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A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE EM HERÓDOTO SONILA MORELO Dissertação de Mestrado PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA FAFICH - UFMG ORIENTADOR: PROF. Dr. JOSÉ ANTÔNIO DABDAB TRABULSI Belo Horizonte, maio de 2000.

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A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE EM HERÓDOTO

SONILA MORELO

Dissertação de Mestrado PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FAFICH - UFMG ORIENTADOR: PROF. Dr. JOSÉ ANTÔNIO DABDAB TRABULSI

Belo Horizonte, maio de 2000.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu pai Vicente, in memorian, que, como Heródoto, foi um viajante.

Em suas viagens a trabalho, pôde conhecer diferentes culturas, e sempre voltava

contando histórias - às vezes encantadoras, e, por outras, assustadoras -

garimpadas nas estradas de um Brasil da década de 70, marcado pela

intolerância política. Obrigada pelas histórias.

À minha querida mãe Luzmar, que dedicou sua vida ao ensino da matemática

nas escolas públicas deste mesmo país. Obrigada por nos ter ensinado a

sempre dividir em partes iguais tanto os deveres quanto os direitos.

Aos meus irmãos. Luzmarina escolheu a psiquiatria como uma maneira de lidar

com a mente do outro, nem melhor nem pior, antes um espelho da nossa própria

mente. Jaqueline, espírito investigativo e questionador que encontrou no

jornalismo e na ciência política os veículos para fundamentar e expor seus

argumentos e opiniões. Artur, in memorian, que dedicou sua curta mas bonita

trajetória ao estudo da física, onde (como na história) há espaço-tempos abertos

à relatividade. Germana é dessas advogadas que tem como princípios

fundamentais a igualdade e a liberdade. Cássio, capoeirista e dentista, trabalha

para ver belos sorrisos nos rostos brasileiros.

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Ao Prof. Dr. José Antônio Dabdab Trabulsi pela orientação objetiva, segura e

sensível aos melhores caminhos da reflexão. Obrigada pelo convívio intelectual

nessa travessia.

Ao Prof. Antônio Orlando Dourado Lopes pela extremada paciência, dedicação e

incentivo em meu aprendizado sobre a cultura e a língua gregas, de que detém

sabedoria ímpar.

Aos professores e funcionários do Departamento de História e Programa de

Pós-graduação em História, FAFICH-UFMG e do Departamento de Letras

Clássicas, FALE-UFMG, pelo suporte teórico e prático na elaboração da

presente dissertação. Obrigada pelo convívio, amizade e incentivo.

Aos colegas do mestrado pelos momentos agradáveis de discussão e reflexão

sobre o fazer história. Aos colegas do grego por compartilhar momentos

especiais de leitura e aprendizado.

Aos meus parentes e amigos que participaram diretamente ou indiretamente

desse projeto que aqui se realiza. Obrigada Clarinha e Arthur pelo apoio e o

carinho.

Por fim - but not least - obrigada à FAPEMIG pelo apoio financeiro.

Sonila

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Somos os verdadeiros países

não as fronteiras nos mapas

com nomes de homens poderosos.

Sei que você virá e me levará para o palácio dos

ventos.

É tudo o que eu queria.

Andar nesse lugar com você... com amigos,

uma terra sem mapas.

fala de Katherine, em O Paciente Inglês

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PADRONIZAÇÃO DE NOTAS

As citações da obra Histórias estão normatizadas da seguinte forma: o nome do

autor - Heródoto, sempre assim escrito - em caixa alta; numeração dos livros em

algarismos romanos; e numeração dos capítulos em algarismos árabes.

Exemplo:

HERÓDOTO. VII,33

Ou seja, Heródoto, Histórias, livro sete, capítulo trinta e três.

Todas as citações de Heródoto encontram-se no pé de página e foram

traduzidas a partir do texto da coleção LOEB citado no corpus documental.

Foram utilizados também, para os livros I e III, as traduções portuguesas da

coleção Clássicos Gregos e Latinos, edições 70. Nesses casos, os nomes dos

tradutores e a data vêm especificadas logo após a citação. Exemplo:

HERÓDOTO. III,38. Tradução de SILVA, M.F. e ABRANCHES, C. 1997.

Os demais textos presentes no corpus documental foram citados obedecendo os

critérios definidos por seus respectivos tradutores.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

..................................

08

CAPÍTULO I: Verdade e história

I.1 Heródoto e verdade .................................. 13 I.2 Perspectivas de relativização .................................. 22

CAPÍTULO II: Alétheia e Histórias

II.1 Alétheia .................................. 29 II.2 Alétheia entre mythos e lógos .................................. 34

II.3 Pólis e elaboração da palavra-diálogo .................................. 46 II.4 Alétheia nas Histórias .................................. 58

CAPÍTULO III: Diversidade e identidade

III.1 Nómos: religião e Histórias .................................. 65 III.2 Nómos: imaginário político .................................. 78

CAPÍTULO IV: Eleuthería, Isonomía e Alétheia

IV.1 O salto de Árion .................................. 85 IV.2 Diálogos .................................. 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

.................................

118

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CORPUS DOCUMENTAL

.................................

121

BIBLIOGRAFIA

..................................

123

Para

Beto, Tábata e Ariel.

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A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE EM HERÓDOTO

SONILA MORELO

Dissertação de Mestrado PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FAFICH - UFMG Dissertação defendida e aprovada em ...................................... pela banca examinadora constituída pelos professores:

_____________________________________________

Prof. Dr. José Antônio Dabdab Trabulsi (orientador) Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________

Prof. Dra. Regina Horta Duarte Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________

Prof. Dra. Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Departamento de Letras Clássicas Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais

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A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE EM HERÓDOTO

SONILA MORELO

Dissertação de Mestrado PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FAFICH - UFMG Dissertação defendida e aprovada em ...................................... pela banca examinadora constituída pelos professores:

_____________________________________________

Prof. Dr. José Antônio Dabdab Trabulsi (orientador) Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________

Prof. Dra. Regina Horta Duarte Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________

Prof. Dra. Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Departamento de Letras Clássicas Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais

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RESUMO

A presente dissertação tem por objetivo primeiro ajudar a compreender a concepção de verdade - alétheia - que podemos atribuir ao historiador Heródoto, a partir da leitura de sua obra Histórias. Inicialmente, recuperou-se parte da extensa discussão realizada pelos estudiosos das Histórias, sobre a validade dos métodos e a veracidade dos relatos desse historiador. Depois, foi realizada uma pesquisa sobre a história da palavra alétheia tendo em perspectiva o estudo etimológico e filológico de Detienne, em que se evidencia tanto a significação quanto a utilização da mesma pelos “mestres da verdade” na época arcaica e, ainda, sua laicização e subsequente inscrição no tempo dos homens na Grécia Clássica. A partir do estudo de Darbo-Peschansky, foi possível fundamentar o argumento de que, em Heródoto, a laicização da palavra alétheia é tributária de sua vinculação a uma opinião - dóxa ou gnomé. Em sua narrativa, Heródoto reconhece a expressão das diferenças, sejam essas culturais ou de opinião, estando assim a verdade relativizada. O “discurso do particular” indicou, finalmente, uma possível relativização da verdade face a uma proposição política do historiador. À luz dessa indicação desenvolveu-se o argumento que se baseia, primeiro, no fato da opção política do historiador estar explícita na sua obra pela expressão de sua opinião: a “isomomía é uma instituição virtuosa”. Ainda, pela estratégia narrativa desenvolvida nas Histórias. O discurso é multifacetado em suas diferentes versões pelo recurso do fazer ouvir as personagens, como que eliminando, pela presença imbricada dos diversos narradores - incluindo o próprio autor - uma pretensão de verdade absoluta.

ABSTRACT

The primary goal of the present dissertation is to serve as an aid to the understanding of the concept of truth - alétheia - we can find in Herodotus by means of the reading of his work, Histories. Initially, it has been recovered part of the extensive debate among some scholars on Histories, about the validity of the methods and the veracity of Herodotus’ reports. Thereafter, it has been done a research about the history of the word alétheia under the the perspective of the etimological and philological studies by Detienne, which shows both the signification and the utilization of that word by the “masters of the truth” in the archaic age and, also, its turning into a profane word by the “time of men” of the Ancient Greece. Following Darbo-Peschansky’s study, it is possible to support the claim that, in Herodotus, the laicicization of alétheia is due to its binding to an opinion - dóxa or gnomé. Throughout his narrative, Herodotus recognizes the expression of cultural or opinion differences, the truth being thus relativized. The “discourse of the individual” indicates, finally, a possible relativization of truth due to a political proposition of the historian. Following this indication it was developed a claim that is based, firstly, on the fact that Herodotus’ political choice is made explicit in his work by means of his opinion’s expression: “isomomía is a virtuous institution”. Then, that claim is based on the narrative strategy developed in Histories. There it happens a multitude of discourses, in its different versions, by means of the “making listening to” its characters, as it eliminated, through the imbricated presence of the various narrators - including the author himself - a pretence to absolute truth.

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INTRODUÇÃO

O que pode fazer uma historiadora da antigüidade com o tempo presente?

Assim começa o artigo “Elogio do Anacronismo”, de Nicole Loraux. E esta é, com

certeza, uma questão com a qual se deparam - a cada investigação do passado -

não só os historiadores, mas todos os que estudam a antigüidade. Afinal, o

anacronismo é para os historiadores um grave erro metodológico, um pecado

capital.1

Fazer ao passado perguntas que habitam o presente requer, normalmente, uma

série de cuidados: evitar levar para o passado palavras, conceitos e convenções

que não lhe pertencem; evitar comparações entre concepções de hoje e de

ontem. Estes são alguns cuidados que um historiador deve ter para não incorrer

no anacronismo.

Entretanto, esses cuidados, quando excessivos, tornam-se verdadeiras barreiras

que impedem o conhecimento de facetas potencialmente fecundas para uma

visão ampliada do período estudado e do próprio presente, barreiras que

dificultam o compreender o presente pelo passado e o passado pelo presente.2

Aliás, o objetivo de Loraux no artigo é, sobretudo, incentivar o historiador a ousar

mais sem, contudo, negligenciar a sutileza necessária para esse ‘jogo

1 LORAUX, N. 1992. p.57-70. 2 BLOCH, M. 1963. p.42-46.

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anacrônico’. Entre o atual e o antigo é preciso saber ir e vir, e sempre se deslocar

para proceder às necessárias distinções.3

Percebe-se aí a importância de pensar a história como uma via de mão dupla e a

necessidade de importarmos e exportarmos questões, não com o intuito de

mudar o passado, mas de repensar o presente: aos embalos assim como às

ilhotas da imobilidade que negam o tempo na história, mas que fazem o tempo

da história.4 Não se pretende a apologia da continuidade ou a afirmação de uma

possibilidade de igualdade em relação aos gregos da antigüidade, mas

apreender o que nos faz diferentes, percebendo as potencialidades de mudança

que o conhecimento de outras formas de pensamento nos oferece. O fazer o

tempo é para o historiador sua ação primordial.

Nesse sentido, a proposta de reflexão sobre relativização da verdade no fazer

história de Heródoto pode parecer anacrônica, pelo fato da terminologia não

estar explícita em sua obra. A utilização do termo relatividade, é, de fato, uma

proposta que se firma com a física de Einstein - elaborada no início do século XX

- e a lingüística de Benjamin Whorf.5 E é com a antropologia e sua proposta de

conhecer o ‘outro’ que o ato de relativizar é colocado em evidência nas áreas

humanas do conhecimento.

3 LORAUX, N. Op.cit. p.61,64. 4 Idem,idem. p.68. 5 ALFORD, D. 1999.

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Entretanto, o fato de Heródoto não utilizar explicitamente o termo relativizar, não

significa, por exemplo, que, quando analisa comportamentos sociais de

comunidades distintas, seja fazendo analogias ou comparações, ele não

relativize essas culturas quanto a seu contexto. A verdade nas Histórias é,

primeiro, relativa ao nómos, costumes sociais em que se misturam

indistintamente práticas políticas, culturais e econômicas. A verdade nas

Histórias é, também, relativa a uma opinião, doxa, seja daquele que diz ou que

escuta. E, finalmente, é relativa a um posicionamento político do historiador.

O diálogo que se propõe aqui é com o historiador Heródoto. Sua obra é, sem

dúvida, singular. O que a faz distinta é, primeiramente, seu aspecto

‘caleidoscópico’, devido à sua capacidade de abordar assuntos diversificados e

de alcance quase enciclopédico, como observa Wathers.6 A imagem de um

caleidoscópio é, sem dúvida, interessante para entender tanto a diversidade de

assuntos, quanto a variação das versões sobre um mesmo acontecimento nas

Histórias. Outra característica que faz singular, é seu aspecto de marginalidade

em relação às comunidades sobre as quais Heródoto expõe sua narrativa. O

investigador é um viajante que narra sempre do ponto de vista externo, de um

exilado, sem referencial fixo. É essa particularidade de ser um observador

marginal, que, talvez, tenha influenciado sua maneira de perceber que a verdade

é sempre relativa à opinião daquele que a diz, é sempre um descobrimento do

diferente como uma busca constante da própria identidade perdida, ou melhor,

negada.

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Heródoto é um viajante, que por longo tempo não teve um território definido, pois

por razões políticas (sua aversão à tirania), negou sua origem - Halicarnasso - e

depois adotou Túrio, cidade da Itália fundada pelos atenienses, como referência.7

O historiador de Túrio, como prefere ser chamado, acreditava que a essência da

vida estava na liberdade e no respeito pelos costumes e pelas leis adotados nas

diferentes sociedades que teve a oportunidade de conhecer.8

Liberdade, para Heródoto, possui dois referenciais políticos básicos: o primeiro

diz respeito à autonomia de uma cidade em relação à outra;9 o segundo refere-se

à liberdade de opinião e expressão em condição de igualdade entre os cidadãos,

sendo que o exemplo ateniense lhe parece o mais adequado.10 Heródoto é um

narrador no sentido benjaminiano, não pretende construir uma síntese para o

leitor.11 Seu leitor é constantemente convidado ou mesmo intimado a refletir e

elaborar uma opinião pessoal.

Ao privilegiar a democracia, [...] Heródoto não escolhe simplesmente um regime político. Defende uma concepção da sociedade humana fundada no lógos, isto é, no diálogo argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regra comum de ação [...].12

Na obra Histórias - no plural, por se tratar de investigações - o historiador

preserva do esquecimento os relatos orais pela forma escrita, o que possibilita a

6 WATHERS, K.H.1996. p.13. 7 LEGRAND, Ph.E. 1932. p.9,12. 8 Idem,idem. p.94. 9 HERÓDOTO. V,66,78. 10 Idem. V,65-66. 11 BENJAMIM, W. O narrador. 12 GAGNEBIN, J.M. 1997. p.22.

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ampliação do conhecimento através dos contos e lendas populares onde fantasia

e realidade se confundem, não por fugirem à verdade, mas porque, como diz

Homero na Odisséia, nóon égno: o que importa é conhecer o pensamento de

muitas gentes.13

Entretanto, é o tratamento dispensado a essas fontes pelo historiador que traz à

luz sua memória preservando-a do labor do tempo e que atravessa os espaços

geográficos instruindo os gregos. É exatamente o caráter instrutivo que se atinge

quando não se pretende fazer da narrativa uma síntese, ou seja, uma resposta

pronta, fechada em uma verdade que não requer reflexão nem elaboração de

uma opinião.

Interessa, nesse diálogo com Heródoto, a relação que o historiador estabelece

com suas fontes e o espaço do mythos e do lógos na composição final do

enredo historiográfico. Finalmente, interessa apreender qual é a perspectiva ou

concepção de verdade no fazer história de Heródoto. Não se pretende,

entretanto, fazer aqui uma analogia com teorias contemporâneas de verdade na

história, mas simplesmente procurar a partir de fragmentos da obra Histórias

elementos que indiquem como seria a concepção de verdade desse historiador.

CAPÍTULO I: Verdade e história

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I.1. Heródoto e verdade

A origem do descrédito do historiador Heródoto enquanto profissional

compromissado com seu ofício remonta à antigüidade. Tucídides, o historiador

ateniense, aponta sua desconfiança em relação à presença da influência da

tradição oral na obra Histórias e afirma sua disposição em implementar um

método onde o rigor no tratamento das fontes e a objetividade ao relatar os

acontecimentos ficam evidentes nas primeiras linhas da Guerra do Peloponeso.

Em De Legibus I. 1.5., Cícero, ao mesmo tempo que chama Heródoto de pater

historiae, adverte sobre a presença de inúmeras fantasias em sua obra. De

acordo com Evans, na antigüidade Heródoto foi acusado de ser anti-tebano, pró-

bárbaro ou mentiroso, e, em tempos modernos, foi rotulado de pró e anti-

ateniense, anti-belicista, apologista do império ateniense ou simplesmente um

equívoco.14

Em sua análise sobre o lugar de Heródoto na historiografia, Momigliano afirma

que, desde a antigüidade, a obra de Heródoto suscitou incontáveis debates

sobre a credibilidade de seus relatos, e, apesar de não lhe ter sido negado o

mérito de fundador da história, sua reputação foi, entretanto, polêmica. A

comparação de Heródoto com Teopompo feita por Cícero era, como adverte

13 HOMERO. Odisséia. v.3. Tradução de PEREIRA, M.H.R. 1992.

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Momigliano, a confirmação da tradicional opinião sobre o historiador de

Halicarnasso.15 Momigliano ressalta ainda que, nos debates sobre a

credibilidade do trabalho de Heródoto, o foco das atenções estiveram, quase

sempre, na veracidade dos acontecimentos, e as críticas fundamentaram-se,

principalmente, na forte presença da tradição oral - fonte mais utilizada nas

investigações do historiador. A tradição oral está, de fato, largamente

documentada nas Histórias. Segundo Lateiner são mais de trezentos os

informantes de quem Heródoto recolheu dados.16

A metodologia de Tucídides, considerada mais objetiva pelo rigor no tratamento

das fontes, imprimiu uma imagem de maior cientificidade, fundamentada,

prioritariamente, no lógos em detrimento do mythos - presente na tradição oral -

e influenciou a historiografia do séc. XIX, sendo Tucídides considerado por esta o

‘verdadeiro pai da história’.17 Segundo Immerwahr, os estudiosos do séc. XIX,

perseguindo a noção de história científica, acreditaram ter achado essa forma

em Tucídides, que parecia subscrever uma interpretação própria dos eventos

com base nos fatos analisados. Em contraste, Heródoto parecia ser vítima das

tradições que seguira tão de perto, e seu trabalho foi considerado uma coleção

de histórias confusas e não muito dignas de crédito.18 Rocha Pereira reitera que

a reabilitação do mérito da obra do historiador de Túrio teve que esperar até o

início de nosso século por especialistas como Jacoby (1913) e Pohlenz (1937),

14 EVANS, J.A.S. 1979. p.94. 15 MOMIGLIANO, A. s/d. p.2. 16 LATEINER, D. 1991. p.56. 17 TRABULSI, J.A.D. 1985. p.51. 18 IMMERWAHR, H.I. 1986. p.2.

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cujas análises seriam acrescidas de uma crescente pluralidade de dados

arqueológicos.19 Dabdab Trabulsi observa que:

De simples contador de historietas inverossímeis ou simplesmente absurdas, fonte tão suspeita que era preciso mil observações críticas antes de ser citado por historiador sério em pé de página, Heródoto goza hoje de grande prestígio, que acompanhou passo a passo a abertura da nouvelle histoire para a sociologia e a antropologia.20

Para Immerwahr, no período pós Primeira Guerra as idéias sobre a história e

seus métodos e significados mudaram de forma tão radical que os métodos

estritos do séc. XIX, baseados na análise imparcial de relatos antigos escritos,

não poderiam ser considerados mais como o modelo de história. Ao mesmo

tempo, houve um grande número de pesquisas voltadas para o próprio

significado da história e o resultado, afirma Immerwahr, foi um sério

questionamento dos assim chamados aspectos científicos da historiografia. Se o

julgamento crítico sobre os méritos de Heródoto nos últimos anos tem sido um

paralelo a essa mudança na visão histórica, o marco ou ‘linha divisória’ entre o

séc. XIX e o atual foi imposto por trabalhos de Jacoby e Pohlenz na Alemanha e,

posteriormente, a importante edição de Legrand (1932-1954) na França e o livro

de Myres (1953) na Inglaterra que também apontam uma mudança radical dos

julgamentos anteriores de Heródoto.21

19 PEREIRA, M.H.R. 1994. p. XVII. 20 TRABULSI, J.A.D. Op.cit. p.51. 21 IMMERWAHR, H.I. Op.cit. p.2.

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De fato, a abertura da história para outras áreas de pesquisa como a etnografia,

a sociologia, dentre outras, possibilitou uma releitura da obra de Heródoto. A

abordagem de aspectos religiosos, geográficos e culturais abundantemente

presente nas Histórias fez desse historiador o precursor da antropologia cultural

segundo Harmatta,22 assim como também merecedor de destaque entre os

fundadores da história das religiões, como afirma Burkert.23

Entretanto, a grande aceitação de sua obra e dos princípios de pesquisa

desenvolvidos por Heródoto não implicou no esgotamento das críticas em

relação à sua metodologia e, principalmente, à veracidade de seus relatos. Sua

obra suscita, ainda, polêmicas. Para Hartog, a questão que se coloca hoje não é

se Heródoto diz a verdade, mas como ele a diz.24

Na conceituada obra Paidéia publicada em 1936, Jaeger destaca que a grande

contribuição de Heródoto foi a de ter dado ao homem lugar central na sua

investigação, mas aponta sua falta de crítica e sua complacência no tratamento

das fontes.25 Chatelet considera que não se pode dizer que em Heródoto exista

uma noção de inteligibilidade do tempo dos homens pautada na idéia de

causalidade, essa noção se desenhará de forma completa somente em

Tucídides.26 Para Valéria Silva, estudiosos como Jaeger e Chatelet,

22 Herodotus, Historian of the Cimmerians and Scythians p.117. Citado por: PEREIRA, M.H.R. 1994. p.XXVIII. 23 Idem,ibidem. 24 HARTOG, F.1999. p.29. 25 JAEGER, W. 1995. p.441. 26 CHATELET, F. 1962. p.29-32. Citado por: SILVA, V.P. 1996. p.68.

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[...] parecem [...] situar tanto a obra de Tucídides quanto a de Heródoto numa linha, senão evolutiva, pelo menos progressiva, que parte de um momento no qual prevalece um estatuto relativamente nebuloso do passado rumo a uma consciência histórica plenamente desenvolvida, da qual teria resultado uma obra histórica tão acabada quanto a de Tucídides.27

As críticas elaboradas por Veyne ao historiador de Halicarnasso seguem um

traçado semelhante às de Jaeger, ao afirmar que: Heródoto compraz-se a relatar

as diferentes tradições que conseguiu colher.28 Na perspectiva de Veyne, o

saber para Heródoto significa, apenas, estar bem informado, não requer

elaboração de um critério de verdade.29 Entretanto, tendo em consideração o

significado atribuído pelos gregos à palavra critério, nota-se que o que Heródoto

realiza em sua narrativa é exatamente um julgamento, uma opinião particular

sobre os relatos recolhidos em sua investigação.

Norma Thompson aponta para o fato de Heródoto e Tucídides serem vistos como

uma dupla, não uma dupla que se complementa, mas mais ao estilo de Watson e

Sherlock Holmes - o primeiro, reconhecido em seu campo profissional, mas,

graças à sua ineficácia e imprecisão, apagado pelo brilho do segundo, que é

preciso, organizado, lógico, ou seja, modelo do investigador moderno que sabe

lidar com as evidências e é o que alcança a verdade.30

27 SILVA, V.P. Op.cit. p.63. 28 VEYNE, P. 1987. p.23. 29 Idem. In: DARBO-PESCHANSKY, C. 1998. p.9-10. 30 THOMPSON, N. 1996. p.ix. A referência de Thompson aos personagens de Doyle perpetua uma interpretação errônea, no meio científico, sobre a metáfora da dupla Holmes- Watson. Na verdade, Watson (e, portanto, Tucídides) aproxima-se mais do moderno investigador ocidental - numa perspectiva crítica - por seu apego não criativo aos fatos e à verdade, enquanto que o brilhantismo de Holmes vem exatamente de sua recusa em seguir os procedimentos convencionais do indutivismo científico (ver por exemplo, Doyle, 1998. p.28-37).

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Immerwahr propõe outra interpretação em relação aos critérios de verdade de

Heródoto. De acordo com esse autor, é importante ressaltar que quando

Heródoto começou a coletar informações, as tradições eram em grande parte

orais. Conseqüentemente, o que ele considerou como modo principal de ter

acesso ao passado foram, de fato, as tradições orais, e ele estava confiante que

se avaliadas de forma apropriada, poderiam tornar-se, de forma precisa, um

espelho dos eventos passados.31

A contribuição metodológica de Heródoto, segundo Immerwahr, consistiu em

combinar e arranjar as tradições, assim como o resultado de seu próprio trabalho

se tornou uma tradição viva para o presente e para o futuro. Isso só foi possível

com a aceitação, tanto quanto possível, dos fatos e dos padrões dos relatos mais

antigos. Nesse sentido dado pelo autor, a obra de Heródoto apresenta-se como

sumário tanto do pensamento histórico antigo quanto dos fatos. Isso não quer

dizer que Heródoto não possuía um senso crítico ou que ele aceitava tudo que lhe

era contado. Ao contrário, afirma Immerwahr, tinha uma concepção clara do que

consistiu o lógos anêr - o testemunho. Heródoto, acrescenta o autor, também

testou tradições pela sua própria experiência, colocou relatos variantes, um

contra o outro, como um juiz ouvindo testemunhas e aplicou critérios internos de

verdade comparando essas variantes através de sua própria reflexão crítica.32

31 IMMERWAHR, H.R. Op.cit. p.5. 32 Idem,ibidem.

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Sobre a história de Ciro, por exemplo, Heródoto inicia sua narrativa fazendo a

ressalva que apesar de saber diferentes versões sobre o assunto, ele irá se

fundamentar naquelas que não pretendem enaltecer o nome desse soberano, que

representa no imaginário persa um referencial importante devido às suas ações

no campo político: a conquista da liberdade e a fundação do domínio persa.

Essas ações constituirão para seus descendentes um referencial constante,

porque serão evocadas sempre que necessário, particularmente em momentos

críticos, de instabilidade política, de crise da continuidade do projeto

expansionista persa.33

O fato de Heródoto sublinhar que irá fundamentar a história sobre Ciro nos relatos

daqueles que não pretendem enaltecer seu nome, mas simplesmente narrar os

fatos, é um forte indício de sua visão crítica diante dos diferentes relatos. Essa

evidência de crítica no tratamento das fontes é significativa pois revela o

discernimento do historiador perante o que se entende como sendo a criação de

um mito, que no caso refere-se às histórias - provavelmente inventadas pelos

persas para enaltecer o nome de Ciro - presentes no imaginário social desse

povo.34

Apesar de Heródoto, afirma Vernant, é Tucídides que recusará altivamente o

mythôdes ao considerá-lo um ornamento próprio do discurso oral e que se

acharia deslocado num texto escrito.35 Mas o que Heródoto não descartou de sua

33 Ver: HERODÓTO. III,80-83 e IX,121. 34 O conceito de ‘imaginário social’ utilizado está especificado adiante neste trabalho. 35 VERNANT, J-P. 1992. p.176.

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narrativa foi o caráter paradigmático dos contos populares sobre as personagens

que habitam as Histórias. O que interessa a Heródoto quando expõe a história de

Polícrates e Árion, entre outros, não é saber a veracidade factual, mas a forma de

significar e entender a realidade presente nas formas de representação do

pensamento, entre esses, os contos populares. Nesse sentido, pode-se afirmar

que a obra Histórias comporta uma ‘circularidade’ de informações entre o âmbito

oral e o escrito, ou, entre o que Guinzburg talvez, chamaria de erudito e popular.36

Recorrendo ao lógos de Ciro, a imagem construída desse soberano pelo povo

persa é a de um mito (no sentido atual da palavra), e uma das características que

possibilitam essa leitura é a criação de diferentes versões e, uma outra é a

constante referência nos momentos críticos, ou seja, era um paradigma. Por ser

um paradigma, o esforço de racionalizar os acontecimentos que lhe dizem

respeito é relativamente maior do que o de racionalizar um evento comum,

justamente porque o paradigma comporta na sua essência a identidade com o

mito.

É isso que torna um desafio o trabalho de trânsito entre o lógos e mythos e a

reflexão crítica sobre aquilo que verdadeiramente aconteceu. Nesse sentido, o

estudo sobre o que significa a verdade para Heródoto pode ajudar a entender

questões complexas como as que se apresentam aqui. E, portanto, no contexto

das Histórias, optar pela falta de crítica e de rigor no tratamento das fontes não

parece ser a melhor opção.

36 Segundo ROMEIRO, A. 1991, p.12, [...] a cultura popular não se encontrava separada de

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Veyne não é um especialista em Heródoto. Entretanto, em sua obra Acreditaram

os gregos nos seus mitos?, o autor propõe uma análise sobre os padrões de

verdade na antigüidade que é de grande importância para o presente estudo e

muito tem a contribuir para uma investigação sobre a concepção grega de

verdade (assim como a obra de Detienne, Os mestres da verdade na Grécia

Arcaica - mais voltada para as implicações semânticas de alétheia - é de

fundamental importância para este trabalho).

Para uma concepção de verdade na obra Histórias é imprescindível ainda

apreender, através da análise de Hartog,37 que a imagem dos gregos construída

por Heródoto tem sempre seu referencial naquilo que lhe é diferente, ou seja, nos

bárbaros. Para Hartog, através do jogo de espelhos em que os costumes e

práticas dos povos bárbaros são comparados com os dos gregos - não para

saber quem é melhor, mas para entender o diferente - é que Heródoto reconhece

seus iguais. A imagem reproduzida ao se olhar o ‘outro’ pelo prisma da diferença

é sempre relativa, o que permite uma compreensão de si mesmo pela verdade

relativizada.

I.2. Perspectivas de relativização

forma rígida e estanque da cultura erudita. 37 HARTOG, F. 1999.

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A relativização da verdade na obra de Heródoto pode ser identificada a partir de

algumas perspectivas. Primeiramente, é percebida através dos valores culturais

específicos das diferentes sociedades estudadas pelo historiador. Neste sentido,

a verdade é relativizada em função das diferenças culturais: o que constitui uma

verdade para os gregos, pode não o ser para os bárbaros, por exemplo. Já numa

segunda perspectiva, a verdade é relativa às fontes, ou seja, Heródoto não deixa

de expor os relatos, mesmo quando estes são considerados por ele

inverossímeis. Tal atitude de Heródoto proporciona ao ouvinte-leitor subsídios

para conclusões diferenciadas. Não se propõe nas Histórias uma verdade

absoluta.

Sobre a primeira perspectiva tem-se que, ao relatar costumes diferentes dos

seus, Heródoto procura manter uma certa neutralidade, no sentido de não emitir

juízo de valor referente ao que lhe é diferente. Ao contrário, o fascínio diante do

‘outro’ possibilita uma maior penetração de Heródoto no universo das

sociedades estudadas, levando-o a ampliar seu conhecimento sobre a história. A

neutralidade e o posicionamento crítico que Heródoto assume na narrativa,

permitem a ele perceber a verdade enquanto fragmentos, desdobramentos

presentes nas diferentes versões que se completam ou se contradizem,

traduzindo um apelo à inteligência do ouvinte-leitor. Sua obra produz mesmo o

efeito de um caleidoscópio, e tanto a diversidade cultural quanto os relatos

diferentes sobre o mesmo assunto dão cor, forma e movimento distintos e

relativos ao ângulo de inclinação escolhido pelo observador/ouvinte das histórias.

A obra é composta assim por diálogos entre o narrador e seu espectador.

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Diálogos compostos, por sua vez, por uma infinidade de argumentos que se

completam ou se contradizem. A diversidade gerada no caleidoscópio pode se

dar, então, tanto pelo movimento do historiador quanto do espectador.

O diálogo proposto na obra constitui em primeiro lugar um respeito à

individualidade e à liberdade de cada ouvinte-leitor, já que permite conclusões

diferentes daquelas apresentadas por Heródoto. Assim, pode-se identificar na

obra uma segunda perspectiva da relativização da verdade, ou seja, Heródoto

não pretende uma história única. [...] Há ainda sobre o mesmo assunto outra

versão, que me parece mais aceitável; é a seguinte [..].38

A palavra escrita é, na obra Histórias, um diálogo com o leitor, fundamental para

compreendermos o contexto social da Grécia Clássica, pois expõe uma

ampliação do espaço público à participação do cidadão, que permite a

coexistência de razões de caráter mítico-religiosas e científicas. Para Heródoto,

os resultados da guerra em favor dos gregos podem ser entendidos tanto pela

superioridade estratégica e tecnológica,39 quanto pelos desígnios dos deuses:

Tudo isso aconteceu pela vontade de um deus, a fim de que a frota dos persas

fosse equivalente à dos gregos [...].40

38 HERÓDOTO. IV,11. 39 Idem. IX,62. 40 Idem. VIII,13.

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É necessário, entretanto, reafirmar que fazer a distinção entre as razões mítico-

religiosas e as razões consideradas científicas não implica na existência de um

princípio de exclusão, onde uma razão só pode existir quando anula a outra.

Heródoto produz a história dos acontecimentos e dos pensamentos da Grécia

utilizando a memória oral como principal fonte para sua pesquisa. O tratamento

dispensado às fontes orais é fator determinante da relativização da verdade pelo

historiador, ou seja, reproduz buscando ser fiel à fala do entrevistado, mesmo se

lhe parece absurda, e, finalmente, analisa buscando conclusões aceitáveis.

Argipenses afirmam, todavia, serem essas terras habitadas pelos Egipodes, ou

homens pés de cabra, o que entretanto, não me parece digno de crédito.41

Segundo Heródoto, o soberano da ilha de Samos havia conquistado grande

poder e prestígio em toda a Grécia - a sorte estava, até então, sendo generosa

com Polícrates. Amásis, rei do Egito, ao saber da prosperidade de Polícrates

escreve-lhe uma mensagem:

[...] é bom saber que um amigo e hospedeiro é um homem de sorte; mas a mim, esse teu sucesso inabalável não me agrada, porque conheço a inveja dos deuses. Antes quero, para mim e para aqueles a quem prezo, sucesso numas coisas e azar noutras, do que sucesso em tudo. É que nunca ouvi, fosse de quem fosse que, depois de ter tido sucesso em tudo, não tivesse por fim, acabado os seus dias na maior desgraça, completamente destruído. [...]42

41 Idem. IV,25. 42 HERÓDOTO. III,40. Tradução de SILVA, M.F. e ABRANCHES, C. 1997.

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Polícrates, objetivando o equilíbrio em relação à sua sorte, desfaz-se de um anel

de ouro incrustado de esmeraldas - jóia que lhe servia de talismã - jogando-a no

mar. Alguns dias depois, um pescador oferece ao rei um grande peixe ‘digno de

sua majestade’. Ao ser preparado pelos cozinheiros, o anel é encontrado dentro

do peixe.

O interesse do historiador no relato sobre o anel de Polícrates não está em saber

se realmente o anel foi encontrado pelo pescador, mas em reconstruir a história

dos pensamentos ou o ‘imaginário coletivo’. Para os gregos, era preferível uma

vida pautada pela sorte e por reveses de forma alternada, esse era um equilíbrio

desejado. Nesse sentido, a concepção do historiador sobre a verdade é

influenciada por outros campos do saber, visto que a história do anel de

Polícrates diz mais sobre a cultura e sobre os valores sociais presentes na

Grécia, do que sobre acontecimentos ou fatos particulares.

Paralelamente é possível, ainda, uma outra perspectiva a partir da qual podemos

identificar a relativização da verdade na obra de Heródoto. A verdade

influenciada pelas artes, de maneira especial, a tragédia. A concepção de

verdade do historiador se aproxima, por vezes, da verdade poética. A matéria-

prima da Tragédia é o mythos, que, sendo de conhecimento popular, é acessível

igualmente a todos os espectadores do teatro.

A grande descoberta dos autores teatrais gregos foi a possibilidade de

modificar o mythos, o que significou a descoberta de um mundo paralelo ao real,

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o mundo da fantasia e da ficção. As personagens que estavam antes distante do

público, separados pelo poeta narrador, ganham agora movimento e ação, estão

vivos no palco do teatro grego. São essas personagens que irão representar os

sentimentos e conflitos tipicamente humanos, temas que não dizem respeito a

fatos específicos.

Em Heródoto encontramos não raras vezes reflexões que transcendem os

acontecimentos factuais, o que nos permite identificar, na sua obra, diálogos que

possuem traços tipicamente trágicos. Os melhores exemplos encontram-se nas

personagens Polícrates, Creso e Adrasto, através de que Heródoto apresenta a

tragicidade da condição humana frente ao destino, tema também presente em

Medéia e As Bacantes, de Eurípides ou em Édipo Tirano de Sófocles.

Também no contexto político-democrático, em que os diálogos são importantes,

revela-se na práxis do historiador que o lógos não é uma tênue superfície de

contato entre a realidade e a linguagem: o historiador produz verdades. Coube à

história assumir seu compromisso com o presente, aceitando sua parcela de

responsabilidade na construção da realidade - história sempre foi ação.

Por fim, a alétheia - verdade - é relativizada na obra Histórias pela proposição

política do historiador. Essa proposição fica evidente na narrativa que se

organiza em diálogos compostos na primeira pessoa, tanto na expressão das

opiniões do historiador quanto ao dar voz às personagens de suas Histórias.43

43 Este assunto será tratado mais profundamente no Capítulo IV do presente trabalho.

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Heródoto acreditava que o conhecimento, o saber, era adquirido através do

contato com outros povos. A partir do descobrimento das culturas estrangeiras -

de maneira especial a dos bárbaros - o historiador pôde descobrir também sua

própria cultura. Esse descobrir o outro só se concretiza se relativizamos a

verdade.

Dessa maneira, a verdade existe enquanto verdades relativas a diferentes

valores sociais, culturais e políticos. O resgate dos acontecimentos ocorridos em

determinado tempo passado só é viabilizado quando compreendemos

minimamente as idéias que pautaram os pensamentos dos homens que viveram

nesse passado. Idéias diferenciadas, instrumentos e recursos disponíveis aos

historiadores, impõem uma distância entre a metodologia de Heródoto e a

metodologia aplicada, hoje, à história. Entretanto, podemos aprender com

Heródoto a conhecer a nós mesmos através do espelho que existe em cada

grupo social. No espelho grego, o reflexo de algumas imagens, Semelhança,

centralidade, ausência de dominação unívoca: três termos que o conceito

Isonomia resume. 44

44 DETIENNE, M. 1988. p.52. A centralidade refere-se ao posicionamento daquele que fala nas assembléias para os demais. Aqueles que possuem o direito de participação na vida pública, fazem-no na condição de iguais.

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CAPÍTULO II. Alétheia e Histórias

II.1. Alétheia

Na Grécia Arcaica, a verdade - alétheia - constitui um privilégio de um grupo

restrito que possui o dom da palavra inspirada pelas musas. No seu cantar, o

aedo invoca a inspiração das musas, filhas de Mnemosýne, que possuem o

atributo de fazer relembrar e dizer o verbo ao poeta. Através das musas o poeta

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acessa o passado, o presente e o que será, pois além de ser o suporte material

da palavra cantada, a memória é, também, potência divina que atribui ao verbo

seu estatuto de palavra mágico-religiosa.

Dizei-me agora, ó Musas habitantes do Olimpo, Pois vós sois deusas, estais presentes e tudo sabeis, Ao passo que nós só ouvimos o que diz a fama, e nada vimos [...]45

O poeta é o mestre da verdade, pois através de seu canto se manifesta o louvor,

a luz, a memória e a alétheia em contraposição ao silêncio, à noite, ao

esquecimento e à léthe.46 Mas, ao mesmo tempo que o poeta é o mestre da

verdade, ele não a possui, pois a inspiração transcende o âmbito humano e a

autoria é, portanto, de ordem divina.

O estudo etimológico da palavra alétheia realizado por Detienne revela que a

pré-história de sua utilização esteve vinculada a uma forma de pensamento que

conduz ao adivinho, ao poeta e ao rei. A palavra do poeta é, segundo o autor,

solidária a duas noções complementares: musa e memória. Essas duas

potências religiosas definem a configuração geral que dá a alétheia poética sua

significação real e profunda.47

Nesse contexto em que a memória encontra-se sacralizada, o acesso à alétheia é

restrito e o poeta desempenha a função de julgar as ações dignas de serem

45 HOMERO, Ilíada. II,484-486. Ver também: I,1; Odisséia I, 1-10 e HESÍODO, Teogonia v.26- 34. Traduções de PEREIRA, M.H.R. 1982. 46 DETIENNE, M. Op.cit. p.17,21.

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lembradas e celebradas e faz, então, sua divulgação oral por palavras, lógos, em

versos que criam memória; um homem vale o mesmo que seu lógos. São os

mestres do Louvor, os serventes das Musas, que decidem sobre o valor de um

guerreiro: são eles que concedem ou negam a Memória.48

Assim, o valor de um guerreiro depende do veredicto do ‘juiz’ que, por sua vez,

possui duas opções básicas: o louvor que se efetiva pela palavra cantada, ou o

esquecimento através do seu silêncio.

Não concebo morrer sem luta ou sem glória, Tampouco sem alguma façanha cujo relato não chegue aos homens que ainda hão de vir.49

Segundo Detienne, por trás do elogio e da censura, o par que representa as

potências antitéticas é formado por Mnemosýne e Léthe. Então, a vida do

guerreiro se coloca entre esses dois pólos e ao mestre do louvor cabe a decisão

entre silêncio, esquecimento e obscuridade - de um lado - e luz, lembrança e

memória - de outro. Entretanto, o guerreiro não deve ser isentado de alguma

parcela de responsabilidade na construção de sua glória. Se o poeta é um juiz

que confere a glória, como afirma Detienne, o guerreiro é quem desempenha a

façanha, a luta.

A memória, assim, possui duplo valor. Inicialmente, ela é um dom de vidência que

permite ao poeta formular a palavra, e, depois, já encarnada na palavra cantada

47 Idem,idem. p.14-15. 48 Idem. p.19. 49 HOMERO. Ilíada. XXII,304-305. Tradução de PEREIRA, M.H.R. 1982.

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não deixa de se identificar com o Ser, ou aquele sobre quem se canta. A alétheia

por sua vez, solidária ao louvor, desempenha função similar à memória. Alétheia

é também uma potência que traz luz, brilho, em oposição à léthe e seu irmão

mônos, ambos filhos da noite. Quando um poeta pronuncia uma palavra de

elogio, ele o faz por Alétheia, em seu nome; sua palavra é alethés como seu

espírito (vous). O poeta é capaz de ver a Alétheia, ele é um ‘mestre da

verdade’.50

Na perspectiva de pensamento em que ocorre o império da palavra mágico-

religiosa, a alétheia se identifica também com a justiça. Através do diálogo entre

o mundo humano e o divino pela mântica, a verdade é revelada e a justiça pode

ser efetivada. A verdade está associada a funções sociais que no espaço físico e

temporal em questão – a Grécia Arcaica – manifestam-se pela figura do poeta,

do adivinho e do rei.

Na tragédia Édipo Tirano, está caracterizado o poder monárquico de tipo

arcaico, evidenciado pela capacidade do rei de intermediar o diálogo entre a

coletividade ou a cidade e o mundo divino, e principalmente por sua função de

manter o equilíbrio do Cosmo – mundo e ordem – através do exercício da justiça.

[...] a vossa dor vem uma somente para cada um e nada mais, a minha alma geme pela cidade, por mim e por ti a uma.51

50 DETIENNE, M. Op.cit. p.21. 51 SÓFOCLES. Edipo Tirano. vv. 62-64. Apub. MARSHALL, F. 1999. p.83.

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Nesta passagem, contrapõe-se à individualidade e particularidade do sofrimento

de cada cidadão. [...] a universalidade do poder de Édipo, capaz de concentrar

em si o pathos da cidade (e aí compreende-se por certo toda a dimensão

populacional - a coletividade - e territorial da pólis).52 É a manutenção da ordem,

do equilíbrio que confere ao poder arcaico sua legitimidade. Através, então do

diálogo entre os mundos humano e divino, a verdade é proferida pela mântica e a

justiça pode ser empreendida pelo rei.

[...] como se fora de rei sem defeitos e aos Deuses temente que sobre muitos e fortes vassalos domínio tivesse e distribuísse a justiça. O chão negro produz-lhe abundantemente trigo e cevada, vergadas de frutas as árvores grandes; constantemente, lhe dá peixe o mar, as ovelhas dão cria, pelo governo excelente, feliz encontra-se o povo.53

A cidade confere legitimidade ao poder na mesma proporção em que a justiça

do rei garante o bem estar social traduzido nas palavras do poeta em abundância

de proventos aos seus habitantes; [...] o centro do poder como o nó legítimo

entre os mundos divino e humano.54 E em Hesíodo:

Àqueles [reis] que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando do que é justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre essa terra está a paz nutriz de jovens [...]55

52 MARSHALL, F. Op.cit. p.83. 53 HOMERO. Odisséia. C.XIX, vv. 109-114. Tradução de NUNES,C.A., apub: MARSHALL, F. Op.cit. p.65-66. 54 MARSHALL, F. Op.cit. p.67. 55 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Vv.225-228. Tradução de LAFER, M.C.N. 1996.

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Podemos considerar imaginação social como sendo um aspecto da vida social,

da atividade global dos agentes sociais, cujas particularidades se manifestam

na diversidade dos seus produtos,56 e ainda,

os imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através da qual [...] ela se percepciona [...] designa sua identidade; elabora certa representação de si [...]57

Então, a verdade, ou alétheia, deve ser entendida dentro do campo simbólico

produzido na Grécia de Homero e Hesíodo, como aquilo que uma vez acessado

pelo soberano através da interpretação das palavras de um adivinho como

Tirésias, ou dos sonhos, ou das manifestações da natureza, conduz suas ações

no caminho correto, justo. São as ações do soberano, enquanto líder da cidade

que proporciona o bem estar social e por outro lado ele é um intermediador entre

os códigos e significados que se estabelecem na relação da cidade com os

deuses e portanto com a justiça.

Não é possível, nesse contexto, desvincular a alétheia de sua outra parte léthe e

ainda de seu comprometimento com a memória, com as musas e por fim com a

díke, justiça. Uma característica fundamental da palavra mágico-religiosa,

apontada por Detienne, é sua eficácia. Para assim ser, alétheia tende a se

56 BACZKO, B. 1984. p.309. 57 Idem,ibidem.

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aproximar também de peithó que é a potência da palavra sempre em relação a

quem a recebe, o poder do verbo sobre outrem.58

II. 2. Alétheia: entre mythos e lógos

Nós sabemos dizer muitas falsidades, Que se parecem com a verdade; Mas também, quando queremos, proclamamos verdades. Assim falaram as filhas verídicas do grande Zeus; [...] inspiraram-me um canto divino, para eu glorificar o presente e o passado.59

Se no mundo divino é a ambigüidade que dá o tom (na medida em que os

deuses conhecem a verdade mas também sabem enganar pelas aparências e

também pelo caráter sempre enigmático de suas palavras), no mundo humano,

tendo em vista o seu distanciamento em relação ao mítico, é a dualidade que

vigora na fórmula do Crátilo em que o lógos é ‘coisa dupla’ (alethés e

pseudés).60 A partir dessa ambigüidade, Detienne chega a duas conclusões: [...]

o mestre da verdade é também o mestre do engano [...] e que [...] as potências

antitéticas Alétheia e Léthe não são contraditórias: no pensamento mítico, os

contrários são complementares.61

58 DETIENNE, M. Op.cit. p.37-38. 59 HESÍODO, Teogonia. V.26-34. Tradução de PEREIRA, M.H.R.1982. 60 DETIENNE, M. Op.cit. p.42-43. 61 Idem,ibidem.

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Em seu estudo sobre a palavra lógos na Medéia, no Héracles e nas Bacantes,

Barbosa conclui que existe uma variação ampla de significado e que sua

tradução está, portanto, vinculada às particularidades e ao contexto de cada

verso. Na Medéia, afirma a autora, lógos:

[...] está presente em contextos em que as personagens constróem conscientemente as verdade possíveis pela articulação de uma fala bem organizada [...] se desdobra, é versátil, utilitário, político. É poeticamente retórico.62

No Héracles, o lógos é uma criação do poeta em que a linguagem do passado

em forma de mythos é importada para o presente. Eurípides, nessa obra, não

pretende revelar ou explicar, mas fazer seu ouvinte experimentar o valor humano,

sua condição de ‘animal político’ que acredita na peithó e pela sua relação

estabelecida através do lógos. A palavra lógos ocorre nas Bacantes,

normalmente em contextos de debate político.63

Em Heródoto, a palavra lógos possui ocorrência consideravelmente numerosa,

assim como também os sentidos a ela atribuídos. Como descreve Guthrie, lógos

é utilizado nas Histórias no sentido de: palavra por escrito; conversa de maneira

geral; informação; coisas ditas ou escritas com conotação de tratado ou acordo;

em sentido financeiro; idéia de valor, ou seja, aos olhos de alguém, opinião;

indicando uma verdade; medida, proporção, agrimensura; em comum acordo e

etc.64

62 BARBOSA, T.V.R. 1997. p.373-374. 63 Idem,ibidem. 64 HERODÓTO. I,141; III,148; I,75; VII,158; III,142; I,120; VIII,6; I,95; III,99; I,141; III,119. Ver a

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Uma etimologia possível da palavra alétheia está vinculada à raiz lath/leth que

significa estar escondida e que dá origem a palavras como léthein – ignorar e

lanthanein – estar escondido.65 Então:

alhjqeia = a

(privação) + laq / leq

Vista desta maneira, alétheia é des-ocultar, des-cobrir, ou seja, mostrar aquilo

que está escondido, ignorado ou encoberto. Então a verdade é uma busca sobre

alguma coisa escondida no tempo e nos espaços geográficos de outras terras.

No caso do viajante Heródoto, essa é uma possível tradução da alétheia: mostrar

pelas palavras, discursos, enfim, pelo lógos, o desconhecido.

Por outro lado, a incidência de alétheia nas Histórias está vinculada a uma

opinião (dóxa, gnome, fainethai), viajante e investigador Heródoto traduz o ‘outro’

sempre de uma perspectiva marginal, é um observador narrador. A sua verdade

é relativa ao seu lugar de observação - é sempre subjetiva a uma opinião - e o

instrumento de des-ocultar é a tradução que, por sua vez, opera através da

retórica da alteridade.66

respeito: GUTHRIE, W.K.C.1984. v.1. p.396-399. 65 CHANTRAINE, P. 1983. v.2. p.618.

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A obra de Heródoto é caracterizada pela técnica de ‘composição circular’,67 em

que se intercalam diferentes logoi, tendo sempre em perspectiva o projeto que

confere à obra sua unidade: evitar que o que fizeram os homens gregos e

bárbaros se apague - que fiquem sem memória, akléia - com o passar do tempo;

e ainda entender a causa da discórdia entre os mesmos.68 A composição circular

é caracterizada pelo retorno ao passado a partir de um assunto-problema

proposto no início da narrativa, que confere à obra uma estrutura em forma de

espiral. Esse espiral é formado por vinte oito logoi que se intercalam e estão

interligados entre eles pela ‘ring composition’.69

Pode-se observar, afirma Wathers, que certo número de princípios gerais operou

na organização da narrativa de Heródoto, que evidentemente definiu, de uma

maneira não escrita, regras de cronologia ou pertinência. Em vários casos

adaptou diversos procedimentos; em parte involuntariamente e em parte por seu

desejo de diversidade. Portanto, conclui o autor, não é proveitoso buscar

‘padrões’ de processos históricos ou de sucessões de acontecimentos

particulares.70

Um assunto que não está, a princípio, diretamente relacionado com o tema

central, a causa pela qual gregos e bárbaros fizeram guerra (por exemplo, a

66 Sobre ‘tradução’ ver: HARTOG, F. Op.cit. p.251-261 e 273. 67 WATHERS, K.H. Op.cit. p.63. Termo original: ‘ring composition’. 68 HERÓDOTO I,1. Sobre o objetivo primeiro de Heródoto ver especialmente WHATERS, K.H. Op.cit. p.11. e HARTOG, F. Op.cit. p.33. 69 WATHERS, K.H. Op.cit. p.63. 70 Idem. p.73. O autor refere-se à ‘estrutura de frontão’ sugerida por MYRES, J.L. 1953; e, também aos ‘padrões trágicos’ referenciados por IMMERWAHR, H.R. 1966.

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maneira como colhem canela ou festejam uma divindade local dentre outras

inúmeras descrições que são colocadas pelo narrador paralelamente ao seu eixo

principal) pode ser apreendido como uma necessidade intrínseca do investigador

viajante que recolhe informações sobre seu objeto.

Para Heródoto, não é suficiente entender os acontecimentos por eles mesmos,

mas compreender o agente dos mesmos. Como já foi dito sobre a história de

Polícrates de Samos, não importa a Heródoto se o anel foi mesmo encontrado no

peixe, mas importa o significado contido nesse lógos, ou seja, como pensavam,

em que acreditavam e como agiam esse soberano e seu povo. Nesse sentido

pode-se falar em imaginário social presente nos contos populares que Heródoto

reproduz em sua narrativa delimitando conglomerados específicos de cada povo

por ele estudado. Isso permite ao investigador identificar influências, adaptações

ou trocas entre as culturas conhecidas, o que possibilita compreender a

diversidade e também a igualdade.

Outra característica que fica explícita no episódio do anel de Polícrates e em

outros logoi, é o que Immerwahr definiu como sendo ‘ritmo permanente’:

ascensão, expansão do poder até seu ápice e queda (fim do poder ou morte). Tal

esquema se repete com os soberanos que possuem poder ilimitado e são

caracterizados, assim, como que ultrapassando os limites que separam os

mundos divino e humano. O poder pode ser compreendido em Heródoto como

uma chave para a leitura sobre a concepção de hýbris, excesso, desmedida.

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Ultrapassar o limite da condição propícia à humanidade, que é expresso tanto no

caso do anel de Polícrates ou no diálogo entre Creso e Sólon, está também

representado na obra através de ultrapassar limites geográficos, conquista de

terras além de um rio, oceano, enfim, de fronteiras naturais. Heródoto observa,

por exemplo, que Creso foi o primeiro a submeter os gregos a pagamento de

impostos, e, para tanto, atravessou o rio Hális.

Se a obra de Heródoto é composta por logoi interligados, esses são em sua

maioria compostos por diálogos, palavra que, por sua vez, é uma composição da

preposição dia e o substantivo lógos: aquilo que é colocado entre ou através,

separando ou dividindo opiniões, palavras ou discursos. Os diálogos são na obra

de Heródoto muito explorados e essa é, sem dúvida uma importante

característica da produção literária grega de então: tragédia, história e filosofia.

O efeito que o texto de Heródoto produz é, segundo Hartog, o de parecer ecoar,

em alguns momentos, um diálogo ou discussões com o auditório. E, de fato, esse

efeito que a leitura da obra produz deve-se à forte influência da oralidade e da

prática político-democrática na composição das Histórias. Em Heródoto, a

oralidade está presente tanto em relação à forma de exposição da narrativa,

apódexis, quanto de composição em que é significativa a presença de diálogos.

Acrescente-se, ainda, a forma de saber que está relacionada ao ver, mas

principalmente ao ouvir,71 afinal a narrativa desse historiador está baseada nas

informações de testemunhos. Heródoto escreve de acordo com: o que ouviu,

71 HARTOG, F. Op.cit. p.283-284.

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akoêi grápho;72 o que se diz, tà dè legetai gráfo;73 o que dizem os gregos, katà tà

legómena hyp’Hellénon egò gráfho.74

Nesse sentido, pode-se afirmar que existe na obra de Heródoto uma opção pelo

lógos. Isso se afirma, inicialmente, pela recorrência numericamente expressiva

que o autor faz à palavra. Depois, pela associação presente nas Histórias entre

mythos e aphanés, invisível e sem provas.75

De acordo com a observação de Detienne, tem-se apenas uma discreta alusão

ao mito nas Histórias, que aparece apenas duas vezes, em meio a tantas

narrativas construídas sobre a singularidade do surpreendente e do admirável.

A palavra mito é empregada duas vezes nos nove livros do rapsodo viajante a quem os historiadores mais convictos atribuem, hoje como outrora, a paternidade de seu saber, imputando à prática etnográfica as histórias estranhas ou contos maravilhosos apontados por colegas mais austeros, mas não menos irreverentes ao pai da História. [...] Heródoto nada escreve ou narra senão logoi. [...] não oculta o mito, ao contrário, exige ser descoberto, revelado, exposto à luz. Mythos é uma verdade revelada a iniciados, é um dito ou uma opinião que se processa às claras.76

Mythos, enquanto uma verdade revelada a iniciados, não faz parte da

investigação do historiador, que de fato constrói sua narrativa com logoi. Mito no

sentido atribuído por Heródoto, conclui Detienne, é uma palavra de ilusão,

72 HERÓDOTO. II,123. 73 Idem. IV,195. 74 Idem. VI,53. 75 HARTOG, F. Op.cit. p.455, nota.128.

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sedução enganadora, narrativa enganadora, opinião sem fundamento que ele

repele ou descarta. Heródoto queria dar à cidade um novo memorial.77

E, então, Heródoto é um narrador sujeito da enunciação (eu ouvi, eu vi, eu digo,

eu escrevo).78 Narrador que se coloca na primeira pessoa do singular e plural,79 e

na terceira pessoa do singular.80 O importante, segundo Hartog, é que só o

narrador principal pode ocupar todas as posições discursivas, intervindo através

das marcas de enunciação.81

Intervenção que na maioria das vezes é confeccionada para ‘fazer crer’ – um jogo

proposto pelo narrador ao seu destinatário – em que o agente da enunciação

posiciona-se da seguinte forma: [...] não sei [ouk oida] se isso é verdadeiro

[alethéos], escrevo [gráfho] como me disseram [léguetai] [...];82 [...] digo o que

me disseram [...], mas eu e você meu ouvinte-leitor [...] não devemos acreditar

em tudo [...]83 e por isso mesmo acredite em mim. Ou: Esta é, das duas versões

que correm, a mais credível [pithanóteros tõn lógon], mas devo referir

igualmente a menos aceitável, já que ela também circula.84 Sendo assim, você

ouvinte-leitor pode acreditar em mim.85

76 DETINNE, M. 1992. p.97-98. 77 Idem. p.101-103. 78 Estas são, segundo HARTOG, F. Op.cit., as marcas da enunciação nas Histórias. p.299. 79 HERÓDOTO. II,127,131,148; III,122; IV,16,20,46,48. 80 Idem. I.1. 81 HARTOG, F. Op.cit. p.299. 82 HERÓDOTO. IV,195. 83 Idem. VII,152. 84 Idem. III,9 ou V,45. 85 HARTOG, F. Op.cit. p.298-299.

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Em meio a uma multidão de narradores secundários, o sujeito da enunciação

confere a seu lógos uma indiscutível credibilidade, na medida em que diz porque

é seu dever relatar o que lhe disseram, dando voz a diversas personagens e

diferentes versões, e seu destinatário é, por isso, livre para decidir qual é a mais

digna de crédito.

Hartog conclui que esse posicionamento do narrador conduz o destinatário a

acreditar na versão que o historiador julga, dokei moi, a mais verdadeira. Como

não busco fazê-los crer, vocês podem, em suma, crer em mim ainda mais.86

O ‘fazer crer’ é, sem dúvida, um efeito que o texto de Heródoto produz, mas vale

acrescentar à essa aparente falta de querer fazer crer, que acaba conferindo

credibilidade à versão que o narrador considera mais coerente, um outro

elemento de muita importância. Quando Heródoto diz que seu destinatário é

sobretudo livre para escolher, entre as diferentes versões, a que lhe parecer mais

verdadeira, não está simplesmente sendo retórico, porque essa é uma atitude

que fica evidente em toda sua obra, conferindo uma coerência entre a fala e a

ação. Primeiro, em relação às diferentes versões que circulam e que por isso

devem ser expostas à apreciação e julgamento do destinatário. Segundo, a sua

atitude diante da diversidade de culturas com que teve contato, os citas, os

medas, os persas, os egípcios etc., não para julgar qual a melhor mas para

compreender a sua própria; As Histórias são decerto este espelho no qual o

86 Idem. p.301. Sobre o ‘fazer crer’: “O jogo da enunciação.”, p.297-302.

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historiador não cessou jamais de olhar, de interrogar-se sobre sua própria

identidade [...].87

Entretanto, uma questão proposta por Wathers deve ser considerada. O mundo

para Heródoto não se dividia entre gregos e não-gregos, e isso fica explícito na

sua obra, afirma o autor, quando em tom irônico o investigador diz terem os

atenienses - ‘que se diziam’ os mais inteligentes dos gregos - caído em uma

armação de Pisístrato, que enganou-os vestindo uma mulher como Atena.

Wathers acrescenta a seu argumento o conhecimento demonstrado por Heródoto

de que os bárbaros eram ‘nos velhos tempos’ muito mais sofisticados: os lídios

inventaram a cunhagem de moedas e os jogos que os gregos adotaram, os

fenícios a escrita alfabética, os egípcios o calendário, entre outras obras primas.

Os bárbaros são muitos, e cada grupo possuía particularidades que conferiam

identidade distinta.88

Esse impasse sobre uma polaridade dualista entre gregos e bárbaros, é sem

dúvida, uma questão bastante difícil. Percebe-se que, de fato, não existe uma

polaridade dualista e que Heródoto distingue, em meio à diversidade cultural por

ele conhecida, suas diferenças. No entanto, a operação de reconhecimento das

diferenças se realiza tendo como ponto de vista referencial sua própria cultura.89

87 Idem. p.38. 88 WATHERS, K.H. Op.cit. p.112-113. 89 HERÓDOTO. III, 38. Esse assunto será melhor discutido no capítulo seguinte.

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Quando se fala sobre a atitude do historiador, é necessário levar em

consideração a forma de composição de sua obra vista em sua totalidade, o

enredo em seu conjunto. E, portanto, a atitude do narrador das Histórias é expor

logoi diversos através do diálogo em que as verdades, sejam elas sobre as

diferentes versões ou sobre a diversidade cultural, possuem um referencial

constante, a opinião do agente da enunciação. Não porque a sua opinião é a

melhor, mas porque é relativa à sua ego-história, em que o nómos é o

soberano.90

A palavra alétheia é uma testemunha, segundo Detienne, de um processo de

laicização em que ocorre a superação da palavra mágico-religiosa pela palavra-

diálogo.91 Para Santoro, tanto a palavra filosófica quanto a histórica fazem parte

do mesmo movimento de crise e reflexão do mito que instaura a palavra como

lógos - como articulação demonstrativa e causal.92 Nesse processo de mudança

em que a alétheia pôde ser pensada filosoficamente e historicamente, foi preciso

acontecer a secularização da palavra, inserida, a partir de então, em novas

relações sociais e em estruturas políticas e jurídicas inéditas que constituíram, na

prática, a elaboração de duas ou mais teses ou partidos, entre os quais a

escolha era inevitável.93

Em Os mestres da verdade na Grécia Arcaica, Detienne diz que alguns meios

sociais utilizavam-se de outro estatuto do verbo, diferente da palavra mágico-

90 Idem,ibidem. 91 DETIENNE, M. 1988. p.45-54. 92 SANTORO, F. 1998. p.12.

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religiosa, ou seja, a palavra-diálogo. Na Ilíada e na Odisséia encontramos relatos

em que as ações dos guerreiros são precedidas de discussão e submetidas à

aprovação da maioria. Nesse grupo, a verdade é relativizada pelas

necessidades práticas e pelos objetivos comuns dos guerreiros. É nesse grupo

social que se esboçam os ideais gregos de Isegoria - igualdade de direitos para

expressão da palavra.94 São esses ideais que estarão presentes na arquitetura

do pensamento grego com o advento das cidades. Em Atenas, por exemplo, a

novidade da arquitetura expressa-se inicialmente na Ágora e se completará na

colina da Pnice com a instituição da Assembléia do povo. No ambiente da pólis

grega foi possível o estabelecimento de uma nova forma de pensamento político

onde o poder ou governo - kratos - era exercido pelo povo - demos. Afinal de

contas, diz Finley: foram os gregos que descobriram não apenas a democracia,

mas também a política - a arte de decidir através da discussão pública [...]95. As

Histórias são, de certo, a expressão de uma forma de pensamento fundamentada

em logoi. E a expressão dos diferente logoi pelo historiador é uma manifestação

possível no contexto político-democrático, porque traduz a forma adotada nas

assembléias populares em que o diálogo entre os presentes se faz

indistintamente.

II.3. Pólis e a elaboração da palavra-diálogo

93 DETIENNE, M. Op.cit. p.74. 94 CHANTRAINE, P. Op.cit. p.470. 95 FINLEY, M.I. 1988. p.26.

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Quando se fala em democracia grega, o exemplo que é colocado em evidência é

a cidade de Atenas. Durante pelo menos dois séculos (do V ao IV a.C.), Atenas

proporcionou uma unidade à civilização grega, dominou politicamente o mundo

Egeu e esteve no centro de toda a produção artística, que se encontra em grande

parte conservada, viabilizando pesquisas sobre essa cidade.96 Outro elemento

que viabiliza o estudo de Atenas como paradigma de democracia é a

constituição de um lógos, de uma palavra voltada para o político em que a

essência se concentra na ação. A pátria do homem não é senão a pátria do

lógos, pois o lógos é o grego, e o grego é o ático. [...] Atenas, doravante, só age

falando.97

Em As origens do pensamento grego, Vernant observa que as muralhas que

cercam a pólis tinham função prática de segurança, mas também representavam

a necessidade de união daqueles que ali habitavam. As construções não são

feitas em torno do palácio real como anteriormente, mas sim em torno da ágora -

lugar público de discussão sobre assuntos de interesses gerais. Nas ruínas do

palácio - lugar que foi durante longo período referência de um poder centralizado

na figura do basileus - é construída a acrópolis - espaço reservado a partir de

então ao sagrado, à religião.

96 MOSSÉ, C. 1985. p.17. 97 CASSIN, B., LORAUX, N., DARBO-PESCHANSKY, C. 1993. p.50.

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Essas mudanças de ordenamento do espaço físico e político nas cidades

antigas ocorreram de forma complexa. Entre o poder centralizado e a

democracia, as cidades antigas passaram por outras experiências políticas

como a oligarquia e a tirania. Em seu estudo detalhado sobre esse processo de

mudanças nas cidades gregas, Glotz lembra que toda a história desse período

[...] está prenhe de revoluções e contra-revoluções, de morticínios, banimentos

e confiscos.98

Na construção do regime democrático, a novidade expressa-se no espaço

público para o comércio de artigos variados e também para as assembléias

populares, na ágora. Lugar em que se faz possível, inicialmente, a construção do

espaço democrático, ou seja da isegoria. É isso que torna a noção de poder do

Estado algo inteiramente diferente; O Estado é precisamente o que despojou de

todo caráter privado, particular, o que, escapando da alçada dos gene, já

aparece como a questão de todos.99 Lembrando que este ‘todos’ refere-se aos

iguais, os cidadãos.

O governo era, assim, ‘pelo povo’, no sentido mais literal. A Assembléia, que detinha a palavra final na guerra e na paz, nos tratados, nas finanças, na legislação, nas obras públicas, em suma, na totalidade das atividades governamentais, era um comício ao ar livre, com tantos milhares de cidadãos com idade superior a 18 anos quantos quisessem comparecer naquele determinado dia. Ela se reunia freqüentemente durante todo o ano, no mínimo quarenta vezes, e, normalmente, chegava a uma decisão sobre o assunto a discutir em um único dia de debate, em que, em princípio todos presentes tinham o direito

98 GLOTZ, G. 1980. p.87. 99 VERNANT. J-P. 1986. p.32.

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de participar, tomando a palavra Isegoria, o direito universal de falar na Assembléia, era algumas vezes empregado pelos escritores gregos como sinônimo de ‘democracia’ E a decisão era pelo voto da maioria simples daqueles que estivessem presentes.100

De acordo com Heródoto, as reformas efetuadas por Clístenes ao dividir os

atenienses em dez tribos - em vez das quatro então existentes - ampliou a

participação e conquistou para sua facção o apoio do povo que, antes, estava

excluído de tudo.101 Aristóteles confirma o alcance político-democrático que o

regime fundado por Clístenes promovia. Destaca ainda outras medidas que

efetuaram a mistura dos cidadãos ampliando o contingente da cidadania e

fortalecendo a participação popular.

Estando como líder da multidão nessa ocasião - no quarto ano após a deposição da tirania [...] repartiu todos os cidadãos em dez tribos em vez de quatro com o propósito de misturá-los, a fim de que mais pessoas participassem do regime [...] compôs o conselho com quinhentos membros em vez de quatrocentos, cinqüenta de cada tribo [...].102

Dentre outras medidas que visavam a participação de forma igualitária, essas

citadas são especialmente importantes pelo fato de destituir a antiga

organização fundada em laços de sangue, substituindo-a por uma ordem

geométrica e geográfica, criando as condições para a democracia.103 Segundo

Loraux, nesse momento inicial das reformas empreendidas por Clístenes ocorre

100 FINLEY, M.I. 1988. p.31. 101 HERÓDOTO. V,65-6. 102 ARISTÓTELES. A constituição de Atenas. Tradução de: PIRES, F.M. 1995. p.51. 103 MOSSÉ, C. 1985. p.24.

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uma ampliação do espaço participativo, na medida em que se incorpora ao

corpo de cidadãos muitos estrangeiros e escravos-metecos.104

A ampliação do espaço político na pólis, de acordo com Vernant, caracteriza-se

também pela publicidade dos conhecimentos através da escrita, que a partir do

séc. VIII a.C. constitui uma técnica de uso cada vez mais amplo. Para o autor, a

popularização da escrita foi uma reivindicação que surge com da necessidade

de redação das leis no contexto do nascimento da cidade. Por esse viés,

entende-se que a palavra escrita além de assegurar a permanência das leis,

subtrai a autoridade privada dos basileis que tinham a função de dizer o direito.

Através da escrita, o direito torna-se um bem comum, pois apresenta-se

disponível a todos.105

Para Detienne, por mais absoluto que tenha sido o império da palavra mágico-

religiosa (caracterizada pela eficácia, atemporalidade e inseparável de condutas

e valores simbólicos) no ambiente da cidade, foi possível a elaboração da

palavra-diálogo, pautada pela laicização, inscrita no tempo, provida de uma

autonomia própria e ampliada às dimensões de um grupo social. Na perspectiva

de Detienne, o advento da cidade grega marca o declínio do sistema onde os

juramentos decidiam através da força religiosa e a palavra atinge sua autonomia

tanto na função política, quanto no reconhecimento do real.106

104 CASSIN, B., LORAUX, N., DARBO-PESCHANSKY, C.1993. p.17. 105 VERNANT, J-P.1986. p.36. 106 DETIENNE, M. Op.cit. p.45 e 55.

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Por um lado, Detienne propõe que, no contexto das cidades, foi possível a

promoção da palavra em que o diálogo entre os seus habitantes estabeleceu

uma forma jurídica e política pautada pela igualdade de direitos. Ainda assim,

pode-se notar uma ênfase do autor em relação ao germe da democracia

encontrado nas práticas dos guerreiros relatadas por Homero. Os guerreiros,

segundo Homero, tinham o costume de colocar es méson os butins para serem

divididos entre os participantes das batalhas, da mesma forma, depositavam no

centro o discurso.

Colocar no centro, es méson, é tornar público, comum, a partir de um modelo

espacial circular e centrado. Tomar a palavra implica em avançar até o centro,

pegar o cetro. Neste lugar existe uma relação de comprometimento entre os

participantes que ao depositarem seus bens no centro é faze-los comum,

públicos. É, como diz Meandros ao dispor do poder que pertencia a Polícrates

de Samos: [...] eu deposito [titheì s] no centro [es méson] o poder [arkhèn] e

proclamo a isonomia [isonomíen] [...].107

Nesse sentido, com surgimento da pólis e a instauração do espaço público, o

poder se concretizava com a eloquência do discurso, com a palavra dita. A arché

não era mais fundamentada nas armas, mas agora de outra forma, no combate

através da palavra, o agon, acrescido de um outro componente, a persuasão,

Peithó.108 O poder da palavra, portanto, está situado em sua capacidade de

convencimento, já que as decisões são tomadas a partir de votações precedidas

107 HERÓDOTO. III,142.

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de debates; [...] a arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o

lógos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua

eficácia, através de sua função política.109

Assim, uma argumentação convincente é fundamental para a aprovação de uma

idéia pelo voto da maioria. As tragédias e comédias produzidas na Atenas do

séc. V a.C. são os principais testemunhos da importância atribuída à arte de falar.

Quem não ficaria convencido, por exemplo, da razão de Medéia? O discurso da

personagem Medéia de Eurípides é mais forte, mais convincente que suas

próprias ações.

No estudo de Richard Sennett sobre a cidade e a experiência corporal de seus

habitantes, o autor destaca a importância da voz enquanto instrumento de

manifestação da cidadania em Atenas. Sennett observa que a democracia

ateniense dava à liberdade de pensamento a mesma ênfase atribuída à nudez. O

desnudamento do pensamento pela liberdade da voz é comparado à nudez dos

atletas nos ginásios. Para um ateniense, a educação tanto do corpo pelos

exercícios físicos e competições olímpicas, quanto da oratória, ou, arte de falar

em público, eram fundamentais na prática da cidadania.110

Não há dúvidas sobre a importância da escrita em relação à popularização do

direito, sem a qual a democracia ficaria comprometida com interesses de grupos

restritos. Por outro lado, a tradição preservou a oralidade como sendo o meio

108 ROCHA, M.C.C.F. 1995. p.116. 109 VERNANT. J-P. Op.cit. p.35. 110 SENNETT, R. 1997.

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principal de manifestação política. A cultura grega antiga era, essencialmente,

oral. Como Finley exemplifica: Sócrates foi o único filósofo que recebeu a “pena

de morte” naquela época e ele nunca escreveu nenhuma linha.111 Acontecimento

esse, que demonstra que a liberdade de expressão estava condicionada a

interesses comunitários ou outros, e que coloca em cheque a real possibilidade

de um desnudamento total do pensamento.

De acordo com Sennett, o mostrar, exibir e revelar marcaram as pedras de

Atenas, as construções arquitetônicas da cidade tendem a valorizar a projeção

da voz, e isso, de fato, ocorria. Se na ágora a voz era dispersa e o debate

acontecia entre grupos antes da votação, na colina de Pnice a construção em

forma de teatro ampliava a voz emitida de um plano inferior e expunha a palavra à

apreciação de todos os presentes na assembléia.112 O dizer em público e

decidir em público foi o que constituiu a publicidade da vida na pólis.113 Nesse

contexto arquitetônico da pólis, a alétheia se identifica com a etimologia que se

encontra em Chantraine, ou seja, des-ocultar, des-cobrir.

A harmonia entre a carne (o cidadão) e a pedra (os lugares públicos) comportava

também contradições. A fisiologia grega justificava direitos desiguais e espaços

urbanos distintos. O debate era apenas propício aos homens, pois possuíam o

corpo mais aquecido segundo a teoria antiga da reprodução.114 Se por um lado,

111 FINLEY, M.I. Op.cit. p.172. 112 SENNETT, R. Op.cit. p.50-51. 113 ROCHA, M.C.C.F. Op.cit. p.119. 114 SENNETT, R. Op.cit. p.38-40.

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a cidade grega é o modelo por excelência, origem e paradigma, da

democracia, por outro;

funciona à custa de exclusões: um pequeno grupo de cidadãos, para poderem estar próximos, ao alcance da voz, contra o resto do mundo, estrangeiros e bárbaros. E tendo, em seu próprio interior, as mulheres, os metecos, e [...] a massa dos escravos, [...] fora do político.115

Sennett enfatiza que apesar de não haver a participação dos “corpos frios” - das

mulheres - nos espaços públicos instituídos, existia por parte delas a recusa do

sofrimento passivo. Recusa manifestada através de rituais, em especial a

Thesmophoria - que dignificava o corpo feminino frio - e a Adonia - que

restaurava nelas o poder da fala e do desejo, que lhes foram negados por

Péricles na Oração Fúnebre: [...] a maior glória de uma mulher está em evitar

comentários por parte dos homens, seja de crítica ou elogio.116

Esses dois rituais exemplificam uma maneira encontrada de responder ao

desprezo social, permitindo aos seres humanos comportarem-se como agentes

ativos e não como vítimas passivas diante da exclusão. Se o pensamento político

grego moldava a democracia em torno do lógos, os rituais davam existência a

zonas mágicas onde os poderes do mythos agiam por gestos, como dançar,

beber e cantar, que celebravam o compromisso recíproco entre os

participantes.117 Vale acrescentar que, no cotidiano, a condição da mulher é

115 CASSIN, B., LORAUX, N., DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.7. 116 SENNETT, R. Op.cit.. p.61. 117 Idem. p.72-74.

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distinta em relação ao grupo dos que ficavam à margem do plano político, pois a

condição jurídica da mulher grega lhe confere direitos cívicos como demonstra

Souza Lessa.118 E, apesar da exclusão das mulheres nos debates públicos e,

ainda, a própria existência da escravidão, aqueles que possuíam o direito político

exerciam-no na condição de igualdade.

É nessa arquitetura do pensamento grego do século V a.C. que a história se

constitui como uma forma de investigação, em que o historiador é um agente que

constrói a verdade a partir dos indícios presentes nas fontes, que se compõem,

mormente nesse período, por relatos orais. Heródoto afirma que o seu relato é

produto daquilo que ele conseguiu saber por ele mesmo, o historiador é, portanto,

agente de uma investigação que tem como objetivo preservar do esquecimento,

pela forma escrita, as ações admiráveis dos bárbaros e dos helenos. A narrativa

de Heródoto está inscrita no tempo dos homens, pois a autoria da palavra não

depende da inspiração divina, é, sobretudo, construída a partir da lembrança

daqueles que sabem porque viram ou que ouviram dizer de outros.

Segundo Vernant, a escrita em prosa marca um novo patamar, uma nova forma

de pensamento, a narrativa histórica funciona como uma verdadeira ferramenta

lógica conferindo à inteligência verbal domínio sobre o real.

A organização do discurso escrito é paralela a uma análise mais cerrada, um ordenamento mais estrito da matéria conceitual. Na e pela literatura escrita instaura-se esse tipo de discurso onde o lógos não é somente palavra, onde ele assumiu o valor da racionalidade demonstrativa e se contrapõe nesse plano, tanto pela forma quanto pelo sentido, à palavra

118 LESSA, F.S. 1995. p.65-70.

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mythos. Do ponto de vista do leitor, a leitura supõe uma outra atitude de espírito, mais distanciada e ao mesmo tempo mais exigente, que a escuta dos discursos pronunciados.119

Em Heródoto, o encantamento da palavra falada e o rigor da racionalidade da

palavra escrita caminham lado a lado, são complementares. Heródoto privilegia a

memória oral, já que as fontes que mais utiliza na sua investigação são os relatos

de testemunhas. Ao escrever suas Histórias, esse historiador grego distingue

metodologicamente: a) o que sabe porque viu; b) o que ouviu de testemunhas

oculares; c) ou, ainda, o que sabe por ouvir dizer.120 A racionalidade de que fala

Vernant, encontra-se em Heródoto pautada pelo discernimento de suas fontes,

um trabalho que poderia ser chamado de citação, dentro de critérios de uma

cultura oral que encontra-se preservada pela forma escrita.

Para Gagnebin, a distinção entre lógos e mythos ocorre de maneira gradativa e

nada tem de eterno, definitivo:

[...] como certa historiografia iluminista triunfante gostaria de estabelecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro historiador, podemos ler, ao mesmo tempo, esta imbricação e esta separação da palavra mítica e do discurso racional emergente.121

E Heródoto:

Esta é a exposição das informações de Heródoto de Halicarnasso, a fim de que os feitos dos homens, com o tempo, se não apaguem e de que não percam o seu lustre ações

119 VERNANT, J-P. 1992. p.173-174. 120 SNELL, B. 1975. p.196. 121 GAGNEBIN, J.M. 1997. p.17.

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grandiosas e admiráveis, praticadas, quer pelos helenos, quer pelos bárbaros, e sobretudo, qual a razão (aitia) por que entraram em conflito uns com os outros.122

A propostas de Heródoto é, portanto, investigar tanto as ações dos bárbaros,

quanto a dos helenos, e a causa (aitia) das Guerras Pérsicas - este é o núcleo

temático - e preservar do esquecimento, pela forma escrita, as ações admiráveis

dos homens: esta é a linha mestra da História. Heródoto retoma e transforma a

tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a

memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento.123

Se por um lado existe um conglomerado cultural herdado, como afirma Dodds,124

por outro ocorre uma ruptura da história com a inteligibilidade do tipo mítico que

fica evidente em Heródoto sob três aspectos. Primeiro, o passado é submetido a

uma cronologia. Heródoto presumiu, por exemplo, que Homero vivera

quatrocentos anos antes (850 a.C.).125 Segundo, a transferência da autoria da

narrativa. Na epopéia, a palavra é inspirada pelas musas e o poeta é o agente

transmissor da palavra. Já em Heródoto a palavra é laicizada: Disse até aqui o

que vi e o que consegui saber por mim mesmo.126 Finalmente, a ação que

importa é a humana. Por exemplo, o historiador identifica que o desencadeador

das disputas entre bárbaros e gregos é Creso da Lídia, e, não, o rapto das

mulheres gregas (Io e Helena) e bárbaras (Europa e Medéia).

122 PEREIRA, M.H.R. 1994. p. xix. 123 GAGNEBIN, J.M. Op.cit. p.17. 124 DODDS, E.R. 1988. p.194. 125 FINLEY, M.I. 1989b. p.10. 126 HERÓDOTO. II,99.

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Isto é o que contam os Persas e os Fenícios. Quanto a mim [egò], a respeito de tais acontecimentos, não vou afirmar que as coisas se passaram assim ou de outra maneira, mas, depois de assinalar aquele que eu próprio sei [oida] ter sido o primeiro a cometer atos injustos [adíkon érgon] contra os Helenos[...].127

Essa proposição é significativa porque busca entender os acontecimentos

através de análise crítica das fontes e não apenas, como afirma Veyne, pela

repetição das informações recolhidas durante sua investigação.128 Segundo

afirma Heródoto, Creso da Lídia foi o primeiro bárbaro a submeter alguns

helenos a pagamento de tributo, e que antes desse soberano todos os gregos

eram livres; prò dè tes Kroísou arches pántes Hellenes hesan eleúthero.129

Em outra ocasião Heródoto adverte seu interlocutor; Pela minha parte, o meu

dever é dizer o que me disseram, mas não acreditar em tudo, e o que acabo de

declarar vale para todo o resto de minha obra.130 Nesse contexto, o historiador

disponibiliza relatos divergentes ao seu interlocutor como uma exigência de

crítica e não a ausência da mesma. E esta exigência se refere tanto ao fazer

quanto ao ler e ouvir história. E, pode-se afirmar que é importante para Heródoto

construir suas histórias utilizando todas as fontes disponíveis, porque interessa-

lhe preservar do esquecimento a identidade das diferentes culturas. É, ainda, de

fundamental relevância para esse viajante historiador, respeitar o espaço de

127 Idem. I,5. 128 VEYNE, P. 1987. p.23. 129 HERÓDOTO. I,6. 130 Idem. VII,152. Hecateu de Mileto, anterior à Heródoto, já propunha uma ruptura com a inteligibilidade mitólogica propondo uma nova forma de racionalidade: Escrevo de acordo com o que me parece ser a verdade; pois as histórias dos Gregos são, a meu

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manifestação das divergências dentro de uma mesma cultura, porque sua

identidade se manifesta por aquilo que possui de comum e de diferente.

II.4. Alétheia nas Histórias

De acordo com o estudo de Catherine Darbo-Peschansky, O discurso do

particular, Heródoto não reivindica o poder de dizer a verdade, o que ocorre na

narrativa é um posicionamento hesitante e restritivo.131 O acesso pleno à verdade

é uma exclusividade dos deuses, que tanto podem revelá-la aos homens através

de sonhos e oráculos,132 quanto manipulá-la impedindo o seu reconhecimento. A

alétheia passa então a ser instrumento da justiça divina.133

O relativismo em Heródoto fica transparente na análise sobre a verdade e a

opinião nas Histórias realizada por Peschansky. Essa análise revela que as

Histórias não incorporam um discurso verdadeiro e que tanto sua ocorrência

quanto sua legitimidade procedem da opinião, doxa. De acordo com

Peschansky, o papel que a opinião exerce na obra é primeiro de triagem das

informações, sendo aquelas que exercem maior persuasão sobre o historiador

as mais dignas de crédito. O segundo, e mais importante, de acordo com a

autora, é o fato de Heródoto dar às suas próprias palavras valor de opinião.

entender, muitas e ridículas. Ver PEREIRA, M.H.R. Op.cit. p.XVIII. 131 DARBO-PESCHANSKY, C. 1998. p.191. 132 HERÓDOTO. VIII,77. 133 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.192.

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Nessa perspectiva, o investigador se coloca no mesmo nível dos seus

informantes, não sendo nenhum deles, a priori, fonte de verdade.134 Por fim, se

Heródoto espera que as opiniões dos seus informantes o ajudem a formar a sua

própria, o investigador solicita igualmente ao destinatário da obra, o leitor-

ouvinte, que acompanhe esse procedimento e elabore sua própria opinião ; [...]

cada um é livre para aceitar a opinião daqueles que o convençam.135 Dessa

forma, conclui Peschansky, Heródoto não exige do destinatário a passividade de

quem está a receber uma mensagem de verdade.136

É nesse contexto de acesso privilegiado à verdade que, segundo a autora,

compreende-se o trágico divórcio entre a alétheia e os povos conquistadores da

Ásia (lídios, medas e persas). Particularmente, os soberanos que são

condenados pelos deuses devido à desordem, hýbris. A finalização - pode-se

assim dizer - das Histórias, busca exatamente explicitar essa pretensão dos

soberanos de ultrapassar os limites empreendendo ações desmedidas.

Heródoto dá voz à Ciro, que retorna ao texto como uma reflexão do próprio

historiador sobre toda a trajetória dos soberanos persas, marcada pela ambição

de conquista. É sobre essa ambição desordenada que fala Ciro, e conclui que é

melhor ser livre mesmo em uma terra pouco fértil, do que escravo em uma terra

rica. Uma terra onde existem facilidades é mais propícia a homens fracos.137

Disso tem-se que cada povo deve aceitar os limites geográficos em que vivem,

134 Idem. p.212. 135 HERÓDOTO. V,45. 136 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.123. 137 HERÓDOTO. IX,122.

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não ambicionando terras alheias. Tais limites representam, metaforicamente, a

condição humana diante do mundo divino.

Numa perspectiva panorâmica e geral das Histórias, a justiça (reparação da

desordem causada pela ambição de ultrapassar limites) se concretiza com a

derrota frente aos gregos. E no âmbito específico de cada soberano, a justiça se

manifesta como uma reação contrária à incapacidade de compreensão da

verdade quando revelada pelos deuses. Cada soberano bárbaro, diz

Peschansky, tem sua própria maneira de ignorar ou de perverter a verdade.

Creso, por exemplo, não soube interpretar o sentido verdadeiro do oráculo.

Xerxes não dá o crédito devido às palavras verdadeiras de Demaratos. Dario

acredita que o valor da verdade é apenas prático:

[...] na altura que é preciso dizer uma mentira, ela deve ser dita. É que, de fato, todos nós desejamos a mesma coisa, quer quando dizemos a verdade: se, por seu lado, os que mentem estão à espera de ganhar alguma coisa, convencendo alguém com a suas mentiras, também os outros dizem a verdade para ganharem maior credibilidade e para que mais algum lucro lhes provenha com a verdade. [...] Se nada houvesse a ganhar, tanto faria que aquele que diz a verdade fosse mentiroso ou aquele que mente fosse verdadeiro.138

Cambises, por sua vez, confere grande importância à verdade aderindo à

pretensão de atingi-la. Mas ele não passa do ator de uma paródia de pesquisa,

em que todos os meios de conhecer o que é verdadeiro revelam-se

138 Idem. III,72.

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deformados, impróprios e finalmente inúteis.139 Os desencontros de Cambises

com a verdade são, de fato, uma paródia em que sua personagem é o protótipo

da falta de discernimento e equilíbrio. Seu lógos é composto por uma sucessão

de acontecimentos, como o episódio do mago usurpador ou dos espiões, em

que fica explicita sua dificuldade de acesso a verdade. A expedição, que tinha

por objetivo saber a verdade sobre os etíopes, acaba revelando uma contradição

sobre os persas que, como informa Heródoto, tinham como princípio de

educação e ensinamento aos seus filhos dizer a verdade.140 Aos olhos dos

etíopes, entretanto, eles não diziam a verdade sobre a real intenção da

expedição, da mesma forma como a tintura púrpura dos seus mantos mascara

a cor verdadeira do tecido.141

Peschansky conclui que os soberanos persas são uma espécie de chapa

negativa de Heródoto, porque fazem tudo o que este evita fazer: identificar a

experiência direta dos homens com a verdade, pretender ter desta uma

instituição infalível.142 Acrescenta que a verdade em Heródoto é uma concepção

marginal, que não possui objetivo de sancionar a pesquisa.

A autora analisa um conjunto de palavras semanticamente próximas de alétheia,

quais sejam: atrékeia, atrékéos; saphes, saphenéos; orthos, orthotés. O adjetivo

saphes que substitui atrékes, é pouco utilizado por Heródoto, sendo que atrékeia

139 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.199. Ver: HERÓDOTO. III,35. 140 HERÓDOTO. I,136-137. 141 Idem. III,22. 142 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.202.

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e orthotés (exatidão, precisão, justeza) são os termos mais recorrentes.143 Na

maioria das ocorrências de atrékeia, o investigador não dispõe de informações

suficientes para fazer uma opção entre as diversas versões que teve o cuidado

de conhecer e expor. Diferentemente do que acontece com alétheia, a confissão

de impotência só é proferida depois de reflexão em que o investigador analisa as

soluções possíveis visando encontrar uma resposta à questão proposta.144

Entretanto, ressalva a autora, o investigador não hesita em apontar alguns sinais

de justeza, com a segurança de quem se sente em condições de julgar.145

Pode-se afirmar primeiramente que Heródoto, de fato, tanto hesita em declarar

um acontecimento exato, quanto resiste a considerar conclusões segundo a

alétheia, principalmente pela carência de informações, e isso leva-o a abrir um

leque de soluções possíveis. E em segundo lugar, mesmo quando precisa, a

informação não desvenda o fato: é preciso construí-lo, desbastá-lo, dar-lhe um

sentido. Nas Histórias, essa atividade, designada pelo nome de gnome [II,24,99]

ou pelos verbos sumballésthai e katanoien [II,28], conduz sempre à expressão de

uma opinião.146 E assim, independentemente das nuanças da palavra alétheia,

as Histórias não incorporam um discurso de verdade, sua legitimidade procede

da opinião.147

Quantitativamente, existe uma abundância significativa da utilização do

vocabulário que expressa a opinião, principalmente o verbo dokein e depois o

143 Idem,ibidem. 144 Idem. p.205. 145 Idem. p.206. 146 Idem,ibidem.

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substantivo gnome, em relação às poucas ocorrências em que Heródoto

expressa certeza de estar dizendo o verdadeiro.

livro

afirmações do verdadeiro, do exato,

ou do justo

opiniões

I 5 21 II 12 57 III 0 14 IV 3 24 V 2 11 VI 2 6 VII 0 21 VIII 0 15 IX 0 5

A análise das informações contidas no quadro148 resumido acima indica que o

que é constante em todos os livros é mesmo a indiscutível predominância da

opinião relativa à verdade, ou nas palavras de Peschansky; [...] os juízos de

opinião prevalecem sobre os juízos de verdade [...]149 e;

Quando o investigador se permite fazer uma avaliação do seu próprio discurso, bem como de seus informantes, [...] dá ao seu julgamento o caráter relativo de uma opinião suscetível de ser discutida, assumindo ele próprio a postura de um pesquisador que não pretende determinar a ‘causa mais verossímil’, a qual se revestiria de excepcional esclarecimento.150

Marshall afirma que a experiência histórica que modela o conceito da palavra

gnome como categoria do pensar que possui referências a uma objetividade e

147 Idem. p.208. 148 Idem. p.209. 149 Idem. p.209. 150 Idem. p.210.

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racionalidade suscetíveis de se apreender, cultivar e utilizar como finalidade

argumentativa, pode ser identificada, em seus traços mais gerais, com o projeto

de emancipação do homem face às realidades que o ultrapassam, que o

impedem de dominar seu destino. Nesse sentido, a gnome ocupa um papel

central na reflexão sobre as possibilidades do homem como agente histórico.

Isso tem a ver, diz o autor, com o predomínio de conceitos de lógos e nómos

sobre mythos e phýsis, que se verifica na história do pensamento grego do

século V a.C.151

151 MARSHALL, F. 1999. p.168-175.

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CAPÍTULO III: Diversidade e identidade

III. 1. Nómos: a religião e as Histórias

Heródoto viajou por muitas terras e pôde descobrir culturas diversas, muitas

vezes com valores opostos, como indica a história por ele relatada sobre Dario e

a questão dirigida a indianos e gregos:

Dario, durante o seu reinado, convocou os Gregos que habitavam na corte e perguntou-lhes por que preço estariam dispostos a devorar os cadáveres dos seus próprios pais. Ao que responderam que por preço nenhum fariam tal coisa. Em seguida, o monarca chamou um grupo de indianos, designados por Calatinos, que têm por uso comer os pais. E diante dos Gregos, que através de um intérprete podiam compreender o que dizia, perguntou-lhes por que preço aceitariam queimar os restos mortais dos seus progenitores. Os interpelados protestaram e exortaram o rei a não dizer blasfêmias.152

Nessa exposição fica evidente que a tradição cultural é um elemento central no

pensamento e comportamento social das comunidades orientais e ocidentais da

antigüidade. A importância relativa a cada gesto cotidiano ou ritual é pautada por

sua significação perante a comunidade, que cria códigos de condutas de acordo

com uma visão particular do mundo. Nesse sentido os gregos criaram um código

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ritual que difere, e mesmo opõe-se, aos indianos, demarcando particularidades

na compreensão sobre a vida e a morte.

A definição de cultura proposta por Geertz153 em que reconhece o homem como

um ser totalmente envolvido nas teias de significados que ele mesmo teceu, vem

de encontro à percepção de Píndaro em sua forma poética de conferir ao nómos

um estatuto de soberania sobre tudo que existe.154 Portanto, interpretar uma

cultura se faz a partir da análise dos códigos estabelecidos, considerando a

importância atribuída a eles pela sociedade.

Na Grécia de Heródoto, a religião caracterizava-se por práticas coletivas e

individuais, e na teia da representação social ocupou espaço nas principais

decisões políticas e econômicas das cidades. Os templos, por exemplo, eram

dedicados aos deuses da cidade, e os cultos eram, na maioria dos casos,

legalizados e oficializados com datas regulares para as festividades. Os

assuntos comunitários incluíam religião, mas a pólis não detinha o monopólio

sobre a religiosidade, já que os deuses podiam se comunicar diretamente com

os indivíduos através dos sonhos, do vôo das aves, dos relâmpagos e de outros

fenômenos da natureza.

152 HERÓDOTO. III,38. 153 GEERTZ, C. 1978. p.15. 154 HERÓDOTO. III,38.

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A religião, segundo a concepção de Geertz, nunca é apenas metafísica, pois,

explica o autor, o sagrado contém em si um sentido de obrigação e orientação da

conduta humana; ela é, em parte, uma tentativa de conservar a provisão de

significados gerais pelos quais cada indivíduo interpreta sua experiência e

organiza sua conduta. O sistema religioso, acrescenta o autor, é formado por um

conjunto de símbolos sagrados que possuem função de formular valores, construir

uma imagem de realidade, onde os acontecimentos têm, necessariamente, um

significado e acontecem por causa desse significado.155

Tendo em perspectiva essas considerações teóricas de Geertz, propõe-se

investigar a partir das previsões oraculares relatadas por Heródoto qual o

significado da religiosidade para esse historiador, visando compreender o seu

relativismo frente à diversidade de culturas com as quais conviveu ou que

escreveu a respeito. A opção de delimitar algumas previsões oraculares

presentes nas Histórias, deve-se ao fato de se constatar que o acesso à verdade,

alétheia, encontra-se, na obra em questão, restrito ao saber sobrenatural, aos

deuses,156 e que, por isso, essas fontes podem ajudar a decifrar alguns códigos

de comportamento e pensamento no seu fazer história. O mais importante é

tentar entender porque e como o acesso à alétheia é restrito.

Um referencial importante na cultura grega é o oráculo de Delfos, que gozava de

grande credibilidade tanto na Hélade quanto entre os povos bárbaros. O teste

155 GEERTZ, C. Op.cit. p.142-143. 156 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.192.

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proposto por Creso indicou, segundo Heródoto, que Delfos possuía considerável

credibilidade no que diz respeito ao reconhecimento da verdade. Creso enviou, a

diferentes oráculos, mensageiros lídios com ordem de questionar sobre o que ele

fazia naquele momento. Creso arquitetara uma atividade cotidiana, mas que

poderia ser reconhecida como inusitada tratando-se de um soberano, qual seja,

cozinhava tartaruga e cordeiro. A resposta de Delfos foi a seguinte:

[...] sei o número de areias e as medidas do mar, entendo o mudo e ouço quem não fala. Chegou-me aos sentidos o odor de tartaruga de dura carapaça, A cozer no bronze com carnes de cordeiro; Por baixo estende-se bronze e tem bronze por cima.157

A resposta revela que o acesso à verdade é uma atribuição oracular,

sobrenatural, afinal, conhecer tão exatamente o número de areias e a medida do

mar, definitivamente não é uma atividade humana. Contudo, a resposta não

indica que contar areia e medir o mar seja atividade das divindades, mas que o

oráculo tinha acesso ilimitado à verdade. E nas palavras de Peschansky;

A alétheia, assim coloca-se ao nível da perfeição e do caráter exaustivo do saber. A partir desse momento, pode-se compreender por que ela constitui apanágio dos deuses. É porque estes possuem aquele conhecimento total do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, do dizível e do indizível [...]158

157 HERÓDOTO. I,46. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. 1994. 158 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.193.

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Interessa perceber que o oráculo respondeu de acordo com a verdade proposta

por Creso, pois é isso que lhe conferirá credibilidade perante o soberano, e, ao

mesmo tempo, divulgado o ocorrido, essa se estenderia a outros. E quando os

oráculos se expressam de maneira clara, diz Heródoto em outro contexto, não se

deve contestar a verdade, alethés, dos mesmos.159

Sobre Creso existem, ainda, outras referências a previsões oraculares, entre as

quais:

Ele obteve o reino e foi confirmado pelo oráculo de Delfos [...] O oráculo deu a decisão e dessa forma Giges tornou-se rei. A isso acrescentou, todavia a Pítia que os Heráclidas teriam a vingança sobre o quinto descendente de Giges. Desta revelação não fizeram caso algum os Lídios e os seus reis até que ela se cumpriu.160

Segundo Heródoto, os Mérmnadas usurparam o poder na Lídia transferindo-o da

casa dos Heráclidas para Giges, acontecimento que gerou instabilidade ou

‘guerra civil’ entre esse povo. Essa instabilidade política foi resolvida com a

participação efetiva da entidade religiosa de Delfos, o que confirma sua

influência para além dos limites da Hélade. Na tragédia, o prólogo tem a função

de informar os espectadores sobre a trama que será representada no palco,

deixando transparecer seu desfecho. A previsão oracular, no lógos sobre Creso,

funciona na história como seu prólogo e somando a isso os diálogos

reproduzidos, assim como também o conteúdo temático presente nos mesmos,

poder-se-ia dizer que a forma narrativa é bastante próxima da tragédia.

159 HERÓDOTO. VIII,77.

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O diálogo entre Creso e Sólon é um exemplo claro da proximidade dos assuntos

representados nas tragédias e os apresentados por Heródoto. Segundo o sábio

Sólon, a maior felicidade de um homem é ter uma vida sem grande riqueza ou

pobreza, mas sobretudo estável, equilibrada. Ainda, o homem é todo vicissitude,

e portanto ninguém deve julgar-se feliz antes que chegue sua morte.161 Nas

palavras da personagem Medéia de Eurípides, a mesma concepção de

vicissitude humana pode ser encontrada dita da seguinte forma: não chores

ainda; aguarda tua velhice...162 E para Heródoto é necessário;

[...] examinar de forma igual [homoíos] as pequenas e as grandes cidades dos homens. Pois as que antigamente eram grandes, muitas delas tornaram-se pequenas. E as que no meu tempo são grandes, eram primeiro pequenas. A felicidade humana em parte alguma permanece a mesma, referirei a ambas de forma indistinta [homoíos].163

A discussão sobre o destino, moira, está presente tanto nas tragédias quanto,

especialmente, no prólogo de Creso, discussão que incorpora concepções sobre

hýbris, díke e amartía. A hýbris de Creso é caracterizada pela sua incapacidade

de perceber os limites da felicidade humana de que lhe falou Sólon. É ele

segundo Heródoto, o primeiro a cometer atos injustos, adíkon,164 contra os

helenos, submetendo-os a pagamento de impostos.165 Metaforicamente, sua

hýbris está representada pelo gesto de transpor um limite geográfico, o rio Hális.

160 Idem. I,13. 161 Idem. I,32. 162 EURÍPIDES. Medéia. v.1396. Tradução de PEREIRA, M.H.R. 1991. 163 HERÓDOTO. I,5. 164 Idem,ibidem.

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No pensamento grego desde pelo menos Homero toda ação desmedida, hýbis,

corresponde a uma reação de reparação.

Como nos acusam injustamente os mortais, dizendo que somos a causa dos seus males, quando na realidade são eles que com suas loucuras acarretam sobre si os sofrimentos que o destino não lhes tinha decretado.166

De acordo com Freire, na tragédia a moira identifica-se com Zeus e exprime o

fado de cada um. Ela é a expressão da essência divina, particularmente na

manifestação de dois atributos: justiça e providência.167 Se por um lado é função

da moira fiar o destino, por outro, é a ação humana que desencadeia o processo

de justiça, díke. Na concepção do autor o destino não possui uma conotação

fatalista.

A leitura possível a partir dos versos de Homero citados é que de fato não existe

fatalidade no destino e sim que os homens são os únicos responsáveis pela

adversidade. Assim a justiça e a providência advindas de Zeus estão implicadas

diretamente nas atitudes humanas. Essas atitudes são pautadas por códigos de

comportamento que fazem parte da teia de significados de que fala Geertz.

De acordo com Heródoto, tanto Giges quanto seu quinto descendente Creso

transgrediram os códigos de comportamento presentes na teia de significados

que eles mesmos teceram, ou melhor, que o narrador traduziu a partir da retórica

165 Idem. I,6. 166 HOMERO. Odisséia. I,32-34. In: FREIRE, A.S.J. 1969. p.97. 167 FREIRE, A.S.J. Op.cit. p.25-26.

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da alteridade. Então, de acordo com esse código é necessário que haja uma

reparação, e é então que entra em cena a parte que cabe à incorruptível díke.

Enquanto foi soberano, Giges enviou oferendas a Delfos, e não poucas; de todas as oferendas de prata existentes em Delfos a maioria é sua e, além da prata, consagrou grande quantidade de ouro, de que sobretudo convém reter na memória, entre outras, seis kratêres de ouro dedicados por ele.168

As oferendas, como fala Heródoto, são ricas e se somadas às que Creso

também oferece, constituem um tesouro valioso. No entanto, não são suficientes

para corromper a justiça e mudar o destino. O quinto descendente de Giges

pagará o preço proferido pela previsão oracular e instituído pela díke. No lógos

de Creso, existe um comprometimento da instituição religiosa representada pelo

oráculo com a alétheia, a moira e a díke. A penalidade instituída a Creso será

cobrada primeiro com a vida de seu filho Átis e depois com o fim de seu império

e o domínio pelos persas.

De súbito, enquanto dormia, surgiu-lhe um sonho que lhe revelou a verdade sobre os males que iam atingi-lo através do filho. Creso tinha dois filhos, um deles com uma enfermidade, a de ser surdo-mudo, o outro era de longe superior em tudo aos da sua idade; Átis era seu nome. Ora o sonho mostrou a Creso como ele o perderia, ferido por uma ponta de ferro.169

Os sonhos premonitórios podiam ser claros ou enigmáticos. Heródoto não

explicita se o sonho de Creso foi enigmático ou claro, mas tudo indica que foi

transparente, pois a incapacidade do soberano em entender os enigmas é

168 HERÓDOTO. I,14. 169 Idem. I,34. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. 1994

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atestada em outras ocasiões. Essa incapacidade de perceber a verdade

revelada é, aliás, uma característica comum aos soberanos de poder ilimitado.

Quando o mulo for rei dos Medas, Então, Lídio dos pés moles, ao longo do Hermo pedregoso Põe-te em fuga. Não te envergonhes de ser cobarde.170

O sentido enigmático da fala oracular refere-se a Ciro, metaforicamente

reconhecido pela pítia por mulo. Popularmente Ciro era também assim

conhecido, como descreve Heródoto sobre sua infância. Isso reforça a imagem

do poder despótico caracterizado como incapaz de conhecer a verdade do

‘outro’.

Tudo que estava ao alcance do rei lídio para proteger seu filho contra o destino

revelado foi empreendido. Mas Creso não consegue evitar que, durante uma

caçada a um javali, Átis morra como no sonho: ferido por uma ponta de ferro.

Apesar da origem e veracidade do relato serem questionados (o nome Átis se

aproxima do termo ate, desgraça, desvario, e é o mesmo do filho e companheiro

da deusa frígia Cibele, morto por um javali)171 a referência a Átis reafirma a

tensão entre o mundo humano e o divino presente na idéia de destino e de

justiça.

O diálogo de Creso com os deuses através de sacrifícios pode indicar uma

tentativa de reconciliação. Os sacrifícios são uma forma de diálogo entre os

170 Idem. I,55. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. Op.cit. 171 Idem,ibidem. ver nota 50.

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homens e os deuses. Nesses rituais os homens lançam seus desejos aos

deuses.172

Depois de tudo isso, com grandes sacrifícios, procurou tornar propício o deus de Delfos: imolou três mil cabeças de cada espécie de animais próprias para sacrifícios, amontoou leitos de ouro e prata, taças de ouro, vestidos de púrpura e túnicas, depois queimou-os todos numa grande pira, na esperança de, com tais oferendas, consagrar mais o deus. Ordenou ainda a todos os Lídios que cada um sacrificasse o que pudesse. Quando terminou o sacrifício, fez fundir enorme quantidade de ouro e com ele modelou lingotes [...] Mandou ainda fazer uma estátua de leão em ouro puro que pesava dez talentos [...] juntou-lhes mais os seguintes: dois kratêres de grandes dimensões, um de ouro e outro de prata [...] quatro jarras de prata [...] dois vasos para abluções, um de ouro e outro de prata; no de ouro há uma inscrição que afirma ser oferenda votiva dos Lacedemónios, mas não diz a verdade. É de fato, também uma oferta de Creso e a inscrição, no desejo de agradar aos Espartanos, colocou-a lá um habitante de Delfos, cujo nome conheço mas não mencionarei. [...] além de muitas outras não marcadas, enviou Creso também lingotes de prata fundida, em forma redonda, e ainda uma estátua de mulher com três côvados em ouro [...] colares e cintos da própria mulher.173

Em primeiro lugar, percebe-se que existe na investigação realizada uma postura

crítica diante das fontes disponíveis (que neste lógos são: oral, escrita e

iconográfica), visando a proximidade da verdade. Essa crítica, sobretudo em

relação à inscrição fraudada no vaso de ouro e a riqueza dos detalhes contidos na

narrativa indicam que a pesquisa objetiva fornecer ao ouvinte-leitor informações

precisas. Heródoto deixa explícito que sabe o nome do falsificador, mas que não

172 SISSA, G. DETIENNE, M. 1990. p.85-91. 173 HERÓDOTO. I,50,51. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. Op.cit. Lingote significa ‘meios ladrilhos’, teriam cerca de 45cm de comprimento, 22cm de largura e 7cm de altura e deveriam formar o pedestal onde se colocava o leão, animal que estava relacionado com o culto de Cibele e de Sandon e com a fundação mitológica de Sardes (ver I,84). Notas explicativas dos tradutores, p.84-85.

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mencionará o que reforça o argumento de que realizou a investigação e que,

também, visa ‘fazer crer’ que aquilo que disse é verdade.174

A ênfase conferida pelo investigador a esse relato, tendo em vista seu trabalho

de investigação rico em informações e detalhes, indicam do ponto de vista

metodológico que Heródoto utilizava as fontes disponíveis. Indicam, também, que

a instituição religiosa representada pelo oráculo de Delfos contava com grande

prestígio e credibilidade no contexto temporal dos acontecimentos sobre Creso

da Lídia. Essa credibilidade pode ser atestada, ainda, em incontáveis

referências presentes nas Histórias. Entretanto, há na obra três referências que

colocam em cheque a total credibilidade dessa instituição.

Segundo Heródoto, os alcmeónidas, família ateniense exilada por Pisístrato,

reconstruíram o templo de Delfos e ofereceram dinheiro à Pítia para que

respondesse aos espartanos que ali viessem, seja em caráter particular ou

público, segundo o propósito de tornar Atenas livre.175 Então, a partir das

respostas proferidas pela sacerdotisa aos espartanos, esses enviam a Atenas

um grupo armado para expulsar os partidários de Pisístrato.

Assim, apesar de haver laços de hospitalidade entre Pisístrato e os espartanos,

as palavras dos deuses foram mais imperativas que os códigos de sociabilidade

humanos. O que exemplifica a confiabilidade depositada nos oráculos, mas que

também expõe questões sobre seu funcionamento e utilização. Sobre esse

174 Sobre o ‘fazer crer’, ver: HARTOG, F. Op.cit. p.300-302. 175 HERÓDOTO. VI,62-63. De acordo com Heródoto, Alcméon, avó de Clístenes, foi

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acontecimento é preciso, ainda, ressaltar que Heródoto conconcordava com a

política adotada pelos alcmeônidas, particularmente a clisteniana, como

evidencia em V,78. Então, a exposição do suborno, segundo as palavras que lhe

disseram os atenienses, demonstra uma postura de imparcialidade que permite

ao seu interlocutor formar uma opinião pessoal sobre um assunto tão complexo.

Essa complexidade deve-se ao descrédito que uma afirmativa nesse nível pode

acarretar à instituição oracular, já que essa é tida como um veículo de acesso à

verdade. O outro acontecimento que envolve a sacerdotisa de Delfos em suborno

pode ser resumido nas seguintes palavras de Heródoto:

[...] Cóbon persuadiu Períale, a profetisa, a dizer o que era do interesse de Cleômenes [...] Mas depois quando isso foi descoberto; Cóbon foi banido de Delfos e Períale privada de seu honroso ofício.176

Quantitativamente, esses dois casos de suborno não podem atestar uma

corrupção generalizada da instituição oracular, tendo em vista, principalmente, os

outros inúmeros relatos em que a confiabilidade desta é atestada pelo acesso à

verdade, ou seja, o desenrolar dos acontecimentos confirmaram, de acordo com

a narrativa das Histórias, os enigmas proferidos. Contudo, somados a outras

fontes como o provérbio citado pela Medéia; [...] os presentes até aos deuses

convencem. O ouro é para os mortais mais potente que mil argumentos177;

podem indicar uma situação distinta daquela em que a alétheia é acessada

através dos oráculos, que possuem um saber infinito. Então;

presenteado por Creso com significativa quantia em ouro (VI,125). 176 HERÓDOTO. VI,66.

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[...] Vimos o que se esperava não se realizar, p’ra o que não se sabia o deus achar caminho. Assim vistes o drama terminar.178

Enfim, na narrativa de Heródoto, a alétheia nem sempre se apresenta como

apanágio dos deuses via oráculos, como afirma Peschansky. A verdade também

não é o objetivo da atividade desse historiador, que se apoia sempre em um

discurso particular, uma opinião sobre a verdade; [...] o investigador lança mão

de uma forma de pesquisa que, sem negar os deuses, longe disso, se distancia

de sua influência e pode, por vezes, afirmar-se como uma atividade profana,

autônoma e soberana.179 É que Heródoto, apesar de não confiar no canto das

sereias, não quer deixar de ouvi-lo, mesmo que para isso tenha que se amarrar

em algum mastro que, no caso, é feito de lógos, no sentido de discurso razoável.

Na cultura de então, outras teias de significados estão sendo confeccionadas e a

investigação de Heródoto faz parte desse novo emaranhado de fios.

III. 2. Nómos: imaginário político

A identidade cultural é em Heródoto o nómos, é isso que demarca as diferenças

entre as comunidades conhecidas pelo historiador. A diferença entre o nómos

grego e persa, por exemplo, é marcada pelas formas coletiva e individual de

poder. No caso grego o nómos é traduzido por leis, porque não está encarnado

177 EURÍPIDES. Medéia. v.963-964. Tradução de PEREIRA, M.H.R. 1991. 178 EURÍPIDES. Medéia. v.1417-1419.; As bacantes. v.1390-1392. Traduções de PEREIRA, M.H.R.

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em um indivíduo, mas em uma constituição disponível através de sua redação e

publicidade. Livres [eleútheroi] eles são, mas não totalmente; a lei é o soberano

[despótes nómos] para eles.180

Essa fala de Demaratos a Xerxes é significativa na medida em que expressa

uma diferença fundamental sobre organização política que se encontra vinculada

às práticas ou costumes e ainda ao contexto histórico de construção da

democracia grega. O nómos, nesse caso, pode ser identificado como um código

de comportamento, leis instituídas pela tradição, substituto da teoria, uma vez que

refere-se às práticas, aos costumes. Nesse sentido então, deve ser interpretado

como aquilo que na ausência de teoria explica os comportamentos políticos das

comunidades.

O fator que merece estar sublinhado, nas cidades gregas, é o movimento de

formação da identidade política que cursa o sentido de baixo pra cima, ou seja,

são as práticas diárias dos habitantes que formam a posteriori o conhecimento

teórico. E, sem dúvida, esse movimento é importante para entender a ausência

na obra de Heródoto do que chamamos hoje teoria. Isso porque as práticas

foram estudadas e descritas pelo historiador e, em alguns casos, como o debate

dos sete persas ou as ações de tiranos como Periandro e Deioces, constituem

os primeiros esboços sobre teoria política. A descrições dessas práticas não

constituem uma síntese sobre as formas políticas praticadas até então, mas se

179 DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.93. 180 HERÓDOTO. VII,104.

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analisadas em conjunto indicam uma freqüência de fatores que podem ser

interpretados como uma maneira própria de agir de cada forma de poder.

Segundo Heródoto, Deioces conquistou o poder entre o povo meda,

basileúethai, desempenhando inicialmente o papel de juiz e agindo de acordo

com justiça, dikaiosínen. A utilização de determinadas palavras para descrever

os acontecimentos relativos a essa trajetória indicam que havia por parte do

historiador uma preocupação de ler os eventos à luz de um referencial teórico

básico. Segundo Benveniste,181 o basileu exerce funções de tipo mágico-

religioso que inicialmente corresponde ao portador de uma palavra autorizada. É

ainda importante ressaltar que em uma cidade pode haver mais de um basileu,

fato que indica uma descentralização do poder. O termo utilizado por Heródoto

basiléa182 (no acusativo por estar vinculado a uma escolha conforme a opinião da

maioria) indica uma adequação a um contexto específico das atitudes de

Deioces que seguiam uma coerência, ou seja, eram sempre de acordo com a

justiça, díke. Ele era respeitado pelos habitantes da cidade como um juiz por agir

justamente.

Se díke é a justiça que rege as relações entre as famílias (ou no sentido abstrato

é a virtude da justiça e nesse contexto se diferencia de thémis, ou justiça que se

181 BENVENISTE, E. 1995. v.2. p.23. 182 HERÓDOTO. I,98. Obs: ver na linha 3. Neste mesmo trecho sobre a história da organização política dos medas, há outras ocorrências do termo basileus, algumas vezes na forma verbal, mas sua referência está sempre vinculada ao contexto das práticas de Deioces tidas como justas.

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exerce no interior de um grupo familiar)183, então tem-se que Deioces foi

escolhido para a função de basileu, que diz o direito. No entanto, sua opção foi

de se fazer tirano. Heródoto utiliza o termo tirano para se referir ao contexto

posterior da conquista do poder, ele diz, erastheì s turanídos184. Deioces,

desejando o poder tirânico, fazia julgamentos de acordo com o que era

considerado justo, estratégia utilizada para conquistar confiança dos medas -

homens que se mostraram valorosos ao tornarem-se livres da escravidão,

eguéneto ándres agatoí [...] doulosínen eleuthróthesan.185

Nesse caso, a utilização da palavra doulos refere-se à escravidão a que fora

submetido o povo meda pelos assírios. É importante perceber que Heródoto

utiliza também a palavra doulos para se referir ao povo sob o poder tirânico. No

caso de Deioces a centralização de seu poder transparece na arquitetura

utilizada na construção de Ecbátana186 que segundo a descrição possui um

traçado de sete anéis concêntricos de muralhas. A arquitetura, o protocolo, o

caráter sacro do número sete, são de inspiração mesopotâmica e indicam,

também, uma atitude política de centralização do poder.

Então, segundo Heródoto, antes todos os povos eram autônomos, autonomon,

ou seja, possuíam leis próprias e depois passaram à tirania.187 Termo grego

183 BENVENISTE, E. Op.cit. p.109 184 HERÓDOTO. I,96. 185 Idem. I,95. 186 Atual Hamadan, palavra originária da forma persa Hagmatana que parece conter o sentido de ‘lugar de reunião’. Ver nota explicativa n.5; p.128. In: HERODOTO. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. Op.cit. 187 HERÓDOTO. I,96.

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conhecido desde a época homérica e possivelmente originário da Ásia Menor,

doulos - escravo - é necessariamente um estrangeiro, aquele que não possui

direitos.188 A relação entre basileu e doulos é pautada pela ausência de direitos

dos estrangeiros. No caso da tirania que Heródoto atribui a Deioces, doulos são

todos os medas. Com a tirania, os medas perderam a autonomia e a liberdade

que haviam conquistado anteriormente. A palavra doulos , que designa aquele

que não possui direitos, passa a fazer parte do imaginário político que tem como

forma de poder a tirania.

Se entendermos imaginação social como define Baczko,189 tem-se que a

descrição de Heródoto sobre Deioces deve ser interpretada tendo em vista a

utilização das palavras - basileu, tirania, doulos e eleuthería - os detalhes

arquitetônicos da cidade Ecbátana, o protocolo de acesso ao soberano etc.

Enfim, os símbolos que constituem o imaginário social sobre as formas de poder

centralizado, informam que a tirania e o despotismo no contexto antigo possuem

afinidades em relação à ausência de direito ou de justiça, díke, pensada no

sentido abstrato e humano.

A história de Sólon pode iluminar o fator que diferencia as formas

descentralizada e centralizada de poder. Sólon, devido à solicitação dos

atenienses, compôs leis para a cidade. Deioces, que desempenhava com justiça

o papel de juiz dos medas, foi devido a esse fato escolhido por eles para legislar,

no sentido primeiro do termo basileu.

188 BENVENISTE, E. Op.cit. p.349,351,353. 189 BACZKO, B. 1984. p.309.

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Os caminhos trilhados por esses dois sábios são opostos. Sólon ocupa o lugar

de legislador, demiurgo, mediador, que opta por não escolher uma das facções

e, como ele mesmo diz em seus poemas, que deve se manter solitário no meio

do campo de batalha. Sólon, é assim o legislador de um novo tipo: distante do

mito, pelo conhecimento humano que tem das coisas da política; distante dos

homens, que não sabem visar a coisa pública senão do ponto de vista da

particularidade.190 Deioces se apropria do poder público em proveito próprio.

E nas palavras de Loraux, poucos são os homens que assumem o poder

resistindo ao desejo de confiscá-lo em proveito próprio.191 No caso de Deioces é

exatamente esse desejo de confiscar o poder, que, segundo Heródoto,

apresenta-se como erasteì s tiranídos, amante da tirania, que impõe a diferença

entre ele e Sólon. O significado da neutralidade do legislador, como sendo um

mediador solitário, está no fato do poder não pertencer a alguém, mas à cidade.

As palavras de Sólon definem nitidamente o contexto social em se encontrava a

cidade ateniense de sua época. Segundo o poeta:

[...] Os próprios cidadãos, arruinar a grande cidade com [imprudências querem, persuadidos pelas riquezas; e é injusto o pensamento dos líderes do povo, aos quais é [eminente,

190 BIGNOTTO, N. 1998. p.31. 191 Idem. p.31-32.

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[...] Não sabem conter a saciedade, nem ordenar [...] os bens sagrados, nem os bens públicos não poupando, roubam com avidez um aqui, outro ali. Não conservam os alicerces veneráveis da Justiça, Que, em silêncio, conhece o presente e o passado, [...] Estas coisas ensinar aos Athenienses o coração me ordena, Como muitos males à cidade a Disnomia oferece. A Eunomia tudo bem ordenado e justo revela, e muitas vezes põe grilhões nos injustos; as rudezas alisa, faz cessar a saciedade, atenua os excessos, resseca as flores nascidas da loucura, [...] 192

Percebe-se nos versos acima que a cidade perdeu o referencial que conferia ao

líder político, basileu, a legitimidade do poder, ou seja, esses não conduzem

suas ações segundo a justiça, díke - que promove o bem estar social - mas de

acordo com interesses privados. A eunomía, enquanto capacidade de legislar

conforme as leis, em outras palavras, com a justiça situa-se fora da relação entre

o basileu e a cidade, no contexto descrito, acima, pelo poeta.

Nesse sentido, Sólon é o fundador do imaginário igualitário que tem como

prerrogativa o vazio de poder no sentido de que não deve pertencer a ninguém,

mas à cidade e seus interesses garantidos pelas leis. Encarregado de legislar,

ele passou a ocupar imediatamente uma posição central na cidade, mas uma

posição que soube ver que deve permanecer vazia. Esse imaginário igualitário

é que dará origem à democracia do século seguinte.193

192 SÓLON. Fr.4 W. Tradução de LAGE, C.F. 1998. p.51-52. 193 BINGNOTTO, N. Op.cit. p.32-33.

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Segundo Hartog, a narrativa de Heródoto faz crer que a diferença entre gregos e

bárbaros é de poder. E um dos efeitos simbólicos que o texto produz, afirma o

autor, é a criação de um imaginário em que não existe diferença entre déspota,

rei e tirano, tendo em vista o código de poder estabelecido na trama da narrativa

de Heródoto.194

Resumidamente, o poder déspota está caracterizado na narrativa de Heródoto

por: aporia de leis; desejo (erástai) de poder como fruto da hýbris; transgressão

dos espaços geográficos e humanos; violação de costumes, regras sociais,

religiosas e sexuais (ánomos); e marca corporal dos súditos como sinal de

escravidão.195 Então, a experiência de Deioces narrada por Heródoto mostra

que o historiador - apesar de não desenvolver uma teoria política para definir os

regimes políticos vivenciados pelos diferentes povos conhecidos - distingue suas

práticas, expondo-as a seu destinatário.

CAPÍTULO IV: Eleuthería, Isonomía e Alétheia

III. 1. O salto de Árion

194 HARTOG, F. Op.cit. p.341. 195 HARTOG, F.1980. p.332-336.

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A história do ‘salto de Árion’, contada por Heródoto, é uma entre muitas

narrativas em que o diálogo entre historiador e ouvinte-leitor é pautado pelo

caráter relativo das percepções sobre conceitos como nómos e alétheia. Árion é

um poeta e cantor, um aedo nascido em Lesbos e que esteve durante a corte de

Periandro na cidade de Corinto para exercer sua profissão. Ao conseguir

acumular alguma riqueza, Árion contrata uma tripulação para levá-lo a Tarento.

Entretanto, os marinheiros corintos que conduziam a embarcação, visando obter

a riqueza de Árion, obrigam-no a pular no mar. O alto mar tornara-se, então, um

território em que os valores sociais presentes na cidade são desprezados pelos

piratas do navio. Eles abandonaram seus costumes, aquilo que fazia deles uma

comunidade. Jogaram fora aquilo que demarcava a diferença entre a

comunidade humana e a não-humana. Árion, não tendo outra opção a não ser

jogar-se no mar, poderia simplesmente ter tirado sua vestimenta e cumprido as

determinações que lhe foram impostas. Mas Árion era um artista, e nesse

momento de perigo opta por utilizar sua capacidade criativa e faz um último

pedido aos piratas. Deseja vestir sua roupa mais bonita e cantar uma canção

antes de saltar no mar, no que é prontamente atendido por seus algozes. Quando

Árion salta no mar, atraído por seu belo canto um golfinho surge e salva o aedo,

conduzindo-o para a superfície. Árion foi salvo por si mesmo, pela reafirmação de

sua cultura e seu caráter criativo em um momento de perigo. O golfinho,

persuadido pela canção, faz um gesto que coloca em cheque os conceitos que

delimitam a comunidade humana e a não-humana.196 O golfinho é o paradoxo do

196 Tomei de empréstimo a primorosa versão “Arion’s Leap” reproduzida por: THOMPSON, N. 1996. p.167.

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que se convencionou irracional e racional, natureza e cultura, o animal e o

humano. Periandro mandou construir uma imagem de Árion e o golfinho e esta é,

sem duvida, uma das mais belas imagens produzidas pela antigüidade.

A leitura da obra Histórias mostra que a relação entre o historiador e seu ouvinte

é de um diálogo constante em que a liberdade para aceitar ou não as versões

narradas sobre os acontecimentos é respeitada. A narrativa de Heródoto é um

constante convite a escolher entre as diferentes versões apresentadas a que

parecer mais convincente, [...] cada um é livre para aceitar a opinião daqueles

que o convençam.197 O interlocutor desse historiador é, sobretudo, livre para

escolher entre as diferentes versões aquela que for mais convincente, que possuir

maior capacidade de persuadir – tis peithetai auton. Ele é convidado a seguir os

passos do historiador, de seguir as pistas encontradas nos relatos dos

testemunhos e, então, fazer uma escolha e entender os acontecimentos a partir

de uma reflexão própria.198 Para Darbo-Peschansky:

Heródoto não requer a imagem de um historiador que detém isoladamente o saber verdadeiro, segregado das multidões que prejudicam o seu trabalho, da mesma forma que prejudicam o trabalho do político, a menos que este saiba, como Péricles, pôr freios a uma igualdade que se tornou nociva.199

Heródoto não se julga mais capaz que seu ouvinte-leitor de estabelecer um

veredicto final a partir das informações que lhes são apresentadas. Na verdade,

estabelecer um veredicto final não é objetivo primeiro desse historiador, mas sim

197 HERÓDOTO. V,45. 198 DARBO-PESCHANSKY, C. Op,cit.. p.212. 199 Idem. p.217.

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preservar do obscurecimento (akléia), pela forma escrita (grafei), os feitos tanto

dos gregos, quanto dos bárbaros. A igualdade entre os feitos de gregos e

bárbaros fica explícita, portanto, nas suas intenções primeiras. É essa relação

de liberdade e de igualdade que produz um efeito de encantamento e mostra seu

comprometimento com a história. Para uma compreensão do significado de

verdade ou alétheia na obra de Heródoto, deve-se levar em consideração a

relação do historiador e seu ouvinte-leitor pautada na liberdade e na igualdade e,

ainda, compreender suas proposições metodológicas e seu compromisso social

e político enquanto historiador. Para responder a questões sobre o significado

das palavras eleuthería e isonomía em contraponto com alétheia propõe-se a

verificação do contexto em que essas são utilizadas pelo historiador, ou seja, a

partir do quadro político descrito por Heródoto objetiva-se estabelecer possíveis

relações entre essas palavras.

Verificando as ocorrências de eleuthería e suas derivações na obra Histórias,

constata-se uma freqüência bastante significativa em que sua utilização está

vinculada à tiranos e à doulos. E, ainda, pode-se conferir sua ocorrência no

contexto da utilização da palavra alétheia. Em relação à palavra isonomía, sua

ocorrência é particularmente importante, apesar de sua freqüência restrita.200

De forma sucinta, a opção política de Heródoto é modelada em sua narrativa de

duas formas. A primeira caracteriza-se por sua intervenção direta, em que sua

200 As ocorrências verificadas são: eleuthería em oposição à tirania (I,62; IV,137; V,49,55,62,63,66,78; VI,5,123), eleuthería em oposição à doulos (I,95; IV,142; V,49; VI,11; VII,135), eleuthería e alétheia (VI,123; VII,139; VIII,77), isonomía em oposição à

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opinião é expressa, e, na outra, dá-se voz às personagens de suas Histórias.

Essas duas formas narrativas possuem em comum a relação estabelecida entre

o historiador e seu público. Relação pautada pela palavra-diálogo em que o

argumento é relativo à sua capacidade de persuadir. É a partir dessa perspectiva

que se propõe a análise das passagens em que as palavras eleutheria,

isonomia e alétheia são utilizadas pelo historiador.

IV. 2. Diálogos

Sobre a primeira forma de intervenção do narrador, in propria persona, tem-se

quatro exemplos significativos na obra Histórias.201 O mais conhecido é, sem

dúvida, o encomium de Atenas. Na análise sobre uma possível opção política de

Heródoto e qual a influência desse posicionamento em relação à narrativa, o

referido encomium de Atenas é de fundamental importância. A opinião de

Heródoto sobre a vitória grega sobre os bárbaros é a seguinte;

Sinto-me levado a expor aqui a minha opinião, e, muito embora me exponha à ira de muitos, não dissimularei o que parece, a meus olhos [moi faínetai], a verdade [alethés]. [...] Não estaremos longe da verdade [alethés] se dissermos que os Atenienses foram os salvadores da Grécia. [...] Escolhendo a liberdade [eleuthéren] da Grécia, insuflaram coragem em todos os Gregos que ainda não se haviam manifestado favoráveis aos Persas; e foram eles que, depois dos deuses, repeliram o rei.202

tirania (III, 80-83; V,37), isegoría (III,78), democracia em oposição à tirania (VI,43). 201 HERÓDOTO. V,66,78 e 91; VII,139. 202 Idem. VII,139.

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Segundo Evans, o veredicto de Heródoto foi considerado como a prova de que

Heródoto era partidário de Atenas e possivelmente, também, de Péricles. Agora,

diz Evans, isso esmoreceu graças ao importante artigo de Strasburger em que

combate a ênfase de Jacoby sobre o comprometimento de Heródoto com

Atenas. Myres pode interpretar o veredicto apenas como uma opinião e Fonara

pode ter isso como evidência de que Heródoto estava envolvido, mas, também

muito solto para ser um propagandista ateniense.203

Para Evans, é importante dizer que não existe a evidência de que Heródoto é um

partidário de Péricles,204 mas que sua simpatia pelos atenienses é uma questão

diferente. No começo da Guerra do Peloponeso ambos os combatentes

procuravam uma justificação moral; os espartanos diziam ser os libertadores da

Grécia, ao passo que os atenienses apontavam sua participação na Guerra

Pérsica e clamavam que a hegemonia poderia ser colocada sobre eles, se seus

aliados não estavam satisfeitos com a liderança de Esparta. É nesse contexto,

diz Evans, dessa propaganda, que devemos examinar o encomium de Heródoto,

pois é somente ali que Heródoto se dirige aos seus leitores diretamente e coloca

sua opinião de forma clara: Atenas escolhendo o lado da liberdade salvou a

Grécia do jugo Persa.205

203 EVANS, J.A.S. 1979. p.114. 204 A análise pela qual Heródoto seria partidário da política de Péricles encontra-se, particularmente, nos estudos de Eduard Meyer. Ver: VERDIN, H. 1975. p.678. 205 Idem,ibidem.

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De fato, Atenas teve a oportunidade de fazer uma escolha, e se optasse pela

aliança com os persas comprometeria a liberdade das cidades gregas. Nesse

sentido, Heródoto tem razões suficientes para afirmar que os atenienses

escolhendo a liberdade, salvaram a Grécia do jugo persa. Atenas fez uma

escolha, que foi um ponto de virada na história e nós podemos argumentar que

Heródoto pensava ser seu dever como historiador apontar e dar crédito onde

esse era devido [...].206 Esparta fez a mesma escolha, mas sua participação na

guerra foi, aos olhos de Heródoto, menos significativa que a de Atenas.207

Entretanto, a diferença entre Esparta e Atenas não reside na escolha, mas na

ação de convencimento de outras cidades em optar pela liberdade da Grécia, é

esse o mérito dos atenienses, segundo Heródoto.

O poder de convencimento pela argumentação em favor da liberdade é uma

ação, de acordo com a narrativa do historiador, ateniense. Na política grega, de

maneira especial em Atenas, o discurso ou o lógos tem função fundamental para

o desenrolar dos acontecimentos, é a ação primeira. O poder, na democracia

ateniense, está intimamente relacionado com o lógos e sua capacidade de

persuasão, Atenas age falando.208

A contribuição de Atenas na guerra entre os gregos e os bárbaros, não se

restringe, portanto, às ações em que o principal instrumento são lanças ou

206 Idem. p.113. 207 HERÓDOTO. VIII,17; IX,105. 208 CASSIN, B., LORAUX, N., DARBO-PESCHANSKY, C. Op.cit. p.50. O sentido original da palavra krátos ou seja, superioridade ou predominância no combate ou na assembléia, confirma a relevância do lógos no estabelecimento das relações de poder. Ver:

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espadas. A outra contribuição de Atenas que deve ser considerada é o

convencimento à participação de cidades que ainda não haviam se decidido em

prol da liberdade da Grécia, através de um lógos. A ação pelo lógos pode ser

apreendida, ainda, em relação à previsão oracular ‘inflexível como diamante’ que

atestava um futuro pouco promissor à liberdade da Grécia, segundo

interpretações correntes.209 Nesse sentido, o lógos ateniense é importante tanto

em relação à vitória no campo de batalha quanto à vitória em relação à uma

suposta verdade oracular. No entanto, negligenciar o caracter relativo da previsão

oracular à sua interpretação seria comprometer a instituição religiosa e não se

pode assegurar que esse era o objetivo de Heródoto. Temístocles afirma, por

exemplo, que os interpretes não haviam encontrado o significado verdadeiro do

oráculo e propõe um novo sentido para as palavras da Pitonisa que é aceito, na

medida que convence os gregos a lutar pela liberdade.210

Se por um lado a fala oracular manifesta-se inflexível como diamante, mas

depende da interpretação que lhe é conferida, por outro pode-se perceber a

dupla utilização do adjetivo alethés pelo historiador para sublinhar a importância

do gesto ateniense. A opinião política do historiador é afirmada, então, pela

colocação de sua fala na primeira pessoa, moi faínetai, e pela ênfase através de

alethés. A liberdade da Grécia é, aos olhos de Heródoto, uma realidade que

deve ser interpretada tendo em perspectiva a ação ateniense por volta de 480

a.C.

BENVENISTE, E. Op.cit. p.71. 209 HERÓDOTO. VII,141. 210 HERÓDOTO. VII,143.

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O encomium de Atenas, segundo Evans, tem implicações políticas mais amplas

e para compreendê-las deve-se levar em consideração o contexto em que

Heródoto o escreveu. Dizer, por volta de 461a.c., que Atenas salvou a Grécia

poderia, talvez, ser tomado como um veredicto justo de um historiador. Mas,

dizer isso em 430 a.C. era dar justificação moral para o imperialismo

ateniense.211 A data em que o encomium foi escrito é, de fato, importante para

uma analise do envolvimento e comprometimento social e político do historiador.

Afinal, as medidas administrativas adotadas por Atenas em certo momento de

sua liderança na Liga de Delos possuem contornos que se definem autoritários

pela utilização da força militar em prol do cumprimento de suas imposições em

relação às cidades ‘aliadas’. Acontecimentos que depõem contra o ideal teórico

político de Atenas em que a eleuthería e a isonomía encontram-se em primeiro

plano.

Segundo Finley, de fato, a atitude ateniense enquanto líder da Liga de Delos

deve ser reconhecida como imperialista a partir da constatação de

acontecimentos como: restrição da liberdade de ação nas relações entre as

cidades, interferência política, administrativa e/ou jurídica nos negócios internos,

serviço militar e/ou naval compulsório, pagamento de alguma forma de tributo,

confisco de terras, controle dos mares e regulamentação de navegações, até a

entrega compulsória de mercadorias a preços inferiores aos de mercado, e

211 EVANS, J.A.S. Op.cit. p.114.

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outras similares.212 Para o autor, entretanto, não se pode afirmar que havia,

desde a criação da Liga de Delos em 478 a.C., um programa imperialista

definido, e que é quase impossível definir o momento exato em que a associação

voluntária de Estados se converteu em uma forma imperialista de poder. Um

equívoco comum, apontado por Finley, é a preocupação de alguns historiadores

em datar essa conversão em 454 a.C., ano em que o ‘tesouro de Liga’ foi

transferido de Delos para Atenas, ação que deve ser interpretada apenas como

um símbolo, segundo o autor.213

Em relação ao encomium, Evans aponta três razões para datá-lo em 430 a.C.

Nenhuma dessas razões isoladamente constitui uma prova absoluta, mas

cumulativamente colocam um ponto firme sobre a questão.214 Entretanto, se sua

composição remete a 430 a.C., a ação ateniense descrita por Heródoto ocorreu,

de fato, por volta de 480 a.C. É portanto essa verdade que é enfatizada. Mas, se

a história é uma ação no e pelo tempo presente, o encomium é testemunho da

opção política e ideológica do historiador. Opção que deve ser analisada no

conjunto da obra e não apenas a partir de uma passagem. Evans conclui que o

fato mais relevante é que em 480 a.C. Atenas foi de fundamental importância

para a liberdade da Grécia e isso não poderia ser menosprezado pelo

historiador.215

212 FINLEY, M.I. 1989a. 213 Idem, Ibidem. 214 EVANS, J.A.S. Op.cit. A primeira é o fato do encomium ser imediatamente precedido de um evento que pode ser datado em 430 a.C., ou seja, a menção de Aristéia, filho de Adeimanos.

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Outra ocorrência importante das palavras aqui estudadas encontra-se no livro V,

66 e 78 em que Heródoto afirma: Atenas, que já era grande, tornou-se ainda

maior quando se livrou dos tiranos[...] 216 e depois:

O poderio de Atenas tornou-se maior, o que demonstra (deloi), não apenas em uma instância, que a igualdade (isegoria) é uma instituição virtuosa (espodaion); [...] e quando se livrou dos tiranos ela se tornou (eguéneto) a primeira (protoi) e a maior (makroi) de todas. Isto mostra (deloi) que [...] tornando-se livres (eleutheroténton) cada um se dedicou com mais cuidado ao trabalho, porque não tinham mais que submeter a um senhor (despótei), mas a si mesmos.217

Evidencia-se nesse trecho da narrativa que Heródoto possuía uma noção clara

dos acontecimentos referentes à história de Atenas, sobre as transformações

políticas – da tirania para a democracia – e as implicações sociais no quadro

político da Grécia. De fato, enquanto Atenas esteve sob o poder da tirania, houve

um prosperidade significativa, e essa cidade tornou-se uma referência cultural (os

poemas órficos foram compilados e as epopéias homéricas editadas) 218 e

política (Atenas veio a reforçar suas posições no mar Egeu e na região do

Helesponto).219 Segundo Mossé, Pisístrato e seus descendentes, ao mesmo

tempo que reforçavam seu próprio poder, deram à cidade-estado uma coesão

que Atenas não conhecera.220 Como ressalta Heródoto, Atenas era grande e

poderosa antes da implementação da democracia.

215 idem, ibidem. 216 HERÓDOTO. V,66. 217 Idem. V,78. 218 MOSSÉ, C. 1989. p.184. 219 Idem. p.185. 220 Idem,ibidem.

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É imprescindível perceber, entretanto, que no contexto da Revolta Jônica a

utilização da palavra eleuthería está associada, com conotação oposta, à palavra

tirania. Em relação a essa oposição constata-se uma mudança de concepção do

sentido original da prática tirânica de poder. Segundo Dabdab Trabulsi a tirania

em sua origem identifica-se com o desmoronamento de uma ordem aristocrática

e caminha ao lado da difusão do dionisismo.221 A festa ao deus Dionísio é um

momento singular de apagamento de diferenças, na festa todos participam em

condições de igualdade e é isso que torna possível a subversão da ordem.

A participação intensa das mulheres no seu culto, assim como a dos escravos, é reveladora dos perigos que ele representa para a ordem políade. A presença de Dionísio provoca em especial um apagamento geral das diferenças, fonte de toda hierarquia. 222

Os estudos realizados por Claude Mossé e por Dabdab Trabulsi, demonstram

que a política adotada pelos tiranos arcaicos, de maneira especial em Atenas,

tende a quebrar o monopólio aristocrático, e revelam que tanto os tiranos quanto

os legisladores, nesse período, se inserem no mesmo processo de alargamento

da base política da cidade, na medida em que contam com o apoio do demos.223

Resumidamente, a tirania foi, em sua origem, uma solução encontrada para

atender uma demanda popular de superação da crise agrária e política, em

outras palavras: foi a materialização da coligação dos interesses dos novos ricos

221 TRABULSI, J.A.D. 1984. p.93. 222 Idem. 1984. p.89. 223 Idem . p.97; MOSSÉ, C. Op.cit.. p.178-186.

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com os desprovidos, que passaram a lutar contra a oligarquia que detinha o

controle da terra e do poder.224

Em I, 62, Heródoto observa que a tirania era preferível à liberdade para alguns

atenienses, na época de Pisístrato. Nesse contexto, a palavra eleuthería possui

significado claro de oposição à tirania e indica um regime livre, ‘constitucional’.225

A leitura dessa passagem revela que, para Heródoto, a tirania em Atenas desde

Pisístrato possui traços em que a liberdade é limitada pela figura do tirano. Mas a

oposição entre tirania e eleuthería é uma construção que ficará evidente por volta

do século V a.C., a partir de práticas autoritárias realizadas pelos tiranos, como

explicita Heródoto em seus relatos.

Existe, de maneira geral, uma mudança de comportamento político e

administrativo do tirano, que a princípio governava mais como um bom cidadão

do que como um tirano,226 como observa Aristóteles em relação Pisístrato de

Atenas. De acordo com Heródoto, Pisístrato governou os atenienses sem

causar distúrbios nos cargos existentes e sem alterar as ordenações, antes

conduziu a cidade respeitando as instituições e ordenando-a bela e

excelentemente.227

224 ROCHA, M.C.C.F. Op.cit. p.115. 225 HERÓDOTO. I,62. Tradução de SILVA, M.F. e FERREIRA, J.R. Op.cit. Ver nota 88 dos tradutores. 226 ARISTÓTELES. A constituição de Atenas. Tradução de PIRES, F.M. 1995. p.41. 227 HERÓDOTO. I,59. Tradução de PIRES, F.M. Op.cit. p.179.

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A mudança fica evidente nos exemplos citados por Heródoto em que o fator de

maior relevância é a sobreposição da autoridade do tirano em relação às leis, ao

nómos. O tirano assume uma posição de isolamento em relação aos costumes,

ou às leis, não existe um fator que impõe limite ao seu poder. Entre os tiranos

citados por Heródoto - Pisístrato de Atenas e seus descendentes, Clístenes de

Sícion, Polícrates de Samos, Creso da Lídia, Gelon de Siracusa, entre outros - é

Periandro, sucessor de Cípselo no poder em Corinto, o melhor exemplo de ações

injustas (adikóteron) e sanguinárias (miaifonóteron).228

No conselho em que se reuniram vários representantes das cidades gregas para

discutir o futuro da Jônia, que possuía a maioria de suas cidades governadas por

tiranos sob o domínio persa, Milcíades de Atenas, comandante e tirano do

Quersoneso do Helesponto, defendeu a opinião de conquistar a liberdade,

eleuteroun, da região. Histeu, tirano de Mileto, foi de opinião contrária e

argumentou que o governo tirânico se sustentava através do apoio de Dario e,

por outro lado, que a preferência popular era favorável à democracia. Disso, tem-

se que o regime tirânico na Jônia era sustentado pelo apoio do despotismo

persa e que a independência da Jônia possibilitaria a implementação da

democracia. Prevalecendo a opinião de Histeu, Heródoto acrescenta que desde

então os Citas passaram a considerar os jônios como os cativos, doúlon, mais

fiéis ao seu dono, ou filodéspota.229

228 Idem. V,92. 229 Idem. IV,137 e 142.

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Segundo Heródoto, foi Aristágoras, tirano que sucedeu Histeu no poder em

Mileto, quem pôs fim à tirania nessa cidade e liderou a campanha contra o

despotismo de Dario.230 Depois, Aristágoras foi a Esparta pedir apoio político e

militar a Cleômenes para livrar a Jônia da escravidão.231 Para Heródoto, seria

mais apropriado se Aristágoras dissimulasse a verdade, ocultando de

Cleômenes a distância exata entre as duas cidades; [...] ele nunca deveria ter

dito a verdade, mas ele disse [...].232 Cleômenes, informado de que gastaria três

meses de jornada para chegar a Mileto, não é favorável ao empreendimento.

Fica evidente, nessa passagem, que Heródoto é favorável às mudanças políticas

na Jônia. Sua preferência pela liberdade em detrimento do despotismo e da

tirania é explicitada na medida em que dissimular a verdade seria, para o

historiador, a melhor opção. Nesta passagem a verdade não é um fator relevante,

mas é relativa aos interesses políticos em questão, tornar a Jônia livre da tirania

e do despotismo persa.

230 Idem. V,36. 231 Idem. V,49. 232 Idem. V,50. “[...] he should never have told the truth; but he did tell it [...]”.

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Sobre a Revolta Jônica, outra suposição que pode ser apontada é o fato do

assunto se referir também à história de Halicarnasso, tendo em vista o fato de

esses acontecimentos remeterem a um passado intimamente relacionado com o

estado político presente do próprio historiador, ou seja, sua condição de

exilado.233

Heródoto tinha razões bastante consideráveis para fazer-se ouvir e não poderia

deixar de expressar sua opinião a respeito da disputa política nas cidades da

Jônia, pois além de ser um assunto urgente por se tratar da eleuthería dos filhos

da Hélade, como diz Aristágoras,234 era uma questão estratégica no desenrolar

da disputa entre gregos e bárbaros, tema político-militar abordado na sua obra.

As ocorrências de oposição entre as palavras eleuthería e tirania são

encontradas em maior número no livro V, em que Heródoto relata a Revolta

Jônica, e indicam que a tirania tornou-se um governo ilegítimo, ou seja, não

contava com apoio popular.

Segundo K. H. Wathers, na exposição de Heródoto não há evidências de que ele

tenha preferência por uma teoria política.235 Por outro lado, diz Wathers,

Heródoto não pode ser acusado nem por falta de interesse, nem por falta de entendimento de política; mas devemos tê-lo como recusando a interpretar fatos à luz de uma teoria política, moral, filosófica, ou religiosa. Seu interesse primeiro, é de um historiador narrativo, baseado em seus eventos históricos e sua causalidade. 236

233 WATHERS, K.H. 1972. p.138. 234 HERODOTO. V,49. 235 WATHERS, K.H. Op.cit. p.149-150.

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100

Para ler Heródoto é importante ter sempre em perspectiva que o nómos é uma

referência indispensável. Nómos é o princípio em que Heródoto busca a

inteligibilidade dos acontecimentos, é o fundamento da política grega que neste

momento histórico não se apresenta como uma teoria totalmente definida,

fechada, mas como uma prática cotidiana baseada em princípios jurídicos, em

leis.

Política, no contexto grego do séc. V a.C., é uma prática que se define no

cotidiano das cidades, é uma construção diária em que o nómos é referência.

Portanto, é bastante passível de discussão a afirmativa de que na narrativa de

Heródoto os eventos históricos e suas causas estão dissociados, ou melhor, não

são abordados à luz de uma teoria política. Como explicar a expressão

governava à maneira de um tirano?237 Heródoto não esquematizou uma teoria

para definir as diferentes formas de governo, mas não há duvidas que em sua

narrativa ficam explicitas as diferenças fundamentais entre essas formas, e ainda,

sua preferência pela liberdade que a isonomía proporciona em detrimento das

formas despóticas de poder.

Tanto para Legrand quanto para Romilly, a opção política de Heródoto pode ser

identificada na leitura de sua obra. Segundo Romilly, o contexto das guerras

contra os persas provocou uma mudança na abordagem sobre os

acontecimentos, que antes estavam relacionados com determinada família ou

cidade e passam a se identificar com uma visão que engloba de um lado os

236 Idem. p.150.

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gregos e de outro a ‘massa’ do império persa. Além disso, acrescenta a autora,

esse contexto desencadeou o aparecimento de ideais políticos, como a defesa

da liberdade e a ajuda mútua entre as cidades, além de uma história critica,

centralizada no presente e na política. E por fim, o pensamento político expresso

na obra de Heródoto, de maneira simples e forte, é de hostilidade à tirania e o de

estar convencido dos benefícios da liberdade.238

Como identificação política de Heródoto com a liberdade defendida pelos

gregos, Legrand cita vários exemplos, como a seguir: os gregos disputam as

olímpíadas não por dinheiro, mas por coroas louro, ou seja, perì aretès, pela

glória, pelo valor; demarcando uma diferença de valores frente aos bárbaros;239

os lacedemônios não se prostram, no sentido de adorar, a nenhum senhor; [...] fall

down and do obeisance to the king [...] they said they would never do that [...] not

their custom [nómoi] to do obeisance to mortal men [...];240 o único senhor dos

gregos é a lei, despótes nómos;241 os bárbaros, são os que nunca

experimentaram a liberdade;242 e, finalmente, há o discurso do ateniense

Alexandre, em que considera os gregos amantes da liberdade.243

Norma Thompson reafirma a importância da prática nesse momento de formação

da comunidade política, em que o falar adquire grande importância. O filósofo, o

237 HERÓDOTO. I,64. 238 ROMILLY, J. 1984. p.85, 91. LEGRAND, Ph.E. Op.cit. p.9-10, 94. 239 HERÓDOTO. VIII,26. 240 Idem. VII,136. 241 Idem. VII,104. 242 Idem. VII,135. 243 Idem. VIII,143.

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historiador ou o poeta deve ter ouvidos para ouvir, olhos para ver e uma mente

atenta e aberta para assimilar e trazer à tona as informações transmitidas

oralmente. Esses são os elementos indispensáveis para a apreensão da política

nesse momento da história.244

Plescia define que nómos em Heródoto está diretamente relacionado ao

ambiente natural – phýsis - da região, pois existe a influência deste não apenas

na constituição física do homem, mas também no seu comportamento e em suas

instituições sociais. Nómos, ou complexo de costumes e instituições,

conseqüentemente, é o resultado da interação da natureza, phýsis e da razão

prática – sophia - do ethnos habitual da região. Isso expressa a sabedoria do

povo e explica porque o ethos é o rei.245 Heródoto, entretanto, não estabeleceu

apenas a relação entre phýsis e nómos, mas investigou qual o melhor nómos, e

ele concluiu que é a liberdade política encontrada na igualdade perante a lei,

isonomía.246

De modo geral, Heródoto não tem como objetivo principal em sua narrativa fazer

julgamento moral das formas de poder ou dos costumes. De fato, a interpretação

correta sobre a narrativa de Heródoto nesse aspecto é, como ressalta Wathers,

que não existe preconceito ideológico por parte do historiador.247 O exemplo que

244 THOMPSON, N. Op.cit. p.163. 245 PLESCIA, J. 1972. p.303. O autor refere-se às palavras de Píndaro reportadas por Heródoto em III,38. 246 Idem. p.302. 247 WATHERS, K.H. Op.cit. p.141.

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melhor expressa a imparcialidade de Heródoto diante das diferenças políticas e

culturais é:

Se propusesse, fosse a quem fosse, que escolhesse, de entre todas as tradições culturais, as melhores, cada um, depois de refletir maduramente, escolheria a sua própria, convencido que está de que a tradição em que nasceu é de longe a melhor.248

A leitura dessa passagem revela que não existe, de fato, preconceito ideológico

por parte do historiador e também que havia uma concepção clara sobre a

importância do nómos no entendimento das ações humanas. Portanto a

instituição de leis encontra-se, sobretudo, vinculada às práticas, aos costumes

inerentes a cada sociedade em questão. O tipo de governo e suas instituições

são uma conseqüência direta do nómos que possui um movimento da base ou

do povo para o poder, pois é a legitimação do poder. Nesse sentindo, não seria

aceitável desvincular nómos de política. Portanto, quando Heródoto identifica o

melhor nómos, refere-se também à melhor forma política.

Se existe por um lado uma intervenção direta do historiador em momentos

importantes como em VII,139, ou em V, 49, 66 e 78, em que sua preferência

política fica evidente, por outro, de acordo com Wathers, Heródoto permite que

outros personagens critiquem o despotismo,249 mas ele mesmo não oferece

nenhuma crítica explícita a respeito da maneira persa de governo. Nesse sentido,

o nómos dos persas pode prover uma defesa válida das ações dos reis persas.

248 HERÓDOTO. III,38. Tradução de SILVA, M.F. e ABRANCHES, C. Op.cit.

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Whaters conclui que o interesse de Heródoto não parece repousar no tipo de

governo ou suas instituições. O caso da constituição de Clístenes em Atenas -

governo ‘ancestral’ que desempenhou papel dominante na história tradicional do

período de 510 a.C. - deveria ser suficiente para provar essa negativa.250

Heródoto relata em V, 66, que Atenas cresceu muito depois do fim da tirania,

mas havia dois indivíduos lutando pelo poder: Clístenes, do clã alcmeônida e que

tinha reputação de ter subornado a Pítia; e Iságoras filho de Tessandro. Essa

última casa citada tinha grande reputação, mas seus antecedentes eram

desconhecidos pelo autor, que acrescenta que quando Clístenes se viu

ameaçado, se aliou ao povo e promoveu as mudanças. Isoladamente, essa

passagem pouco expressa a opinião do historiador. Mas se analisada em

conjunto com as outras aqui citadas sobre a instauração da democracia em

Atenas, pode ser lida como uma reafirmação da preferência política de Heródoto.

Por outro lado, se, de fato, as informações advindas de Heródoto sobre as

reformas de Clístenes são insuficientes para se ter um quadro institucional

elaborado sobre a democracia em Atenas, essas são preciosas na medida em

que é Heródoto a fonte mais rica sobre o assunto.251

De fato, não existe na obra de Heródoto uma elaboração teórica sobre as formas

de poder, nesse sentido Wathers tem razão. Mas é preciso ler a obra Histórias à

249 Ver especialmente HERÓDOTO. V,92. 250 WATHERS, K.H. Op.cit. p.144-145. 251 Vale conferir que Aristóteles em sua obra “Constituição de Atenas” utiliza as informações de Heródoto como base referencial sobre o assunto.

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luz das formas de representação e expressão do pensamento vigentes no

período de sua composição, ou seja, a partir da estrutura formada por diálogos

argumentativos em que as práticas políticas são disponibilizadas à apreciação do

ouvinte-leitor. As Histórias são como uma assembléia popular, em que as

opiniões são colocadas no centro, e o ouvinte-leitor é convocado a expressar seu

voto.

Se na forma de intervenção direta a opinião do autor é colocada em primeiro

plano, numa segunda estratégia narrativa Heródoto dá voz a personagens

históricos, que, entretanto, encontram-se envolvidos em acontecimentos nem

sempre passíveis de uma verificação ou afirmação de sua autenticidade. Muitas

são as ocorrências de narrativas em que se evidencia a presença de contos

populares como base informativa para o historiador. Alguns exemplos como a

história do anel de Polícrates, do nascimento de Ciro, do encontro de Sólon e

Creso, dentre outros, indicam que grande parte das informações recolhidas pelo

historiador durante suas viagens possuem caráter popular, ou seja, fazem parte

de uma cultura oral transmitida de geração para geração, e formam um complexo

que se constitui por heranças e mudanças em relação às crenças religiosas e/ou

políticas.

Segundo Dodds, um novo padrão de crença muito raramente apaga por

completo o padrão anterior: tanto vive o antigo no novo como um elemento [...]

como persistem os dois lado a lado.252 Nesse sentido, Immerwahr considera que

252 DODDS, E.R. 1988. p.194.

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esse material tido como ficção ou literário não é apenas decorativo ou divagação

irrelevante, mas constitui um espelho da cultura grega.253 Contrariamente à

concepção de que as construções (consideradas) literárias de Heródoto não

dizem sobre a história e pouca importância possuem para o entendimento da

concepção política do historiador,254 propõe-se demonstrar a partir da análise de

algumas passagens, tendo em vista o conjunto da obra Histórias, que elas

informam sobre a concepção política e social do historiador e indicam a

existência de uma nova estrutura, própria do século V a.C., de ordenamento e

expressão do pensamento. Estrutura que se revela como um trabalho de arte

complexo e altamente organizado, que lhe confere uma unidade.255 Nesse

sentido, tem-se que todas as partes da obra possuem igual importância, ou seja,

possuem uma relação de interação e não de subordinação, segundo Cobet. 256

Nessa nova estrutura composta de um encadeamento de ‘logois’ e que

denomina-se investigação, ou história, coexistem, de fato, resquícios da época

anterior, principalmente em relação às concepções gerais e à escolha temática:

Ele faz parte da tradição dos poetas gregos de fazer conviver uma dupla

causalidade: divina e humana.257 Mas é a tragédia que impõe maior influência à

estrutura narrativa e ao conteúdo temático das Histórias. De acordo com

Jacqueline de Romilly,

253 IMMERWAHR, H.R. Op.cit. p.214. 254 WATERS,K. H. Op.cit. 255 IMMERWAHR, H.R. Op.cit. p.306.; VERDIN, H. 1975. p.670. 256 VERDIN, H. Op.cit.. p.671. 257 ROMILLY, J. 1971. p.335; SAID, S. 1980-81.

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A tendência a representar os fatos pela encenação de personagens em ação é o elemento fundamental da tragédia, e esta é, para os gregos, a obra literária por excelência. É preciso acrescentar que a própria epopéia, por mais narrativa que fosse, era objeto de declamações mais ou menos gestuais e expressivas, que a aproximavam da tragédia. Finalmente, devemos observar que, no século IV, quando essas formas de arte deixaram de ser as mais importantes, a maior parte das obras que exprimiam idéias políticas, morais ou filosóficas passaram a ser apresentadas sob a forma de relatos pretensamente históricos, ou de diálogos que encenavam personagens. [...] Em alguns escritores, essa tendência conjuga-se com outra, não menos importante, que consiste em sugerir, nesse quadro de aparência totalmente objetiva, relações acessíveis apenas aos mais atentos.258

Uma composição em forma de diálogo, exemplar para uma discussão sobre a

natureza histórica, literária e política da obra de Heródoto é, sem dúvida, o

debate constitucional da assembléia dos sete persas.259 Paradigmático pelo seu

conteúdo político e também por seu caráter tido como literário, o debate entre os

sete conjurados persas visa a escolha da melhor forma de governo - e aqui

Heródoto dá voz às personagens para que o leitor ouça o debate. Muito se

discutiu a respeito da autenticidade desse acontecimento. A princípio, não se

pode afirmar que o debate dos conjurados persas aconteceu ou que é uma

composição literária de Heródoto. Estudos indicam que é bastante provável que

seja mesmo uma composição literária, principalmente pela utilização da

terminologia e de gestos gregos, como por exemplo a expressão es méson.260

Mas interessa aqui, sobretudo, entender a concepção de Heródoto sobre

258 ROMILLY, J. 1998. p.62-63. 259 HERÓDOTO. III,80-83. Segundo Wells, as informações sobre o debate dos sete conjurados e outros acontecimentos relativos à história da Pérsia foram passadas por Zóspiro, persa que Heródoto teria encontrado em Atenas por volta de 440 a.C. WELLS, J. 1907. p.44-45. 260 SILVA, M.F. e ABRANCHES, C. Op.cit. p.109-115.

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eleuthería e isonomía, a partir do vocabulário político presente nas Histórias. Se

de fato o debate é uma composição literária do autor, cabe interrogar o propósito

de sua existência em forma de narrativa em discurso direto.

O primeiro a expor sua opinião no debate é Otanes, que desqualifica a

monarquia e a tirania utilizando como principal argumento o desrespeito aos

costumes ancestrais, a condenação sem direito a julgamento, ou seja, ações

desmedidas, insolentes, hýbris, freqüentes na forma absoluta de poder e cita

como exemplo as atitudes de Cambises e Esmerdis. Para Otanes a melhor

forma de governo é a isonomía (igualdade perante a lei), o mais belo de todos os

nomes, ónoma pánthon kálisthon. Na isonomía é por sorteio que se recebe

cargos públicos, exerce-se o poder prestando contas e as deliberações são

expostas à comunidade.261

Megabizos, o segundo a falar, defende a oligarquia. Sua teoria é que tanto o

tirano quanto o povo, quando possuem o poder, agem com insensatez, hýbris. Já

para Dario, a monarquia é a melhor forma de poder. Seu principal argumento, a

liberdade (eleuthería), surpreende. Recorrendo à memória de Ciro, ele lembra

que a independência do povo persa da submissão aos medas não é resultado de

uma democracia, nem da oligarquia, mas da monarquia; afinal os persas foram

libertados pela ação de um homem, eleutheroténtas dia hena ándra. A liberdade

é exaltada em favor da permanência do nómos - costume ancestral persa - a

261 [...]All offices are assigned by lot, and the holders are accountable for what they therein;

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monarquia como forma de governo mais adequada aos persas. Com relação à

tirania, Dario não desenvolve comentários. Por fim, a argumentação de Dario em

favor da Monarquia e, construída tendo como base de sua sustentação o nómos

e a eleuthería, é a mais convincente, uma vez que é aceita pelos demais

participantes, exceto Otanes.

Segundo Wathers, a opção de Heródoto em fazer a inclusão do debate dos

conjurados persas em sua narrativa deve-se ao interesse sobre a política grega

(e, não, persa) de então.262 O debate, no entanto, reforça a idéia de que existe na

obra de Heródoto uma relativização da verdade na medida em que aponta para

uma idéia de liberdade pautada por costumes politicamente diferentes da

concepção grega. Para dizer de outra forma, o debate dos sete persas é um

exemplo significativo de que concepções teóricas sobre política ou cultura são

relativas ao contexto de sua produção, à sua prática. No debate fica explícita a

idéia de que a liberdade para um persa é relativa a uma tradição construída a

partir da monarquia, contexto político bastante distinto daquele de Atenas, em

que a liberdade é uma conquista advinda com o fim da forma despótica ou

tirânica de poder, [...] es tàs Atenas guenómenas tiránon óde eleuthéras., ou

ainda, [...] hos tiránon eleutherótesan Atenaíoi.263

Se existe uma comprovação histórica do desfecho do debate, ou seja, a escolha

de Dario como representante monárquico do povo persa, e se os diálogos de

and the general assembly arbitrates on a all counsels.[...] HERÓDOTO. III,80. 262 WATHERS, K.H. Op.cit. p.141. 263 HERÓDOTO. V,55 e 62.

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Otanes, Megabiso e Dario são uma composição literária do autor, tem-se que

Heródoto não subverte a verdade histórica, mas adorna-a.264 Os diálogos são

uma forma de representação de uma realidade - falam sobre modos gerais de

viver um mundo. Considerando ainda a reafirmação que Heródoto faz sobre a

autenticidade,265 pode-se concluir que não existe a intenção de subverter a

verdade histórica mas informar e colocar em pauta as diferentes formas de

pensamentos e atitudes diante dos acontecimentos. Em um sentido mais amplo,

Fornara diz que [...] a obra de Heródoto se endereça, exclusivamente, aos seus

contemporâneos, ele se sente responsável pelas questões mais atuais de sua

época.266 Verdin acrescenta que esta preocupação de Heródoto não pode ser

perdida de vista durante a leitura de seu texto.267

De fato, o debate em torno das concepções políticas está presente na vida do

grego do século V a.C., mas a relação estabelecida entre liberdade e monarquia

explícita na fala de Dario traduz uma realidade persa. Portanto, deve-se enfatizar

que a relação estabelecida pelo historiador com seu público é pautada,

sobretudo, na diversidade de culturas e na demarcação das diferenças entre

elas. Se a liberdade do povo persa possui implicações históricas ligadas à

monarquia a partir de Ciro, essa verdade, presente na fala de Dario, só é

verificável no contexto persa. No pensamento grego do século V a.C. a liberdade

encontra-se historicamente vinculada à deposição da tirania e à implementação

264 WATHERS, K.H. Op.cit.. p.141. 265 HERÓDOTO. VI,43. 266 VERDIN, H. Op.cit. p.678. 267 Idem,ibidem.

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da isonomía. E essa verdade inerente ao contexto histórico grego está

representada pela voz de Otanes.

Segundo Hartog as Histórias fazem crer que a diferença entre gregos e persas é

de poder e que: O código do poder é uma sorte de cadeia, através da qual pode

passar a trama da narrativa, sendo a figura imaginária do déspota, ao mesmo

tempo rei e tirano, um dos efeitos simbólicos que o texto produz.268 Dizer o

outro é fazer ver que a diferença mais profunda é política, ou seja, isonomía

opõe-se à monarquia-tirania.269 Heródoto faz seu ouvinte-leitor acreditar nessa

diferença política e utiliza para tal propósito os diálogos, seja exprimindo sua

opinião ou permitindo a expressão - de forma direta - da opinião de outrém.

Segundo Laiteiner, Heródoto compartilha os pontos de vista de Otanes, não

porque ele endossa a ideologia de democracia, mas por que as proposições de

Otanes favorecem a preservação do nómoi político e social, governo por

instituições e não pela inconstância absurda dos indivíduos. A proposta de

Otanes promove a autonomia individual dentro do contexto político. Essa posição

demonstra, de forma igual, admiração a Esparta e a Atenas. Os espartanos auto-

governam-se e são livres dentro de claros e estáveis limites, dentro do nómos, o

déspota que impõe maior respeito a eles do que Xerxes. Este louvor do poder

déspota da lei e do costume em Esparta funciona enquanto atende às

necessidade e particularidades espartanas. Atenas aparenta ser o tipo de

comunidade que estava prosperando e rapidamente tornou-se grande,

268 HARTOG, F. Op.cit. p.341. 269 Idem. p.367.

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especialmente por causa da liberdade e do governo constitucional. A liberdade

dos atenienses é consonante com o nómos; ele reconhece limites, impõe

obrigações.270

Ainda de acordo com Lateiner, o debate constitucional é um marco porque forma

uma expectativa sobre as três formas de governo. É também um seminário em

teoria política que se apresenta como uma confrontação dramática, o que não

significa, entretanto, que Heródoto transforma a história em ficção. Para o autor,

as induções racionais são baseadas em observações amplas relatadas nas

narrativas. As tiranias persa e grega não são meramente representantes de um

tipo conhecido. São personagens históricos que moldam e fazem que Heródoto

generalize o perfil de poder sem limites. No entanto, Heródoto não encontrou uma

terminologia abstrata e teórica para explicar os tipos de governo praticados até

então.271

São preferíveis então, no contexto do presente trabalho, as argumentações de

Lateiner e de Hartog, àquelas de Wathers, que não vê - em Heródoto - uma

análise dos acontecimentos teórica ou politicamente embasada. Heródoto,

realmente, não desenvolve, nos moldes modernos, uma teoria política, mas há

uma descrição consistente e iluminadora das diferenças entre as práticas de

poder então vivenciadas pelos diferentes comunidades. Então, se uma teoria não

é explicitada, ao menos o historiador nos fornece instrumentos para uma análise

teórica. Além disso, Heródoto expõe claramente sua opinião a respeito das

270 LATEINER, D. 1989. p.185.

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formas de governo apresentadas, seja diretamente, ou pela voz de suas

personagens.

Outro diálogo importante para compreender a visão política de Heródoto é a fala

de Demaratos ao soberano Xerxes. A fala de Demaratos é particularmente

importante pelo fato de ser direcionada ao convencimento de seu ouvinte através

da enfática utilização de alétheia. No primeiro momento da fala, Demaratos

afirma que falará de acordo com a verdade, aletheíe.272 E depois reafirma a

veracidade de sua fala, acrescentando ao soberano que mesmo sabendo que a

verdade não o agradaria é seu dever informá-lo sobre os gregos que embora

pareçam livres não o são totalmente, pois existe um soberano para eles: a lei.273

A quem é endereçada a fala de Demaratos? Diretamente, sua fala é dirigida a

Xerxes, mas indiretamente ao ouvinte-leitor de Heródoto. O diálogo visa

convencer o ouvinte-leitor de que mesmo não agradando com as palavras que

diz, Demaratos sente-se forçado a dizer a verdade, uma vez que está cumprindo

uma ordem de Xerxes.

A exposição de Sócles sobre a cidade de Corinto é mais um exemplo de diálogo

sobre a liberdade em oposição à tirania em que a palavra é dada a uma

personagem das Histórias. A fala de Sócles constitui um dos capítulos mais

extensos de toda a obra de Heródoto e comporta informações sobre as práticas

tirânicas em que fica evidente a supressão de qualquer referência aos costumes

271 Idem. p.186. 272 HERÓDOTO. VII,102. 273 Idem. VII,104. Free they are, yet not wholly free; for law is their master, [...].

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e às leis, ao nómos. Se a descrição sobre as ações dos tiranos de Corinto visa

convencer os Lacedemônios a não instaurarem essa forma governamental em

sua cidade, ela atinge também o ouvinte-leitor de Heródoto que, de fato, é

convencido de que a tirania não é uma prática aceitável, uma vez que os

costumes não são respeitados.

Segundo Sócles a forma de governo em Corinto era a oligarquia, e o poder

estava concentrado na casa dos Báquidas. Anfíon, um deles, tinha uma filha coxa,

cujo nome era Labda. Ao consultar os oráculos a respeito da descendência de

Labda, Eécion, seu esposo, obteve duas respostas. A primeira dizia que Labda

trazia no seio uma grande pedra que acabaria com a monarquia e faria justiça

em Corinto. A outra fazia referência ao nascimento de um leão, símbolo de

domínio pela utilização da força. Os feitos de Cípselo relatados por Sócles,

confirmam as previsões, a tirania em Corinto é caracterizada, de fato, pela

violência que se intensifica no governo de Periandro.

Outras duas referências à figura do leão são significativas na obra Histórias. Uma

refere-se a Hiparco, filho e sucessor de Pisístrato no poder em Atenas. Segundo

Heródoto, Hiparco, após a morte de seu irmão Hípias, passou a agir com o

máximo rigor, de modo mais tirânico do que antes.274 Através de um sonho,

Hiparco tem a visão de um homem que lhe dirige as seguintes palavras: Leão,

suporta com valor sua intolerável aflição. Nenhum homem pode escapar da

274 HERÓDOTO. V,55.

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vingança pelas injustiças cometidas.275 O leão, que neste contexto se identifica

com aquele que pratica ações injustas, é uma representação simbólica do tirano

Hiparco. Tem-se, então, duas associações da tirania à figura do leão.

Enfim, é possível identificar, através da previsão oracular sobre o nascimento de

Péricles, que existe uma associação deste ao simbolismo inerente ao leão.

Agarista é informada através de um sonho que daria a luz a um leão, dias depois

nascia Péricles. Heródoto não faz referência às ações de Péricles, enquanto líder

em Atenas. Existe um silêncio do historiador sobre este importante personagem

político nas relações internas e externas da cidade. O papel político

desempenhado por Péricles em relação à Liga de Delos e, principalmente, na

guerra entre Atenas e Esparta é de fundamental importância histórica, mas

Heródoto se cala. O silêncio é suficientemente grande para que se aceite a

explicação pelo corte cronológico. Se de fato não era a intenção de Heródoto

relatar os acontecimentos posteriores à guerra entre bárbaros e gregos, e,

levando-se em consideração que o historiador já reunira um amplo material

relativo às proposições de seu empreendimento, mesmo tudo isso não justificaria

a total ausência de informação a respeito de Péricles. O silêncio assume, aqui,

uma função política. Se Heródoto revela sua preferência pela isonomía, e

demonstra sua admiração pelos feitos atenienses na guerra e pela utilização que

fizeram das armas bélicas ou das armas do lógos; e, se ainda procura

demonstrar que as reformas efetuadas por Clístenes proporcionaram a

275 Idem. V,56.

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ampliação do espaço participativo, o silêncio relativo à Péricles é um indício de

sua desaprovação das práticas políticas características desse líder. A imagem

que Heródoto deixou de Péricles é a do leão, imagem que causa inquietação

àqueles mais atentos às questões políticas e desconforto àqueles que acreditam

na liberdade e na igualdade.

Eleuthería aparece na narrativa de Heródoto como um elemento constante na

relação entre o historiador e seu ouvinte-leitor. É, também, uma preocupação

temática central de sua obra: a guerra entre gregos e bárbaros é, em outras

palavras, a luta pela conservação da liberdade e autonomia das cidades-estado

da Hélade. Isonomía, a palavra mais bela segundo Otanes, encontra-se

persistentemente presente na relação entre Heródoto e seu público, estabelecida

pelo diálogo que tem seu ápice na argumentação. Alétheia se revela como uma

palavra-diálogo em que a liberdade de expressar opiniões diferentes é uma

condição indispensável num regime igualitário. A alétheia enquanto opinião,

doxa, está submetida a Peithó e requer sempre um posicionamento daquele que

a recebe. Termo do vocabulário político, dokeîn, em Heródoto, é o verbo da

decisão, também responsável pela secularização de alétheia. Nestes termos a

verdade é, sobretudo, um convite à ação inserida no tempo profano.

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117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo por companhia Heródoto, e, por objetivo primeiro, compreender sua

maneira de dizer a verdade, procurou-se, na trajetória aqui percorrida, recuperar

parte dessa longa (que tem início na antigüidade e apresenta-se ainda

pertinente) e densa discussão. Uma discussão sobre a validade dos métodos e a

veracidade dos relatos do historiador de Halicarnasso. Ainda, foram apontadas

algumas perspectivas de relativização a partir da identificação da diversidade

cultural, da diversidade de opiniões e da diversidade política, mesmo que estas

duas últimas não se abstivessem de um referencial.

Na parte segunda desta pequena jornada foi realizada uma pesquisa sobre a

história da palavra alétheia, tendo como referência principal o estudo etimológico

e filológico de Detienne, em que são expostas a significação e a utilização da

palavra pelos “mestres da verdade”. Na epopéia, o poeta preserva do

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118

esquecimento os feitos memoráveis dos homens através do acesso à verdade,

que lhe é revelada pelas musas. A verdade, nesse contexto, apresenta-se

solidária ao louvor, à memória e, ainda, à justiça, que confere legitimidade ao

poder exercido nas cidades. O acesso à verdade, instrumentalização

indispensável para governar justamente, só é possível ao basileu via palavra

inspirada ao poeta ou ao adivinho. Governar justamente é então um fato, passível

de verificação através do bem estar social, este traduzido em boas colheitas,

procriação fértil, ausência de guerras. E é exatamente isso que irá conferir a

legitimação do poder nas cidades-estado.

Heródoto retoma a função do poeta em preservar os acontecimentos do

esquecimento. Porém, sua palavra é laicizada, inscrita no tempo e possui

autonomia, rupturas que conferem à cidade um novo tipo de memorial construído

pelo lógos. A verdade nas Histórias é pautada pela opinião do narrador, daquele

que discursa. O texto de Heródoto é um discurso do particular que reconhece, na

diversidade cultural, a expressão (em uma condição de igualdade e liberdade)

das diferenças. Sua narrativa é um constante diálogo em que as diferentes

opiniões sobre um assunto são expostas ao seu destinatário, o ouvinte-leitor, seja

pelas palavras do historiador ou pela voz de suas personagens. Por sua vez, o

destinatário, ao recebê-las, é convidado a também manifestar sua opinião. É

esse diálogo intenso entre Heródoto, as personagens de suas Histórias e seu

ouvinte-leitor, que produz um efeito de assembléia popular realizada em uma

comunidade política pautada pela democracia.

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119

A opção política do viajante e historiador de Túrio pode ser identificada através

da manifestação de sua opinião pessoal, em que a igualdade é uma instituição

virtuosa276. Ainda, Heródoto, lança mão do recurso discursivo em que as

diferentes versões são apresentadas pelo fazer ouvir os personagens de suas

Histórias, como que eliminando, pela presença imbricada dos diversos

narradores, uma pretensão de verdade absoluta.

CORPUS DOCUMENTAL

276 HERÓDOTO. V,66.

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