a relação triádica real

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113 Sitientibus, Feira de Santana, n.37, p.113-133, jul./dez. 2007 UMA LEITURA DO ROMANCE TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO: A RELAÇÃO TRIÁDICA REAL/ FICTÍCIO/IMAGINÁRIO NO TEXTO LITERÁRIO Heloísa Barretto Borges* RESUMO Este artigo, num enfoque teórico-prático, reconhece no romance Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, a caracterização do texto literário a partir da abordagem da relação triádica entre o real, o fictício e o imaginário, postulada por Wolfgang Iser . PALAVRAS-CHAVE: Texto literário. Real. Imaginário. INTRODUÇÃO O binômio teoria/prática marca a dinâmica deste estudo, que se divide em duas partes. Na primeira, o enfoque é a abordagem teórica de Iser (1996), referente à relação triádica Real/Fictício/Imaginário, de cunho dialético, na construção do texto literário, prioritariamente considerado ficcional. A idéia básica é desfazer o sentido dicotômico, de cunho reducionista, comumente apresentado entre ficção e realidade. Na segunda parte, à guisa de reconhecimento dos postulados iserianos, há uma exemplificação a partir de uma leitura do romance de Jorge Amado Tenda dos Milagres (1969) , o qual se estrutura como uma narrativa em dois tempos, bem marcados pelas referências contextuais, de caráter histórico-cultural. Conforme Iser, as finalidades textuais surgem de um imaginário relacionado a uma realidade, que retomada pelo texto é transmutada * Prof. Assistente (DEDU/UEFS). Mestre em Literatura e Diversidade Cultural. E-mail: [email protected] Universidade Estadual de Feira de Santana – Dep. de Educação. Tel./Fax (75) 3224-8084 - BR 116 – KM 03, Campus - Feira de Santana/BA – CEP 44031-460. E-mail: [email protected]

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UMA LEITURA DO ROMANCE TENDA DOS MILAGRES,DE JORGE AMADO: A RELAÇÃO TRIÁDICA REAL/FICTÍCIO/IMAGINÁRIO NO TEXTO LITERÁRIO

Heloísa Barretto Borges*

RESUMO — Este artigo, num enfoque teórico-prático, reconhece no romance

Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, a caracterização do texto literário

a partir da abordagem da relação triádica entre o real, o fictício e o

imaginário, postulada por Wolfgang Iser .

PALAVRAS-CHAVE: Texto literário. Real. Imaginário.

INTRODUÇÃO

O binômio teoria/prática marca a dinâmica deste estudo,que se divide em duas partes. Na primeira, o enfoque é aabordagem teórica de Iser (1996), referente à relação triádicaReal/Fictício/Imaginário, de cunho dialético, na construção dotexto literário, prioritariamente considerado ficcional. A idéiabásica é desfazer o sentido dicotômico, de cunho reducionista,comumente apresentado entre ficção e realidade. Na segundaparte, à guisa de reconhecimento dos postulados iserianos, háuma exemplificação a partir de uma leitura do romance de JorgeAmado Tenda dos Milagres (1969), o qual se estrutura comouma narrativa em dois tempos, bem marcados pelas referênciascontextuais, de caráter histórico-cultural.

Conforme Iser, as finalidades textuais surgem de um imagináriorelacionado a uma realidade, que retomada pelo texto é transmutada

* Prof. Assistente (DEDU/UEFS). Mestre em Literatura eDiversidade Cultural. E-mail: [email protected]

Universidade Estadual de Feira de Santana – Dep. deEducação. Tel./Fax (75) 3224-8084 - BR 116 – KM 03, Campus -Feira de Santana/BA – CEP 44031-460. E-mail: [email protected]

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em signo. O fictício, então, é considerado em interação com acondição constitutiva do texto literário, que é o imaginário.Decerto que o texto literário é visto a partir do que o autor diz,porém não se pode perder de vista que certos vazios podemsuscitar um olhar pelo viés paradigmal do leitor. Este vaiarticular uma decisão sobre o sentido do texto, aplicando-o aoseu presente, fazendo conexões relevantes com sua históriapessoal e social. O texto literário, por ser produto de umdeterminado autor, se apresenta como uma célula temática domundo do qual faz parte, ou construiu como ser humano, quetende a superar os seus limites na objetivação deste mundo.

Tenda dos Milagres (AMADO, 1970) se constitui como umanarrativa de dupla temporalidade: de um lado, há um destaqueao ano de 1968, através das comemorações do centenário dePedro Archanjo, personagem principal, tendo como contextohistórico o Brasil sob o regime político de exceção (DitaduraMilitar), com todas as suas mazelas e contradições; de outrolado, a pretexto de narrar a trajetória de vida de Pedro Archanjo(personagem central), a focalização do enredo centra-se nofinal do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Nessaépoca, sob a ressonância do cientificismo e da corrida desenvolvimentistana conquista do progresso, fulguravam discussões acadêmicassobre as teorias que rotulavam os sujeitos como pertencentesa raças superiores (os brancos) e raças inferiores (os não-brancos).

Uma parte da narrativa está interligada à outra pela temática.Na prática discursiva, Amado delimita sua intencionalidade deescritor ao tecer, ao longo da trama dramática, o tema damestiçagem (tese do romance) como um atributo da nacionalidadebrasileira, tendo a Bahia como locus de origem. Esse viéstemático, especificamente, ressalta os elementos existentes nomundo textual, exprimindo a conectividade alusiva ao mundoempírico e garantindo uma dimensão de fundo histórico ànarrativa, estreitando as fronteiras entre Literatura e História.

Em relação a Jorge Amado, ao longo de sua trajetória comoescritor, tributos têm sido prestados a esse eminente literatoque, no cenário nacional e internacional, ocupa um lugar dedestaque como um escritor que soube produzir alguns capítulos

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da história do Brasil, através das histórias escritas sobre opovo da Bahia, reiterando a possibilidade de reconhecimentode sua produção literária como objeto legítimo de estudo histórico-cultural, pelo caráter documental que potencializa.

TRÍADE: REAL/FICTÍCIO/IMAGINÁRIO

O foco deste tópico é o delineamento do arcabouço teóricoque embasa este estudo, apresentando os postulados de Iser(1996, p. 08), que considera a literatura capaz de espelhar aplasticidade humana, definindo-a como “... um substrato de altaplasticidade e se manifesta na reformulação do já formuladocomo um meio que atualiza, nas formas da escrita, o que,independente dele, permanece inacessível”.

A literatura, como um bem atemporal da cultura, podeabordar desde algo documental, biográfico e/ou memorial, atésintomas, valores e sentimentos do ser humano e da sociedade.A acessibilidade da literatura evidencia-se pela via da interpretação,que requer uma interação do receptor com o texto literário,considerando o texto um sistema elaborado em que um escritortende a tomar a realidade como matéria prima e traduzir emdiscurso a sua visão de mundo.

Considerando que, em princípio, os textos literários são denatureza ficcional, na esteira teórica de Iser, é possível entendera relação ficção/realidade não como uma oposição rígida. Talvisão, admitida pelo uso corrente, consagrou a ficção comoinvenção, distinguindo-a do real, sem levar em conta que ostextos ficcionais contêm fragmentos da realidade, embora semexplicitá-los. Na perspectiva iseriana, é possível identificarelementos dessa realidade relativos aos aspectos social, cultural,sentimental ou emocional, os quais brotam nos textos ficcionais,sem que esses adquiram o valor de repetição, mas comocomponentes de um “ato de fingir” (transgressão de limites).

Nesse sentido, a ficcionalidade de um texto é algo que estápresente não só em textos literários, mas em outros que fazemparte do acervo cultural da sociedade, como, por exemplo, otexto histórico, que não deveria lidar com o que é provável oupossível, mas com eventos. Entretanto, é sabido que os historiadores

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sempre criaram versões do mundo real, partindo dos eventos,utilizando estratégias de representação da ficção (WHITE, 1994).

Em relação ao texto literário, Iser delineia-o com a propriedadeessencial de compor uma relação triádica entre o real, o fictícioe o imaginário. O real é entendido como o mundo extratextual,como campo referencial ligado aos sistemas sociais, aos sentidos,às imagens do mundo ou a outros textos, consubstanciando-se pelas virtualidades da leitura. O fictício é concebido comouma produção de transferência, que determina a comunicação.Há um caráter de mobilidade entre o real e o imaginário queo fictício encerra. O imaginário representa a experiência difusamanifestada em situações diversas e que, no “ato de fingir”,reveste-se de atributo da realidade.

A ficção não estabelece uma correspondência direta coma realidade existente. No entanto, o real se revela através doimaginário, que é a dimensão última do texto ficcional. A ficçãoultrapassa as fronteiras entre o imaginário e o real, entrelaçando-os e estabelecendo condições para a interpretação que manifesta,como uma tradução de dimensão semântica. O entendimentodo “ato de fingir” como uma transgressão de limites entre oimaginário e o real é importante para a compreensão dessarelação tríplice.

Desse modo, o real repetido se converte em signo e seexpressa como uma forma de irrealização, enquanto o imagináriodifuso se converte em algo determinado, em efeito do que éreferido, fazendo despontar uma realização. Essa articulação,produto da relação entre o real, o fictício e o imaginário,evidencia-se no texto literário, apagando a idéia de oposiçãoentre ficção e realidade. Desfaz, assim, o estabelecimento deposições polares, firmando relações, que ocorrem dialeticamente,posto que o fictício promove a eficácia do imaginário no texto,pela via da língua, mostrando-se pela abertura da organizaçãodo texto e vinculando-se à intencionalidade, aos relacionamentose ao “pôr-entre-parênteses”.

Desse modo, a possibilidade de presentificação no produtoverbal do texto é dada ao imaginário, pelo fictício. A ficçãoelimina os atributos que definem a realidade, sendo intencional,porém sem se constituir em mentira ou não-real. As realidades

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são concretas, enquanto as possibilidades são abstratas. Eiso cenário para o jogo, para a motivação que se estabelece detransformar realidades em possibilidades. O fictício, então,ativa o imaginário num jogo de encenação da vida, que, aocontrapor (decompor e realizar), conseqüentemente, incorporaas realidades de referência do texto, numa dinâmica interativa.

A “mediação” do imaginário com o real é regulada peladinâmica do jogo. Como o imaginário é ativado nos moldes deum jogo, algumas funções são observadas para que ocorra. Nojogo, o fictício e o imaginário se aglutinam em algo comum,possibilitando a realização do estético; o fictício, ao mobilizaro imaginário, possibilita o jogo, através de uma estrutura deduplicação, acessando sistemas sígnicos que não se excluementre si, mas que interagem, se completam, a saber: o mundoartificial (do texto literário) e o mundo real (pistas sócio-político-culturais). Dessa forma, o jogo pressupõe movimento, um processode equilíbrio, que permite posicionar o texto literário abertopara a história, justificando a necessidade da ficção para o serhumano, em épocas diversas, tanto na condição de produtor,quanto atuando como consumidor-destinatário (leitor).

Nessa perspectiva, a literatura se apresenta como formade expressão do conhecimento do mundo e torna-se um instrumentoimportante, por propiciar a reflexão, valorizar a observação ea participação do ser humano, ampliando-lhe os horizontesculturais e as expectativas de vida. A relação homem/mundotorna-se ação/reflexão mediada pela linguagem. A linguagemliterária apropria-se do mundo empírico e transforma-o emnível de sentido, fazendo com que o indizível se visualize emimagens, como se a linguagem transcendesse a si mesma, numprocesso de construção de valores. O mundo transformadopelos atos do fingir continua sempre acessível à compreensãohumana.

Por essa via, projeta-se um aparente paradoxo, tendo emvista que o ato de fingir produz uma irrealização do real e umarealização do imaginário, propiciando a visão de que, transgredindolimites, é possível reformular o mundo formulado, compreenderesse mundo, experimentar esse mundo representado, que,essencialmente, é uma amostra da representação de algo

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outro. Nas vivências dos receptores, a captação de um mundoirreal atualiza uma conseqüente irrealização que se torna temporária.O mundo emergente no texto ficcional é entendido como relacionadoa algo que ele na verdade não é, cuja repetitividade é superada(posta entre parênteses), em favor de um real representado(por força de uma finalidade), ligado à referência de algo, quede fato, não é.

O ato de fingir, na visão inseriana, funciona em trêsestágios que se diferenciam, mas se originam uns dos outros.Em primeiro lugar, ocorre a seleção, indicando que cada textoficcional retém dos contextos pré-existentes (histórico, social,cultural, político ou literário) elementos substanciais para a suacomposição. O autor, regido por determinações, sentimentose emoções, ao tematizar o seu mundo ficcional, toma comoreferência elementos do mundo real (fatos, normas, valores,citações, alusões). Anula, todavia, essa identificação semântica,ao operar transformações no campo da percepção, cujo corolárioé a ruptura dos sistemas semânticos originais e um deslocamentoque os projeta em outra perspectiva. Nessa posição perspectivista,o que foi acolhido ganha um peso diferenciado do campo dereferência inicial e assume um perfil de acontecimento, quepossibilita a apreensão da intencionalidade do texto.

Por conseguinte, o receptor busca a construção de sentido,que não está apenas impregnado ao texto, mas no imaginário,materializando-se pela via da tradução, que ocorre em mãodupla: produtor/receptor. Na seleção, simultaneamente, ocorreum processo de negativação, isto é, as realidades de referênciasão abolidas, ocorrendo uma atualização dos contextos, numespaço de jogo de duplicação com possível abertura para amultiplicidade ou engendramento da intertextualidade.

Em segundo lugar, ocorre a combinação, no sentido deque os elementos que o autor seleciona para compor o textoficcional (a faticidade específica) não se sustentam pelo quesão, porém pelo que dão origem. O texto contém espaçossemânticos que precisam ser preenchidos no nível da linguagem,isto é, no âmbito do léxico. É a influência semântica estabelecidapelos elementos intratextuais que garante uma visão de aparenterealidade. A referência se neutraliza enquanto valor designativo,potencializando-se com outro significado.

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Desse modo, o significado verbal gerado pelo mundo introduzidopelo texto é transgredido, abrangendo o plano esquemáticoque organiza os personagens da narração e suas ações dentrodo enredo, revelando um jogo entre um mundo empírico e suametaforização e pondo em relevância o diferente na semelhança,ou o semelhante na diferença, oscilando o destaque ora aofundo, ora à figura. Estabelece-se, assim, a idéia de rede derelacionamentos. A aparência de ser real é garantida peloefeito dessa rede, pelo fundamento do que pode ser e não noque é. O texto ficcional ganha força pela mudança de valor quese estabelece entre aquilo que foi retirado do contexto e aapropriação ressignificada que se deu, no mundo do texto.

Em terceiro lugar, ocorre a auto-indicação focalizando aliteratura em seu sentido largo, que tem a ficcionalidade reconhecidahistoricamente pelo estabelecimento convencional de um contratotácito entre autores e leitores, em que ambos compartilham doslimites dessa designação. A ficção tem funcionado nos maisvariados momentos históricos. O texto ficcional da literaturapode ser desnudado em sua ficcionalidade pelo reconhecimentodo fingido, que não se classifica como idêntico ao que elerepresenta. Privilegia-se a remissão em lugar da designação,assumindo o caráter de análogo.

Assim, as frações de realidade selecionadas do contextosociocultural ou literário, embora reconhecíveis, no texto ficcionalganham estatuto de signo do fingir, posicionando-se entreparênteses. Na ótica iseriana, o “pôr-entre-parênteses" significaque o mundo representado passa a ser entendido “como se”,isto é, relacionado semanticamente ao mundo empírico. Sobreisso, Iser (2002, p. 977-978) declara:

A ficção do como se provoca, portanto, um ato derepresentação dirigido a um determinado mundo,previamente dado à consciência imaginante, razãopor que este ato de representação não se relacionanem subjetiva, nem objetivamente, com asreferências. Pois neste próprio ato de representaçãoocorre uma transgressão de limites; a representaçãodo sujeito preenche de vida o mundo do texto eassim realiza o contato com um mundo irreal.

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Nessa visão, o efeito se duplica, porque o mundo representadono texto investe-se de uma certa concretude em sua representaçãoe, por isso, aparenta designar esse mundo real, como conseqüênciada função imaginativa, para atingir a um fim. O caráter remissivoindica que o que foi representado é diferente de si próprio eque esta irrealidade está ao alcance de nossa capacidadehumana, mediada pela visão perspectivista, resultando na apreensãodo mundo empírico, que foi transformado em experiência peloimaginário. Enfim, a situação tensionada reconduziu a um novosentido.

Os atos de fingir (seleção, combinação e auto-indicação)determinam uma irrealização. Irrealiza na seleção, o contexto;na combinação, a relação dos campos semânticos; e na auto-indicação, a orientação natural quanto ao mundo que foi representado“como se”. Reflete nos receptores essa série de irrealizações(transgressões), bem como o efeito de irrealização de suaexperiência habitual, diante do mundo textual.

A literatura, portanto, se caracteriza pela viabilidade dearticular, de forma organizada, o fictício e o imaginário, apesarde ambos não poderem ser apreendidos cognitivamente, deforma isolada, mas captados contextualmente, um sendo condiçãopara o outro. O real a que o texto remete não substitui o fictício,mas se sobressai através do imaginário, representando a abstraçãofinal que vai revelar, em última instância, o objetivo do texto.A dimensão final do texto é o imaginário. Esse movimento daliteratura, que envolve a produção, a circulação e a recepção,vai suscitar a legitimação e o consumo dos textos literários, nasociedade.

À guisa de exemplificação, o item seguinte aborda umaleitura analítica, sob a ótica iseriana, de um romance de JorgeAmado.

TENDA DOS MILAGRES: UMA LEITURA NA TRILHAISERIANA

Nesse tópico, considerado prático, o eixo temático é umaleitura do romance Tenda dos Milagres, de Jorge Amado (1970),

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fazendo um recorte para relacionar a sua estrutura romanescaaos conceitos de Wolfgang Iser, no que concerne à relaçãotriádica: real/fictício/imaginário.

Segundo Souza Júnior (2000), o ato de escrita de umromance, bem como sua conseqüente leitura, não são impunes.Assim, fatores extrínsecos da obra se tornam relevanres aolado de fatores intrínsecos, pela via da palavra literalizada.Nesse mister, a Literatura pode se nutrir da História paracompor uma crítica da própria História e, através do discurso,tentar desvendar-lhe as fissuras.

Sob essa ótica, fazendo uma leitura da obra literária deJorge Amado, cujo percurso de produção deixou marcas de suainserção na história do Brasil, via remissões ficcionais, é possívelressaltar que ele elege a Bahia como síntese cultural e referênciade origem da nacionalidade, por esta se constituir em locus doprocesso de mistura racial, que caracterizou a formação dopovo brasileiro, temática relevante do romance Tenda dos

Milagres, foco deste estudo.Em 1969, ano de publicação de Tenda dos Milagres, vivia-

se no Brasil momentos traumáticos de perseguição política aosmembros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja bandeirapriorizava uma revolução social de base. Experimentava-se umcerto clima de resistência popular ao Regime de Exceção,produzindo ressonância na produção literária de Jorge Amado,intelectual engajado no combate a forças burguesas e navalorização da cultura popular.

A publicação de Tenda dos Milagres ocorreu, exatamente,num tempo/espaço em que estavam em ebulição tais sentimentos.Esses elementos selecionados do mundo real, pelo autor,convertem-se em signos e mobilizam seu imaginário, fazendosurgir, pela via da língua, a urdidura de um enredo, no qual ocerne da problemática nacional, que é a evidência das matrizesraciais, brota, inicialmente, pela voz de fora, de um estrangeironorte-americano, o personagem Levenson, fazendo os brasileirosdespertarem de seu estado de letargia e passarem a valorizarsuas raízes, a partir da perspectiva local. A realização, efeitodo imaginário, manifesta-se pela irrealização, firmando umarelação de sentido na narrativa.

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No vislumbrar de uma intencionalidade que, vinculada aosrelacionamentos semânticos, aponta um mundo “entre-parênteses”,há a configuração de um jogo, que possibilita a realização doestético, nesse texto literário. O narrador pontua, desde oinício, o teor sócio-histórico de sua ficção. Quando traz para1968 a história de vida de um personagem que foi discriminadono passado pela condição racial, detentor de um saber construídofora da redoma acadêmica, ele apresenta a possibilidade deevidenciar a mistura racial como atributo da identidade nacionale “passar a história a limpo”, posto que muitos ranços preconceituososainda permaneciam, até então.

Em Tenda dos Milagres, a discussão a respeito da questãoracial põe em pauta o processo de mestiçagem, com destaqueao componente negro e à religiosidade vinculada ao candomblé,originada da ligação quase umbilical do Brasil com a África.

Há dois tempos bem marcados nesse romance. O tempoinicial da narrativa, 1968, é ano do centenário de nascimentode Pedro Archanjo, personagem central da trama, algo inventadocom fins mercadológicos, tendo como contextualização históricao período da Ditadura Militar no Brasil. A voz do narrador ecoa,de forma julgadora e denunciadora, trazendo à tona, ironicamente,a problematização de um período sombrio da história brasileira.Pela voz do professor Luiz Batista, um anticomunista, que viaArchanjo como “um negro bêbado e patife” (AMADO, 1970,p.65), o narrador faz alusão a Marx, Lênin, Mao-Tse-Tung eFidel, personalidades políticas vinculadas ao Partido Comunista.

O outro tempo é o da trama interna, em que a trajetóriade vida e morte do personagem principal Pedro Archanjo énarrada em flashback, ressaltando as dificuldades de ascensãosocial dos não-brancos, as perseguições institucionalizadascontra as manifestações populares (culturais e religiosas) e asconquistas e avanços sociais adquiridos com muita luta. Evidentemente,o romance se constitui em duas narrativas paralelas, com umponto em comum: Pedro Archanjo. Este, através da história desua vida, estampa o processo de legitimação da mestiçagem,ponto nevrálgico de Tenda dos Milagres.

Jorge Amado, na época em que publicou este romance(1969), enfocou discussões sobre as teses cientificistas raciológicas

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e preconceituosas, recorrentes nos discursos da Faculdade deMedicina, no final do século XIX e no início do século XX,favoráveis à idéia de inferioridade do negro, cujos ecos aindaressoavam na sociedade de então, como algo ainda não resolvido.

Fica patente que o narrador, tentando desfazer a nódoade um passado histórico que estigmatizou o mestiço como“incapaz” e “degenerado”, firma seu discurso na certeza de quena Bahia e, por extensão, no Brasil, não pode prevalecer a idéiade pureza étnica e conseqüente classificação racial. Não háespaço para ser negro ou para ser branco puro:

Brancos? Mestre Pedro, não me venha combrancuras na Bahia. Não me faça rir, que nãoposso, as dores me cortam. Quantas vezes já lhedisse que branco puro na Bahia é como açúcar deengenho: tudo mascavo. Isso no Recôncavo, quantomais no Sertão (AMADO, 1970, p. 277).

A palavra de ordem, embora ainda não reconhecida pelossegmentos sociais, mas fundamentada pela ciência, é ser mestiço,a exemplo de Pedro Archanjo, demonstrando ser capaz, inteligente,destemido, que escreve livros, tem competência científica paradiscutir temas com doutores e letrados da Faculdade de Medicinada Bahia, apesar de ser apenas um bedel autodidata. Aomesmo tempo, ele se integra perfeitamente com seus pares daUniversidade do Povo, na Tenda dos Milagres – Pelourinho.

Na relação entre o fictício e o imaginário, o segundo éativado pelo primeiro. O narrador, assim, neutralizando o valordesignativo das referências e estabelecendo relações dentrodo texto, pela sua formulação verbal, procura logo dar visibilidadeà cultura popular e local, num destaque especial ao candomblé,religião de raízes africanas, ao lado do saber legitimado pelorespaldo científico, sustentado pela Faculdade de Medicina. Ojogo entre o saber popular e o saber erudito academicista logose insinua, sem priorizar o segundo em detrimento do primeiro.

O delineamento da afirmação da tese da mestiçagem seestrutura, inicialmente, ao ser colocado Pedro Archanjo comocentro da narrativa, com um perfil de intelectual anônimo,mestiço e pobre, fazendo parte dos arquivos de brasilidade.

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Isso aponta a intencionalidade da narrativa, criando expectativasno leitor, preparando-o para um mergulho no mundo textual,cujo real é representado por cenas da vida cotidiana, comimprensa censurada, retalhos de repressão política, direitosviolados, forjamento de um perfil de herói para servir a interesseseconômicos e outras coisas. Por força de uma finalidade,refere-se a algo que, de fato não é, mas insinua ser. Essairrealização do real viabiliza, em suma, uma realização doimaginário amadiano.

Os elementos do real, presentes e ausentes, relacionadosentre si, não se sustentam pelo que são, mas pelo que dãoorigem, isto é, vão potencializar o redimensionamento do mundoreal (problemático, complexo), como meta do imaginário. Notempo da narrativa (1968), reconhece-se o fingido na encenaçãoda vida, em que a realidade de referência do texto é retiradade um contexto pré-existente (momento político de crise dademocracia no país), por um escritor imbuído de sentimentose emoções. Ele mostra-se engajado às questões de seu tempoe tematiza o mundo ficcional a partir da realidade vivenciada,experimentada (governo ditatorial, censura, cerceamento deliberdade, limitações sociais). Como conseqüência, ele anulaessa identificação semântica, modifica o campo perceptivo edesloca o foco para uma perspectiva em que o mundo érepresentado como se fosse o real.

Na ficção do como se prevalece a representação de umsujeito inserido no mundo determinado. O narrador, assim,imprime uma figuração cênica e dialogal, que provoca um efeitode duplicação entre o mundo artificial e o empírico, para atingira finalidade a que se propõe, que é focalizar a questão doprocesso de miscigenação como lastro da nacionalidade edesfazer uma mentalidade pautada em preconceitos raciais,fazendo sobressair os valores da cultura popular. Como resultadoda função imaginativa, o leitor, ao se envolver na trama dapesquisa sobre Archanjo e os interesses que mobilizam adivulgação de seus trabalhos, simultaneamente, vai refletindoe ressignificando os valores cívicos, políticos, morais, éticos eafetivos do mundo empírico, o mundo referente.

Assim, o imaginário, ativado pelo fictício, revela a finalidade

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da articulação textual, que vai se estruturando através dosquadros que se alternam, ora dando enfoque à trama do tempoinicial da narrativa, ora retrospectivamente relatando a vida dopersonagem principal, Pedro Archanjo. Vai sendo tecida adiscussão sobre as teses que originaram as posturas raciaisdiscriminatórias, desde a sua gênese européia até a sua adoçãono cenário nacional, insinuando o grande equívoco, justamentepor ser o Brasil fonte original da mistura, e, principalmente aBahia, por ser cenário precípuo desse processo.

Nesse ínterim, compondo a trama, um grande debate externose instaura entre a Faculdade de Medicina, instituição oficialdo saber científico, e a Universidade do Povo, situada noPelourinho, na Tenda dos Milagres:

A Tenda dos Milagres é uma espécie de Senado,a reunir os notáveis da pobreza, assembléianumerosa e essencial. Ali se encontram e dialogamiyalorixás, babalaôs, letrados, santeiros,cantadores, passistas, mestres de capoeira,mestres de arte e ofícios, cada qual com seumerecimento (AMADO, 1970, p.117).

O inusitado era que Pedro Archanjo tinha circularidadeorgânica nas duas faculdades, exercendo papéis diversificados.Da primeira, era bedel da cadeira de Parasitologia, sem gozode prestigio social e reconhecimento intelectual. Da segunda,era o reitor, respeitado e admirado por todos que o conheciam.Na Faculdade de Medicina, internamente, uma polêmica jáhavia se estabelecido entre doutores, que levantavam bandeirasdiferentes, em relação ao estatuto de verdade da ciência.

Como representantes do lado oponente, havia os professoresNilo Argolo e Oswaldo Fontes e, do lado aliado, os professoresSilva Virajá e Fraga Neto, apoiando Pedro Archanjo, inclusiveorientando-o em suas pesquisas. Entretanto, para que sua voztivesse credibilidade e legitimidade, teve que se apossar dasarmas do oponente: o saber científico. Segundo AlbuquerqueJúnior (1999), Pedro Archanjo é o “intelectual universal”, porrepresentar o caráter nacional, cultivando valores, alimentandoa afetividade e a espiritualidade, voltado para um nível de

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racionalidade que vislumbra uma ciência valorativa dos saberesdo povo, sem preconceitos de raça ou de classe, rejeitandouma realidade que separa e discrimina a cultura popular daburguesa.

Durante os preparativos de comemoração do centenáriode Pedro Archanjo (1968), naquele clima de desconforto políticoque predominava, destacou-se a figura de professores bemintencionados, cujo maior compromisso era com a verdade ecom a discussão intelectual pontuada pelas teses archanjianas.Entre estes, havia o Professor Calazans, historiador de projeçãoestadual e federal, o Professor Azevedo e o Professor Ramos,do Rio de Janeiro. Este destacou:

Pedro Archanjo é mestre e exemplo da grandezada solução brasileira do problema das raças: afusão, a mistura, o caldeamento, a miscigenação– e para honrar sua memória, por tantos anosrelegada ao esquecimento, nada mais indicado doque um conclave de sábios no qual se afirme maisuma vez a tese brasileira e se denuncie os crimesdo aparthied, do racismo, do ódio entre os homens(AMADO, 1970, p.134).

O Professor Azevedo também empolgou-se com a possibilidadede se discutir, de forma sistematizada, a problemática racial noBrasil. Naquele momento, a discussão era pertinente, principalmenteporque os olhares do mundo se voltavam para os conflitos nosEstados Unidos e na África do Sul, bem como para a inclusãodos novos países da África no cenário político mundial.

O narrador, ao selecionar um elemento do contexto político,intratextualmente, estabelece relações, constituindo o como

se. Ele faz, assim, remissão à posição do Brasil no cenáriomundial, em relação à problemática racial, bem como suaslimitações internas. Observa-se que também, aqui, o quadroalusivo ao mundo empírico está delineado, de forma que o valordesignativo cede lugar ao valor remissivo.Vê-se que o narradorpinta um quadro autêntico da situação política do Brasil, nadécada de 1960, sem fotografar, mas insinuando, aludindo,conduzindo o leitor a reflexões críticas sobre o aspecto político

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nacional.No romance Tenda dos Milagres, a vida de Archanjo começa

a ser narrada pela sua morte, em 1943, revelando um panoramahistórico de tensões pelos acontecimentos da Segunda GrandeGuerra (outro elemento referencial selecionado, de fundamentohistórico), havendo alusão aos episódios de afundamento denavios por submarinos alemães (AMADO, 1970, p.39). Ainda,aludindo à Segunda Guerra Mundial, há a indicação do arianismoe da figura de Hitler: “[...] se Hitler ganhasse a guerra poderiaou não matar tudo que não fosse branco puro, acabando devez com o resto do povo?” (AMADO, 1970, p.40). Os elementosretirados do contexto, relacionados discursivamente, configuram,decerto, o mundo posto “entre-parênteses” por Jorge Amado,na composição do imaginário em sua produção textual.

Outro aspecto selecionado, vinculado à tematização domundo do autor, é a questão da religião dos afro-descendentes- o candomblé. Archanjo tinha ligação forte com o Candomblé.Ele era Ojuobá. Na vida de Pedro Archanjo, o ano de 1900 foibastante significativo. Aos 32 anos, foi nomeado bedel daFaculdade de Medicina, ao tempo em que assumiu o posto deOjuobá, os olhos de Xangô, no Terreiro. A função de bedel foiresultado das intensas influências de Majé Bassan, sarcedotizado candomblé, entre os graúdos do governo. Como Obá poderoso,foi avisado por Exu dos desígnios da iaba (diaba sem rabo),que consistia em desmoralizá-lo, desonrá-lo como homem,castigando-o por ter muitas mulheres; foi preparado para desfazero encanto (AMADO, 1970, p.154). A descrição física da iabaremete ao mito da beleza da mulata, com seu poder de sedução.A iaba desencantada virou a negra Dorotéia – louvor à evidentebeleza e exuberância da mulher mestiça, como legado africanoconsolidado na mistura.

Também, a imagem da força sexual do mestiço se fortalece,principalmente, associada ao poder espiritual provindo do Candomblé:“Difícil quebrar a castanha do mestiço” (AMADO, 1970, p.157).Toda essa configuração valida o imaginário do autor, reforçandoa expressão de força de uma religiosidade afro-brasileira, dolugar visível do Candomblé, no panorama da Bahia.

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Jorge Amado, em entrevista a Raillard (1990), declara queo personagem Pedro Archanjo foi inspirado em várias pessoasde seu relacionamento direto. Ele cita, então, duas: MartinianoEliseu Bonfim, filho de escravos, nascido na Bahia, babalaôfamoso, falava e ensinava inglês, aprendia alemão e davacurso de iorubá. Também Miguel de Santana, Obá Aré. Opróprio escritor Jorge Amado, também era Obá convicto. Operfil de mulherengo inveterado e de apetite sexual acentuado,sempre atribuído a Archanjo, perpassa na narrativa como umamarca precípua do caldeamento de raças, mais especificamente,herança dos ancestrais africanos.

Na Faculdade de Medicina, o grande algoz de Pedro Archanjo,o professor Nilo Argolo, catedrático de Medicina Legal, é opersonagem representativo do pensamento racista e preconceituosoda época, com aval científico de muitos membros daquelaacademia. No jogo entre o real e o imaginário, viabilizado pelofictício, é possível fazer uma analogia desse personagem comDr. Raimundo Nina Rodrigues, o qual estreou na MedicinaLegal com a publicação do ensaio “As raças humanas e aresponsabilidade penal no Brasil”, em 1891.

Nesse sentido os estudos realizados por Rodrigues (1957),com base nos princípios da evolução biológica, levaram aoentendimento de que a inteligência no ser humano tinha raízesna ancestralidade. Assim, a atividade psíquica, a inteligênciae os valores morais dos sujeitos estavam vinculados a umacondição de aperfeiçoamento evolutivo, ligado ao sistema nervoso,atuando de modo lento e gradual. Para ele, a ordem liberalestava em constante ameaça, estando a civilização vulnerávelà dificuldade de progresso, por conta da influência da raçanegra, que era incapaz de ingressar no trabalho assalariadoe isso significava resistência à modernização.

Ainda, segundo Rodrigues, na medida em que as populaçõesnegras apresentavam um atraso evolutivo e os grupos mestiçosrepresentavam a degeneração psíquica e social, as classessuperiores (as brancas) corriam sério perigo de desestabilização.Isto porque o negro tendia naturalmente à loucura, à paranóiae à criminalidade, sendo o mestiço, por conseqüência, fortementeinfluenciado por isso, como herança do cruzamento de raçasdíspares, significando, assim, uma tendência degenerativa.

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Na narrativa amadiana, o professor Nilo Argolo escreverapara uma revista médica sobre “A degenerescência psíquica emental dos povos mestiços – o exemplo da Bahia”, afirmandoque “Maior fator de nosso atraso, de nossa inferioridade,constituem os mestiços, uma sub-raça incapaz” [...] “em queparte do mundo puderam os negros constituir Estado com ummínimo de civilização?” (AMADO, 1970, p.119-120). Muitascitações atribuídas ao personagem Nilo Argolo, na realidade,são expressões de Nina Rodrigues.

A frase inicial: “É mestiça a face do povo brasileiro e émestiça a sua cultura” define a tese a ser defendida ao longodo livro de Archanjo. Este assume, assim, o propósito dediscorrer a respeito da cultura local, das raízes nacionaispautadas na mistura, contrapondo-se às concepções culturaiseurocêntricas, sustentadas em teorias que estigmatizavam ossujeitos não-brancos. A repercussão do livro foi bastante promissora.

A voz do narrador de Tenda dos Milagres, tomando partidocomo oponente das idéias sobre a degenerescência dos mestiços,se faz ecoar veementemente, como componente do jogo docomo se, quando aborda sobre tal discussão, no início doséculo XX. De um lado, a Faculdade de Medicina e do outro aFaculdade do Povo. Os catedráticos de Medicina Legal e dePsiquiatria, respaldados em teorias importadas da Europa,sentiam-se donos da verdade em relação à inferioridade genéticados negros e, conseqüentemente, dos mestiços, sustentandoa bandeira do ódio e do preconceito.

Assim, fez-se soar a crítica ferrenha à Faculdade de Medicina,pelo desvio do seu caráter científico, para “transformar-se emninho de subliteratura, da mais completa e acabada, da maisretórica, balofa e acadêmica, a mais retrógrada” (AMADO,1970, p.169). O dedo acusador surge na narrativa para denunciaro período em que os médicos-literatos mais se preocupavamcom a retórica e a poesia do que com a luta contra as doenças.A revolta contra essa situação é descrita pelos adjetivos fortes,impregnados de indignação: “Prosa tersa, vernácula, clássica;ciência falsa, pífia, reacionária” (AMADO, 1970, p.170).

Por duas décadas, a Faculdade de Medicina sustentouesse perfil, sendo sacudida pelas publicações de Pedro Archanjo,

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que conclamou o debate sobre miscigenação. A importância ea seriedade das idéias de Archanjo foram tão grandes, que amobilização da faculdade se fez evidente em torno de talpolêmica, embora ela tivesse se restringido ao âmbito acadêmico,sem envolver os intelectuais em geral da sociedade.

Dessa forma, a Faculdade de Medicina saiu da imobilizaçãoliterária e envolveu-se numa discussão de peso, promovendouma revisão teórica significativa entre professores e alunos.Por conseguinte, o debate sobre a miscigenação trouxe embutidoo destaque à religião dos afro-descendentes, sendo motivopara arroubos de autoridade do delegado Pedrito Gordo, queiniciou a perseguição aos candomblés.

Como marca da seleção do mundo real na narrativa, há odestaque às perseguições aos pais-de-santo, às festas e manifestaçõespopulares bem como invasões a candomblés que aconteciame causavam indignação. Enquanto o livro não saía, Archanjoescrevia cartas às redações de jornais protestando contra aviolência policial. “Travou, sozinho, desigual polêmica com aquase totalidade da imprensa baiana da época” (AMADO, 1970,p.222).

Aos quarenta anos, Archanjo apresentava-se mais maduro,mais dedicado aos estudos, mais preocupado com o seu papel,andando sem tempo sobrando para o ofício do amor, comoantigamente. Durante dez anos, estudou e pesquisou comafinco, método e obstinação a respeito de tudo que se relacionavaa raças, tanto nos livros, revistas e jornais, quanto no cotidianodo povo. Estudou antropologia, etnologia e sociologia: “PedroArchanjo partira do ódio para o saber” (AMADO, 1970, p.230).

Ampliando a relação entre o real, o fictício e o imaginário,a ficção amadiana aponta Archanjo como um pesquisadorcontumaz, estudando os postulados do norte-americano FranzBoas. Engolindo o ódio e as humilhações, ele estudou as tesesdos racistas confessos no mundo real, como Gobineau, MadisonGrant, Otto Amnon, Houston Chamberlain, os chefes da EscolaAntropológica Italiana de Criminologia: Lombroso, Ferri e Garofalo.Recebia ajuda financeira do amigo Lídio Corró e até de MajéBassan para pagar livros, que eram encomendados no Rio ena Europa.

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Entretanto, não abdicou de aprofundar-se em autores dolado oponente. Assim, leu Voltaire, Alberto Torres, Evaristo deMorais, Manuel Bernardo Calmon du Pin e Almeida, João Batistade Sá Oliveira e Aurelino Leal. Conheceu Zabela, parente deNilo Argolo, mas desafeto deste, com quem travou sólida amizade.Levou-a para conhecer o candomblé. Um forte vínculo seconsolidou entre eles, e, com Zabela, Archanjo aprendeu váriosidiomas, falando com fluência “francês de conde, inglês delorde” (AMADO, 1970, p.227).

O Final do romance focaliza o Carnaval de 1969 (ano depublicação de Tenda dos Milagres). A “Escola de Samba Filhosdo Tororó” desfilou nas ruas com o enredo “Pedro Archanjo emQuatro Tempos”, obtendo grande sucesso e alguns prêmios”(AMADO, 1970, p. 371).

CONCLUSÃO

Em Tenda dos Milagres, Jorge Amado, pelos elementoscontextuais que selecionou, pelos relacionamentos intratextuaisque realizou e pelo delineamento do desnudamento da ficcionalidade,apresenta um mundo “entre-parênteses” (o como se), certamente,compondo um imaginário peculiar no conjunto de sua produçãoliterária.

Amado, estabelecendo uma relação tríplice entre o fictício,o real e o imaginário, produz uma obra romanesca que representao encontro magicizado de coisas imaginadas, vistas, vividas,sentidas, cujo efeito é a sua consagração, como um escritorsituado em seu tempo, um arauto da imagem do mistério daBahia, como força da tradição (que não se explica). A Bahiaestá na gênese do Brasil e essa imagem repetida atualiza a suacondição de estar consolidada num passado de esplendor, quea faz diferente, singular.

No jogo do fingir entre o real e o imaginário, composto naalternância temporal entre um presente narrativo marcado porconflitos políticos e sociais e um passado timbrado pela acentuaçãode preconceitos, a afirmação da identidade mestiça se constróino mundo textual amadiano, delineada pela complexa trajetóriada vida de Pedro Archanjo.

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Nessa perspectiva, resgatar as raízes do povo brasileiro,do ponto de vista étnico e psicológico, bem como recuperar asingularidade de uma das faces populares do país, quandoainda prevalecia uma cultura de dependência ao estrangeiro,resultou na construção narrativa que Jorge Amado teceu. Assim,ele valorizou, no texto, a condição de ser baiano, mestiço,lutador, místico, pobre e alegre, compondo o seu imaginário deescritor.

O povo da Bahia, nesse romance, assume, então, a dimensãode povo brasileiro, que o imaginário do escritor indica ser anegação de segregações raciais e uma reafirmação da miscigenação.O baiano-brasileiro é um ser sincrético, pluralizado, cujasconvicções circulam entre o rito religioso e as práticas profanas.Amado ratifica a defesa da mistura. O seu discurso sobreidentidade apóia-se na realidade racial da nação brasileira,tendo como peso a mestiçagem. Ser baiano é um “estado deespírito” que se generaliza em ser mestiço.

Jorge Amado relê a história, através da ficção, vislumbrandoum olhar crítico em relação ao papel definidor da identidadenacional, que nasce da fusão entre culturas e parte para aintersecção das diversas influências, reconhecendo a misturaracial como confluência de múltiplas culturas, no decorrer dotempo. Através do texto literário, procura explicar o fenômenoda dominação e denunciar a geração e a reprodução dasdesigualdades sociais. Faz de sua obra ponto de partida e dechegada da representação da realidade, inserida na lógicasocial de seu tempo, mas transcendendo-o e permitindo múltiplasleituras dos emaranhados fenômenos sociais e políticos, peculiaresa cada época.

A READING OF THE NOVEL TENDA DOS MILAGRES BYJORGE AMADO: A TRIPLE RELATIONSHIP – THE REAL,THE FICTITIOUS AND THE IMAGINARY IN THE LITERARYTEXT

ABSTRACT — This paper, under a theoretical and practical focus, recognizes

in Jorge Amado’s novel Tenda dos Milagres the characterization of the

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literary text from a triple relationship approach: the real, the fictitious

and the imaginary, postulated by Wolfgang Iser.

KEY-WORDS: Literary text. The real. The Imaginary.

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