rustic culture, communication, radio, country music, UNESP FM
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - 5 primeiros Autores + Rendimentos ECAD de janeiro de 2010 67
Quadro 2 - 5 primeiros Autores + Rendimentos ECAD de janeiro de 2011 67
Quadro 3 - 5 primeiros Autores + Rendimentos ECAD de janeiro de 2012 67
Quadro 4 - 5 primeiros Autores + Rendimentos ECAD de janeiro de 2013 68
Quadro 5 - Censo demogrfico urbano e rural de 2010 do IBGE 81
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SUMRIO
1 Captulo 1 - Introduo e Fundamentos tericos e metodolgicos 11
1.1 Fundamentos Tericos e Metodolgicos 20
1.1.1 Fundamento terica 21
1.1.2 Metodologia 32
2 Captulo 2 - Moda Caipira e moda sertaneja 47
2.1 Caipira ou sertanejo? 47
2.2 Percurso da viola na Amrica Latina at o estado de So Paulo 53
2.3 Existem diferenas entre msica caipira e sertaneja? 61
2.4 E o "caipira" de hoje? 72
3 Captulo 3 - Vida Caipira: como programa de rdio e como objeto
de pesquisa
80
3.1 A cidade de Bauru: pequeno histrico, suas emissoras e os programas
sertanejos
80
3.2 Aspectos gerais da UNESP FM 84
3.3 Caracterizao do programa "Vida Caipira" 98
3.3.1 A estrutura responsvel por levar o programa "Vida Caipira" ao ar 104
3.3.2 Vinheta de abertura 105
3.3.3 Programao musical do Vida Caipira 108
4 Captulo 4 - A tnue separao entre criador e criatura 117
4.1 A entrevista 117
4.2 Os dois roteiros: o impresso e o imaginado 127
4.3 Tcnicas e traos marcantes da locuo de Lisboa 140
4.3.1 Traos caipiras 148
4.3.2 Traos de urbanidade 152
Consideraes finais 160
Referncias bibliogrficas 167
Stios visitados 172
Anexo 1 - Transcrio dos programas 173
Anexo 2 - Letra da msica "Cheiro de Relva" 286
Anexo 3 - Carta de Joo Pessoa 287
Anexo 4 - Exemplo do roteiro do programa 289
Anexo 5 - Entrevista com Walter Lisboa 290
Anexo 6 - Questionrio UNESCO aplicado na UNESP FM 317
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CAPTULO 1 - Introduo e Fundamentos Tericos e Metodolgicos
Aps anos dedicando-nos totalmente ao rdio AM e FM, principalmente o
cultural e educativo, no poderamos deixar de usar nossa experincia e angstias nessa
pesquisa. Inquietaes sobre o alcance da mensagem, as possibilidades (aproveitadas e
perdidas) de dialogar com os ouvintes e de colaborar com nossa sociedade.
O rdio, meio de comunicao to popular, cada dia com menos participao
no total de investimentos publicitrios, h anos busca renovar-se e atrair mais pblico.
Por razes comerciais, as emissoras foram excluindo alguns gneros musicais das
grades de programao, enquanto outros poucos gneros as dominam. s vezes, menos
que poucos gneros, mas somente os cantores mais conhecidos do momento.
Satelitizaes e conglomeraes tm diminudo o nmero de trabalhadores nas
emissoras, o que tem reflexo direto nas produes: a maioria dos programas de rdio
musical e quase no h radiodramatizaes e outra modalidades que requerem uma
produo mais elaborada. De outro lado, enquanto mera jukebox, enfrenta um
concorrente eficaz: os reprodutores de msica digital, cada vez menores em tamanho e
gigantes na capacidade de armazenamento. Com o MP3 disposio de todos,
especialmente aos mais jovens, a "reinveno" do rdio como modelo de negcio
continua urgente.
J nas emissoras educativas ocorre o inverso: quase tudo o que considerado
popular negado. Pluralidade a palavra de ordem para preencher a grade de
programao. Classificaes e delimitaes de gnero so enfatizadas. Produtores
buscam instituir e preservar patrimnios culturais. O sucesso praticamente ignorado.
Dotaes oramentrias do Estado garantem a compra de discos e a contratao de
profissionais. Mas tambm existe um dilema: como "produto" pago por nossos impostos
e "entrega" gratuita, as emissoras culturais e educativas no sabem qual contedo
agradar mais seu ouvinte. Mais do mesmo? Ou dedicar-se ao que as comerciais
excluem em nome do lucro?
A cidade de Bauru, centro-oeste do estado de So Paulo, at dezembro de
2012, possua duas emissoras educativas que no eram usadas comercialmente, ou seja,
no dependiam de verbas publicitrias. Por estarem ligadas a instituies mantenedoras
e que percebiam a necessidade de existncia de uma comunicao que no fosse
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meramente comercial, que no explorasse apenas as "msicas de trabalho", o sucesso e
os cantores da moda, essas rdios dedicaram a maior parte de suas programaes quilo
que as outras desprezavam, ou seja: msica brasileira com mnimo apelo comercial,
independente, msica instrumental, erudita, choro e vrios outros gneros musicais.
Em nossa viso, a pluralidade de ritmos, vozes e opinies so fundamentais no
rdio (seja ele educativo ou comercial). O que no significa que os gneros mais
populares devem ser excludos pelo simples fato de assim o serem.
Logo, o rdio sem pretenses econmicas, mas que no se nega a buscar um
caminho entre a cultura erudita e a popular nosso alvo preferencial. Como podemos
constatar empiricamente, foi estabelecida uma diviso entre o que "cultural" e o que
"popular" nos meios de comunicao.
Ocupando espao na acirrada luta pela ateno do ouvinte em Bauru temos a
emissora cultural, educativa e pblica UNESP FM. Sem medidores de audincia
disponveis, a UNESP FM mantm o "Vida Caipira" em sua grade h vinte e dois anos.
No mesmo horrio de sua veiculao, outras emissoras da cidade (as comerciais 94FM ,
Auri-Verde AM, Hot FM e Tupi FM ) - sem mencionarmos as web rdios existentes -
tambm se dedicam msica com elementos considerados rurais ou que so
desdobramentos desse tipo de msica, que constituem o gnero musical sertanejo.
Todas as emissoras comerciais citadas exploram a msica do momento, o comumente
denominado "sertanejo universitrio".
Para seguir a lei de radiodifuso pblica, a UNESP FM mantm uma grade
plural e uma pergunta constante: como fazer a ponte entre o cultural, o educativo e o
interessante ao pblico? Como fugir da ditadura da audincia ou do completo
desinteresse por ela?
Como trabalhador de emissoras comerciais, pensvamos na audincia. Como
trabalhador de educativas h quase uma dcada, pensamos em como agradar ao pblico
sem pr de lado o contedo artstico e cultural que no acha espao na mdia comercial.
Aps nossa graduao, em que pesquisamos o samba-cano (gnero popular que deu
base Bossa-Nova e foi veementemente negado pelos jovens da classe mdia da poca),
nos estudos do mestrado resolvemos unir ao rdio outro gnero musical popular: o
sertanejo. Assim surgiu o interesse por nosso objeto, o programa "Vida Caipira".
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Dentro de sua grade geral de programao (que vai do samba msica erudita)
a rdio universitria UNESP FM apresenta o programa "Vida Caipira", dedicado s
modas de viola. Em nossa opinio, dos exemplos mais prximos que temos, dentre os
programas de rdio na cidade de Bauru, que buscam um dilogo entre o popular e
cultural (excluindo-se a as chamadas "piratas" e as web rdios). Nosso objeto de
pesquisa vai ao ar de segunda a sexta-feira, das seis horas da manh s seis horas e
quarenta e cinco minutos. Nele, basicamente, no h espao para a msica sertaneja
feita atualmente.
De um lado, ao explorar as msicas sertanejas mais antigas, deu-nos a
impresso de servir como preservador da cultura rural paulista. De outro, como separar
uma manifestao artstica de seus frutos diretos, como se estivesse parado no tempo?
A dvida no somente nossa. Ao conversarmos com os idealizadores e
produtores do "Vida Caipira", percebemos que tambm enxergam no programa alguma
utilidade cultural. Encaram a emisso de modas de viola como preservao da cultura
caipira. Grupo de apreciadores de moda de viola que conhecemos negam o sertanejo
atual, s vezes, classificando-o como "impuro". Mas qual manifestao cultural pode ser
considerada realmente pura? Ser que o "Vida Caipira" realmente caipira? Quais
traos da antiga tradio rural paulista chegam-nos atravs da veiculao desse
programa?
Assim, gostaramos de conhecer mais profundamente o "Vida Caipira" e
identificar quais elementos da cultura caipira ainda so veiculados pela UNESP FM,
seja atravs das msicas selecionadas, seja pela interveno do locutor. Tentaremos, no
decorrer deste trabalho, mostrar alguns dos provveis motivos que levaram
valorizao das msicas sertanejas consideradas de raiz, a ponto do programa ser
considerado interessante para uma emissora cultural e educativa.
Como os produtores do programa so funcionrios pblicos que, em tese, no
sofrem presses do mercado e tm liberdade para escolher os temas de suas produes,
gostaramos de saber como traos dessa cultura so absorvidos pelos profissionais da
UNESP FM e repassados ao ouvinte.
Isso levou-nos a conhecer o que dizem produtores de cultura sertaneja em
Bauru e o locutor do "Vida Caipira", Walter Lisboa, que inventou um estilo, um
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personagem, para apresentar o programa. Com passado rural e apreciador de modas de
viola, Lisboa at pareceu-nos assumir-se como caipira.
Interessados em mais exemplos, participamos de encontros com os catireiros
do Clube da Viola de Bauru, em seus ensaios. Modistas, poetas, violeiros, danarinos e
apreciadores de Catira e de Moda de viola surpreenderam-nos ao dialogar
tranquilamente com o passado, pesquisando gravaes raras, histricas, trocando
discografias inteiras em seus pendrives, publicando sua agenda de apresentaes e
algum contedo em um blogue. Alguns apreciadores da msica sertaneja atual, outros
crticos ferozes dessa adaptao ao mercado. Alguns compondo novas modas de viola e
fazendo contato com os programas de rdio que tocam msica sertaneja para divulgar
seus discos e shows.
Mesmo alguns estando vestidos carter (usando botinas, chapus, lenos,
cintures, etc.) eram trabalhadores de empresas urbanas, alguns aposentados, outros
estudantes. Enquanto conversavam, apresentavam o legtimo sotaque bauruense, ou
seja, nada mais do que um erre "ingls", algum ritmo na juno das palavras. Nada que
se aproxime do famoso sotaque piracicabano, por exemplo.
Nosso interesse teve o mesmo intuito: entender o passado e as transformaes
que chegaram at nossos dias e explorar mtodos de dilogo, de troca com o pblico.
Dar continuidade ao pensamento que inclui os ouvintes na programao de rdio. No
aquela programao vertical, em que radialistas falam e ouvintes ouvem. Mas tentar
incluir as manifestaes populares e seus grupos produtores na grade da emissora. Sem
a falsa sensao de promover um programa rico em contedo e que pouco importa aos
que servimos.
Para isso, no primeiro captulo desta dissertao, debruamo-nos sobre o objeto
de pesquisa, os objetivos, justificativas e breve reviso bibliogrfica. Aqui, tambm,
uma breve descrio terica e dos procedimentos metodolgicos que guiam nosso
trabalho.
A busca por respostas comeou com a leitura de Jess Martn-Barbero, Nstor
Canclini, Maria Immacolata Vassalo de Lopes, Nilda Jacks, Mauro Wilton de Souza e
outros no que se refere Comunicao e Cultura.
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Emlio Willems, Waldenyr Caldas, Carlos Brando, Gislene Silva, Eunice
Durham, Romildo Sant'anna, Jos Ramos Tinhoro, Darcy Ribeiro, Antnio Cndido,
Paulo Castagna, lvaro Catelan e Ladislau Couto e Amadeu Amaral para entendermos
melhor a cultura e a msica caipiras.
Baseados nos autores citados, que pesquisaram e relataram as transformaes
da cultura rural paulista durante os sculos, passando pelo advento e emergncia da
Indstria Cultural no Brasil at nossos dias, supomos que traos dessa cultura foram
tomados como caractersticas identitrias de alguns indivduos. Seja por mera afinidade
ou por alguma ligao ancestral com o campo.
Simplificaes sobre a cultura rural paulista tambm chegam at nossos dias,
seja atravs de amigos e parentes que viveram no campo ou so descendentes de
migrantes, seja pela literatura, cinema, msica, etc. H ainda o sentimento de retorno
natureza, a busca por uma vida mais simples, menos violenta e poluda. Idealizaes
parte, gostaramos de saber quais caractersticas chegaram-nos at hoje e quais ficaram
para trs. E de que modo o apresentador do programa usa esses elementos para construir
um personagem.
Aps o perodo de levantamento histrico sobre a cidade de Bauru, suas
emissoras de rdio e a relao de ambas com o gnero sertanejo, tentamos entender as
atualizaes musicais e adaptaes do gnero Indstria Cultural. Contextualizamos os
termos "caipira" e "sertanejo" e, com auxlio das pesquisas orientadas pela professora
Dra. Clia Retz, tentamos levantar os dados que faziam meno ao nosso objeto e a
situao da UNESP FM perante sua audincia.
Pudemos demonstrar que a cultura caipira tipicamente paulista, mas no
expresso pura dos habitantes do Estado de So Paulo (ou da capitania de So Vicente):
expresso histrica de todos os povos envolvidos na formao do povo brasileiro -
desde seus colonizadores (exploradores e catequizadores), os povos indgenas e
africanos escravizados e dizimados, os imigrantes e seus descendentes. Podemos
afirmar que essa cultura manteve-se em transformao desde sua formao no Brasil
Colnia, mas registrou alteraes cada vez mais radicais aps a implantao da lgica
da Indstria Cultural.
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No segundo captulo essas informaes tiveram o intuito de descrever quem foi
o caipira e quem seria ele nos dias atuais em que mais de 80% da populao brasileira
est nos centros urbanos.
J na terceira parte, seguimos em direo do programa em si, caracterizando-o.
Para isso, sentimos necessidade de descrever o cenrio em que ele est inserido, j que o
alcance da UNESP FM restrito pequena regio que circunda a cidade de Bauru.
Como veremos, Bauru tem origem rural e sotaque conhecido como "caipira", apesar da
populao moradora em seu permetro urbano ser cinquenta e oito vezes maior que a
camponesa.
Nesse captulo falamos sobre aspectos tcnicos, legais e de organizao da
emissora, o que exigiu que fssemos muito descritivos. Buscamos na Constituio
Federal (especialmente o captulo V, da Comunicao Social) e a Constituio do
Estado de So Paulo para definirmos e conhecermos os objetivos e valores que devem
guiar uma emissora pblica. Conforme veremos, para fugir de simplificaes e erros
pessoais de leitura, aplicamos um extenso questionrio, com quase duzentas perguntas,
diretoria da UNESP FM. Esse questionrio, iniciativa da UNESCO, de autoria de
Eugnio Bucci, Marco Chiaretti e Ana Fiorini, estabeleceu parmetros contemporneos
para medir quantitativamente e qualitativamente algumas caractersticas de emissoras
pblicas, tais como transparncia administrativa, independncia, pluralidade, etc. Como
emissora paga por todos, ocupando espao no espectro de frequncia, dentro de uma
Universidade Estadual, cremos que as informaes levantadas foram ricas e necessrias
a nossa compreenso das suas atividades.
Para, assim, finalmente, chegarmos descrio e anlise do objeto em termos
plsticos: sua vinheta de abertura e seleo musical. Dividindo o processo da
comunicao em produo, mensagem e recepo, nosso trabalho dedica-se a analisar a
produo. Mais exatamente, as ferramentas usadas pelos produtores para construir as
imagens sonoras na mente dos ouvintes do programa "Vida Caipira", que so as
seguintes:
a) primeiro, a vinheta de abertura do programa. Elementos que chamamos
"plsticos" no rdio tm a capacidade de aumentar a experincia sonora dos ouvintes.
Em seus quarenta e cinco minutos de durao, o "Vida Caipira" apresenta apenas uma
vinheta, a de abertura. Toda identificao institucional, a ambientao e criao de
imagens visuais fica a cargo do locutor das msicas. Assim, descrevemos em detalhes a
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vinheta e tentamos, atravs de autores como Mario Kapln, Miguel Ortiz e Jess
Marchamalo, Jos Lopes Vigil , Dcio Pignatari e outros, medir a eficcia desse
instrumento de comunicao indireta com o ouvinte;
b) e quais so as caractersticas da programao musical do programa "Vida
Caipira". Como outro mecanismo de comunicao com o receptor, a programao
musical, alvo de consideraes e extensa descrio para entendermos como sua
existncia pode ajudar a caracterizar o programa, dialogar com outros programas da
emissora e, ainda, confirmar as informaes sobre o modo de expresso musical rstico,
feito no estado de So Paulo.
Basicamente, o programa "Vida Caipira" um programa de flashback, que traz as
modas de viola de volta ao rdio.
No quarto e ltimo captulo, nosso objeto de pesquisa foi analisado no que se
refere s gravaes, quatro dirias em cada um dos trinta programas (total de cento e
vinte offs); nelas, o apresentador mantm traos dessa cultura caipira em sua fala
(atravs do sotaque, uso de palavras e meno a hbitos tipicamente rurais).
Antes, porm, para dirimir dvidas e no inventarmos outro personagem,
sentimos a necessidade de entrevistarmos o locutor, Walter Lisboa. Em seus ltimos
meses de atividade profissional (antes da aposentadoria compulsria aos setenta anos,
procedimento comum no servio pblico), quisemos registrar sua biografia profissional
e dados pessoais que o relacionavam com o programa "Vida Caipira", principalmente
sua origem e a de seus antepassados.
Com base nas transcries das trinta edies do "Vida Caipira" analisadas e
com o exemplo de espelho da programao entregue pelo programador ao operador de
udio e ao locutor, buscamos mostrar a existncia de dois roteiros paralelos: um
impresso (contendo os nomes de msica, seus autores e intrpretes) e outro existente na
mente do locutor (como abrir o programa, cumprimentar seus ouvintes, dir os santos
e efemrides do dia, os crditos, o nmero da caixa posta e a mensagem do dia, alm,
claro, do nome das msicas). Criado e decorado seu prprio roteiro, Lisboa d asas
improvisao. Comentrios so feitos entre os itens dos dois roteiros, sem perder o
controle do tempo ou da estrutura preestabelecida do programa.
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Logo depois, com base no modo de trabalho radiofnico proposto por Mario
Kapln, Jose Vigil, Ortiz e Marchamalo, nos pressupostos de Mario Kapln, Mikhail
Bakhtin e Amadeu Amaral, fizemos anlise das falas. Para isso, buscamos entend-las
atravs das tcnicas de locuo presentes nos manuais de Vigil, Kapln e Ortiz e
Marchamalo. Com um estilo de locuo AM, personalista, Walter Lisboa forja um
dilogo, pergunta e responde, desabafa, rememora aspectos pessoais e faz comentrios
dos mais diversos, tomando sua opinio como se fosse a do seu ouvinte.
Sua locuo, assim como o roteiro, tambm divide-se em duas: um estilo
institucional, claramente urbana, em tom grave, que segue as regras da gramtica e da
fala considerada "radiofnica"; e outra considerada "caipira" devido ao sotaque e aos
regionalismos.
A primeira dedicada a dizer a mensagem do dia, texto de autoajuda ou
esprita, com o intuito de aconselhamento e reflexes metafsicas. Mesmo a maioria
delas sendo considerada de autoajuda, a fonte dos textos lidos atribuda a espritos
(psicografada) e a grupos da religio esprita.
A segunda, mesmo caipira, possui tambm traos urbanos. Os indcios caipiras
buscamos na pesquisa de Amadeu Amaral; so poucos, mas suficientes para que
saibamos que se trata de uma programao rural, principalmente ao mencionar temas
rurais (sua paixo por cavalos e a infncia nas cercanias rurais de Bauru e Tefilo
Otoni), ao cometer pequenos desvios da norma culta propositalmente. So dedicados ao
entretenimento.
E h, como veremos, traos urbanos em sua fala. Dizem respeito
religiosidade, ufanismo, comentrios sobre o trnsito, futebolsticos, sua condio de
idoso que dana, faz "peripcias" e que "tem a idade que quer" e sobre a origem
espanhola do locutor. Nada impessoal, seu discurso, como diz-nos Bakhtin, reflete
socialmente suas opinies.
Esperamos, sem pretenses de esgotar o tema, que o presente trabalho possa
lanar luz sobre a necessidade de aprofundarmos os estudos sobre a presena do rdio
nas comunidades, sobre o dilogo cultural entre as vrias camadas da sociedade e seus
meios de Comunicao.
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Como instrumento de divulgao, esperamos que as descries aqui presentes
sejam didaticamente interessantes a todos que gostam de rdio e entendem sua
importncia.
E mais: que sua concretizao possa servir para agradecer a todos que direta e
indiretamente contriburam para nosso desenvolvimento profissional e acadmico e que,
por razes que fugiram de nosso controle, no tivemos a chance de agradecer
devidamente.
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1.1 - Fundamentos Tericos e Metodolgicos
Ao debruarmo-nos sobre o programa de rdio "Vida Caipira", objetivamos
entender como a emissora pblica, cultural e educativa representa o que, grosso modo,
chama-se caipira (um dos entes ancestrais dos bauruenses) nesses tempos de Sertanejo
Universitrio.
Antes, porm, dois parnteses fazem-se necessrios: primeiro, como
trabalhador da mesma emissora, procuramos estabelecer a distncia necessria para uma
anlise que permitisse os outros pontos de vista que no fossem to parciais quanto o
nosso poderia ser (CANCLINI, 1999, p.29); segundo, usaremos o substantivo gnero no
sentido de estilo. Comumente essa palavra utilizada para classificar as msicas que
tm caractersticas em comum e os dicionrios registram-na (FERREIRA, 1988, p.254).
Assim, gnero musical pode ser o sertanejo, o samba, o choro, etc. Consequentemente,
usaremos a palavra subgnero para mencionar alguns outros modos de fazer msicas
que partilham das caractersticas gerais do gnero, mas que em determinado momento
passaram a diferenciar-se como subgrupo.
Isto posto, mencionamos, ttulo de ilustrao, a pesquisa do grupo IBOPE
publicada em 30 de janeiro de 2013 que trata sobre o gnero sertanejo no rdio
brasileiro. Os dados do Target Group Index da empresa foram colhidos nas regies
metropolitanas de So Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte,
Salvador, Recife, Fortaleza, Braslia e nos interiores das regies sul e sudeste, com
pessoas de 17 a 75 anos1.
Dos que ouviram rdio nos ltimos sete dias, 47% afirmaram ouvir o gnero
frequentemente.
A chamada "Classe C" responde por 52% desses ouvintes, seguida pelas
classes AB (36%) e DE (12%). Os adultos correspondem a 23% dos entusiastas dessa
modalidade musical. Curiosamente, o gnero mais apreciado em Braslia (56%) e
Curitiba (53%).
________________________
1 - http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/47-dos-ouvintes-de-radio-escutam-musica-
sertaneja.aspx, acessado em 15 de janeiro de 2013.
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importante frisar que esse sertanejo do qual fala a pesquisa a msica de
vrias duplas e alguns cantores solo da atualidade, tais como Victor e Leo, Fernando e
Sorocaba, Paula Fernandes, Michel Tel, Luan Santana, s para citarmos alguns.
Popularmente, esse gnero tambm tem sido chamado de sertanejo universitrio. Muitos
falam, de modo geral, de msica caipira, enquanto alguns pesquisadores dividem-no
entre msica caipira e sertaneja.
1.1.1 - Fundamentao terica
Para o presente trabalho, consideraremos como sertanejo toda essa msica que
preserva algum trao ou ligao com um passado rural, subdividido, popularmente, em
moda de viola, romntico, universitrio e outros subgneros pouco mencionados hoje
em dia. Dedicamos o captulo 2 para aprofundarmos essa e outras questes.
Apenas necessrio dizer que esse gnero musical tem, de fato, uma origem
que chamamos caipira, apresentando modificaes lentas e pouco profundas enquanto
manifestao rural (apesar da grande diversidade de ritmos); na segunda dcada do
sculo XX foi adaptada para a indstria do disco, porm, as grandes modificaes que
sofreu vieram com a "emergncia da indstria cultura", nos anos 1960 e 70 (ORTIZ,
2001, p.8). Os vrios ritmos musicais e estilos de fazer msicas rurais existentes at
ento foram, de modo popular, reunidos sob o nome de moda de viola. Principalmente
aps os anos 1970.
Quando voltamos nossos ouvidos programao da rdio UNESP FM,
percebemos que a msica sertaneja feita atualmente (e explorada exausto pelas
emissoras comerciais) no tem espao na grade da emissora.
A maioria das msicas selecionadas para os quarenta e cinco minutos do "Vida
Caipira" classificada como moda de viola. O sertanejo denominado universitrio no
aparece. Pouco h do sertanejo romntico (feito a partir das dcadas de 1980 e 1990).
Aparecem tambm algumas composies nordestinas e de nomes da msica popular
brasileira (especialmente composies buclicas - no que se refere a idealizaes sobre
a vida agrria - e telricas - msica mais ligada terra, natureza, numa abordagem
menos romntica e ingnua).
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22
O que percebemos na grade geral de programao da emissora foi uma busca
pela pluralidade de gneros musicais (com vrios programas eruditos, de jazz, blues,
rock, msica brasileira, msica internacional - no somente norte-americana -, msica
de relaxamento, samba, choro, instrumental brasileira, infantil, orquestrais, msica
independente, biografias de artistas, poesias e outros), jornalismo no investigativo que
busca apenas atualizar os ouvintes das notcias mais veiculadas e algumas informaes
sobre a universidade. Pluralidade considerada uma qualidade positiva, expressa em lei,
que quase no encontramos em emissoras do tipo comercial. Ao afirmarmos isso,
consideramos o que foi definido na Constituio Brasileira2 sobre a radiodifuso e em
uma das discusses da srie Debates da UNESCO, intitulada "Indicadores de Qualidade
nas Emissoras Pblicas"3. Aprofundaremos essa questo no terceiro captulo (no qual
caracterizaremos nosso objeto), mas algumas ideias dos dois textos listamos agora:
Entre os princpios estabelecidos em lei, analisaremos: a promoo do acesso
informao por meio da pluralidade de fontes de produo e distribuio do contedo;
produo e programao com finalidades educativas, artsticas, culturais, cientficas e
informativas; promoo da cultura nacional, estmulo produo regional e produo
independente; respeito aos valores ticos e sociais da pessoa e da famlia; no
discriminao religiosa, poltico partidria, filosfica, tnica, de gnero ou de opo
sexual; observncia de preceitos ticos no exerccio das atividades de radiodifuso;
autonomia em relao ao Governo Federal para definir produo, programao e
distribuio de contedo no sistema pblico de radiodifuso; e participao da
sociedade civil no controle da aplicao dos princpios do sistema pblico de
radiodifuso, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.
Sob estes aspectos, tentamos, descritivamente e ponto por ponto, mostrar se a
UNESP FM cumpre suas funes legais. A comparao foi feita usando dados colhidos
na web pgina da emissora (nome dos programas e as breves explicaes sobre eles).
J o questionrio qualitativo proposto pela srie "Debates" da UNESCO que
mencionamos, publicada em 2012, de autoria de Eugnio Bucci, Marco Chiaretti e Ana
Maria Fiorini, foi respondido pela direo da UNESP FM .
____________________________
2 - Artigos 220 a 224 e a Lei n 11.652, de 7 de abril de 2008 que versam sobre a radiodifuso.
3 - Em unesdoc.unesco.org/images/0021/002166/216616por.pdf de junho de 2012, acesso em maio de
2013.
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2011.652-2008?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2011.652-2008?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2011.652-2008?OpenDocument
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Os autores frisam, logo aps o ttulo Indicadores de Qualidade nas Emissoras
Pblicas, que a "avaliao" "contempornea". Mas o que isso significa?
A UNESP FM, enquanto cenrio em que se insere nosso objeto, uma
emissora pblica, cultural e educativa que segue ideais que restringem a busca por
programas considerados mais populares. Diferente do que ocorria com as rdios de
mesmo tipo h poucos anos, como a rdio Nacional dos anos 1940 (ORTIZ, 2001,
p.52). Realidades diversas marcadas por uma diviso clara de pensamento: enquanto a
emissora Getulista buscava ser campe de audincia e vendas de anncios, a UNESP
FM fruto de outra mentalidade de emissora pblica, onde esse ndice no
determinante para definir, escolher e avaliar programas e a comercializao de horrios
dificultada. Isso marcante porque, como veremos oportunamente, as aes do Estado
so, basicamente, preservacionistas, fundadas no iderio datado do incio do sculo XX.
Para garantir a pluralidade cultural e de opinies, as emissoras pblicas tm dotaes de
verbas garantidas por lei e isenes de impostos para facilitar a veiculao desses
contedos. Por esses motivos, a competio com as emissoras comerciais na busca por
audincia passa a ser considerada injusta (o que no explica a inobservncia de alguns
dos pontos expressos na Constituio, por parte das comerciais). Mas, como medir se a
postura das emissoras pblicas benfica e transparente ao pblico que paga pela sua
existncia?
Bucci, Chiaretti e Fiorini propem diversas maneiras de avaliarmos
qualitativamente as emissoras pblicas, sob a tica contempornea. A lista de
caractersticas variada, apresenta muitas formas de medir a qualidade de uma emissora
pblica. Alm de extensa, muitos dos indicadores so inditos aos profissionais de
emissoras pblicas (at pela escassez de obras sobre a radiodifuso pblica). Como o
documento e o questionrio no foram debatidos na UNESP FM (a direo sequer tinha
conhecimento dele), para ampliarmos os pontos de vista presentes neste trabalho,
pedimos direo da emissora para respond-lo. No captulo 3 debateremos mais
profundamente os tpicos propostos pelos autores e as respostas da emissora.
Voltando discusso sobre a grade geral da UNESP FM, os gneros musicais
mais populares presentes na emissora so o samba e o sertanejo. O primeiro tem espao
nas tardes de domingo (chama-se Batuque na Cozinha, uma produo voluntria, ou
seja, o responsvel no funcionrio da emissora, tampouco percebe qualquer incentivo
para realizar a tarefa). O ltimo, nosso objeto, de segunda a sexta-feira das seis s seis e
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quarenta e cinco minutos da manh (produo prpria da emissora, com o mesmo
apresentador h vrios anos).
Como constatamos em sua abertura, o intuito do programa "Vida Caipira"
apresentar, "atravs da msica de raiz, os "causos, lendas, crenas, a histria da gente
simples do campo"- conforme podemos ver na transcrio da vinheta de abertura de
todos os programas, presentes no Anexo 1 (a partir da pgina 173).
Porm, quando pensamos na palavra caipira, presente no ttulo do programa,
passamos a discutir as justificativas possveis da sua existncia, quais traos dessa
identidade so usados pelos produtores do programa "Vida Caipira" ao desempenharem
suas funes. O que h de caipira na fala do locutor Walter Lisboa e nas msicas
selecionadas por Srgio Magson? Podemos usar a palavra caipira quando nos referimos
programao musical de modas de viola (fazendo coro com a denominao popular
dessas composies, tambm conhecidas como sertanejo raiz, msica de raiz, moda,
modo, etc.)?
Caldas e outros autores demonstram que essa msica, como produto da
Indstria Cultural, no nova, mas no folclore (CALDAS, 1979, p.85). Percebemos,
atravs de Carlos Brando, Amadeu Amaral, Antnio Cndido, Romildo Sant'anna e
outros que para denominarmos uma msica como caipira, seriam necessrias diversas
caractersticas que no encontramos mais nessas expresses artsticas desde que foram
adaptadas ao disco de acetato por Cornlio Pires em 1929. Alm de ser masculina e
grupal, a msica caipira exigia interao entre as duplas (como nas "linhas", que so
desafios de adivinhao, respondidas tambm em forma potico-musical) e,
normalmente, possua uma durao que os discos no suportavam (e talvez, nem a
indstria do disco aceitaria). Ou seja, para ser considerada msica caipira, no basta ser
acompanhada por violas caipiras e duplas cantando em tera.
Assim, tambm passamos a debater de que forma essa reproduo do
imaginrio caipira contribui para gerar, manter ou renovar identidades multiculturais.
Como lembra-nos Canclini, industrializaes da cultura, sob critrios de marketing e
buscando a difuso de massa, so apenas uma das dimenses de todo processo de
intercmbio entre os pases perifricos e os pases que lideram a chamada globalizao.
(1999, p.20).
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H, segundo Canclini, a necessidade de que "realizemos anlises cuidadosas da
remodelao dos espaos pblicos e dos dispositivos que se perdem ou se recriam para
o reconhecimento ou a proscrio das mltiplas vozes presentes em cada sociedade"
(1999, p.21). Estaria a UNESP FM mantendo o que esse autor chama de "miopia
anacrnica das polticas estatais centrada na preservao de patrimnios monumentais e
folclricos" ao manter por mais de duas dcadas um programa desse feitio?
Renato Ortiz lembra-nos que os intelectuais brasileiros que viveram a
passagem do sculo XIX para o XX tinham o popular como sinnimo de tradicional,
numa viso romntica. Isso levou ideia da necessidade de proteo desse patrimnio.
Segundo o autor "a emergncia do pensamento folclrico no Brasil est, como na
Europa, tambm associada questo nacional, uma vez que as tradies populares
encarnam uma determinada viso do que seria o esprito de um povo" (2001, p.160).
Movimento semelhante, porm mais politizado, aconteceu nos anos 1950 (2001, p.162),
reinterpretando o conceito de cultura para alm do folclrico. O que importa, segundo
Ortiz, sabermos que o conceito de identidade "fruto da construo ideolgica" dos
grupos que se enfrentam em determinado perodo e da "emergncia da indstria cultural
e de um mercado de bens simblicos" (2001, p.164).
Nas anlises das falas do locutor do programa, constatamos rememoraes e
confisses saudosistas. Muitas dessas lembranas esto relacionadas com a fazenda dos
avs do apresentador. Outro ponto, mais importante nessa considerao, que
programas de rdio com selees de msicas antigas so muito comuns - percebemos
que aquela manifestao artstica do passado, as modas de viola, ainda muito
importante para vrias pessoas com as quais conversamos. Por isso, em princpio, no
qualificamos o programa como uma mera forma de preservao da cultura caipira.
Devido ausncia de medidores de audincia da UNESP FM e falta de tempo
hbil para realiz-la nessa dissertao, no pudemos constatar a opinio dos ouvintes.
Valemo-nos de alguns dados das pesquisas realizadas por alunas de Relaes Pblicas
da UNESP Bauru sobre a rdio UNESP - (AMARAL et al, 2012) e (VERSUTI, 2012) -
para nos concentrarmos na produo do programa. No ar desde 1991, cremos que o
programa acaba por criar hbitos em seus ouvintes. Dessa forma, por hbito ou por
afinidade, poderamos saber o quanto desses traos da cultura caipira selecionados pelos
produtores do programa "Vida Caipira" so compartilhados por ouvintes da UNESP
FM.
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Com o intuito de conhecer um pouco mais esse universo "caipira" da cidade de
Bauru, informalmente, no dia 14 de maio de 2012, estivemos no ensaio do Clube da
Viola. Fomos em busca dos famosos catireiros4 de Bauru, muito presentes em
festividades da cidade e regio. O encontro deu-se numa segunda-feira, dia de ensaio,
no Clube da Vov, s 20 horas. L, cerca de vinte e uma pessoas. Mais da metade,
homens. Dois teros com mais de 60 anos (faixa etria do apresentador do programa
Vida Caipira). Havia um menino de 13 anos (cavaleiro que disputa provas na hpica da
cidade) e uma menina de 10 (bailarina).
Muitos tinham suas prprias duplas, normalmente cantando as modas de viola
que consideravam raras (desconhecidas do pblico) e suas prprias composies
(melodias e letras). Dentre eles, um escritor de poemas telricos e crticos ao modo
como a natureza e os trabalhadores rurais so tratados.
Em nossa conversa informal, eles afirmaram que integravam o grupo por
entender que a Catira um bem cultural importante.
Sabemos que, por esse motivo, o grupo no formaria um pblico ideal a ser
pesquisado. Nosso intuito foi apenas de constatar alguns apontamentos das anlises
preliminares que realizamos (especialmente ao investigarmos os programas de 30 de
novembro e 1o de dezembro de 2011).
Foi interessante notar, nesta noite, que os integrantes do Clube da Viola
trocavam msicas atravs de seus pendrives e alimentavam um blogue5 com fotos e
informaes sobre as apresentaes - verdadeira "relao fluida" entre o grupo
tradicional e a modernidade (CANCLINI, 2008, p.240). Nas conversas, a maioria dos
presentes afirmou conhecer o programa "Vida Caipira" e alguns aprovavam sua seleo
musical (havia at os que tiveram composies prprias veiculadas no programa).
________________________
4 - Catira (ou cateret, ou chula) uma dana de provvel origem amerndia registrada em So Paulo,
Minas Gerais, Mato Grosso, Gois e alguns estados do nordeste. Nela, basicamente, "cinco ou mais pares
vestidos com roupas comuns danam num salo ou galpo ao som de duas violas. Ao centro so formadas
duas colunas e frente de cada uma delas posta-se um violeiro cantador. Um o mestre - que faz a
primeira voz e o autor da moda cantada - e o outro, o contramestre, que faz a segunda voz. Na coluna do
mestre fica o palmeiro ou tirador de palmas; na outra, o tirador de sapateado ou orela". possvel que
uma pessoa desempenhe as duas funes (alm de bater os ps). Os danarinos batem palmas ou
"pateiam" (batem com os ps fortemente e de maneira ritmada), mas no cantam. (MARCONDES, 1998,
P.181)
5 - http://clubedavioladebauru.blogspot.com.br, acessado em 20 de maio de 20112.
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Outro passo em direo a esse universo foi a realizao de uma entrevista com
o locutor Walter Lisboa. Buscamos, com isso, delimitar as diferenas entre o
profissional e o personagem que ele criou para apresentar o programa. Como Lisboa no
criou um nome para o personagem, cremos que confuses poderiam surgir. Queramos
seu depoimento a respeito da origem rural dos seus pais, suas frias na fazenda dos avs
(sempre citadas nas edies do programa que ouvimos) e a composio do personagem.
Uma parte dos integrantes do grupo Clube da Viola (os mais idosos) e o
personagem criado para apresentar o programa "Vida Caipira", ao relatarem ligaes
com um passado no campo, parecem reconhecerem-se caipiras. Estaramos diante de
verdadeiros caipiras? Em princpio, tivemos a impresso de que sim, ou de que se
tratava da existncia de identidades mltiplas, por serem citadinos oriundos, saudosos
ou admiradores do campo, vestidos ao estilo rural, etc., o que no se confirmou - como
veremos no captulo 2 ao usarmos diversas referncias bibliogrficas.
Como demonstraremos adiante, ocorreram diversas transformaes com a
msica sertaneja, desde os primeiros anos do descobrimento do Brasil, forando
adaptaes s alteraes sociais. Todavia, o mesmo no ocorreu com o caipira. Ao
chegar na cidade, deixou de constituir uma grupo fechado, com hbitos prprios.
Integrou-se ao centro urbano e seus hbitos. Assim, tornou-se um citadino, como todos.
Mesmo aps um passado rural (prprio ou dos pais), o que restou foi o gosto
por manifestaes artsticas e msicas que idealizam o campo, que possuem uma
esttica comum.
Canclini alerta-nos que na "noo de identidade h apenas a ideia do mesmo"
(1999, p.28) e sugere-nos, retomando Paul Ricouer, que mudemos a nfase para uma
poltica de reconhecimento.
Segundo ele, reconhecimento " um conceito que integra diretamente a
alteridade, que permite uma dialtica do mesmo e do outro".
Conforme afirma-nos o autor de Consumidores e Cidados, devido
degradao das instituies e da poltica, "outras formas de participao se fortalecem"
(CANCLINI, 1999, p.37). O cidado responderia a perguntas como "a que lugar
perteno", por exemplo, consumindo bens e meios de comunicao de massa de forma
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privada. Ou seja, a "participao coletiva em espaos pblicos" foi deixada de lado,
junto com as "regras abstratas da democracia".
Fazemos uma ponte dessa afirmao de Canclini com a descrio do modista
(o campons que compe modas de viola) feita por Romildo Sant'anna:
[...] o modista um personagem poetizador, ou sujeito da enunciao textual
cantada, que funciona como criatura inserida na prpria fico que realiza.
Promove translaes ideolgico-culturais, por conexes imediatas
estabelecidas pela subjetividade do intrprete real que canta e de quem ouve;
e, sobretudo, promove com o auditrio um arrendamento de fatos e
circunstncias imaginrios, apresentados como se fossem reais. (2000, p.124)
No assusta, pois, sentirmo-nos entre caipiras quando estivemos no ensaio.
Estvamos, sim, em frente a alguns modistas (poetas, letristas, compositores).
Citadinos, mas genunos. Sant'anna completa: parecem "posseiros, no de terras, mas de
quimeras" (2000, p.124).
certo, como j dissemos, que h um imaginrio caipira rondando nossas
mentes, vindo de experincias prprias ou das histrias que ouvimos das pessoas mais
prximas ou da mdia. Cremos que, mesmo consciente disso, o personagem de Lisboa
deixa passar outras informaes.
Se comunicar-se , aproximadamente, pr a mensagem em comum, sabemos
como age e veste-se o caipira, como (ou deveria ser) seu comportamento. Essa
imagem simplificada do caipira vai alm da pura transmisso da mensagem. H um
filtro por onde passam essas e outras informaes. Por isso, focamos no apresentador.
Tambm olhamos a seleo musical porque convencionou-se, popularmente,
chamar algumas msicas sertanejas de moda de viola ou sertanejo raiz, especialmente as
que tratam do campo, de disputas de violeiros, etc. de forma ingnua, buclica. Aqui
no h considerao acerca de ritmos, apenas da forma como se apresenta: dupla de
cantores, som destacado da viola caipira e tema relacionado ao universo caipira.
Logo, antes de tentarmos captar o que existe de caipira nas intervenes do
apresentador do programa, sentimos a necessidade de compreender melhor a cultura
rural paulista. Poderemos, dessa forma, descrever mais apropriadamente o que h e o
que falta de cultura caipira nas amostras selecionadas.
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29
Canclini em seu livro "As culturas populares no capitalismo" (p.29) restringe o
uso do temo cultura para
[...] a produo de fenmenos que contribuem, mediante a representao ou
reelaborao simblica das estruturas materiais, para a compreenso,
reproduo ou transformao do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito
a todas as prticas e instituies dedicadas administrao, renovao e
reestruturao do sentido. (1982, p.29)
E explica:
[...] a definio que estamos propondo no opera uma identificao do
cultural com o ideal e do social com o material, muito menos supe que seja
possvel analisarmos estes nveis de maneira separada. Ao contrrio, os
processos ideais (de representao ou reelaborao simblica) remetem a
estruturas mentais, a operaes de reproduo ou transformao social, a
prticas e instituies que, por mais que se ocupem da cultura, implicam uma
certa materialidade. E no s isto: no existe produo de sentido que no
esteja inserida em estruturas materiais. (1982, p.29)
Logo, Nstor Garca Canclini exclui aquela concepo popular de que cultura
um "ato espiritual" (1982, p.30), "alheia, exterior e posterior s relaes de produo".
Estando determinada pelo social, a prtica, qualquer prtica, "simultaneamente
econmica e simblica".
Em outro texto, ele afirma:
[...] Vamos nos afastando da poca em que as identidades se definiam por
essncias a-histricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem
daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a consumir. As
transformaes constantes nas tecnologias de produo, no desenho de
objetos, na comunicao mais extensiva ou intensiva entre sociedades - e do
que isto gera na ampliao de desejos e expectativas - tornam instveis as
identidades fixadas em repertrios de bens exclusivos de uma comunidade
tnica ou nacional. (1999, p.39)
Logo a cultura um "processo de montagem multinacional" (1999, p.41).
Mostraremos, mais adiante, que a cultura sertaneja assim.
Cremos que consumir a chamada moda de viola veiculada no programa da
UNESP FM, na cidade de Bauru, implica algo alm do simblico: significa que o
ouvinte tem um aparelho receptor, que acorda cedo (por hbito, por obrigao), que
divide este gosto com algumas pessoas (ou o defende delas) e que, eventualmente,
procura produtos e eventos relacionados com esta cultura: apresentaes de violeiros,
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30
catireiros, compra de discos, descarregamento de udios em MP3 e at uso de roupas,
adesivos em automveis e linguagem similares aos seus dolos. Percebemos at que h
os que defendem as modas de viola das msicas sertanejas atuais, como mais autnticas
e coisas do gnero. Ou seja, ostentar esta cultura como se fosse caipira uma maneira
de distinguir-se. Nostalgicamente, autoafirmar-se. Como diz Gislene Silva, "a maioria
de ns continua na busca desesperada pela sensao de pertencimento. Se no sua
terra, a seu tempo". (2009, p.287). No que com concorda Canclini (1999, p.46). Assim,
esses citadinos tentam equilibrar seus sonhos "caipiras" com sua realidade na cidade.
As inovaes tecnolgicas e os estudos de autores brasileiros e latino-
americanos da Comunicao e outras disciplinas tm-nos dado mostras suficientes das
variadas cores que compem nossa realidade. Podemos fazer coro com a brincadeira
popular de que o Brasil pura mistura, assim como toda Amrica Latina tambm o .
Os motivos todos sabemos e o poeta Olavo Bilac ilustrou o incio da gente e da cultura
brasileiras, no poema Msica brasileira:
De selvagens, cativos e marujos:/ E em nostalgias e paixes consistes,/
Lasciva dor, beijo de trs saudades,/ Flor amorosa de trs raas tristes.
(1964, p.263).
Por "raa" entendemos que o poeta faz aluso ao ndio, ao africano e ao branco,
mas cremos importante adicionarmos que havia (e ainda h) diversas etnias amerndias
no Brasil e vrias outras africanas trazidas para c. Hoje, todos partes importantes da
nossa formao cultural (CNDIDO, 1987, p.80). Por marujos, alm dos
portugueses, podemos adicionar todos os que, mais tarde, vieram ao pas. E quando
falamos de europeus nessa fase colonial do Brasil que percebemos um conjunto de
saberes que ligam os dois continentes, inclusive algumas caractersticas medievais,
momento histrico pelo qual o Brasil no passou porque ainda no teria sido
"descoberto".
Romildo Sant'anna, esfora-se em detectar alguns dos sinais medievais em
vrias modas de viola (seja no uso de formas preestabelecidas, como nas rimas, seja na
retomada de "antigas motivaes temticas" (2000, p.51) e uso de palavras de uso
corrente na lngua portuguesa medieval). A explicao seria o uso da "Gaia Cincia",
"conjunto de princpios que, na Idade Mdia, regiam a 'arte de poetar'". Assim
compositores e letristas "iletrados" (2000, p.78), geralmente autodidatas, desenvolvem
melodias e poemas baseados em sua vida e na da comunidade, usando apenas a
-
31
memria - relembrando, "recitando", cantando, ouvindo (2000, p.91). Logo, a msica
caipira, amerndia, soma os mtodos ibricos de composio, instrumento de origem
moura, com o sentimento e realidade do povo rural paulista.
A msica sertaneja, nos seus mais variados estilos e ritmos, parte da cultura
brasileira desde a chegada do colonizador. Como dissemos, adaptando-se frente a
mudanas sociais, ao seu uso na indstria do disco e poca de maior popularizao do
rdio. Sem dvida, um dos frutos mais populares de toda miscigenao tnica brasileira.
Porm, quando analisamos a cultura sertaneja, apesar de popular e presente nos
meios de comunicao desde os primrdios, percebemos que ela sempre foi taxada
como cultura popularesca. Esse mesmo tratamento dispensado a tudo que
considerado popular (BARBERO, 2003, p.115).
O autor de "A Moda Viola" faz coro com Barbero e registra a "contradio
entre a linguagem escrita e a oral, entre a cultura citadina e a rural, entre o estrangeiro e
o nacional, entre o rico e o pobre", etc. (SANT'ANNA, 2000, p.51). Claro que essa
contradio no exclusividade brasileira, mas em nosso pas chegamos a legaliz-la,
por exemplo, quando "iletrados" (ou seja, a maioria) sequer tinham o direito de votar
(2000, p.24). Essas contradies culturais, no decorrer do sculo XX, vo diluindo-se
(sem deixar de existirem concretamente). A cultura popular vem firmando-se
majoritria, principalmente com o uso cada vez mais generalizado de meios de
comunicao de massa.
Como afirma Canclini (1999, p.42), algumas manifestaes culturais foram
submetidas aos valores que "dinamizam o mercado e a moda". Demonstraremos adiante
que, mais do que uma questo de gosto, algumas manifestaes veiculadas pela mdia e
transformadas em moda em algum perodo, so to marcantes a alguns indivduos
(especialmente os jovens) que, depois de algum tempo, so cultuadas como "a msica
do meu tempo". Da o sucesso de alguns programas de rdio que conhecemos como
flashbacks.
Renato Ortiz, em seu "A moderna tradio brasileira" (2001), afirma que a
"discusso da cultura popular e da cultura brasileira constitui uma tradio entre ns"
porque atravs dela que "se configuram as contradies e o entendimento da formao
da nacionalidade na periferia" (2001, p.13). Logo, o debate sobre nossa identidade est
ligado ao problema da cultura popular, do Estado. Porm, Ortiz continua:
-
32
Em contrapartida h um relativo silncio sobre a existncia de uma "cultura
de massa", assim como sobre o relacionamento entre produo cultural e
mercado. No plano acadmico, praticamente na dcada de [19]70 que
surgem os primeiros escritos que tratam dos meios de comunicao de massa,
fruto sobretudo do desenvolvimento das faculdades de comunicao.
Anlises fragmentadas, muitas vezes de pouca profundidade, e que se
ressentem da ausncia de uma boa reflexo terica mais aprofundada sobre o
tema. tambm neste perodo que a Sociologia se volta para o estudo de
algumas manifestaes da indstria cultural e aparecem teses de mestrado
sobre a telenovela, a fotonovela e os programas de auditrio. (2001, p.14)
Ortiz lembra-nos que, at os anos 1950, a indstria cultural brasileira e a
cultura popular de massa emergente "se caracterizam mais pela sua incipincia do que
pela sua amplitude" (2001, p.44). A situao precria dos meios impressos e cinemas
tambm estendido ao rdio, o meio de comunicao mais popular: em "1952 o Brasil
possua dois milhes e quinhentos mil aparelhos, nmero que sobe para quatro milhes
e 700 mil receptores em 1962" (2001, p.47). A razo entre aparelhos de rdio e
populao de 6,6 receptores para cada 100 habitantes. Mesmo um nmero to baixo,
colocava o Brasil como o 13o pas latino-americano com mais aparelhos. Para ns, os
dados levantados por Ortiz mostram o grande isolamento da populao mais pobre em
relao aos meios de comunicao de massa, muito caros nessa poca. Logo, como
afirma o autor, seria "difcil aplicar sociedade brasileira deste perodo o conceito de
indstria cultural introduzido por Adorno e Horkheimer" (2001, p.48).
Fica claro que, quando pensamos em msica sertaneja, a massificao do
gnero aumenta com a popularizao dos meios de comunicao de massa. De forma
paralela, esse crescimento identificado por Caldas (1979 e 1987), Catelan e Couto
(2005), Lopes (1988) e Marcondes (1998) em seus respectivos trabalhos,
oportunamente detalhados mais adiante.
1.1.2 - Metodologia
Nosso objeto, o programa "Vida Caipira" tem mais de vinte anos de existncia,
quarenta e cinco minutos de durao a partir das seis horas da manh, de segunda a
sexta-feira. Seu apresentador, Walter Lisboa, assume um personagem para colocar-se
em p de igualdade com seus ouvintes. Mas nosso objetivo no estudar o programa
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desde sua estreia, ou seja, de 1991 at hoje. Para empreender essa anlise, foram
ouvidos trinta programas (mais de vinte e duas horas de gravaes, incluindo as quatro
falas dirias do apresentador - totalizando cento e vinte - e trezentas msicas).
Queremos entend-lo hoje, ao dizer-se caipira. Para isso, apoiamo-nos em Mikhail
Bakhtin (2006) e sua anlise do discurso. Alm das falas do locutor e das msicas,
sentimos a necessidade de realizar duas entrevistas: uma proposta no documento
"Indicadores de Qualidade nas Emissoras Pblicas - uma anlise contempornea"
(2012) entregue direo da UNESP FM; a outra, biogrfica, foi dirigida ao
apresentador do "Vida Caipira", Walter Lisboa. Para fundament-las, usamos os
pressupostos de Bardin (2009).
Aps o incio da pesquisa, decidimos fazer uma audio em sequncia, nos
meses de abril e maio de 2012 de vinte e oito programas. A transcrio de duas
primeiras edies do "Vida Caipira", nosso pr-teste, foi feita seguindo a linguagem
padro, receio nosso de caricaturizar o personagem. Aps percebermos, junto com
nosso orientador, a ao performtica do apresentador, decidimos transcrever os vinte e
oito programas restantes tal qual os ouvimos. Assim pudemos perceber no somente o
sotaque caipira, mas os desvios da norma culta da lngua portuguesa que o apresentador
faz propositalmente.
A quantidade de programas selecionados pode parecer exagerada quando
pensamos em analisar as falas improvisadas (offs) e vinhetas de uma produo com
roteiro to rgido. Mas quando miramos a programao musical sertaneja, que variou
entre modas de viola, MPB e sertanejo romntico, cremos que o nmero foi adequado.
Pudemos, assim, detalhar um pouco melhor a linha de programao que segue o
discotecrio/programador Srgio Magson.
Para tentarmos detectar o que resta de "caipira" no programa "Vida Caipira",
primeiro buscamos autores que pudessem dar-nos fundamentao terica nesse dilogo
entre a comunicao radiofnica e a cultura popular a que, comumente, chamamos
caipira. No mbito da comunicao, seguimos os passos de Jess Martn-Barbero,
Nstor Canclini, Nilda Jacks e outros. Ao falarmos da cultura rural paulista, Carlos
Rodrigues Brando, Emlio Willems, Waldenyr Caldas e mais alguns outros autores.
O segundo passo foi dado ao aprofundarmos, tambm bibliograficamente, a
conceitualizao das palavras caipira, sertanejo, moda de viola e os costumes que
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sobrevivem da antiga cultura rural paulista. Tambm nessa parte do trabalho, tentamos
descrever o ambiente musical sertanejo da atualidade. Os pressupostos de vrios autores
contriburam para compreendermos os traos identitrios da cultura rural paulistas.
Basicamente, para fazermos a relao entre os dados bibliogrficos e as caractersticas
do programa, primeiro:
a) tentamos identificar o que resta de caipira nas manifestaes sertanejas de
hoje;
b) fizemos um breve relato histrico das origens do caipira, da adaptao da
sua msica para indstria do disco, as transformaes nas dcadas de 1940, 1960/70,
1980/90, 2000 e 2010;
c) outro ponto que abordamos foi a origem dos usos da viola (CASTAGNA,
2012), o que fundamenta nossas impresses acerca do uso to popular quanto antigo
desse instrumento. Nesse ponto, a abrangncia da viola caipira espalha-se da capitania
de So Vicente (atual So Paulo) para outros estados e at pases;
d) tambm abordamos o modo de socializao, as festas, a catira, os mtodos
de trabalho e algumas observaes de intelectuais da poca acerca desse habitante dos
campos brasileiros;
e) depois, o esfacelamento da cultura caipira e o padro melodrtico de
algumas de suas variantes mais atuais e populares tambm abordados
bibliograficamente;
f) outro ponto de anlise foi a descrio do ambiente passado (tido como
popularesco) e atual do gnero sertanejo, principalmente quando falamos do sertanejo
universitrio (um sucesso mercadolgico);
g) alm disso, com auxlio de Eunice Durham e Gislene Silva, focamos as
relaes do pblico atual com seu passado agrrio e com o sonho de voltar natureza,
como contrapontos violncia, poluio, etc., da cidade grande.
Com isso, tentamos dar mostras que o caipira no conseguiu resistir
urbanizao da sociedade brasileira, integrou-se. E que a msica que est ligada a essa
figura, a moda de viola que conhecemos hoje, diz respeito ao passado de indivduos de
origem rural ou dos descendentes desses migrantes. Ou seja, a partir dos anos 1920,
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constitui-se como um produto da indstria cultural, mesmo que ainda incipiente em
nosso pas.
Na terceira parte, empreendemos uma caracterizao do nosso objeto: seu
cenrio, ou seja, Bauru - como centro urbano de origem rural -, suas emissoras
legalizadas (excluindo-se as piratas e as virtuais), a populao urbana e rural (segundo o
IBGE no censo de 2010) -, a UNESP FM - aspectos tcnico-prticos e legais sobre a
grade de programao da rdio, participao do ouvinte, aspectos organizacionais da
emissora - e a relao desses trs itens com a cultura caipira. Aqui fizemos uso de dois
questionrios, com o intuito de mantermos a distncia necessria para realizamos a
anlise: o primeiro questionrio foi sobre a emissora, seguindo os pressupostos
elecandos por Bucci, Marchetti e Fiorini (2012); o segundo foi aplicado para dar voz ao
locutor do programa, em termos biogrficos.
Detalhamos tambm o programa "Vida Caipira", no que tange a vinheta de
abertura, seleo musical, roteiro, perfil do locutor Walter Lisboa, usando como base os
manuais radiofnicos de Mario Kapln, Jos Vigil, Miguel Ortiz Jess Marchamalo.
Dentro do mesmo captulo, h os dados de duas pesquisas realizadas dentro da
UNESP Bauru sobre a UNESP FM, dando pistas da sua pouca abrangncia em relao
s emissoras comerciais. Dedicamos toda a terceira parte para caracterizarmos melhor o
objeto. Usando os pressupostos de Jess Martn-Barbero, Canclini e Nilda Jacks
analisaremos os programas Vida Caipira, no quesito produo: falas do locutor,
vinhetas de abertura e encerramento e uma viso geral sobre a seleo musical. Nosso
foco foi entender como se d a representao do caipira nas ondas da UNESP FM.
Aps isso, voltamos a citar Martn-Barbero, falando sobre a hegemonia
comunicacional do mercado e as relaes com a cultura popular. Passagem necessria
para percebermos que o gnero sertanejo foi e continua sendo usado para suprimir
linguagens diferenciais e ampliar o pblico. Multiplicar o consumo. Do popular,
constri-se, assim, o macio (2004, p.119) em poucos anos. Isso mostrou-nos que os
"consumidores em potencial" que Caldas identificou nos anos 1970 (1979, p.28), que
ainda no possuam recursos para comprar discos e produtos relacionados aos seus
dolos sertanejos, hoje, aparentemente, ajudam a sustentar esse mercado.
Continuamos o texto, tambm apoiados em variada bibliografia, e passamos a
falar sobre aspectos tcnicos, dentre eles:
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a) os levantados por Miguel Ortiz e Jess Marchamalo (2005), quando definem
vinheta radiofnica e as tcnicas de programao;
b) e sempre que possvel, dialogamos com os textos de Mario Kapln (1978),
antigos mas ainda muito teis, como quando menciona a riqueza de "imagens auditivas"
(1978, p.59), que em nossa opinio fazem falta nas emissoras em atividade hoje;
Nesse ponto, falaremos sobre o personagem criado por Walter Lisboa (ou o
estilo, como ele prefere dizer). Para sabermos as diferenas entre criador e criatura,
fizemos uma entrevista biogrfica com ele. Cremos que a interveno foi necessria,
principalmente, para eliminar distores possveis entre as afirmaes, desabafos,
confisses que o locutor faz no programa e sua histria de vida. A relao entre as falas
e a entrevista teve por base a origem rural de Lisboa, um dos temas (KIENTZ, 1973,
p.165) presentes em nosso corpus.
A entrevista aconteceu no dia 11 de julho de 2013, foi gravada em vdeo e est
completamente transcrita no anexo 5 deste trabalho (pgina 290). Faremos uma anlise
temtica (ou categorial) da entrevista no terceiro captulo, mostrando o modo de falar de
Lisboa (bastante diferente de quando apresenta o programa no que se refere
observao da norma culta) e as explicaes de sua origem (as mesmas que constam na
sua apresentao radiofnica, usadas para estabelecer um lao com seu ouvinte
imaginado). Ademais, a entrevista serviu para confirmarmos a posio do locutor como
produtor de contedo, usando experincias pessoais para fundamentar um personagem,
dialogando com o que ele entende ser necessrio a um programa de modas de viola.
Como a anlise qualitativa e a entrevista um complemento toda anlise das falas
veiculadas, cremos que a realizao de uma entrevista foi suficiente.
Laurence Bardin (2006) classifica as entrevistas planejadas de "semidirectivas"
ou semi-estruturadas (2009, p.89) e diz que a entrevista a encenao "livre daquilo que
esta pessoa viveu, sentiu ou pensou a propsito de alguma coisa". Tnhamos algumas
questes prontas e vrias delas no precisamos fazer por terem sido respondidas
espontneamente pelo locutor (bastante prolixo). Com as respostas e suas manifestaes
subjetivas tentamos identificar o sistema de pensamentos, os processos cognitivos, os
valores, emoes, afetividade e afloraes do inconsciente do entrevistado. Tivemos o
cuidado de explicar ao entrevistado nossos objetivos: conseguir entender melhor sua
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locuo no programa Vida Caipira, seus laos com o ambiente rural e futura anlise na
concluso da presente dissertao de mestrado.
c) outro autor de manual de rdio, Jos Vigil menciona a postura de produtores
de rdios educativas, muito preocupados com o contedo e, por vezes, espantando
ouvintes - caracterstica identificada na pesquisa de Versutti (2012, p.26) que citaremos
no mesmo captulo. Nestes casos, falta dialogar com a sociedade. Porm, o "Vida
Caipira", mesmo gravado, acaba por demonstrar interesse na opinio dos ouvintes
(geralmente por carta). Assim, abrimos espao para nova discusso sobre o modelo de
programao da UNESP FM, que em nossa opinio outra maneira de dilogo com o
ouvinte.
Em nossa anlise, comparamos as exigncias legais s emissoras pblicas e o
contedo programtico da emissora. Para permitir outros pontos de vista, aplicamos o
questionrio "Indicadores de Qualidade nas Emissoras pblicas (BUCCI et al, 2012)
direo da UNESP FM.
Apoiados em nossa experincia de quase uma dcada nas funes de produtor,
locutor, programador musical, operador de udio, roteirista e editor de udio em rdio -
alm de professor de locuo e diretor regional do Sindicato dos Radialistas h dois
anos -, observamos os modos de trabalho, tcnicas, mo de obra e softwares envolvidos
na produo do programa Vida Caipira. O intuito foi explicar, didaticamente, os meios
fsicos para levar ao ar este programa de entretenimento. No que se refere mo de
obra, Canclini afirma que a organizao social item que deve ser levado em conta
(1983, p.32). Tentamos estabelecer relaes entre a realidade da UNESP FM e a lei do
Radialista (que limita, por exemplo, que um profissional exera muitas funes).
Na sequncia, apoiamo-nos em Nstor Canclini, Mario Kapln, Miguel Ortiz,
Jess Marchamalo e Jos Vigil para nos debruarmos sobre trs pontos: a organizao e
a estrutura UNESP FM; anlise da vinheta de abertura; sua programao musical,
descrevendo o cenrio musical e o mtodo usado pelo programador/discotecrio Srgio
Magson;
Nesse ltimo ponto, tentamos identificar quais das trezentas msicas so
classificadas como modas de viola (que incluem diversos ritmos que, por falta de
conhecimento musical, agrupamos em um subgnero) e sertanejo romntico (conforme
proposto no captulo 2), quais das canes encaixam-se em rtulos de outro tipo, como
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ritmos nordestinos e MPB (Msica Popular Brasileira); alm de outras consideraes
sobre a seleo musical;
e) e, finalmente, iniciando o quarto captulo, buscaremos decodificar os signos
que compem a fala do locutor do programa. Para Bakhtin, o "processo de
descodificao (compreenso) no deve, em nenhum caso, ser confundido com o
processo de identificao" (2006, p.98). Em nosso caso, buscaremos traos da
urbanidade que emanam do discurso do apresentador e os traos caipiras que esto em
seu imaginrio.
Em outras palavras, ao analisarmos qualitativamente as quatro falas de cada um
dos trinta programas "Vida Caipira" - que assim constituem nosso corpus - optamos por
uma amostra em sequncia, tentando construir um nmero considervel de intervenes
do locutor, a fim de que pudessem deixar claras suas intenes e tcnicas ao se dirigir
aos ouvintes da UNESP FM e tambm demonstrar claramente que as msicas
selecionadas tm um perfil que varia pouco. Constatamos que o modo de falar do
apresentador fundamental para demonstrarmos o quanto ele performtico. No que
tange s msicas, demonstra-nos, ao nosso ver, certa fixao em um modo antigo de
expresso sertaneja.
Amadeu Amaral em seu "O Dialeto Caipira" (1976) descreve foneticamente o
falar do campons paulista. Alguns deles, ainda presentes em nosso modo de falar aqui
no interior do Estado de So Paulo. Em linhas gerais, o autor diz que o tom da prosdia
- "ritmo e musicalidade da linguagem" (1976, p.45) - "lento, plano e igual, sem a
variedade de inflexes, de andamento e esfumaturas" (1976, p.45) do portugus. De
fato, podemos notar que a fala do locutor mais lenta ao apresentar o "Vida Caipira",
mas no percebemos a falta de inflexes, pelo contrrio. sim cantada e bem
pronunciada, especialmente o erre "ingls" (1976, p.48), como Amaral percebeu nos
caipiras em que baseou sua pesquisa (caracterstica que estendeu aos paulistas de modo
geral, inclusive ao pronunciar vogais tonas e monosslabos tonos). Outro detalhe que
Amaral destaca a exploso do ch e j como fazem ingleses e italianos, mas que no
encontramos nas falas do locutor. Percebemos que o apresentador no troca o GU por
U, como o autor tambm descreveu em seus estudos. Porm, ao identificarmos os
encontros consonantais lh, por diversas vezes percebemos o som de i; bem como a
"reduo ditongal" (2000, p.126), como nos encontros de e+i que viram apenas um
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bem pronunciado. Empiricamente, tambm notamos esse modo de falar em conversas
cotidianas pela cidade e regio.
Ou seja, quando atua na apresentao do programa, o personagem que Walter
Lisboa inventou para apresentar o "Vida Caipira" tem um pronunciado sotaque,
comumente chamado caipira, mas que caracterstico do interior do Estado de So
Paulo. O que chama ateno que quase nenhum locutor profissional d asas ao seu
sotaque. O prprio Lisboa ao apresentar outros programas, disfara seu sotaque
interiorano.
Amadeu Amaral explica que o modo de falar caipira "estendia sua influncia
prpria minoria culta" (1976, p.41). Mesmo com a afirmao de Bakhtin de que as
"formas sintticas so mais concretas que as formas morfolgicas ou fonticas" e que
"so mais estreitamente ligadas s condies reais da fala" (2006, p.142), em nossa
investigao, consideramos a fontica fundamental. Principalmente pelo fato de ser uma
das caractersticas que Lisboa mais d nfase, juntamente com o desrespeito norma
culta da lngua portuguesa, quando interpreta seu personagem-apresentador.
Porm, como lembra-nos Amaral, o dialeto caipira sofreu com as "grandes
alteraes do meio social". Sua pesquisa foi publicada pela primeira vez em 1920 e o
autor j encontrava dificuldades de encontrar esse caipirismo em estado "puro". Para
ele, nessa poca, o dialeto achava-se "acantoado em pequenas localidades", subsistindo
"na boca de pessoas idosas" (1976, p.42). Assim, descreveremos melhor o que esse
dialeto caipira para entendermos quais traos chegam at o locutor e dele at os ouvintes
do programa Vida Caipira.
Em seguida, destacamos amostras da rigidez do roteiro. Exemplos de como o
locutor, apesar de improvisar, mantm um esquema do programa em mente. Isso
possibilitou, despretensiosamente, descobrirmos quais programas foram gravados
especialmente para aquele dia e quais eram "frios", ou seja, gravaes genricas que
podem ser encaixados em qualquer data. No caso do programa Vida Caipira, o dia do
ms mostrou-se muito importante, j que o apresentador costuma dizer as efemrides e
os santos catlicos de cada dia.
Usando os manuais radiofnicos de Kapln, Ortiz & Marchamalo e Vigil,
empreendemos uma anlise da tcnica comunicacional (da performance do locutor
Walter Lisboa) no que se refere a: expressividade (Ortiz, 2005, p.20); estilo da locuo;
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redundncia (PIGNATARI, 1997, p.49) (KAPLN, 1978, p.111); modos de
apropriao do que se convencionou chamar "dialeto caipira" pelo locutor, segundo
Fausto Neto (1995) e Amadeu Amaral (1976); desabafos pessoais; efeitos sonoros feitos
pelo prprio apresentador momento da gravao; tipos de histrias usadas para encerrar
o programa; exemplos de domnio da linguagem (KAPLN, 1978, p.59); modelos de
participao da audincia (KAPLN, 1978, p.120),
Para descobrirmos mais detalhes, como os sinais de urbanidade, tambm
usaremos a anlise de discurso, o que fecha nosso quarto captulo. Segundo Marina
Yaguelo, que prefaciou a edio brasileira de "Marxismo e Filosofia da Linguagem"
(2006) de Bakhtin, para este autor, "a palavra a arena onde se confrontam aos valores
sociais contraditrios" (2006, p.15), ou seja, a "comunicao verbal, inseparvel das
outras formas de comunicao, implica conflitos, relaes de dominao e de
resistncia, adaptao ou resistncia hierarquia, utilizao da lngua pela classe
dominante para reforar seu poder etc.". Considerando que toda linguagem ideolgica,
Bakhtin afirma:
Um produto ideolgico faz parte de uma realidade (natural ou social) como
todo corpo fsico, instrumento de produo ou produto de consumo; mas, ao
contrrio destes, ele tambm reflete e refrata uma outra realidade, que lhe
exterior. Tudo que ideolgico possui um significado e remete a algo situado
fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que ideolgico um signo. Sem
signos no existe ideologia. Um corpo fsico vale por si prprio: no significa
nada e coincide inteiramente com sua prpria natureza. Neste caso, no se
trata de ideologia. (2006, p.29)
Mas o que signo? Para Bakhtin, "ao lado dos fenmenos naturais, do material
tecnolgico e dos artigos de consumo, existe um universo particular, o universo de
signos". E ele continua:
Os signos tambm so objetos naturais, especficos, e, como vimos, todo
produto natural, tecnolgico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,
assim, um sentido que ultrapasse suas prprias particularidades. Um signo
no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm reflete e refrata
uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreend-la de
um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de
avaliao ideolgica (isto : se verdadeiro, falso, correto, justificado, bom,
etc.). O domnio do ideolgico coincide com o domnio dos signos: so
mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se
tambm o ideolgico. Tudo que ideolgico possui um valor semitico.
(2006, p.30)
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Para ele, cada "signo ideolgico no apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas tambm um fragmento material dessa realidade" (2006, p.31). Em
concordncia com o autor, buscaremos em meio performance de Walter Lisboa os
sinais que mostram seu verdadeiro universo, ou seja, a cidade. Como sinal sonoro, a fala
do apresentador que gravamos, "totalmente objetiva e, portanto, passvel de um estudo
metodologicamente unitrio e objetivo" (2006, p.31).
Mas Mikhail Bakhtin ressalva:
No entanto, o ideolgico enquanto tal no pode ser explicado em termos de
razes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar o material social
particular de signos criados pelo homem. Sua especificidade reside,
precisamente, no fato de que ele se situa entre indivduos organizados, sendo
o meio de sua comunicao. Os signos s podem aparecer em um terreno
interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno que no pode ser
chamado de natural no sentido usual da palavra: no basta colocar face a
face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam.
fundamental que esses dois indivduos estejam socialmente organizados, que
formem um grupo (uma unidade social): s assim um sistema de signos pode
constituir-se. A conscincia individual no s nada pode explicar, mas, ao
contrrio, deve ela prpria ser explicada a partir do meio ideolgico e social.
A conscincia individual um fato scio-ideolgico. Enquanto esse fato e
todas as suas consequncias no forem devidamente reconhecidas, no ser
possvel construir nem uma psicologia objetiva nem um estudo objetivo das
ideologias. (2006, p.33)
Para o autor de "Marxismo e Filosofia da Linguagem", ideologia s pode ser
definida objetivamente, pelo vis sociolgico:
A conscincia no pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e
ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingnuo e a psicologia
contempornea (sob suas diferentes formas: biolgica, behaviorista, etc.). A
ideologia no pode derivar da conscincia, como pretendem o idealismo e o
positivismo psicologista. A conscincia adquire forma e existncia nos signos
criados por um grupo organizado no curso de suas relaes sociais.
Os signos so o alimento da conscincia individual, a matria de seu
desenvolvimento, e ela reflete sua lgica e suas leis. A lgica da conscincia
a lgica da comunicao ideolgica, da interao semitica de um grupo
social. (2006, p. 33)
Portanto, aps caracterizarmos o objeto no captulo 3, empreenderemos a
anlise (que consta do captulo 4 do corrente texto) buscando, alm das marcas que j
dissemos, esses sinais sociais que emanam do apresentador. Ou, nas palavras de
Bakhtin, "como realidade (a infra-estrutura) determina o signo, como o signo reflete e
refrata a realidade em transformao" (2006, p.40).
Para o autor, o interesse no tanto pela pureza semitica da palavra, mas o
que ele denomina sua "ubiquidade social". E ele segue:
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Tanto verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relaes entre
indivduos, nas relaes de colaborao, nas de base ideolgica, nos
encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relaes de carter poltico, etc. As
palavras so tecidas a partir de uma multido de fios ideolgicos e servem de
trama a todas as relaes sociais em todos os domnios. portanto claro que
a palavra ser sempre o indicador mais sensvel de todas as transformaes
sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda no tomaram
forma, que ainda no abriram caminho para sistemas ideolgicos estruturados
e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas
acumulaes quantitativas de mudanas que ainda no tiveram tempo de
adquirir uma nova qualidade ideolgica, que ainda no tiveram tempo de
engendrar uma forma ideolgica nova e acabada. A palavra capaz de
registrar as fases transitrias mais ntimas, mais efmeras das mudanas
sociais. (2006, p.40).
Bakhtin afirma que, o que chama, psicologia do corpo social no algo
metafsico, interior, da "alma". Ela exteriorizada pela palavra, pelo gesto, enfim, pelos
atos comunicativos. Por acumulao, como mencionamos, a palavra expressa as
produes ideolgicas dos indivduos, frutos da sua realidade cotidiana.
Assim, ele deduz que a psicologia do corpo social deve ser estudada de dois
pontos de vista diferentes: "primeiramente, do ponto de vista do contedo, dos temas
que a se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo lugar, do
ponto de vista dos tipos e formas de discurso atravs dos quais estes temas tomam
forma, so comentados, se realizam, so experimentados, so pensados, etc." (2006,
p.41).
Portanto, para o autor, cada poca e cada grupo social possuem um discurso. E
a cada "forma de discurso social, corresponde um grupo de temas". Por isso que "a
classificao das formas de enunciao deve apoiar-se sobre uma classificao das
formas da comunicao verbal" (2006, p.42). No que toca nosso objeto, a maneira de
"falar bem" ou "corretamente" claro sinal da origem de classe, hierarquizao que,
grosso modo, poderamos resumir assim: o rico fala "direito", no que fica subentendido
que o pobre no. A fala do caipira, nesse aspecto, pode ser considerada fala do "pobre",
hierquicamente mais baixa na sociedade. O mesmo inferimos a respeito do
"conhecimento", pois, quanto mais exprime-se-lhe, mais importncia a sociedade
reconhece no indivduo. Colocamos tais caractersticas entre aspas devido
subjetividade possvel ao interpret-las. Nem nos interessa fazer quaisquer juzos de
valor.
O que importa para essa pesquisa que cada locutor - no sentido amplo, quem
emite a palavra - produz fisiologicamente um som. Esse som, para ser compreendido,
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deve estar inserido em um cdigo, que comum ao receptor. Esse som, essa palavra,
"serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-me em
relao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao coletividade" (2006, p.115).
Mas como Bakhtin define esse "locutor"? o "dono" da palavra quando a
produz com seus rgos fonadores. Mas pensando na "materializao da palavra como
signo", sua propriedade questionada. Diz o autor, "Deixando de lado o fato de que a
palavra, como signo, extrada pelo locutor de um estoque social de signos disponveis,
a prpria realizao deste signo social na enunciao concreta inteiramente
determinada pelas relaes sociais"(2006, p.115).
Ou seja, ela socialmente dirigida. E Bakhtin continua:
Antes de mais nada, ela determinada da maneira mais imediata pelos
participantes do ato de fala, explcitos ou