A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da...

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A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002) Curricular Reform at the Universily of Buenos Aires School of Medicine (1986-2002) Lilian Koifrnan PALAVRAS-CHAVE RESUMO -Educação médica; Esre artigo rem como questão central o processo de reformulaçãO curricJ1larda Faculdade de Medícm -Educação superior; da Universidade de Buenos Aires (UBA) no penado de 1986-2aJ2. Buscamos identifica/; no procesSl ..analisado, algumas marcas da mudança por que passa o Estado desde a década de noventa e percebe -Curnculo; Argentina. mos que as várias propostas de modificação no curnculo estiveram vinculadas às modificações di panorama mundíal As mudanças no Estado descritas, seus reflexos na Lei Argentina de Educaçã( Superior (1995) e as propostas do Mercosul Educativo; a dinâmica interna própria das uníversida~ p6blicas argentinas, herdadas da Reforma de 1918 (atravessadapela dísputa política); a dímensA'( pedagógica que faz com que os profissionais da área de educação tenham gI:ande prestfgío, e indi quem os caminhos a seguir nos processos de refo/111ulação curricular da Medícina da USA (Curncuk Baseado em Resolução de Problemas ou Curnculo por díscíplínas) são alguns dos eixos presentes n, realidade estudada. Cada uma dessas peças fez parte do quebra-cabeças e vem coriformando o proces so de reformulação curricular da Faculdade de Medícína da USA por cerca de duas décadas. KEY-WORDS ABSTRACT -Education, medica!; This artides maín focus is lhe refo/111 in lhe teachíng curriculum at lhe University of Buenos AIi'e1 ..(UBA) Sdloolof Medícine Erom 1986/0 2aJ2. The author sought to identify híghlíghts in lhe dlangt -Educatlon, higher; lhe Argentine stare has undergone since lhe 1~ and perceived that lhe various proposals for curri -Curricul cular dlanges were associated wíth dianges in lhe international scenario. The dlanges described ir lhe Argentine stare and theír effeds on lhe Argentine National Law on Higher Educatíon (1995); tht. proposals of lhe Mercosur (Southern Cone Common Market) Projed for Education; lhe interna. dynamjcs ofAigentine publíc uníversitíes lhemselves, ínherited from lhe 1918 Reform (traversed b) polítícal díspures); and lhe pedagogical dímension itself; by whídl professionals in the fíeld of educa. tíon enjoy tremendous prestíge and determine lhe paths to be foUowed in lhe curricular reform processes at lhe UR-4 School of Medícine (Problem-Based Curriculum or Discíphne-Based Curricu- lum), are some of lhe areas discussed in lhe currnt stuo/ These are lhe various pieces in lhe puzzk that has shaped lhe curricular refo/111 process at lhe UR-4 Sdlool of Medícine for some two decades i j Recebido em: 03/.10/2002 Aprovado em: 16/01/2003 'Pedagoga, Mestre em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswa/do Cruz, Doutora em Saúde Pública, Escola Nacional de 3 Saúde Pública, Fundação Oswa/do Cruz, Rio de Janeiro. Este artigo faz parte da pesquisa de doutorado realizado com bolsas CNPq e Capes.

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A Reformulação Curricular do Curso deMedicina da Universidade de Buenos Aires(1986-2002)

Curricular Reform at the Universilyof Buenos Aires School of Medicine(1986-2002)

Lilian Koifrnan

PALAVRAS-CHAVE RESUMO

-Educação médica; Esre artigo rem como questão central o processo de reformulaçãO curricJ1lar da Faculdade de Medícm

-Educação superior; da Universidade de Buenos Aires (UBA) no penado de 1986-2aJ2. Buscamos identifica/; no procesSl

..analisado, algumas marcas da mudança por que passa o Estado desde a década de noventa e percebe-Curnculo; Argentina.mos que as várias propostas de modificação no curnculo estiveram vinculadas às modificações di

panorama mundíal As mudanças no Estado descritas, seus reflexos na Lei Argentina de Educaçã(

Superior (1995) e as propostas do Mercosul Educativo; a dinâmica interna própria das uníversida~

p6blicas argentinas, herdadas da Reforma de 1918 (atravessada pela dísputa política); a dímensA'(

pedagógica que faz com que os profissionais da área de educação tenham gI:ande prestfgío, e indi

quem os caminhos a seguir nos processos de refo/111ulação curricular da Medícina da USA (Curncuk

Baseado em Resolução de Problemas ou Curnculo por díscíplínas) são alguns dos eixos presentes n,

realidade estudada. Cada uma dessas peças fez parte do quebra-cabeças e vem coriformando o proces

so de reformulação curricular da Faculdade de Medícína da USA por cerca de duas décadas.

KEY-WORDS ABSTRACT

-Education, medica!; This artides maín focus is lhe refo/111 in lhe teachíng curriculum at lhe University of Buenos AIi'e1

..(UBA) Sdloolof Medícine Erom 1986/0 2aJ2. The author sought to identify híghlíghts in lhe dlangt

-Educatlon, higher;

lhe Argentine stare has undergone since lhe 1~ and perceived that lhe various proposals for curri-Curricul cular dlanges were associated wíth dianges in lhe international scenario. The dlanges described ir

lhe Argentine stare and theír effeds on lhe Argentine National Law on Higher Educatíon (1995); tht.

proposals of lhe Mercosur (Southern Cone Common Market) Projed for Education; lhe interna.

dynamjcs of Aigentine publíc uníversitíes lhemselves, ínherited from lhe 1918 Reform (traversed b)

polítícal díspures); and lhe pedagogical dímension itself; by whídl professionals in the fíeld of educa.

tíon enjoy tremendous prestíge and determine lhe paths to be foUowed in lhe curricular reform

processes at lhe UR-4 School of Medícine (Problem-Based Curriculum or Discíphne-Based Curricu-

lum), are some of lhe areas discussed in lhe currnt stuo/ These are lhe various pieces in lhe puzzk

that has shaped lhe curricular refo/111 process at lhe UR-4 Sdlool of Medícine for some two decades.

i

jRecebido em: 03/.10/2002Aprovado em: 16/01/2003

'Pedagoga, Mestre em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswa/do Cruz, Doutora em Saúde Pública, Escola Nacional de

3 Saúde Pública, Fundação Oswa/do Cruz, Rio de Janeiro. Este artigo faz parte da pesquisa de doutorado realizado com bolsas CNPq e Capes.

Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)J-'-'- .

INTRODUÇÃO Bem-Estar, a universidade era "uma instituição social, com

Este trabalho tem como questão central o processo de re- ação e prática social fundada no reconhecimento público de

formulação curricular do curso de Medicina da Faculdade de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de dife-

Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA). E, para renciação que lhe conferia autonomia perante outras institui-

compreendê-lo, é necessário entender o contexto que lhe ser- ções sociais e estruturada por ordenamentos, regras, valores

ve como pano de fundo, afetando e determinando a dinâmica de reconhecimento e legitimidade internos a ela, com autono-

tanto interna quanto externa à instituição: o da mudança na mia do saber em face da religião e do Estado"l. E o que passa

relação e no contrato social, que se produz na década de no- a ser a universidade para este novo Estado avaliador?

venta, entre o Estado e a universidade. Nas últimas duas décadas, os governos da América Lati-

No processo de reformulação curricular da Medicina da na têm adotado regimes neoliberais, que vêm reestruturando

UBA, percebemos diversos eixos que conformam uma rede seus sistemas de educação. Esse processo estabeleceu-se a

de influências e convergências de fatores que determinaram partir de uma série de medidas comuns à região: "ajuste da

seu desenvolvimento e entraves, respectivamente. oferta" (redução do investimento público na educação); "re-

Quais seriam tais eixos? estruturação jurídica do sistema" (novas leis de educação); e

O Estado, Estado de Bem-Estar, Cultura Reformista, Mer- "profunda redefinição do papel do Estado do ponto de vista

cosul, Políticas Públicas, Lei de Educação Superior, Relação educacional" (saindo da função social de educar e assumindo

do Estado com a Universidade. o papel de fiscalizador e avaliador). "Políticas de descentrali-

Alguns dos eixos que atravessam a realidade estudada zação e transferência, reformas curriculares, mudanças signi-

são a mudança de um Estado de Bem-Estar para um Estado ficativas na gestão escolar e na formação docente (...) imple-

avaliador, seus reflexos na Lei de Educação Superior de 1995 mentadas pelos governos neoliberais latino-americanos com

e as propostas do Mercosul Educativo, a dinâmica interna apoio de alguns organismos internacionais -como o Banco

própria das universidades públicas argentinas, guiadas pela Mundial ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento,,2.

Reforma de 1918*, nas quais a disputa política está atravessa- Para Roberto Leher, "o Banco Mundial determina que o

da pela disputa político-partidária (fundamentalmente a par- modelo europeu de universidade -estatal, autônoma, públi-

tir de 1983**), e a dimensão pedagógica ~ que faz com que os ca, gratuita e baseada no princípio da indissociabilidade en-

profissionais da área de educação nessa Faculdade de Medi- tre ensino, pesquisa e extensão -não é compatível com a

cina gozem de grande prestígio e indiquem os caminhos a América Latina,,3.

seguir nos processos de reformulação curricular da Medici- Desde a década de noventa, a substituição do chamado

na. Cada uma das peças acima fez parte do quebra-cabeças e Estado de Bem-Estar por um Estado que avalia a prestação

conformou (e conforma) o processo de reformulação curricu- dos serviços, mas descentraliza a administração educativa,

lar da Faculdade de Medicina da UBA. teve muito impacto sobre as dinâmicas de poder econômico e

político. E promoveu, nos sistemas de educação superior lati-

O ESTADO AVALIADOR, AS REFORMAS DAS no-americanos, profundas mudanças e reformas4.

UNIVERSIDADES E O PAPEL DAS AGÊNCIAS O período das reformas neoliberais na América Latina,

INTERNACIONAIS desde a reforma educacional desenvolvida no Chile, expan-

Consideramos que o processo de reformulação curricular diu-se progressivamente a quase todos os países da região. A

se encontra refletido na mudança que se produz a partir da partir da recuperação democrática destes países, algumas

década de noventa: o Estado de Bem-Estar, no âmbito educa- universidades públicas foram consolidando respostas adap-

tivo, é substituído pór um Estado avaliador. Para o Estado de tativas às demandas de uma agenda internacional promovi-

da pelo Banco Mundial e mais tarde pelo Banco Interamerica-

..,. ...no de Desenvolvimento (BIO) (México Colômbia e Ar genti-.Do ponto de vIsta hIstórIco, o mov!!nento estudantil da Reforma deu às unIversIdades argenti- '

nas (e latino-americanas) seu estilo organizacional: o co-governo de estudantes, professores e na), mas houve, também, severas resistências institucionais

graduados -corpos colegiados que representam os três estamentos para tomar as decisões; os (Bolívia e Brasil)5.concursos de docentes; cátedras paralelas; atividades de extensào universitária inseridas no meio N .. d d - d . as umversl a es as Pressoes externas os or

ganIsmossocIal; a organ!zaçào de centros de estudantes com atividades para atender às demandas dos '

alunos, tanto administrativas (fotocópias, publicações, horários, ofertas de cursos, etc.) quanto internacionais têm orientado a diversificação de fontes de fi-

paliticas (Mol/is, 1995). nanciamento (venda de serviços e cobrança de taxas escola-..A disputa paI/tiro se transforma em disputa politico-partidária a partir de 1983, quando se ) f .

I ( d dres , re ormas curncu ares encurtamento os cursos e gra-constata uma clara hegemonlQ do partido pohtlco UCR (Unuio Clv!ca RadIcal) nos órgàos degoverno da UBA. duação para obter mais rápida inserção no mercado de traba-

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lho), seletividade no acesso (exames tipo vestibular), promo- ter-se à eforma de 1918. Em todos os relatos de reuniões e das

ção de novos cursos orientados para o mercado (Marketing, entrevistas realizadas, esteve presente a idéia do marco dos

Finanças, Sistemas, etc.), atualização docente e rápida expan- princípios da Reforma de Córdoba (1918). Fosse para resgatá-

são de universidades particulares. Estas tendências formam los ou tentar superá-los, os princípios da Reforma podem ser

parte de uma "agenda internacional" que se aplica na Améri- considerados norteadores da estrutura universitária argenti-

ca Latina (e nos países pós-socialistas da Europa) e constitu- na, registrados em seu estatuto interno.

em o contexto internacional em que se inserem as reformas Na atual situação, em que o processo de mundialização

atuais na Argentina4. em curso parece aprofundar a polaridade entre ricos e po-

Acreditamos que as recomendações do Banco Mundial, e bres, a América Latina desempenha um papel subordinado,

de outras agências internacionais, vêm influenciando a cons- de periferia. E, dentro da América Latina, Argentina e Brasil

trução das políticas educacionais do Mercosul. A avaliação e ocupam um lugar central na nova agenda modernizante, atra-

o credenciamento universitários constituem pontos fundame- vés do Mercosul, uma das estratégias para a implementação

nais para entenderas tendências mundializantes em matéria dessa nova agenda. A seguir, faremos uma rápida descrição

de políticas para o campo da educação superior na Argenti- do Mercosul e de suas influências nas discussões e reformula-

na. E aparecem no contexto da reformulação do currículo da ções curriculares.

medicina.No caso específico estudado, percebemos que as várias ESTADO E REGIONALIZAÇÃO: AS POLÍTICAS DO

propostas de modificação no currículo e de reformulação cur- MERCOSUL

ricular estiveram vinculadas às modificações do panorama Um dos traços destacados da mundialização capitalista

mundial (mundialização) e refletidas na Argentina -e em na última década foi o aparecimento e consolidação de blocos

toda a região -pelas políticas neoliberais. Um exemplo ilus- econômicos regionais destinados a aumentar os níveis de in-

trativo neste caso é o da promulgação da Lei de Educação tercâmbio comercial e de integração econômica regional. Os

Superior (Lei N!! 24.521 de 1995)6 com a introdução de meca- casos da União Européia, o Acordo de Livre Comércio da

nismos centralizados de avaliação e credenciamento univer- América do Norte, o bloco dos países do Sudeste Asiático e o

sitários (através da Comissão Nacional de Avaliação e Cre- Mercado Comum do Sul (Mercosul) constituem os exemplos

denciamento Universitário, "Coneau7 e Secretaria de Políticas mais visíveis dessa tendência, mesmo que apresentem notó-

Universitárias) e seu impacto na autonomia universitária. rias diferenças em suas dinâmicas e níveis de integração. A

Outro exemplo do impacto da citada lei e suas conexões/ evolução destes processos -e compreensão de suas conse-

interfaces com a administração do decano da faculdade de qüências sociais -não pode estar desligada da hegemonia

medicina da época foi a aprovação do artigo N!! 50, que esta- política e econômica do neoliberalismo.

belece que "nas universidades com mais de cinqüenta mil Neste sentido, cabe assinalar que a evolução recente dos

(50.000) estudantes, o regime de admissão, permanência e processos de integração -alguns deles de longa data, como

promoção dos estudantes será definido ao nível de cada fa- no caso da União Européia -tem estado ligada de forma di-

culdade ou unidade acadêmica equivalente". Tal modificação reta ao que genericamente podemos chamar de "ideologia de

significou, entre outras, uma mudança muito importante em mercado" e que, em muitos casos, estes processos vêm ser-

um dos princípios da Reforma de 1918, característico das vindo para veicular ou aprofundar, em espaços regionais mais

universidades argentinas: o ingresso democrático, direto e sem amplos, os preceitos econômicos ligados à mercantilização dos

limite de vagas para as universidades públicas. bens públicos"".

tPara entender a dinâmica na qual a universidade argen- A partir de m ados da década de 80, os países do cone sul

tina se insere e sua forma de organização, tanto no aspecto do da América Latin foram protagonistas de uma experiência

ingresso dos estudantes quanto em outros, é necessário reme- de integração até então inédita na região: o Mercosul.

Esse processo de integração, que adotou desde o início a'A Coneau tem a Junção de avaliação institucional de todas as universidades nacionais, provin- forma de uma união aduaneira imperfeita, atravessou dife-

ciais e particulares; o credenciamento de pós-graduações e cursos regulares e a emissão de reco-

mendações sobre os projetos institucionais de novas universidades estatais e da autorização

provisória e definitiva de estabelecimentos universitários privados. Possui, também, a Junção de "No caso europeu, por exemplo, a disciplina fiscal exigida pelos acordos de Maastricht e de

emitir parecer sobre o reconhecimento de entidades particulares de avaliação universitária. Tem Amsterdã para a construção da moeda única (o euro) serviu co,no ferramenta para a aplicação de

mandato legal para realizar as seguintes tarefas: avaliações externas; credenciamento de cursos políticas orçamentárias ortodoxas em escala nacional, que tiveram um considerável impacto na

de graduação; credenciamento de cursos de pós-graduação; avaliação de projetos institucionais; retração do gasto público e no debilitamento dos direitos sociais e trabal/listas conquistados pelos

reconhecimento de entidades particulares. assalariados depois da Segunda Guerra Mundial.

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rentes fases ligadas à evolução econômica de seus respectivos ções destes âmbitos no processo de reforma curricular, dentro

integrantes (fundamentalmente Brasil e Argentina) à luz do da estratégia de homogeneização dos países "periféricos".

impacto das políticas econômicas neoliberais. Independente- Na área médica, já foram definidas as diretrizes curricu-

mente das expectativas iniciais -no sentido de que o Merco- lares a serem seguidas por todas as faculdades de medicina

sul poderia constituir uma experiência de integração regional dos países membros do Mercosul. A que demanda atenderão

que priorizara um modelo de desenvolvimento autônomo na tais diretrizes e até que ponto serão implementadas por todas

região -, o impacto crescente das políticas econômicas libe- as faculdades, públicas ou privadas?

rais e o impacto das sucessivas crises financeiras internacio- No caso da Faculdade de Medicina da UBA, cada proces-

nais que afetaram o Brasil e, na atualidade a Argentina, fize- so de reformulação obedeceu a uma lógica, dependendo das

ram com que o processo de integração perdesse impulso. Prin- lideranças que o impulsionassem. No processo anterior (in-

cipalmente a partir de 1999 e da desvalorização da moeda terrompido em agosto de 2000), a idéia era seguir as indica-

brasileira, que afetou os termos de intercâmbio comercial en- ções do Mercosul Educativo com relação às diretrizes curri-

tre os dois sócios principais, que se encontra hoje numa pro- culares, e, em geral, o trabalho acompanhou as modificações

fuí\da crise. Diante desta realidade e das frustradas expecta- previstas pela Lei de Educação Superior, em coerência com os

tivas iniciais de integração em diferentes âmbitos que excedi- delineamentos dos organismos internacionais em indicações

am o mero marco do intercâmbio comercial (educação, cultu- para a América Latina.

ra, etc.), é preciso indagar-se sobre as "promessas não cum- Já no atual processo de reformulação curricular, iniciado

pridas" do Mercosul, que tanta expectativa geraram em âm- em dezembro de 2000, não foram discutidas especificamente

bitos oficiais e acadêmicos. as ditas questões nas reuniões realizadas durante 2001, nem

Tentar responder a estas questões significa historiar o foi explicitado o seguimento ou não de tais princípios (nos

processo e tentar identificar os diferentes ciclos que caracteri- aprofundaremos no decorrer do artigo).

zaram esta experiência, assim como também os diferentes in- A partir de nossa observação participante nas reuniões

teresses envolvidos no processo de integração. Não é o objeti- de reformulação curricular, realização de entrevistas comin-

vo deste trabalho realizar uma análise pormenorizada da evo- formantes-chave dos processos desenvolvidos durante as duas

lução e,conômica do Mercosul. Entretanto, à luz das tentati- últimas décadas e leitura de material levantado (fontes pri-

vas de harmonização de políticas universitárias que foram márias e secundárias), verificamos que os processos vêm sen-

incentivadas desde a assinatura do Tratado de Assunção em do perpassados por vários eixos Gá mencionados) e faremos a

1991, acreditamos que seja importante questionar sobre o im- análise levando em conta sua interface.

pacto -se existe -que as políticas de educação superior do Passaremos a relatar o caso específico da reformulação

Mercosul, através das discussões do Mercosul Eucativo, tive- curricular da Faculdade de Medicina da UBA, incluindo seus

.ram e/ ou têm no processo de reformas curriculares e nos pro- antecedentes históricos e especificidades.

cessos de harmonização do credenciamento de títulos univer-

sitários. Nosso universo de análise, como assinalamos na pri- REFORMULAÇÃO CURRICULAR DA FACULDADE

meira parte deste trabalho, se constitui no processo de refor- DE MEDICINA DA UBA (1986-2002)

mulação curricular na Faculdade de Medicina da UBA. Partin- A Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos

do das discussões esboçadas nas comissões técnicas de educa- Aires (UBA), nas últimas duas décadas, sofreu várias tenta ti-

ção superior, do chamado Mer f suI Educativo*, nos interessa vas de reformulação curricular. Desde 1983, com a volta à

analisar se existe alguma influ cia dos debates e recomenda- democracia, a faculdade passou por diversos movimentos de

reformulação curricular e, desde 1986, pela implantação de

inovações curriculares. O mais recente processo de reformu-

'Em 1991, o Conselho do Mercado Comum criou a Reunião de Ministros de Educação. Com a l _. I t d . t ..d taçao curncu ar em 01S momen os: o pnmelro uran e os

assessoria do Comitê Coordenador Regional, composto pelos representantes oficiais dos gover-nos na área educacional, esta reunião tem como Junção propor medidas que coordenem as polí- anos de 1999 e 2000, e o segundo a partir de dezemb~ de

ticas educacionais dos estados membros e os Planos de Ação. Desde então, passaram a realizar- 2000 até a presente data. Cada momento se relaciona com a

se reuniões semestrais de Ministros de Educação-alternando-se a presidência de cada reunião t - d d . d .f t dges ao e 01S 1 eren es ecanos.

-e reuniões do Comitê Coordenador Regional (composto por 12 membros permanentes, sendotrês por país). Ao Comitê compete a organização das principais pautas e os temas têcnicos a Buscaremos contextualizar o processo vivido desde a dé-

serem desenvolvidos pelos especialistas, ao longo de cada semestre. Foram constituídas diversas cada de oitenta, na tentativa de relatar a origem dos dois mais

comissões de trabalho para tratar de vários temas espec!ficos da área educativa. Nas comissões, recentes momentos e seu desenvolvimento, incluindo, ainda,

foi definida, por exemplo, a necessidade de estabelecer diretrizes curriculares a partir das quaistadas as faculdades de medicina devem se basear para elaborar e reformular seus currículos. as características do modelo de autonomia universitária, o tipo

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de direção e administração das faculdades da UBA e -como nas universidades públicas, e modificados planos e progra-

se denomina na Argentina -o governo autônomo das uni- mas de estudo. As áreas mais afetadas foram as das ciências

versidades públicas, mais especificamente o governo da UBA. sociais e as ciências básicas. Foram eliminados muitos dos

Consideramos que tal relato é importante para a contextualiza- princípios reformistas (da reforma de 1918): voltou a fortale-ção e compreensão dos processos com suas particularidades. cer-se a estrutura em faculdades fragmentadas em cursos e se

reverteu a tendência a flexibilizar os currículos, que se torna-A Gestão da UBA e a Volta à Democracia ram mais rígidos e controláveis9.

A UBA, assim como a maioria das universidades nacio- Outras modificações foram impostas, como a diminuição

nais argentinas, seguindo os delineamentos da Reforma de do gasto público em educação superior, cobrança de taxas e

1918, tem organização acadêmica em forma de cátedras e fa- mensalidades nas universidades, redução das matriculas e das

culdades. Os Conselhos Diretivos das Faculdades são eleitos vagas, e a proliferação de instiuições particulares de ensino

por votação direta dos diferentes "claustros"", onde estão re- superior (universitárias ou não).

presentados os professores, os graduados e os estudantes. Os Como, então, se poderia realizar a tarefa de redemocrati-

conselhos, por sua vez, elegem os decanos das faculdades. zação das universidads?Os membros dos órgãos colegiados superíores da univer- Estes fatos fizeram com que, a partir de 1984, as universi-

, sidade também são resultado de eleições dos diferentes" claus- dades argentinas tivessem que passar por um longo trabalho

tros". O Conselho Superior -integrado pelo reitor, decanos de restauração das condições acadêmicas e de administração

e representantes dos professores, graduados e estudantes -para recuperar sua autonomia e capacidade de criação e trans-

compõe, junto com os membros dos conselhos diretivos, a missão do conheciment09.assembléia universitária, que elege, por sua vez, o reitor. De 1976 a 1982, a UBA teve o ingresso de estudantes res-

Segundo depoimentos de professores e alunos da Facul- tringido e decanos impostos pelo presidente (militar) da Re-dade de Medicina da UBA (em entrevistas realizadas durante pública. Além disso, muitos professores e estudantes foram

2000 e 2001), o curso de medicina, desde 1986, vem discutin- perseguidos, torturados e mortos, além de tantos outros que

do a necessidade de reformar seu currículo. foram proibidos de trabalhar na universidade. Com a volta

Em 1983, com a volta da democracia e após anos de dita- da democracia, foi necessário reestruturar o corpo docente e

dura milítar, que afetaram profundamente a administração reorganizar as faculdades. Dentre as medidas de reorganiza-

das universidades públicas argentinas, o novo governo de- ção, foi criado o Ciclo Básico Comum, em 8 de agosto de 1984.

terminou a designação de decanos ""normalizadores8, que, no Através do expediente nll 29.459/84, o Conselho Superior da

prazo de dois anos, deveriam normalizar o funcionamento Universidade de Buenos Aires resolveu em seu art. 111: "Esta-das faculdades e abrir concursos para professores. O decano belecer a partir de 1985 um Ciclo Básico Comum -CBC""".1O

normalizador da Faculdade de Medicina nesse período foi o -que constituirá o primeiro ciclo curricular dos Cursos daDr. Fernando Carlos Matera (1984-86). Universidade de Buenos Aires"I.1.

Foi necessário um período de normalização porque, com

os golpes militares, nas décadas de 60 e 70, as universidades As Novas "Experiências Curriculares" (1986-98) no

públicas sofreram intervenção. Os interventores designados Contexto Político Neoliberal

suprimiram os corpos colegiados e assumiram suas faculda- Como surge o movimento de reformulação curricular e a

des, modificando os estatutos e demais corposnormativos das partir de que liderança?

respectivas universidades. F! i a clausura da autonomia uni- Na Faculdade de Medicina da UBA, desde 1986, surgemversitária. as primeiras discussões sobre a reforma curricular, e são im-

Os interventores, com at ibuições para colocar à disposi- plementadasnovas "experiências curriculares". Ainda na ges-

ção aleatoriamente os cargos universitários, praticaram a re- tão do decano normalizador, foram criados os Módulos demoção de autoridades e deixaram fora das universidades um Atenção Primária (MAP) -três módulos, com 64 horas se-

número significativo de docentes, funcionários e estudantes. mestrais cada. A idéia central dos módulos era permitir que

Foram suprimidas unidades acadêmicas, cursos e disciplinas os alunos, desde o começo do curso, travassem contato com a

prática na área de Atenção Primária, nos centros de saúde.'Os claustros se referem aos grupos.de representantes dentro dos consellws (diretivo e superior),

aos corpos colegiados que representam os três estamentos para tomar as decisões: claustros de

professores, estudantes e graduados. '.'0 Ciclo Básico Comum ê o primeiro ano dos estudos universitários, que funciona como um

"Em outros periodos de pós-ditadura tambêm foram indicados decanos normalizadores. curso intradutório, de nivelamento e seleção.

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Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)_000_0000_,0-0__0 .--

Em 1986, assume o primeiro decano eleito na Faculdade Desde 1996, um grupo de trabalho, composto por profis-

de Medicina, Dr. Guillermo Jaim Echeverry"ll, que deu conti- sionais das duas instituições citadas, SPU e Afacimera, se de-

nuidade à implantação dós MAP e à discussão sobre reforma dicou a elaborar os padrões para "acreditação" (ou credencia-

curricular. Entre 1996 e 1997, os MAP foram suprimidos e mento), com o intuito de que os cursos de medicina do país

substituídos pela disciplina Medicina Familiar, reduzindo-se desenvolvessem reformulações que atendessem a tais stan-

aos poucos a ida dos alunos ao "campo" até eliminá-Ia. dards, para "melhorar a qualidade da educação médica e ade-

Na opinião dos professores entrevistados, as experiênci- quação aos requerimentos da Lei" e homologar normas no

as curriculares não foram avaliadas, não tiveram continuida- âmbito dc;> Mercosul13. E, ainda, pretendendo estabelecer "um

de, e algumas foram criticadas por não ter havido capacita- marco de referência levando em conta as políticas e reformas

ção prévia dos docentes, e outras por terem prolongado o do setor, os padrões de exercício profissional, o funcionamen-

horário de permanência dos alunos nos hospitais. to dos serviços de saúde, as normativas vigentes, os proces-

Dentre as experiências de reforma curricular, a de maior sos de integração das economias regionais (...),,13.

duração, embora tenha gerado grande debate e polêmica, foi A partir da atuação dessas instituições, percebemos que

a do denominado "Plan B", que voltamos a citar adiante. tais propostas estiveram inter-relacionadas com as tentativas

A Faculdade de Medicina da UBA, por vários anos -de reformulação curricular do período. E que as modificações

durante o governo do presidente Carlos Menem -, teve como implementadas no currículo de medicina durante a gestão do

decano o Dr. Luis Nicolas Ferreira. Em seu mandato, gerou- decano Ferreira foram influenciadas pelas discussões do Mer-

se muita polêmica, e foram propostas mudanças curriculares cosul Educativo.

muitas vezes contrárias e incoerentes com as determinações Uma das atividades do Mercosul Educativo tem sido a

do estatuto interno da UBA. criação de standards para os cursos de título universitário dos

As duas gestões do decano Dr. Luis Nicolas Ferreira na países do Mercosul. Os primeiros cursos escolhidos foram

Faculdade de Medicina da UBA, entre 1990 e 1998, foram Agronomia, Engenharia e Medicina, tendo a Comissão Técni-

marcadas pelo desejo de restrição do ingresso de alunos por ca de Educação Superior, o Grupo de Trabalho de Especialis-

ano na ""faculdadeI2, tema central e polêmico na UBA e nas tas em Credenciamento e Avaliação e as Comissões Consulti-

universidades públícas argentinas em geral (houve e há um vas de Agronomia, Engenharia e Medicina., em reuniões peri-

1 debate interno e externo à faculdade, que registramos nas ódicas, estabelecido os standardsl4."., entrevistas realizadas e na leitura dos principais jornais ar- A seguir, passaremos a relatar a controvertida proposta

gentinos).Neste sentido, podemos dizer que sua administra- de reforma curricular que foi o chamado "Plan B".

ção tentou dar conta da agenda PQlítica neoliberal em relação Em 1992, foi elaborada uma proposta de modificação no

à limitação de ingresso de alunos na universidade. currículo que gerou impacto e muita discussão, pois teve como

Durante o período em que foi decano, o Dr. Ferreira conci- premissa a criação de um exame de ingresso. A idéia trazia

liou o cargo com a presidência da Associação de Faculdades de poucas variações nas disciplinas e uma proposta metodológi-

Ciências Médicas da República Argentina (Afacimera) e da ca baseada nas atividades práticas.

Federação ~anamericana de Faculdades e Escolas de Medicina Mas, como o Conselho Superior aprovou a proposta (que é

(Fepafem). No período em que presidiu tais instituições, foram a do currículo até o momento em vigor) e não aprovou a imple-

realizadas atividades conjuntas com ó Ministério de Cultura e mentação de um exame de ingresso, foi aplicado, em 1993, um

Educação, através da Secretaria de Políticas Universitárias plano piloto, o Plano B ("Plan B""). A intenção era provar, com

(SPU), criada pela Lei de Educação Superior. Uma das ativida- o plano piloto, que a reformulação curricular só poderia ter

des foi a elaboração de documentos que estabeleceram que o sucesso se fosse reduzido o número de alunos por ano.

curso de medicina deve ser considerado um "curso de risco" e, Com uma carga horária maior, os alunos que participaram

p.or esse motivo, propõem f criação de standards para o creden- do "Plan B" haviam tido contato com pacientes em hospital

clamento de todos os cur os de medicina do país. desde o primeiro período do curso, e o ensino era tutorial. Um

dos objetivos era integrar o Ciclo Biomédico ao CIÚ1ico desde o

,.. começo do curso e demonstrar que a redu ção do número deRecentemente. o Dr. Guúlermo Jalm Echeverry foI eleIto o novo reitor da UnIversIdade deBuenos Aires, em abril de 2002,para substituir o reitor Oscar Schube roff,queesteveàfrentedo alunos significaria uma melhora na qualidade do ensino. Mas

cargo por 12 anos."Em livro publicado pela Faculdade de Medicina, resultado das Jornadas" Política de Formaçãode Recursos Humanos em Saúde", em 1991, o decano Ferreira publícou um artigo em que "'Plan de estudios" em espanhol significa grade curricular. Mas, neste caso, 'Plan B' se refere a

critica a excessiva quantidade de alunos na faculdade e o ingresso irrestrito. uma propasta curricular. Utilizaremos a palavra original eln espanhol no decorrer do texto.

REVISJ'A BRASIlEIRA DE FDUCAçAO MÉDICA

41R,odoJ.n'iro"Z7,n"l,j.ni.b,ZOOJ

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Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002), Quadro 1

Principais Modificações Propostas no "plan B" (1992/1993-2001)

PROPOSTA PILOTO

{ -1.818 h Ciclo BiomédicoCarga horária -3.446 h Ciclo Clfuico

-2.604 h internato

Contato dos estudantes com pacientes no hospital desde o 12 período

Processo ensino-aprendizagem .Tutorial

.Interdisciplinar.Integração do Ciclo Biomédico com o Clínico desde o 12 período

N2 de alunos: 100 por ano: selecionados pelas médias mais altas no CBC (Ciclo Básico Comum)

o "Plan B" foi muito criticado, e a experiência foi interrompida uma reformulação curricular apenas para o curso de medici-

em 1998, tendo a última turma terminado o curso em 2001..12. na, mas para toda a faculdade de medicina -, a seguinte re-

O "Plan B" foi previsto para atender a 100 alunos, e coe- formulação curricular elaborada não foi implementada. Pas-

xistiram dois currículos paralelamente por cerca de oito anos. samos a relatar o processo a seguir.

Em 2001, formou-se a última turma que participou da expe-

riência, e foi garantido o direito de terminar o curso na moda- Proposta de Reformulação Curricular de 1999

lidade iniciada, mesmo tedo sido o plano piloto derrogado A gestão do decano Dr. Salomón Schãchter (1998-2000

desde 1998. impulsionou a reformulação curricular. Em seu discurso pro-

Em 1995, durante a segunda gestão do decano Dr. Luis nunciado no dia 27 de março de 1999, para apresentar o ante-

Ferreira, criou-se o Ciclo Pré-Universitário de Ingresso (CPI), projeto do "Cambio""", Curricular", deixa claro que a refor-

amparando-se na Lei de Educação Superior de 1995 (N° mulação curricular seria uma prioridade de sua gestão, em

24.521/1995), que, no seu artigo N° 50, estabelece que "nas concordância com os claustros. E, pela Resolução de 25/9/98,

universidades com mais de cinqüenta mil (50.000) estudan- criou um Grupo de Trabalho para fazer um estudo e formular

tes, o regime de admissão, permanência e promoção dos estu- um anteprojeto. O grupo era integrado por professores dos

dantes será definido ao nível de cada faculdade ou unidade departamentos de medicina, pediatria, anatomia, fisiologia,

acadêmica equivalente". Porém, a Universidade de Buenos humanidades médicas, secretaria de educação médica, etc!6.

Aires, através de seu reitor, não tinha acatado a Lei, e criou-se Foi solicitado a esse grupo que, no prazo máximo de seis

uma situação de conflito entre a faculdade de medicina e a meses, apresentasse um anteprojeto de reforma curricular do

reitoria. Muitos alunos foram prejudicados por vários anos, Curso de Medicina. Depois de uma série de reuniões sema-

pois a Reitoria não concordava em emitir os diplomas de me- nais, desde outubro de 1998, foi entregue, em março de 1999,

dicina para alunos que tivessem cursado o Cri em vez do um documento de proposta de reforma curricular.

CBC. Em 1998, foi derrogado o Cri. Como parte de um processo de reformulação curricular

Após a experiência do Plan B e do Ciclo Pré-Universitá- do Curso de Medicina, criou-se, pela resolução do decano N°

rio de Ingresso-o CPI para l stituir o CBC 1O, que não foi 119/00, uma Comissão Mista com o objetivo de analisar o

anteprojeto do novo currículo e discutir os mecanismos de

"As críticas à experíência estiveram inserid em dísputas políticas e repousaram no fato de o instrumentação do mesmd7.

decano que impulsionou a implantação do projeto ter, também, implementado uma experiência U d d d dI. .de modificação na fonna de ingresso dos alunos de medicina diferente da do resto da universida- ma as prlInelraS ahvI a es esenvo vIdas pela ComIs-

de de BuenosAires. Especificamentecomrelaçãoaoplanopiloto,en treascríticasrecebidaspela são foi a implementação de um Programa de Formação Do-

comissão que avalíou a experíência (e professores e alunos entrevistados): foram selecionados osalunos com mel/wres médias e não ao acaso; não houve um grupo controle da experiência, já que ""O Ciclo Básico Comum é o primeiro ano dos estudos universitários da UBA, que funciona

o número de alunos que continuou com o currículo "nonnal" era muito superior ao do Plan B como um curso intradutório, de nivelamento e seleção.

(dificultando qualquer comparação), e, portanto, não se paderia considerar a experiência para """A palavra "cambio" em espanhol sign!fica mudança e, neste caso, é utilizada para denominar

aplicar ao grupo todo de alunos. as refonnas ou refonnulaçõts currículares.

REVJsr A BRASILEIRA DE FDUCAC,AO MÉDICA

42RiodoJ.,oiro.,Z7"oI.io,lob..ZUUJ

Lilian Koifman A Reformulação CurricuJar do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002), cente, coordenado pela pedagoga Amanda Galli, professora No documento preparado pelo "Grupo de Trabalho so-

da Secretaria de Educação Médica, que este à frente de uma bre Reforma Curricular no Curso de Medicina,,16, também se

equipe de pedagogas. O Programa, destinado à formação de percebe a vinculação com as determinações da Afacimera,

professores e auxiliares docentes, desenvolveu-se com o obje- Coneau e Lei de Educação Superior e Mercosul:tivo de oferecer uma oportunidadê de reflexão sobre as ten- " As Faculdades de Medicina da Argentina que compõem

dências atuais em Educação Médica e de fortalecer algumas a Afacimera fizeram recentemente uma proposta sobre o

habilidades docentes específicas. perfil profissional, incumbências do título de médico e

Segundo o "Documento Preparado pelo Grupo de Traba- conteúdos mínimos do ensino. Este documento foi apro-

lho sobre Mudança Curricular no Curso de Medicina,,16, a vado em forma geral pelo Conselho de Universidades e,.

convocatória obteve uma resposta maior do que a esperada, considerando que será aplicado pela Coneau como base

tanto nas Jornadas para Professores, como nas Oficinas para para a avaliação das Faculdades de Medicina prevista pela

a Formàção de Tutores. Lei de Educação vigente, deve ser tomado como base ab-

Como resultado do período de trabalho das Comissões solutamente necessária para qualquer modificação curri-1 t t 1.,,16

ad hoc criadas para avaliar e definir as unidades temáticas cu ar que se en e rea Izar .

correspondentes ao 32 ano do novo currículo (Neurociências; É interessante observar que, considerando a Lei de Edu-

Ação dos Fármacos; Mecanismos Gerais da Lesão; Bases Fisio- cação Superior Argentina como uma demonstração das trans-

lógicas e Bioquímicas das Doenças; Meio Ambiente, Agressão formações neoliberais sofridas na educação desse país na dé-

e Defesa) fo am ent 1 t ' . d t cada de noventa, a proposta de reformulação curricular a p re-, r regues os re a onos correspon en es, cu-

)'os d 1. t f t ' d ..- d . t sentou clara concordância com tais princípios e obedece àse meamen os oram pos os a lsposlçao os m eressa-

d lt ..-tendências que enfatizam a avaliação e o credenciamento comoos, para consu as e opmloes. ,

P 1 d f .-,centraIs.or outro a o, se con ormaram as comlssoes responsa-

, .O grupo de trabalho que elaborou a proposta de refor-vels pela dlscussao das unIdades tematlcas correspondentes

42 52d d d .. b lh mulação curricular considerou que, para levar adiante o pro-

ao e anos o urso e me Icma e que tra a aram emd 1.. O ' 1 f .cesso de transformação do modelo educativo e prática docen-

seus e meamentos geraIs, s modu os oram os seguIntes:G d o

E 'd d Cl '. ". -, , te, seria fundamental elaborar um currículo coerente com asran es ntl a es mlco-Clrurglcas; Relaçao Medlco-Pa- A

tendencias vigentes, definir e implemenar uma estratégia paraciente; Doença e Saúde da Mulher, Doença e Saúde da Crian- d 1 . d d .

1o esenvo vlmento o corpo ocente e Imp ementar uma re-ça; Os Problemas Médicos e a Tomada de Decisão; Farmaco- f dA. d '. .

orma aca emlco-a mmlstratlva.logia e Terapêutica; Epidemiologia Clínica; Economia e Saú- C d t t . d .

dA , ., .'A' orno um os pon os cen rals a proposta cIta a, estavade; Trauma e Emergencla; HumanIdades MedIcas; Clenclas ' t .' lt '

d tud fa cn lca, maIs uma vez, ao a o numero e es antes na a-

Sócio-Sanitárias. ld d ' b .- f dcu a e e a alxa proporçao entre pro essores contrata os

No discurso do decano Salomón Schãchter de 27 de mar- (com formaça - d cent ) .1' - A , o o e e auxI lares sem remuneraçao. I es-

ço de 1999, estava claramente estabelecida a necessidade de tão alguns dos problemas centrais da UBA, debatidos tanto

, reformular o currículo da faculdade de medicina dentro dos nas faculdades quanto nos meios de comunicação e que apa-

j ' parâmentros estabelecidos pela Afacimera (Associação de receram nas outras propostas de reformulação: a restrição do

Faculdades Médicas da República Argentina, cujo presidente número de alunos por ano, com o estabelecimento de um exa-

era o Prof. Dr, Luis Ferreira), Coneau (Conselho Nacional de me de ingresso (não está previsto no estatuto da UBA) e o

Avaliação e Credenciamento Universitário), Lei de Educação problema do número de professores (não são abertas vagas

Superior e Mercosul: para concursos proporcionais ao incremento do número de

"Para poder ser credenciado de acordo com os critérios alunos a cada ano). De acordo com o censo realizado no ano

definidos pelo Ministério de Cultura e Educação em con- 2000, cerca de 30% dos professores da universidade são ad

sulta com o Conselho de Universidades com base em um honorem*, ou seja, trabalham sem remuneração,

perfil mínimo de credenciamento. Para obter uma cate- O Quadro 2 apresenta o esquema da reformulação curri-

gorização digna que deverá obter-se de acordo com os cular proposta em 1999.

perfis definidos pela Coneau (A, B ou C) (...). Para forta-

lecer a posição de nosso país em toda futura negociação "Em geral, os profissionais que exercem a docêncÚl nas cl!amadas 'aulas práticas' são recêm.no reconhecimento de equivalências para o exercício de formados, que não passam por concurso e não recebem nenhum tipo de salário ou pagamento

f -M 1 " alêm da experiêncÚl que acumulam (as aulas teóricas são oferecidas de forma lnagistral pelos

nossa pro lssao no ercosu. titulares das cadeiras ou adjuntos).

REVISTA BRASILEIRA DE FDUCA~O MÉDICA

43 Rio d, Joo,;w, ..27, o' \, j,o./.b, 2\J\JJ

Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)~-~~-~ ~- ~ -~ "'~~~'A _A ""uv~'~'..a..~..~ UU~'IU~ "'n:~ \"'OO-"W"J

Segundo epoimentos de professores e representantes es- Alguns dos temas das reuniões seguintes foram: ciência,tudantis entrevistados de setembro de 2000 a agosto de 2001, saúde e educaç o superior; aprendizagem baseada em proble-a mudança de decanato se deu da forma descrita a seguir. mas e centrada no estudante; o conhecimento básico na práti-

Aparentemente, o Dr. Salomón Schãchter não estava vin- ca médica; integração no ensino da medicina; a educaçãoculado às idéias do Dr. Ferreira e delineava uma nova política médica e a educação; metodologia do ensino, objetivos, pro-de ações para a Faculdade de Medicina -fundamentalmen- postas e inovações; capacitação docente e novas metodologi-

te, a reforma curricular e a proposta do limite de entrada de as de ensino; alternativas de formatos curriculares; reformu-

1.400 alunos para o 211 ano do curso. Esta realidade se trans- lação curricular e experiências recentes; modificação estrutu-

formou em dezembro de 1999, quando se realizaram as elei- ralou não estrutural, flexibilidade curricular, módulos inte-

ções de representantes estudantis..18 e ganhou "a maioria" dos grados, seminários optativos; o problema do ingresso numa

alunos do partido da "Aliança". Desde então, houve pressão eventual reforma dos estudos; microbiologia médica e refor-

para a destituição do decano. As forças políticas estavam con- ma curricular; bases conceituais das reformas curriculares;

frontadas, já que o decano, Dr. Schãchter, e o secretário acadê- integração curricular, integração entre cursos na área de saú-mico, Dr. Marcelo Torino, eram considerados "herança" da de; atenção primária, doenças infecciosas que geram margi-

gestão de Ferreira, portanto menemistas, e todos os outros nalidade na infância; módulos de atenção primária (MAP);

postos do Conselho Diretivo eram ocupados por membros da uso racional das novas tecnologias no ensino; inclusão da aten-

Aliança (e da chamada "agrupação estudantil" Fraja Morada, ção primária da saúde nos currículos; propostas de reformu-ambas vinculadas ao Partido Radical). lação curricular de ginecologia; a experiência da saúde men-

No início de agosto, o secretário acadêmico, Marcelo To- tal; integração do ciclo clínico com o ciclo biomédico; interna-

rino, foi destituído "pela maioria" da Aliança, o que desem- to rotatório; experiência de internato no hospital de pedia-

bocou na crise que culminou com a renúncia de Schãchter. tria; avaliação por resolução de problemas do departamento

Seu mandato, que se estenderia de 9 de março de 1998 a 2001, de pediatria; avaliação da aprendizagem; flexibilidade curri-

terminou em 24 de agosto de 2000. No dia 25 de agosto, foi cular para mudanças nos cursos; avaliação do ensino, avalia-eleito o candidato da Aliança, Salomón Muchnik19. ção da aprendizagem, permanência do aluno nos cursos, in-

A partir da gestão do novo decano, a proposta de refor- gresso e egresso; avaliação diagnóstica dos conhecimentos do

I mulação curricular foi interrompida e teve início um novo ciclo biomédico na unidade hospitalar, resolução de proble-, processo de discussão e elaboração da proposta descrita a se- mas, patologia lI; o ensino das humanidades médicas nas

guir. universidades argentinas; modelo médico-antropológico in-

tegral; formação do médico e sua inserção social; universida-A Atual Proposta de Reformulação Curricular (2000- de e política; pediatria: experiência docente de vinte anos;

2001) qualidade educativa na UDH (Unidade Docente Hospitalar);

A nova proposta é impulsionada pelo novo decano e pelo ensino e estilos de pensamentos e aprendizagem; avaliação

secretário acadêmico. diagnóstica dos conhecimentos do ciclo biomédico na unida-

Em 14 de dezembro de 2000, foi realizada a primeira reu- de hospitalar; universidade e política.

nião, chamada "Jornada de reflexão sobre avaliação perma- Desde o final de 2000 e durante todo o ano de 2001, anente e reforma curricular". Com a participação de profes- secretaria acadêmica da faculdade de medicina organizou as

sores e estudantes da Faculdade de Medicina da UBA, da "Jornadas para el Cambio Curricular" com a idéia de que fos-

reitoria da UBA e de professores externos à UBA (e até ao se um fórum aberto de auto-avaliação institucional. Paralela-

país), foram discutidos os temas: avaliação, ingresso, per- mente, criou a Subsecretaria de Planejamento Educativo, com

manência, egresso, internato rotatório e residência. A partir a intenção de sistematizar as contribuições participativas dada reunião seguinte, em abril de 2001, passaram a ser reali- comunidade educativa envolvida.

zadas reuniões quinzenais (e algumas vezes semanais) para O processo de discussão inicialmente se propôs avaliar o

ampliar os temas da primeira jornada, sob a coordenação da material elaborado pelas comissões da reformulação anterior,

subsecretária de Planejamento Educativo, professora Nidia mas efetivamente não foi feito nenhum trabalho nas jorna-

Schuster. das, nem houve aproveitamento da experiência prévia. A única

referência foi através de críticas: o processo anterior não ha-.Os representantes estudantis se renovam a cada ano, os representantes dos professores a cada via sido democrático, a proposta não tinha levado em conta a

quatro anos, e os graduados a cada dois anos, O reitor é eleito a cada quatro anos pela assembléia, ' tá' real ca

pacidade e realidade da faculdade de medicina, J'á que unlverSI ria,

REVISTA BRASILEIRA DE rnuCAÇÃo MÉDICA

45 Rio do j..",.. "z7, .0 I, i",-/ab., 2003

Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)-, ,

dependia de uma estrutura de bibliotecas e de uma quantida- cina pretende realizar, foi considerado prioritário criar, sob a

de de tutores preparados para trabalhar em pequenos grupos dependência direta do decanato, um Departamento de Avali-

de que a faculdade não dispunha. Também consideraram que ação Permanente e Reformulação Curricular. Para isso, há um

os recursos não teriam sido suficientes para implementar a projeto de resolução em andamento, a ser aprovado pelo Con-

reformulação proposta. selho Diretivo da faculdade. O departamento, quando criado,

Nas primeiras jornadas, alguns professores que tinham contará com um orçamento específico, proveniente do subsí-

participado ativamente do processo anterior pareciam estar dio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), atra-

frustrados e perguntaram se algo seria aproveitado da expe- vés do Programa de Atenção Primária em Saúde (Proaps)...

riência anterior. As respostas naquele momento não parece- O Quadro 3 apresenta a lista das propostas para os núcle-

ram convincentes, e, nos comentários feitos durante os inter- os temáticos do departamento a ser criado.

valos, eles lamentaram que cada gestão sempre precise reco-

meçar do zero e que tal atitude provoca descrédito por parte QUADRO 3

dos professores interessados em participar. Proposta para os núcleos temáticos do Departamento de Avaliação

.-Permanente e Reformulação CurricularObservamos que, no decorrer das reurnoes, poucos pro- ;/'

fessores que participaram das comissões de reformulação cur- Capacidade educativa da faculdade -+ aprofundar o

ricular na gestão do decano Schãchter compareceram. Mes- relatório elaborado em setembro de 1999.

mo assim, alguns dos que foram às reuniões da atual gestão -Ações dos departamentos docentes da faculdade

haviam feito parte da lderança do processo anterior. Isso de- -+ detectar as necessidades de apoio e assessora-

monstra um interesse real pelas discussões e modificações de mento nas atividades.

caráter pedagógico, independentemente da linha política da -Nível de educação básica e habilidades metodo-

atual liderança da faculdade.. lógicas dos estudantes -+ diagnóstico conjunto

A coordenação das Jornadas de Reformulação CurricularAcom.C~C: I - d f '. d I. -pO1O a lmp ementaçao e o lcmas e atua lza-

(decano, secretário acadêmico e subsecretária de Planejamen- -~ lh . t -. I ( ..., çao ""7 me orar a m egraçao curncu ar carrelra

to Educativo), buscando o consenso dos que particlparam, docente e de auxiliares).

concluiu que "toda reformulação inovadora no processo de -Avaliar a coerência entre o perfil profissional re-

ensino requer atualizações organizativas em função de um querido pela socidade e as do modelo curricular

diagnóstico e uma avaliação permanente das atividades aca- do curso.

dêmicas"2o. A secretaria acadêmica, através da subsecretaria -Analisar e avaliar alternativa para flexibilização

recentemente criada, detectou núcleos temáticos que consi- curricular -+ gerar um espaço para cursos optati-

deram as debilidades a serem analisadas para gerar um pro- vos.

cesso de "atualização curricular" viável na facldade. -Levantamento das pós-graduações -+ enriquecer

N ..- d d d ( t ' . d A. a atualização científica dos docentes e incentivara opmlao os coor ena ores secre ano aca emlco e

dos estu antes.

subsecretária de Planejamento Educativo), os processos de L t t d .d d d tu I ' - b.-evan amen o as necessl a es e a a lzaçao 1-

reformulação curricular massiva e de raiz, quando analisa- bliográfica,de recursos materiais, didáticos e equi-

das as possíveis resistências, são fadados ao fracasso. Consi- pamento -+ facilitar futuros projetos de inovação

deram prioritário, então, "assumir as dificuldades a partir de curricular.

sua identificação e descrição, analisar os problemas utilizan- -Levantamento das necessidades de atualização

do os indicadores para sua medição e avaliar as mudanças técnica da Subsecretaria de Tecnologia Educativa

que possam gerar novas medidas a implementar". Optaram e para a Biblioteca da Faculdade -+ atualização

pela promoção do que chamaram "motores de câmbio" (mo- de recursos bibliográficos, multimídia e informá-

tores de mudança), com a idéia de pequenas modificações em ticos, e melhoramento de infra-estrutura.

vez de uma modificação radical do currículo. Para as modifi-

cações no currículo que a atual gestão da faculdade de medi- "0 Ministério da Saúde argentino, através da Subsecretariade1tençã oPrimáriaejuntamente

com O Banco lnteramericano de Desenvolvimento (BID), lançou o Programa de Reforma de

Atenção Primária da Saúde (Proaps), a ser desenvolvido eln cinco anos, período durante o qual'Com esse comentário queremos reforçar a idéia de que os processos de reformulação curricular o organismo de crédito internacional fará um empréstimo de 120 milhões de pesos. O Proaps

têm obedecido a mais de uma lógica, conciliando tendências pedagógicas e politicas. Ou seja, incorpora a construção de novos centros de saúde e seu equipamento, assim como o equipamento

embora a mudança de direção tenha signijicado a interrupção de um processo para iniciar um dos consultórios dos médicos de "cabeceira". Nas palavras do então ministro da Saúde argentio

novo, isso não impediu a participação, nas reuniões, de professores de outros grupos polticos e no, "se apoiará economicamente essas casas de altos estudos com O fim de ampliar e melhorar

mesmo de professores sem identificação com nenhuma das duas linltas de gestão. seus currlculos e orientá-los para a formação de médicos de l' nlvel de atenção".

REVISTA BRASIU;IRA DE FDUCAçAO MÉDICA

46 Rio d, J"'im. ,27. ," I, i../.b, 2UU)

Lilian Koifman A Reformulaçã~ Surricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)~

Esses foram os pontos centrais levantados a partir das CONSIDERAÇÕES FINAIS

discussões travadas nas Jornadas. Alguns pontos são coe- Buscamos identificar algumas marcas, no processo anali-

rentes com a proposta de reformulação anterior, e outros se sado, da transformação pela qual o Estado passa desde a dé-

baseiam justamente em sua crítica. No ultimo item, por exem- cada de noventa. Percebemos que as várias propostas de mo-

pio, a questão da atualização e melhoramento dos recursos dificação no currículo estiveram vinculadas às modificações

da bilbioteca da faculdade é reflexo da crítica feita à refor- do panorama mundial. A mudança na Lei de Educação Supe-

mulação anterior: nela, a metodologia central seria baseada rior é um exemplo, e o aproveitamento da "brecha" na lei para

no ensino por resolução de problemas sem que a faculdade propor uma modificação no regime de ingresso de alunos na

contasse com lugares e recursos para oferecer aos alunos nas faculdade de medicina a caracteriza bem. A modificação na

pequisas individuais, fundamentais à aplicação da metodo- lei produziu uma mudança muito importante num dos prin-

logia. cípios reformistas, característicos das universidades argenti-A proposta de reformulação, até o momento, está focali- nas: o ingresso democrático e sem limite de vagas para as

zada na criação do Departamento de Avaliação Permanente e universidades públicas.

Reformulação Curricular, no qual serão implementadas as Por isso, neste trabalho, a percepção da universidade como

ações para gerar os "motores de cambio". É interessante ob- "instância cultural" foi fundamental e significou entendê-Ia

servar que tal criação está vinculada à possibilidade de rece- como um conjunto de ações e contradições que recontaram

ber os recursos do BID, através do Proaps. Isso está conectado uma história lida em sua transmissão de saberes, valores e

com o que descrevemos no início deste artigo sobre a influên- representações. A análise cultural das universidades contri-

cia dos orgãos de financiamento internacionais em linhas de buiu com elementos importantes para compreender a crise

atuação nas áreas de educação e de saúde nos países da Amé- atual das instituições de educação superior na Argentina. Se-

rica Latina. gundo Marcela Mollis22, a universidade se constrói como uma

Iriart & Waitzkin21 descrevem que, no relatório de 1993 instância de 'produção, controle e legitimação, num contextó

sobre o Desenvolvimento Mundial, "Investir em Saúde", o de tensão constante entre a importância que recebe da socie-

Banco Mundial argumentou que a ineficácia dos programas dade, do Estado, do mercado produtivo e suas tradicionais

do setor público dificultava a provisão de serviços, assim como funções de produção e difusão do saber.

a redução da pobreza. O Relatório aconselha outorgar à po- As mudanças no Estado descritas, seus reflexos na Lei da

pulação incentivos para a compra de seguros privados, a ri- Educação Superior de 1995 e as propostasdo Mercosul Educati-

vatização de serviços públicos, a promoção da competência vo; a dinâmica interna própria das universidades públicas ar-

no mercado e a ênfase na atenção primária e na prevenção. gentinas, herdadas da Reforma de 1918 (atravessada pela dis-

Através deste documento e das políticas subseqüentes, segun- puta política); a dimensão pedagógica na qual os profissionais

do as críticas formuladas em toda a América Latina, o Banco da área de educação têm grande prestígio e indicam os cami-

Mundial vem promovendo a ideologia de que "a saúde é uma nhos a seguir nos processos de reformulação curricular da me-

questão privada, e sua obtenção um bem privado". "Especifi- dicina da UBA (Currículo Baseado em Resolução de Problemas

camente o Banco Mundial apóia iniciativas de atenção geren- ou Currículo por Disciplinas) são alguns dos eixos presentes na

ciada que transferem as instituições públicas de atenção da realidade estudada. Cada uma dessas peças fez parte do que-

saúde e os fundos da seguridade social para a administração bra-cabeças e conformou o processo de reformulação curricular

ou para a propriedade privada. Estas iniciativas trazem con- da Faculdade de Medicina da UBA por cerca de duas décadas.

sigo novos empréstimos e o conseqüente crescimento da dívi- No decorrer do trabalho de pesquisa, identificamos dois

da externa dos países que participam". Ainda segundo os aspectos concomitantes no processo de reformulação curricu-

autores, outras agências multilaterais de empréstimo partici- lar: um macro, da racionalidade externa, quando, no relato

pam das mesmas estratégias de reforma, a exemplo do Banco das diferentes tentativas de reformulação curricular, apare-

Interamericano de Desenvolvimento*. ceu o eixo político-econômico, isto é, os vários momentos vin-

culados à política externa e interna da faculdade e à forma

'0 Banco lnteramericano de Desenvolvilnento oferece linlzas de crédito para serem usadas nas marcante pela qual interferiram nos processos descritos. Omudanças das estruturas orgdnicas e das plantas físicas dos hospitais que são consistentes com outro aspecto, micro, mais interna lista, da racionalidade in-a privatização. Na Argentina. o BlD colaborou com o Banco Mundial, apoiando a conversão de tema, se refere ao currículo diretamente e à forma como fo-

hospitais públicos em "hospitais de autogestão", com os princípios da atenção gerenciada que ' d d .f ' - d .' I. ram qUestiona as as mo 1 lcaçoes nas lSClp mas sua meto-exIgem a competIção destes hospitaIs no mercado com os pnvados, para atender aos poclentes ,

cobertos pela seguridade social. dologia, ou seja, o aspecto especificamente pedagógico. Quan-

REVISTA BRASilEIRA DE WUCA~O MÉDICA

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Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)-

to a este último aspecto, percebemos que,. durante os vários mentos dos organismos financeiros internacionais nas indi-

processos descritos, um grupo de pedagogas trabalhou sem caçõoes para a América Latina.interrupção, independentemente das mudanças políticas den- Já no atual processo de reformulação curricular, iniciado

tro da faculdade. E o aspecto pedagógico teve -e continua a em dezembro de 2000, tais questões não foram discutidas cla-

ter -grande importância nos processos, na racionalidade in- ramente nas reuniões realizadas durante o ano 2001, nem foi

tema. Em grande parte dos processos, os profissionais da área explicitado o seguimento ou não de tais princípios.de educação tiveram papel de liderança ou co-liderança. Mes- A avaliação e o credenciamento universitários são dois

mo que em alguns momentos os grupos tivessem diferentes pontos fundamentais para entender as tendências mundi-

composições (diferentes profissionais da área de educação tra- alizantes das políticas de educação superior na Argentina e

balhando) -e que não pretendamos atribuir às pedagogas um aparecem no contexto da reformulação curricular que descre-

papel neutro, "apenas técnico" nas reformulações -, não po- vemos. Porém, a Faculdade de Medicina da UBA, até o mo-

dernos deixar de observar a continuidade dessa característica mento, é a única faculdade de medicina do país que não en-

que se destaca pela importância conferida a esse profissional. trou no programa de avaliação do Coneau: Isso se deu em

A partir da identificação das duas racionalidades que inte- função das disputas político-ideológicas descritas. É possível

ragem no processo, o desafio para a reformulação que está sen- que a atual direção da faculdade impulsione a avaliação, mes-

do desenvolvida é saber qual das duas lógicas predominará. mo adequando-se à proposta estabelecida na ~ei de Educa-

Se o pedagógico e o interno das lógicas vão promover uma boa ção Superior, da qual esteve historicamente discordante (com

reformulação curricular para que se formem melhores médi- exceção dos dois mandatos do decano Ferreira).cos, preparados para trabalhar com a realidade de saúde do Nos vários processos de reformulação curricular, as defi-

país, como debatido em tantas reuniões. Ou se o cruzamento nições sobre o perfil profissional do médico não outorgaram,com as externalidades, as questões políticas e econômicas, além pelo menos explicitamente, uma grande importância à dis-

de influenciar as tendências do perfil do médico, poderá nova- cussão do modelo de saúde pública. Voltamos a assinalar que

mente levar a uma reformulação que não saia do papel, da ne- as transformações curriculares aqui analisadas aconteceram

gociação política em si, sem transformar a política em ação. A e acontecem num momento histórico na Argentina marcado

universi~ade argentina está cruzada pelas duas lógicas. pela ofensiva das políticas neoliberais, talvez como em nenhum

Com esse comentário queremos reforçar nossa conclusão outro país da América Latina. Os efeitos das políticas promul-

de que os processos de reformulação curricular têm obedeci- gadas pelos governos que provocaram o desmantelamento, o

do a mais de uma lógica, conciliando tendências pedagógicas estrangulamento do orçamento e a privatização do sistema

e políticas. E é dentro do marco interno da universidade que público de saúde parecem, lamentavelmente, ter seu correlato

se insere o aspecto pedagógico, as dinâmicas e disputas pelas nas discussões curriculares. Elaborar um currículo e formular

diferentes linhas pedagógicas a seguir. as políticas educativas de formação dos médicos pressupõe,

Há uma dimensão da refomulação estudada que está vin- em nosso entender, discutir o modelo de profissional que se

culada às mudanças no Estado, mas também há uma dimen- quer formar e a que tipo de necessidades atenderá.

são própria da universidade, e isso ajuda a entender por que A pequena presença destes interrogantes nos processos

o aspecto pedagógico da reformulação curricular pode ser de reformulação curricular apresentados neste trabalho, num

analisado à parte. contexto de "naturalização" da mercantilização da saúde, não

Na área médica, foram definidas as diretrizes curricula- significa que as definições acerca do tipo de profissional não

res a serem seguidas por todas as faculdades de medicina dos estejam presentes nos currículos. Mas, diante da ausência de

países membros do Mercosul. A que demanda atenderão tais uma clara definição em tomo do fortalecimento e transfor-

diretrizes e até que ponto serão implementadas por todas as mação do sistema público de saúde, parece consolidar-se cada

faculdades, públicas ou privadas? vez mais um modelo de formação médica de acordo com a

No caso da Faculdade de Medicina da UBA, cada proces- mercantilização da saúde.

so de reformulação obedeceu a uma lógica, dependendo das Frente à grave situação sanitária que atravessam milhões

lideranças que o impulsionaram. No processo anterior, inter- de cidadãos argentinos, seria muito ingênuo deixar de reco-

rompido no final do ano 2000, a idéia era seguir as indicações nhecer o déficit real de profissionais médicos na Argentina.

do Mercosul Educativo com relação às diretrizes curriculares. Isto, entretanto, não parece inquietar os atores governamen-

Em geral, o trabalho acompanhou as modificações previstas tais e/ou acadêmicos que têm apostado num modelo de saú-

pela Lei de Educação Superior, em coerência com os delinea- de mercantilizado.

REVISrA BRASiilliRA DE EDUCAçAO MÉDICA

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Lilian Koifman A Reformulação Curricular do Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (1986-2002)

Num contexto de empobrecimento crescente, o mercado 11. Universidade de Buenos Aires. Expediente: 29459/84.de trabalho médico argentino está diminuindo porque há Conselho Superior. Universidade de Buenos Aires; 1984.

menos distribuição de recursos, e a população que pode con- 12. Ferreira LN. Formación de Recurso Humano y cambio

sumir a medicina privada é cada vez menor. A diferença está curricular en Ia Facultad de Medicina de Ia Universidad

entre o mercado de trabalho e as necessidades sanitárias do de Buenos Aires. In: Faculdade de Medicina, UBA. Jorna-

pa s. E a Argentina gasta apenas 8% do PIB em saúde. das: política de formación de recursos humanos en salud.A criação de conhecimentos médicos implica a formação Buenos Aires, Prensa Medica Argentina/Facultad de Me-

de profissionais inseridos em seu contexto sociocultural e de dicina-UBA; 1991 p. 107-115.

uma escola médica como um lugar de produção de conheci- 13. Morera MI, Brissón ME. "Carreras de Riesgo": el caso de

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REVISTA BRASILEIRA DE FDUCAr).o MÉDICA

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