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Carlos Jaca
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Linhas Gerais sobre a História da Universidade Conimbricense.
Das suas origens à Reforma Universitária Pombalina de 1772.
Parte 6
A Reforma pombalina dos Estudos.
Visita do Marquês a Coimbra
Introdução
Antes de mais, convém sublinhar que, quando D. João V faleceu em
1750, Portugal encontrava-se em grave situação económica apesar da imensa
riqueza em ouro, diamantes e pedras preciosas que nos chegava do Brasil.
Entre os problemas de vária ordem que exigiam solução urgente
sobressaía o da modernização do nosso aparelho administrativo do qual muitos
outros dependiam. O país continuava a governar-se apoiado em estruturas
ultrapassadas, desde há muito, e que agora se mostravam quase totalmente
caducas, para responderem às exigências de toda a actividade comercial e
ultramarina, e que nos últimos dois séculos tinham garantido notável
incremento.
Nos últimos anos de vida de D. João V já era bem visível a necessidade
premente de levar a cabo profundas alterações na máquina estatal, porém a
prolongada doença do rei, durante os últimos dez anos do seu reinado terão
agravado ainda mais a situação do país.
O sucessor, seu filho, D. José, ao subir ao trono tomou, de imediato, a
decisão de constituir um Gabinete ministerial com homens que lhe
parecessem, capazes de dar a volta às estruturas da governação anterior,
ineficiente por hábitos de rotina, que tomasse as providências capazes de
implantar as novas estruturas administrativas que o tempo, desde há muito,
exigia, mesmo que tais providências viessem a ferir muitos interesses
solidamente implantados, como era o caso dos nobres e da Companhia de
Jesus.
Carlos Jaca
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Assim, D. José, certamente também aconselhado, constituiu um
Gabinete formado por três Secretários de Estado: Negócios do Reino,
Negócios do Ultramar e Marinha, e Negócios Estrangeiros e da Guerra. Esta
última pasta foi sobraçada por um homem já amadurecido, com 51 anos,
apadrinhado por certas personalidades influentes, e recomendado como
personalidade austera, tenaz e decidida.
Tratava-se de Sebastião José de Carvalho e
Melo, futuro Conde de Oeiras e Marquês de
Pombal, e que tinha desempenhado,
anteriormente, funções diplomáticas em
Londres e Viena de Áustria.
Apesar de muitos juízos serenos,
objectivos e bem fundamentados, Carvalho e
Melo é ainda hoje uma figura muito discutida,
e tudo parece indicar que jamais deixará de o
ser, porquanto a sua vida presta-se a várias
perspectivas de análise, desde a puramente biográfica, tipológica e, sobretudo,
como governante do despotismo “iluminado” ou, ainda, ao debate sobre a sua
orientação política, económica, social, diplomática e cultural.
A estada diplomática de Sebastião José de Carvalho e Melo em Londres
e Viena de Áustria poderá ter sensibilizado o futuro Marquês de Pombal a
tomar em consideração as ideias reformadoras pregadas por homens
reconhecidamente prestigiados nos centros da elite cultural europeia – refiro-
me a Luís António Verney, Jacob de Castro Sarmento e António Nunes Ribeiro
Sanches. E a prova é que, com ligeiras modificações de técnica dispositiva,
são as preciosas directrizes dos referidos e ilustres “estrangeirados” que
orientam os elaboradores do “Compendio Histórico” e dos novos “Estatutos
Universitários”.
A reforma universitária pombalina de 1772, factor marcante na História
da Cultura Portuguesa, é talvez a obra de mais incontestável mérito do
Marquês de Pombal. Sob este aspecto, releve-se a honestidade e isenção
exemplares demonstradas pela denominada corrente antipombalista – homens
que, considerando Carvalho e Melo “persona non grata”, reconheceram o
Carlos Jaca
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mérito ao obreiro da inovadora, embora já tardia, reforma que pretendeu
modernizar a mais antiga Universidade portuguesa.
Quer se queira quer não, o polémico estadista activou o movimento
cultural de carácter iluminista, dando lugar a um espírito científico em moldes
metodológicos diferentes e de acordo com o espírito racionalista da época.
Com efeito, no seu projecto de reforma do ensino, e particularmente no
projecto reformador universitário, «as coordenadas foram-lhe ditadas pelo
pensamento iluminista que soube assimilar nas suas estadas pelo estrangeiro,
mas fundamentalmente pelas influências de muitos portugueses que na Europa
e no País presenciavam, participavam e desejavam uma ruptura cultural com
um passado dogmático e estático…Ao apresentar nos Estatutos de 1772 a
reforma da Universidade, Pombal, por influência de vários “iluminados”,
introduz no ensino uma mudança que apesar de tudo tentou ser, e em parte foi,
a substituição da Universidade «medieval», obscura e dogmática, pela
Universidade racionalista, experimental e jusnaturalista». (1)
Certo que a reforma pela Universidade da vida mental portuguesa é
tardia em relação aos vinte e dois anos que Pombal já levava de governo, facto
que parece perfeitamente aceitável se se quiser levar em conta que outras
preocupações o assoberbavam.
Para além da pesada herança (leve em ouro brasileiro), legada pelo
reinado anterior, Carvalho e Melo tinha sido abalado pelo terramoto de 1755 e
consequentes cuidados de reedificação da cidade; eram os conflitos internos e
externos que careciam de rápida e eficaz solução; eram os assuntos de
natureza comercial, como a fundação das grandes Companhias monopolistas;
a reforma e criação de organismos do Estado; a intensa actividade diplomática
desenvolvida pelo antigo Conde de Oeiras acerca da Companhia de Jesus,
problema, note-se, com repercussões a nível internacional, acrescentando
ainda que o novo ministro tinha entre mãos uma complicada legislação que não
podia padecer demora.
Efectivamente, só depois de liberto de todas estas situações Pombal
poderia lançar as bases da grande reforma, começando pela organização, ou
reorganização, dos Estudos Menores. Urgia vencer muitas dificuldades.
Carlos Jaca
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Expulsão dos jesuítas e reforma dos Estudos Menores.
Prioritária e melindrosa questão era anular a influência jesuítica,
incluindo mesmo a sua expulsão, golpe que iria alterar todo o sistema da
instrução pública.
Quando D. José subiu ao trono, a maior parte do ensino que hoje
chamaríamos secundário estava confiado à Companhia de Jesus. Havia,
ainda, alguns colégios dirigidos pela Congregação
do Oratório, sobretudo desde o reinado de D. João
V, e cuja pedagogia tendia deliberadamente a
rebater e superar a influência dominante da
Companhia. Refira-se, também, que em algumas
cidades ou terras de maior importância, onde não
havia jesuítas ou oratorianos, existiam algumas
escolas geralmente pequenas e quase
rudimentares, leccionando especialmente o Latim,
base de todo o ensino da época. Acrescente-se, ainda, a existência de alguns
professores, denominados particulares, «que ministravam o ensino individual
ou a poucos discípulos, especialmente filhos de grandes senhores, que não
frequentavam as escolas públicas, ou mesmo a outros rapazes, a quem
davam lições, em geral nas próprias casas. Mas todos estes alunos
constituíam uma pequena minoria, comparados com os que frequentavam as
aulas da Companhia de Jesus. Também havia algumas escolas dos institutos
religiosos, mas geralmente reservadas aos seus membros». (2)
Foi, de facto, pelo ensino secundário que Pombal iniciou as suas
reformas da instrução. E nada há de estranho nisso, porquanto a reforma dos
Estudos Menores era a base do Ensino Superior e o remate lógico da guerra
de extermínio contra os jesuítas.
A Companhia era poderosa e influente. E, se já não predominava tão
completamente no ensino como na política, conservava ainda uma situação
privilegiada em ambos os sectores quando Carvalho e Melo tomou as rédeas
do Poder. Parece, dizem, que os jesuítas tinham sabido sempre tão bem
coordenar as suas funções de ensino e de governo, que eles ensinavam para
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governar e governavam para poderem estender mais longe o seu ensino e,
portanto, a sua influência.
Porém, tudo se conjugava para Sebastião José, mediante os trunfos de
que dispunha, dar luta e levar de vencida os «filhos de Santo Inácio».
Empolava-se, ou considerava-se relevante, que os jesuítas se haviam
rebelado contra a soberania portuguesa no Sul do Brasil por via de uma
questão de delimitações contra as vizinhas colónias espanholas; o processo
como tinham interferido e explorado o terramoto, considerando tal calamidade
como um castigo de Deus por causa da dominação pombalina; a
responsabilidade que Pombal lhes atribuía na tentativa de regicídio. E mais: os
jesuítas haviam-se erguido contra as reformas pombalinas de carácter
económico a propósito da Companhia do Alto Douro, chegando o padre
Balester a afirmar do alto do púlpito que «quem tivesse relações com
semelhante Companhia não podia fazer parte da Companhia de Nosso Senhor
Jesus Cristo».
Essa luta contra a Ordem é testemunhada por violento requisitório onde
Carvalho e Melo, em colaboração com Seabra da Silva, no dizer de alguns
historiadores, revela uma espantosa sagacidade, espírito de sequência e
aptidão jurídica: sob o aspecto interno, Pombal trata o problema como se
tratasse de uma questão de ordem pública com a rapidez e a energia de que já
havia dado provas por ocasião do terramoto; sob o ponto de vista
internacional, a questão foi tratada directamente com Roma e com os
governos de Espanha e França, de tal maneira que, em 1759, pela Lei de 3 de
Setembro, foram os regulares da Companhia de Jesus “desnaturalizados,
proscritos e exterminados do Reino de Portugal, sendo os seus bens
confiscados para a Coroa».
Para chegar a tal desiderato, Carvalho lançou mão de todos os meios.
De alguma coisa havia de servir a prática e a astúcia diplomática adquiridas em
Viena de Áustria, para além de não desconhecer, certamente, que Luís António
Verney, em 1746, imprimira uma proposta radical de remodelação pedagógica
e de mentalidades, onde a Companhia de Jesus era a instituição mais visada e
indirectamente responsabilizada por toda a orientação ou estagnação do
ensino.
Considere-se, no entanto, que já antes da Lei de 3 de Setembro, a Junta
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de Inconfidência por alvará de 28 de Junho privara os jesuítas de exercerem o
ensino, sendo extintas as suas classes e lançadas as bases ou Instruções para
os novos Estudos de Gramática Latina, Grega, Hebraica e de Retórica; no
preâmbulo desse alvará, fazia-se uma rápida crítica da decadência em que se
achavam os estudos secundários sob a disciplina dos jesuítas.
Obviamente, não bastava expulsar os jesuítas das escolas. Era preciso
fundar um ensino médio, que não existia fora da Companhia, e criar receita
para pagar as despesas de um ensino que deixava de ser gratuito no que dizia
respeito aos mestres. É neste ponto que se iniciariam os esforços para a
reforma pedagógica que se impunha de um modo inadiável.
Assim, fechadas as escolas, era um rude golpe que Pombal vibrava na
Companhia, mas também era uma grave obrigação que contraía para com o
progresso científico do seu país e para com a civilização do seu tempo.
Sebastião de Carvalho viu bem a importância da questão, porquanto
não podia, nem devia, mandar fechar os colégios dos jesuítas sem que,
imediatamente, providenciasse para que outros fossem abertos, de modo a
não criar um vazio quase total no campo das actividades pedagógicas. Foi
esse, de facto, o objectivo do célebre Alvará de 28 de Junho de 1759.
A este propósito, deve levar-se em conta que o facto de Carvalho e
Melo ter retirado o ensino da tutela da Companhia de Jesus não impediu qua a
Igreja continuasse a dominar superiormente o ensino, porquanto as
autoridades pedagógicas, ao mais alto nível, eram, em grande parte
eclesiásticas, como o Director-Geral dos Estudos, a chefia e os deputados da
Real Mesa Censória, o novo Reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos,
Bispo de Coimbra e membro da Junta de Providência Literária, bem como
outros membros dela, caso de Frei Manuel do Cenáculo. Muitos professores
de Latim da nova ordem eram sacerdotes, e as várias ordens religiosas como
a dos Oratorianos colaboraram com os seus mestres nas reformas do ensino.
Só que, muito provavelmente, alguns, indo contra as suas próprias ideias, ou
parte delas, viam-se obrigados a “ler” pela “cartilha” do omnipotente ministro,
caso contrário eram considerados “cartas” fora do “baralho” e, não raramente,
sofrendo penas bem gravosas. Significativo: inicialmente, o futuro Marquês de
Pombal privilegiou a Congregação do Oratório, cujos compêndios foram em
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grande parte aprovados para os novos estudos. Porém, mais tarde, em 1768,
1769, «também os oratorianos foram proibidos de ensinar, sob pretexto de
“inconfidência” (crime de lesa majestade) e de ensinarem doutrinas perniciosas
à mocidade e de adesão ao Bispo de Coimbra, D. Frei Miguel da Anunciação.
Tudo se resumia, de facto, a não aceitarem as doutrinas jansenistas, regalistas
e antipapais que o Marquês queria impor». (3)
A reforma pombalina dos Estudos Menores apontava para uma área
bem alargada, tinha uma amplitude nacional. Era seu objectivo nomear
professores de primeiras letras para todas as cidades e vilas, além de mestres
de Gramática Latina e de Grego, assim como de Retórica e de Filosofia, nos
principais centros urbanos.
A base da reforma consistia na secularização da instrução nacional
dirigida pelo governo do rei, na pessoa de um seu delegado imediato, o qual
teria a função de averiguar com exactidão o processo dos Estudos,
apresentando ao Monarca, no termo de cada ano, uma relação fiel do estado
dos referidos Estudos, a fim de erradicar os abusos que se fossem instalando,
ao mesmo tempo que lhe propunha as soluções tidas como mais indicadas
para a inovação e progresso das Escolas.
Para além da inspecção e escolha do corpo docente por meio de
concurso, competia-lhe também evitar controvérsias entre os professores,
provenientes da contrariedade de opinião, e manter uma perfeita paz e
uniformidade de doutrina, de modo que todos contribuam para o progresso da
sua profissão e aproveitamento dos seus direitos.
A instauração do ensino oficial, dirigido exclusivamente pelo Governo,
pretendia ainda impor «um tipo de pedagogia normativo, inflexível, que se
julgava superior ao dos jesuítas e conforme às correntes em vigor nas escolas
da Europa, esperando-se, por meio dele, obter a formação intelectual e moral
da juventude da Nação». (4)
O mesmo alvará que privava os jesuítas do exercício do magistério,
criava a Directoria – Geral dos Estudos e, por Carta Régia de 6 de Junho de
1759, era nomeado D. Tomás de Almeida director-geral, pelo período de três
anos, para pôr em execução as disposições da reforma ordenada pelo já citado
diploma de 28 de Junho.
É inegável o alcance progressista das referidas determinações, porém,
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só o eram em teoria, porquanto na prática toda a actividade nacional estava
exclusivamente na dependência do ministro de D. José. Conclusão: ao Director
dos Estudos competia apenas zelar e impedir que alguém minimamente se
desviasse das normas impostas pela autoridade do ministro.
Apesar de confrontado com algumas dificuldades o plano pombalino lá
se vai efectivando, e quando da sua regulamentação em 1772, pode dizer-se
que o que se fez em matéria de Estudos Menores, ainda que insuficiente, é
bem superior ao que se fazia sob o regime tradicional.
Num despacho de 3 de Novembro de 1759, do ministro português em
Viena, e que se guarda no Arquivo da Embaixada, acha-se o seguinte e
lisonjeiro testemunho da reputação que se espalhara de Pombal e das suas
reformas nos domínios da instrução pública: «The new method for the Latin
and Greek classes established in Portugal has been approved ofhere; and
the President of the Aulic Council has expressed his desire to see the same
method applied in the empire». (5)
Entretanto o primeiro-ministro não era indiferente, nem fazia ouvidos de
mercador, à voz experiente de Ribeiro Sanches, Verney, D. Frei Manuel do
Cenáculo e do próprio D. Francisco de Lemos, que haviam sugerido ou
propunham com insistência a necessidade de reformar os estudos
portugueses na Universidade de Coimbra, não se cansando de clamar para a
necessidade de dar ao país uma fisionomia diferente perante o atraso cientifico
e cultural em que se encontrava.
Com efeito, lançadas as bases e criadas as condições e as estruturas
para uma renovação dos Estudos Menores, impunha-se a reforma do Ensino
Superior.
A Reforma Pombalina da Universidade data de 1772, porém, o
poderoso ministro trazia-a em mente há muitos anos.
Refira-se que, já na altura da fundação do Colégio dos Nobres, o então
Conde de Oeiras, se preocupava com a reforma da Universidade.
Essa preocupação e intenção ressaltam numa passagem de carta
datada de 12 de Março de 1761, dirigida a Iacopo Facciolati, professor da
Universidade de Pádua, em que Carvalho e Melo pede que lhe envie, além de
uma História da Universidade de Pádua de que ele, Facciolati, foi autor, os
Estatutos dessa mesma Universidade, pois tem intenção, diz – reformar a de
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Coimbra. Declara também receber com muito agrado qualquer sugestão de
Facciolati a respeito da futura reforma».
A Junta de Providência Literária. O Compêndio Histórico.
Com a instituição da Junta de Providência Literária por Carta Régia de
23 de Dezembro de 1770, iniciava-se o processo que iria levar, a curto prazo,
os estudos universitários à reforma pombalina de 1772.
Sob a inspecção de Pombal e do Cardeal da Cunha, a Junta integrava
como conselheiros D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, Bispo de Beja.
José Ricalde Pereira de Castro, José de Seabra da Silva, Francisco António
Marques Geraldes, Francisco de Lemos de Faria, Reitor da Universidade e
Bispo de Coimbra, Manuel Pereira da Silva e João Pereira Ramos de Azevedo
Coutinho.
Por determinação de D. José, competia à Junta de Providência Literária
examinar as causas da profunda e deplorável decadência da Universidade «e
o presente estado da sua ruína; para em tudo prover de sorte, que não só se
repare um tão deplorável estrago, mas também sejam as Escolas públicas
reedificadas sobre fundamentos tão sólidos, que as Artes, e Ciências possam
nelas resplandecer com as luzes mais claras em comum benefício». (6)
Depois de examinar com todo o rigor o «status quo» universitário, devia
a Junta ponderar sobre soluções a adoptar, cursos e métodos a estabelecer,
apresentando ao Rei um plano sistemático de reforma.
Passados que foram alguns meses da sua instituição, a Junta dava “à
luz” no Sítio de Nossa Senhora da Ajuda a 28 de Agosto de 1771, em “parto”
prematuro, o «Compêndio Histórico do estado da universidade de Coimbra no
tempo da invasão dos denominados Jesuítas e dos estragos feitos nas ciên-
cias e nos professores e – directores que a regiam pelas maquinações e
publicação dos novos Estatutos por eles fabricados».
É este o título oficial do célebre Compêndio Histórico, em que a Junta
de Providência Literária fundamenta por provas históricas a decadência da
Universidade de Coimbra desde o ano de 1555, e propõem os novos métodos
pedagógicos que deverão ser determinados pelos Estatutos.
Não cabe aqui a intenção de pretender fazer um balanço exaustivo à
reforma universitária pombalina, nem tão pouco ajuizar sobre o Compêndio
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Histórico mas... o título revela, só por si, um verdadeiro libelo antijesuítico (mas
não anticatólico) que não pode, nem deve ser escamoteado.
No entanto, parece inegável a idoneidade dos elementos que integravam
a Junta de Providência Literária; eram todos “filhos” da Universidade,
conhecendo, por conseguinte, os defeitos e virtudes de sua “mãe” e, «por mais
pombalistas que fossem, não deixavam de ser pessoas de ampla competência
e isenção». (7)
Esta mesma opinião já não é adoptada por catedráticos como Lopes de
Almeida e Mário Brandão, os quais consideram que a Junta não agiu com
sinceridade e independência de espírito, uma vez que os seus elementos
«obedeceram à voz inspiradora da campanha contra a Companhia, de que
Pombal dera o tom empolado e por vezes ridículo na Dedução Chronologica».
E mais: que «alguns executores da vontade tenaz do Marquês de Pombal con-
fessaram a violência e procuraram moderá-la, porém na comissão de reforma
parecia que trabalhavam de acordo, ao menos no que dizia respeito à sua
finalidade». (8)
De facto, à partida, é evidente o empenho da Junta de Providência
Literária em demonstrar e acumular provas contra a Companhia de Jesus,
responsabilizando-a pelo monopólio ou orientação do ensino e pela sua
influência nos estatutos vigentes.
Saliente-se, e com toda a legitimidade, a abalizada opinião do Prof.
Hernâni Cidade que, no Compêndio Histórico, para além de «um sectarismo
violento refervendo na linguagem e turbando o juízo crítico», consegue ver-se
que o livro não tem apenas carácter destrutivo. Assim, «ao lado da doutrina
que considera «venenosa», expõe a que inculca verdadeira e, ao lado do
método ou autor repelido, o método ou autor que é preciso seguir». (9)
De facto, é com toda uma copiosa documentação, clara e frequente
visão crítica e uma completa informação de todos os progressos da ciência do
tempo, que a Junta fundamenta o seu libelo contra o ensino imobilizado e
imobilizante atribuído à «invasão dos denominados jesuítas».
Carlos Jaca
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Decadência das universidades no séc. XVIII.
Não era só a nossa Universidade que se encontrava na mais lastimável
decadência, o mesmo sucedia às Universidades de países mais civilizados
como a França e a Inglaterra. Quanto às espanholas «nem é bom falar, por tal
forma a decadência dos estudos e o obscurantismo dos professores
desafiavam as censuras dos críticos – como Saavedra Fajardo, na República
Literária – e a veia cómica dos autores de sainetes». (10) O mesmo acontecia
às Universidades Italianas, como afirma Ribeiro Sanches.
De facto, convém dizer que, no séc. XVIII, as Universidades europeias
clássicas estavam em nítido processo de decadência, acontecendo que, em
quase todas, o ensino superior processa-se ainda segundo o modelo e a
tradição medieval e sem qualquer abertura ao avanço da ciência. As
Universidades continuavam e continuaram sem grande renovação.
Efectivamente, fora das Universidades, a ciência seguia um processo de
renovação, abandonando os trilhos do metafisicismo e deixando cada vez
mais de ser verbal para se tornar progressivamente experimental; as ciências
biológicas passam da sua fase descrita para um estado analítico que virá,
mais tarde, condicionar as grandes sínteses de Darwin e Lamarck.
Tais avanços não tinham reflexos dentro das Universidades, porquanto,
estas continuavam fechadas ciosamente a essas inovações, verificando-se um
divórcio completo entre o estado da ciência – cada vez mais progressiva e
liberta de todos os preconceitos, e a situação do ensino rotineiro, obsoleto,
imobilizado no escolaticismo e tão submisso ao dogmatismo religioso como ao
autoritarismo docente.
Acerca do estado interno das Universidades francesas, sob o antigo
regime, atente-se na magistral descrição de Luiz Liard, na História do Ensino
Superior em França de 1789 a 1889: «raras têm bibliotecas; mais raras são
ainda as colecções científicas. A Universidade de Medicina de Montpellier não
tem gabinete de anatomia; não tem biblioteca; os seus estudantes estavam
reduzidos a alugar aos bedeis os livros necessários para o seu estudo. Custa
a crer que o exemplar do «Corpus Júris Civilis», comprado em 1789 pelo
professor de Bordéus, formava toda a livraria...» No seu documentadíssimo
estudo, Liard, conclui: «o antigo regime não teve uma verdadeira noção do
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ensino superior; nestas Universidades de dois andares, em nenhuma delas
existia um alto ensino das letras, das ciências, do direito e da medicina; a
Faculdade de Artes não dava mais do que uma instituição preparatória, e as
Faculdades superiores, sobretudo o Direito e a Medicina, obedeciam a vistas
estritamente pessoais».
A situação das Universidades inglesas no séc. XVIII continuava ainda o
espírito do dogmatismo medieval. Referindo-se a este regime pedagógico,
escreve Renan: «Não se pode dizer que em Inglaterra um tal regime
produzisse resultados de primeira ordem. Oxford e Cambridge tiveram nos
séculos XVII e XVIII homens eminentes, mas não foram o teatro de nenhum
grande movimento. Estas velhas instituições acabaram por se adormecerem
em uma rotina, em uma ignorância, em um grande esquecimento dos grandes
interesses do espírito, que se julgariam incuráveis se a Inglaterra não
possuísse nas suas liberdades, no acordar e na actividade dos indivíduos o
remédio para todos os males». (11)
O quadro universitário espanhol era representado por Saavedra
Fajardo, na “República Literária”, nos traços comuns em que se satirizava as
Universidades europeias: «Era mais a presunção do que a ciência; era mais o
que se duvidava do que o que se aprendia; o tempo, e não o saber, dava os
graus de bacharéis, licenciados e doutores, e às vezes unicamente o dinheiro,
concedendo em pergaminhos magníficos, com pendentes de fios, faculdade à
ignorância para poder explicar os livros e ensinar as ciências e achar-se em
um destes graus».
Não deixa de ser bem caracterizada esta esterilidade do ensino, que
cimentava o pedantismo doutoral, embaraçando o desenvolvimento das
ciências experimentais independentes das demonstrações silogísticas.
Apenas as Universidades alemãs, nomeadamente Jena e Gottingen,
parece terem escapado a esta fase de decadência e imobilismo o que se
poderá explicar pela liberdade de exposição e de crítica concedida aos
professores, e que eram, sem dúvida, reflexos da liberdade religiosa, não
esquecendo que a existência de professores livres – os «privat docenten» - em
muito contribuiu para o alto nível no ensino superior alemão.
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A Universidade portuguesa.
Se bem que houvessem sido diversas as reformas por que passou a
nossa Universidade através dos séculos XVI, XVII e nos três primeiros quartéis
do séc. XVIII, o que é certo é que com elas nada ganhou o ensino.
Como diz D. Francisco de Lemos na “Relação Geral do Estado da
Universidade de Coimbra”, «todas as reformas que a
este tempo se fizeram limitaram-se à interpretação,
declaração, revogação e extensão de alguns Estatutos
antigos, e poucas foram as providências que de novo
se acrescentaram a benefício das Letras». Os últimos
Estatutos (1654) estavam totalmente desajustados em
relação às actuais circunstâncias e ao progresso
verificado nos diversos ramos do saber.
Efectivamente, a Universidade era uma
instituição muito mais teocrática que pedagógica, e muito mais destinada à
defesa da intangibilidade dos dogmas que a cuidar dos progressos do ensino.
O espírito crítico e investigador e, por conseguinte, os métodos do
experimentalismo estavam excluídos por definição, sendo toda a vida
intelectual, no que toca ao mundo físico, reduzida a comentários: «Comentar
livros da Antiguidade, sensibilizar, recomentar, era um sonho de subtilezas
formais, um jogo verbal de ilusões aéreas». (12)
A crise em que a Universidade mergulhara havia bastante tempo não
podia deixar de pôr em confronto o poder civil e o poder eclesiástico, O choque
era inevitável, uma vez que o domínio do ensino estava entregue, na sua
quase totalidade, a instituições religiosas nomeadamente aos jesuítas, que se
inspiravam numa prática pedagógica tradicionalista e retrógrada.
Em jeito de parêntesis, refira-se que o Padre Francisco Rodrigues no
tomo III do vol. I da sua “História da Companhia de Jesus na Assistência de
Portugal”, afirma que «A Companhia de Jesus em Portugal encheu todo o
século XVII». De facto, a afirmação não deixa de ser correcta, porquanto, sem
dúvida, a Companhia conseguiu assumir papel de tal modo relevante na vida
nacional, ensino, política e missionação (aquém e além mar), que é lícita a
afirmação citada, de ter “enchido” o nosso século XVII.
Porém, não pode contestar-se que os padres da Companhia de Jesus,
Carlos Jaca
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sistematicamente estacionários ou, se se quiser, nas coisas das ciências
tiveram larga parte na decadência dos estudos. Mas... não deve ser-lhes
imputada toda a culpa.
Não será, de certo modo, muito justo afirmar-se que «desde o ano de mil
quinhentos e noventa e oito até agora que governaram a dita Universidade, não
há cousa alguma, que se possa aproveitar para objecto da reforma. Muito pelo
contrário se contém neles (Sextos e Sétimos Estatutos) um doloso sistema de
ignorância artificial, e de impossibilidade para se aprenderem as mesmas
Ciências que se fingiu, quererem-se ensinar». E também parece algo
exagerado considerar o labor da Companhia como uma oficina perniciosa,
cujas máquinas ficaram desde então sinistramente laborando para obstruírem
todas as luzes naturais dos felizes engenhos portugueses». (13)
Não deixa de ser legítima a análise do Prof. J. Veríssimo Serrão, ao
afirmar que a responsabilidade dos inacianos no campo de ensino tinha os
limites próprios da sua actuação, não sendo tão profunda nem intensa, «pois
dela partilhavam todos os sectores da Universidade, afectando por igual os
ensinos não confiados à Companhia de Jesus, como a Jurisprudência e a
Medicina. Se não se desenvolvera o ensino da ciência experimental, isso não
se fizera por malícia, para impedir o aproveitamento dos alunos, mas apenas
porque a reforma da Universidade devia ter-se obrado no tempo próprio, ou
seja, no início do Séc. XVIII». (14)
Que os jesuítas tiveram as suas culpas na decadência dos estudos, é
um dado adquirido. Cabe-lhes entre outras coisas a mais completa
responsabilidade «pela obstinada relutância com que mantiveram nos Cursos
de Artes os Comentários do Colégio Conimbricense, excluindo do ensino as
recentes descobertas, que engrandeciam as ciências de observação e a
Filosofia Racional. Acoimá-los, porém, de prejudiciais no ensino das ciências
universitárias, que não ensinaram, atribuir-lhes influência nociva na coordena-
ção dos estatutos velhos, que são pouco mais do que a recopiação de leis,
praxes e costumes estabelecidos no decurso de um século, é injustiça
manifesta, que o juízo imparcial da História como tal reconhece». (15)
Obviamente que, os redactores do “Compêndio Histórico”, como
pessoas de absoluta dedicação a Pombal, lisonjear-lhe-iam, naturalmente, a
sua “jesuitofobia”, atribuindo toda a decadência das ciências e mesmo da
Carlos Jaca
15
Medicina à Companhia de Jesus, exagerando e prejudicando a seriedade do
seu exame, porquanto, bastava notar que noutras universidades, onde os
jesuítas nunca dominaram, a decadência pedagógica era igualmente profunda
e apresentava as mesmas características.
Na verdade, outros elementos terão concorrido para que, entre os
séculos XVII e XVIII, o ensino universitário estivesse totalmente desajustado
em relação às actuais circunstâncias e ao progresso verificado nos diversos
ramos do saber.
Creio não dever ser omitido o terror, a intolerância e a desumana
perseguição do Tribunal do Santo Ofício; o reinado de monarcas como D. João
III (desde que se deixou avassalar pelas sugestões do fanatismo), D.
Sebastião e o Cardeal-Rei; a perda da nacionalidade e o domínio filipino
durante seis décadas. E, ainda, os cuidados e esforços para sustentar a
independência recuperada em 1640, que absorviam toda a vitalidade da
Nação. Ora, tudo isto foi parte para que os estudos caíssem no lastimoso
abatimento a que chegaram.
Se se considerar serenamente – diz o Professor Hernâni Cidade –
parece não dever aceitar-se que os jesuítas houvessem «cavilosamente
arruinado» a ciência e, menos ainda, tentado tornar irreligiosa a Nação – eles
que foram expoentes máximos na obra de cristianização do Ultramar e que
«só pelo receio da heterodoxia punham entraves ao processo científico. Mas
temos o direito de afirmar que se não fora a reacção que os venceu,
continuaríamos, e não se sabe até quando, merecendo, pelo anacronismo da
nossa cultura, o rótulo de Índios da Europa». (16)
Para Teófilo Braga a causa de uma tão longa apatia não pode ser
atribuída exclusivamente a factores externos: «incorporação de Portugal na
monarquia espanhola, a absorção dos jesuítas quer pelas imposições
pedagógicas ou pelas usurpações económicas, nem ainda pela constante
intervenção reaccionária do governo absoluto; na essência do próprio
estabelecimento, o espírito conservantista pode manter uma severa disciplina
escolar e sustentar as ciências e os seus métodos na altura em que foram di-
vulgados, mas evitará sempre as inovações doutrinárias como atentatórias da
autoridade académica. Tal é a razão por que as universidades se atrasam e
Carlos Jaca
16
ficam alheias à corrente intelectual; deu-se isto com a de Paris, com a de
Salamanca, e em geral com as dos países meridionais». (17)
A cegueira e o ódio visceral de Carvalho e Melo em relação aos jesuítas
estariam na base das perseguições aos “inacianos”, porquanto, em qualquer
tempo, uma apreciação serena dos factos tornam “despropositadas e
carregadas de exagero” as invectivas antijesuíticas, atribuindo-lhes a total
responsabilidade no que dizia respeito ao estado em que se encontrava o
ensino.
E mais, tal campanha, parece, igualmente, ter pretendido esquecer ou
diminuir o labor da Companhia no Colégio das Artes e de Jesus, bem como
uma acção incomparável de heróis, mártires e santos, levada a cabo em
territórios desconhecidos, e nas mais difíceis condições, tais como o Brasil, a
África e o Oriente.
Hoje, julgo, já ninguém de boa fé, ou espírito isento, considerará a
Companhia de Jesus como a única causa, ou também a principal causa, da
decadência do ensino em Portugal quando Sebastião José de Carvalho e Melo
tomou conta do Poder absoluto.
Os “Estrangeirados”.
Não obstante alguns esforços de D. João V no sentido de iniciar a
batalha para nos fazer reentrar na Europa culta, o meio cultural pouco
melhorou, não se tendo conseguido emancipar do ambiente tradicional, ainda
que algumas ressonâncias das correntes de além-Pirenéus se fizessem sentir
vagamente em Portugal.
As críticas ao retardamento português eram provenientes de
observadores estrangeiros ou de portugueses residentes, há muito, noutros
países e que, por essa razão, estavam bem posicionados em termos de uma
perspectiva crítica da realidade nacional.
Alguns desses observadores eram diplomatas, outros cristãos-novos
expatriados por via da repressão inquisitorial.
As perseguições da Santa Inquisição espantavam de cá o melhor da
“intelligentzia” portuguesa, e esses emigrados foram, assim, constituindo,
Carlos Jaca
17
pouco a pouco, a plêiade que muito contribuiu para, como diz António Sérgio,
«iluminar, na 2ª metade do Séc. XVIII, a nossa noite intelectual».
Embora só através do “crivo” de uma bem organizada vigilância
chegassem a Portugal breves notícias do que se passava pela Europa, muitos
portugueses cultos eram receptivos e aspiravam a um novo estilo de vida:
eram os «estrangeirados».
A divulgação e influência das suas ideias circunscrevia-se a uma área
muito limitada, a uma elite, visto que o seu reformismo era geralmente exposto
em epistolários que, pelo menos há poucos anos, permaneciam ainda
parcialmente inéditos (D. Luís da Cunha, José da Cunha Brochado, etc.).
As sementes de reforma e renovação, já visíveis nos finais do reinado
de D. João V, mas sufocadas pelo tradicionalismo das escolas jesuítas e
bloqueadas pela «asa protectora» do Santo Ofício, viriam, porém, a sofrer o
impacto do iluminismo europeu e a influência mais directa e activa dos “es-
trangeirados”: «essas componentes, agindo em simultâneo, viriam a produzir
um notável efeito desbloqueador, mas só quando se deparassem novos
condicionalismos políticos, porque antes... Se
alguns apareciam a defender publicamente as
novas ideias – como Verney ou Ribeiro Sanches –
«quando desceram à arena da luta vinham quase
sempre com uma preocupação de imunidade,
garantida por um pseudónimo cauteloso ou
assegurada por uma distância de muitos
quilómetros. A grande massa do País manteve-se, porém, alheia a polémica –
em que nem sequer podia participar, pois era analfabeta. Nem poderia ter sido
de outro modo: nos países peninsulares, mais do que em qualquer outra nação
da Europa Ocidental, quase não houve limites para o domínio da Contra-
Reforma que, exercendo-se com uma acção "depuradora" nos veículos da
Cultura, e dominando totalmente ou quase a orgânica do ensino público, fizera
estagnar e até retroceder o movimento de progresso que se pressentira
prestes a surgir na primeira metade do Séc. XVI». (18)
De qualquer modo, pode dizer-se que toda a política governativa de
Carvalho e Melo na área do ensino veio, de forma determinante, a inserir-se
nas «Novas ideias» que esses intelectuais «estrangeirados» como Verney,
Carlos Jaca
18
Luís da Cunha, Ribeiro Sanches e outros tinham empreendido durante meio
século, não se cansando de propalar a urgente necessidade de transmitir ao
País uma fisionomia diferente, libertando-o da decadência científica e cultural
em que se encontrava.
Depois da reforma levada a cabo por D. João III, em 1537, iria verificar-
se, 250 anos depois, uma remodelação total na velha escola de Coimbra, já
que o espírito renascentista que inspirara a orgânica universitária do séc. XVI
não se tinha ajustado aos ideais que o progresso científico e filosófico criara.
Como diz o Prof. Borges de Macedo, os portugueses não eram
totalmente ignorantes nas ciências exactas, «mas o que se sabia estava
sobretudo circunscrito a curiosidades individuais ou a necessidades imediatas.
Não havia a esse respeito qualquer instituição, seja de ensino seja de registo
ou debate (uma Academia por exemplo), onde se realizasse e pudesse
empreender uma actividade sistemática. Sabia-se ser urgente a reforma da
Universidade de Coimbra para que esta pudesse dispor dos meios de cultivar
as ciências exactas e da Natureza e abordar as novas questões da Filosofia. O
Marquês de Pombal estimulou uma reforma universitária, e fê-la no sentido de
transformar os estudos segundo as correntes de pensamento jurídico e os
novos métodos ligados ao Direito Natural e ao Direito Público e das Gentes. A
mudança era profunda quanto aos princípios orientadores e teve influência
decisiva na mentalidade dos quadros de que o País passou a dispor». (19)
O espírito da reforma universitária era já uma realidade, sentindo-se que
se tomava urgente reformular totalmente todo o processo de ensino, pondo em
prática novos métodos, adoptar livros actualizados e imbuídos de uma
mentalidade renovadora
Reforma universitária
A traços largos, já que no caso presente apenas se trata de colocar as
quatro Faculdades tradicionais ao nível das suas congéneres europeias em
todos os aspectos, vejamos o que foi essa profunda e eficaz reforma.
Acrescente-se, também que as ciências humanas e experimentais foram
devidamente tidas em conta, baseando-se os Estatutos em autores célebres,
como Pufendorf, Boerhaave e outros.
Carlos Jaca
19
Mantinha-se a Faculdade de Teologia, como convinha num país
eminentemente católico, e cujo programa, definindo um novo espírito, fora
elaborado por D. Frei Manuel do Cenáculo e pelo Padre Pereira de Figueiredo.
Anteriormente às reformas pombalinas, e segundo D. Francisco de
Lemos, o estado do ensino da Teologia era o seguinte: «Basta dizer-se que do
século passado para cá até ao princípio do reinado do Senhor Rei D. José... a
Teologia que se ensinou nas Escolas Conimbricenses foi a Teologia
Escolástica: Teologia que, tendo sido aliada no século XII com a venenosa
filosofia de Aristóteles, alterada pelas Explicações e Comentários dos Árabes,
se foi pouco a pouco corrompendo até formar um Corpo de Questões, que
nunca se tinham ouvido na Igreja, e totalmente inúteis para os fins do
Ministério Sagrado». (20)
Os métodos aplicados eram obsoletos, sem qualquer inovação e cria-
tividade, sobrepondo-se a autoridade dos autores e dos mestres ao papel da
crítica e da análise objectiva do texto. A remodelação dos estudos teológicos
apontava agora para um ensino de carácter menos especulativo e escolástico
e mais baseado nos conhecimentos da História Sagrada e Eclesiástica, na
crítica e na interpretação dos textos gregos e latinos, procurando fazer-se a
análise exegética do texto bíblico «visto directamente» à luz conjugada da
História e da Filologia. Só assim, dizia, D. Francisco de Lemos, Bispo de
Coimbra e Reitor da Universidade, se poderiam formar bons teólogos.
As Faculdades Jurídicas constituíam dois cursos: de Direito Civil e de
Direito Canónico. O ensino de Direito Canónico limitava-se à estéril lição das
Decretais, do Decreto e das Clementinas. Não se ensinava a História Sagrada,
a História Eclesiástica, o Direito Público Eclesiástico, o Natural e o das Gentes.
Conservava-se a Faculdade de Cânones com o fim de regular e estudar
fundamentalmente as normas jurídicas, apresentadas ou aprovadas pelas
autoridades eclesiásticas, delimitando e definindo a competência da Igreja.
Quanto à Faculdade de Leis, passavam-se cinco anos na «ruminação
estupefaciente» do “Digesto”, das” Institutas” e do” Código”.
Sobre o que se passava a nível da jurisprudência conimbricense vale a
pena transcrever parte de um elucidativo relato de D. Francisco de Lemos:
«Todo o exercício literário se reduzia aos Actos, para os quais não era
Carlos Jaca
20
necessário ter estudado, mas sim que corressem os anos do Curso e
chegasse a medida do tempo nele marcado, porque os Pontos e os
Argumentos eram já sabidos e muito vulgares; e além disso o estudante na
mesma ocasião dos Actos era instruído na matéria deles por um Doutor, o qual
acabava de consumar a obra da negligência, inspirando-lhe em casa e na
mesma Sala dos Actos, o que ele havia de responder e dizer».
A grande inovação introduzida consistiu numa maior atenção às fontes
jurídicas verdadeiramente portuguesas, onde, além das várias Ordenações,
havia também as leis extravagantes dos últimos reis de Aviz, os comentários
às Ordenações, outros diplomas avulsos, processos julgados, etc.
O Direito Civil, conforme diziam os estatutos (Tit. Cap. 3), seria «ou o
Romano ou o Pátrio, contido nas leis do reino. Dos dois direitos, este é o
superior quanto a poder de autoridade; vale como lei; obriga, à falta de
disposição específica e em todos os casos onde encontre lance. Quanto ao
Romano, esse, é tão só, subsidiário; tem apenas validade como suplemento
do Direito Pátrio; somente alcança força legislativa e autoridade aí onde as leis
nacionais não cheguem e não chegue outrossim aquele natural jus fundado
sobre a boa razão que lhe serve de única base». (21)
As Faculdades de Cânones e Leis acabaram por se fundir conforme
decreto de Passos Manuel, datado de 1836.
Notável é a reforma da Faculdade de Medicina, devida em grande parte
à colaboração do médico Sacchetti Barbosa e à influência de Ribeiro Sanches.
O ensino aqui era puramente livresco, seguia-se
Galeno e outros autores que por essa Europa fora já
não contavam, e os mestres preocupavam-se mais
na utilidade particular de curar do que na pública de
ensinar. Ordenavam os Estatutos que se ensinasse
a anatomia e se fizessem demonstrações, e se
aprendesse a prática da Medicina no hospital, porém
«todas estas disposições se iludiam de um modo perfunctório (supérfluo) e
inútil».
No «Reino Cadaveroso», ou no «Reino da Estupidez» como já alguém
chamou ao Portugal setecentista, a anatomia e toda a espécie de ensino
prático aparecem, embora de forma caricatural, do modo seguinte:
Carlos Jaca
21
«Há coisa mais cruel, mais desumana,
Mais contrária à razão, que ver os médicos
Um cadáver humano espatifando,
Um corpo que habitou o Espírito Santo?
Nunca tal praticaste, ó bom Lopes,
Quando pelo Natal em um carneiro
O bofe, o coração, as tripas todas
A teus hábeis discípulos mostravas!...». (22)
Diz Hernâni Cidade que não era, de facto, um carneiro pelo Natal, mas
nove carneiros por ano as vítimas sacrificadas à anatomia.
Efectivamente, a anatomia humana era ensinada através da dissecação
de carneiros, o que representava um retrocesso em relação aos Estatutos de
1559, pois estes já previam a anatomia sobre cadáveres fornecidos pelo
hospital. A dissecação de cadáveres humanos havia sido abolida por via de
preconceitos religiosos.
Desconhecia-se, ou pouco menos, a Medicina no Norte Europeu, sob o
impulso de Boerhave, Haller, etc., por parte do ensino universitário, pois fora
dele, médicos como Gomes Lourenço, Sacchetti Barbosa, em convivência
espiritual com os mestres estrangeiros de Anatomia e Cirurgia do Hospital de
Todos-os-Santos, com Castro Sarmento e Ribeiro Sanches mostram-se
suficientemente informados.
Considera o Prof. João Pedro Miller Guerra que «as providências
reformadoras, modernizando o curso universitário e colocando-o a par do que
se professava nos centros europeus adiantados, efectuaram a modificação
mais profunda e ampla da história da Medicina. Apesar de controvérsias que
gerou e das limitações que sofreu na aplicação, a reforma pombalina revigorou
os estudos médicos, dando-lhes um impulso tão enérgico e certeiro que
perdurou até à República, embora com retoques e acrescentamentos, mas
também com modificações nocivas». (23)
Todavia, a maior inovação da reforma universitária consistiu na
fundação das faculdades de Matemática e Filosofia, colaborando na
organização da primeira os italianos Franzini e Vandelli, e na segunda o seu
companheiro Ciera e o ex-jesuíta José Monteiro da Rocha.
Carlos Jaca
22
Pretende Garção Stockler que de todas as instituições de El-Rei D. José
a Faculdade de Matemática «é talvez a que mais honra faz à sua memória, e é
sem dúvida uma daquelas pelas quais a nação portuguesa lhe deve tributar
eternamente os mais vivos sinais de sincero reconhecimento». (24)
Até aos meados do Séc. XVIII eram rudimentares os conhecimentos de
ciências matemáticas na Universidade, depois de passarem os tempos áureos
de Pedro Nunes.
Pombal, reconhecendo que na Universidade havia Matemática a menos e no
Colégio dos Nobres Matemática a mais, transferiu de Lisboa para Coimbra
vários professores, montando nesta cidade um Observatório Astronómico e
estabelecendo o ensino da Astronomia, da Mecânica e da Arquitectura.
Os abalizados matemáticos portugueses José Monteiro da Rocha e
José Anastácio da Cunha foram escolhidos para constituírem a faculdade
recentemente instituída, bem como o piemontês Michele António Ciera e o ve-
neziano Michele Franzini.
Conforme se lê nos Estatutos a Faculdade de Matemática foi
incorporada na Universidade como qualquer das outras faculdades que até
então se distinguiam com o nome de maiores, nascendo, deste modo, dentro
da orgânica universitária, uma nova Faculdade Maior com o seu próprio corpo
de lentes, substitutos, opositores, ascensão ao grau de doutores, insígnias de
categoria doutoral (borla e capelo de cor azul) e todos os demais privilégios e
honras até então exclusivos daquelas quatro faculdades» (Teologia, Cânones,
Leis e Medicina.
Finalmente era abolida, como «sistema incorrigível», a Faculdade de
Artes, a qual estava tão longe de cumprir com o seu objectivo seu que se
volvera em fonte e manancial venenoso de um palavreado obscuro e sofístico,
contaminando todos os ramos da instrução pública.
Com a reforma de 1772, criava-se a Faculdade de Filosofia, destinada a
substituir o antigo Curso das Artes até então ministrado no respectivo Colégio,
mas enquadrado entre os Estudos Menores, pretendendo-se uma Filosofia que
descesse da altura dos Universais e procurasse estudar o homem moral e o
mundo moral com que está relacionado, o homem físico no mundo físico de
que faz parte.
A propósito do referido curso “artístico” diga-se que, durante a estadia
Carlos Jaca
23
do Marquês em Coimbra, o Colégio das Artes foi incorporado na Universidade,
o que correspondia a um desejo formulado numa das sessões da Junta de
Providência Literária, por via das escolas menores poderem fornecer
estudantes à Universidade. Assim, a “Alma Mater”voltava a satisfação de ter
novamente integrada no corpo académico uma instituição pela qual lutara
desde que lhe fora retirada pela Companhia de Jesus.
Porém não bastava promulgar a Reforma. A nova organização
universitária exigia cuidados especiais. Tratava-se primeiro que tudo de reunir
um grupo de homens, cada um deles com uma cultura profunda e sólida sobre
os assuntos que lhe respeitava. Considere-se que era tarefa extremamente
difícil e delicada elaborar uma longa lista de todos os professores que
deveriam ser afastados da Universidade por meio de jubilação e daqueles que
pelos merecimentos e aptidões eram garantia segura para a eficácia da
Reforma. É que a Reforma não viria verdadeiramente a sê-lo se, além das
intenções e dos métodos novos, o pessoal recrutado não se integrasse,
abertamente, no seu espírito
Assim, por despachos de 3, 11, 12 e 28 de Setembro de 1772 eram
jubilados os antigos lentes da Universidade que nenhuma garantia ofereciam
de poder compreender e executar os novos Estatutos completamente, isto é,
tanto no seu espírito como na sua letra.
Este processo de escolha não deu origem a queixas, visto que pelo
regime governativo seriam julgadas como crimes de lesa-majestade, além de
que também não eram roubados os direitos de cada um, porquanto os antigos
lentes «foram jubilados, outros investidos em conesias magistrais ou doutorais
nas sés do Reino, outros, enfim, providos como lentes efectivos e substitutos.
Houve, na verdade, uma renovação do corpo professoral, com o ingresso de
figuras que pela investigação e pela docência viriam a honrar a Universidade
de Coimbra». (25)
O Marquês de Pombal em Coimbra. Entrega e publicação dos Estatutos.
Justamente passado que foi um ano da apresentação do “Compêndio
Histórico”, D. José, por Carta de Roboração datada de 28 de Agosto de 1772,
promulgava a carta orgânica da Universidade, os Novos Estatutos. Igualmente,
Carlos Jaca
24
em resolução régia de 25 de Setembro, mandava suspender a antiga
legislação académica, e que não se procedesse à «abertura, juramento e
matrículas…até nova ordem de Sua Majestade.».
A esta data já Carvalho e Melo se encontrava em Coimbra havia três
dias. Efectivamente, no mesmo dia em que são
promulgados os Estatutos, uma carta régia dirigida
ao Marquês determinava a sua presença em
Coimbra, não para cortar a fita inaugural dos
«Estudos novamente fundados», mas sim como
plenipotenciário e lugar-tenente de D. José para
restituir e estabelecer as Artes e as Ciências contra
as ruínas em que se acham sepultadas, fazendo
publicar os Novos Estatutos». (26) De facto só
motivos fortemente ponderosos justificariam que o
ministro se ausentasse do seu Gabinete de Lisboa,
durante cerca de mês e meio.
Salientava El-Rei que na aplicação dos Estatutos e noutros aspectos
concernentes ao regulamento e boa ordem da Universidade, «poderiam ocorrer
alguns incidentes que não deveriam esperar pelas decisões dos recursos
dirigidos á Minha Real Pessoa, sem demoras prejudiciais ao pronto
Estabelecimento que requer a urgência de uma tão útil e necessária
Fundação». (27)
Assim, confiando no zelo e fidelidade com que o Marquês sempre se
empregara no real serviço, e pelo seu muito interesse já dedicado à Uni-
versidade dirigindo e animando os trabalhos da Junta de Providência Literária
com «infatigável disvello», o rei tinha por certo que, nos casos ocorrentes,
Pombal agiria em conformidade com a sua experimentada prudência.
Para ultrapassar todos os impedimentos e incidentes que,
eventualmente, surgissem contra a rápida e fiel execução dos Estatutos,
Carvalho e Melo seria investido não só com os poderes que foram concedidos
a seu «quinto avô Balthazar de Faria, Primeiro Reformador Vizitador da
Universidade, pelo Alvará da Comissão expedida em onze de Outubro de mil
quinhentos sincoenta e sinco» (28), mas também com todos aqueles que
considerasse necessários, segundo a natureza dos casos; «obrando em tudo
Carlos Jaca
25
como Meu Lugar Thenente – prossegue a Carta Régia que tenho estado a
seguir – com Jurisdição privativa, exclusiva, e illimitada para todos os
sobreditos effeitos». (Embora o ouro do Brasil começasse a escassear, D. José
parecia saber a quem passava o cheque em branco).
Acrescentava, ainda, a Carta Régia, que o Reitor, Lentes, Deputados,
Conselheiros e outras pessoas da Universidade, cumprissem toda a orientação
determinada pelo «honrado Marquez de Pombal do Seu Conselho de Estado e
Seu Lugar Thenente na Fundação da Universidade de Coimbra».
A fim de dar cumprimento ao estabelecido por El-Rei, Carvalho e Melo
saíra de Lisboa a 15 de Setembro chegando a Coimbra ao fim da tarde do dia
22, e ficando alojado no Paço Episcopal onde se manteve até 24 de Outubro.
Recebido com honras majestáticas e a pompa inerente à dignidade do
cargo, as suas visitas à Universidade revestiam sempre grande aparato e
solenidade, «andando debaixo do pálio, assentando-se sob um dossel e
dando dali beija-mão, segundo as formas fetichistas da autoridade». (29)
Cerimónia de grande pompa terá ocorrido no dia 29 de Setembro,
quando o Marquês se dirigiu à Sala dos Capelos e fez ao Reitor a aparatosa
entrega dos Novos Estatutos, que extraiu solenemente de uma bolsa de
veludo, para ficarem em execução a partir daquele momento.
Depois de ter lido o Real Decreto confirmativo da nova carta orgânica da
Universidade, e que se acha incluso no princípio do 1º tomo dos Estatutos,
disse o Secretário que o Sr. Marquês era servido e mandava que o novo
Estatuto estivesse patente na Sala do Prelado, e que no dia seguinte se
recolhesse ao Cartório, e que o Reitor da Universidade distribuiria os
exemplares impressos depois de serem por ele assinados.
Como considera Hernâni Cidade, os Estatutos são a consequência da
cultura moderna mas pertinaz da Junta de Providência Literária e do espírito
esclarecido mas absolutista do Marquês de Pombal, traduzindo um rompimento
com o aristotelismo.
A antipatia contra o «abominável filósofo» era tanto do espírito da Escola
que Seabra da Silva, procurando reduzir, ou até anular, a influência de Frei
Manuel do Cenáculo junto de Pombal, na elaboração dos Estatutos, em que
Carlos Jaca
26
por vezes divergiam, insinuava-lhe que o Bispo «ainda acudia alguma coisa
pelos escolásticos».
Os novos Estatutos orientavam-se pelas ideias afectas ao iluminismo:
crítica ao aristotelismo formalista e verbalista,
recusando receptividade aos argumentos da
autoridade e privilegiando o método experimental
e o direito à prática da livre crítica no domínio da
ciência.
Com efeito, os Estatutos, num
reduzidíssimo espaço de tempo, «humanizaram a
medicina, aportuguesaram a jurisprudência,
lançaram as pontes para as profissões
construtivas (engenharia e arquitectura), abriram
o céu ao observatório astronómico, festejaram a
natureza no jardim botânico, separaram do
primado pontifício a soberania real, impuseram a história do direito pátrio, com
isso mudando o esquema ideológico dos cursos, que perdiam a linguagem
anacrónica, no latim eclesiástico, para captar as forças ambientais (e
europeias) do objectivismo pleiteado pelos enciclopedistas e levado, nas asas
da literatura, por Voltaire e Rousseau a todas as áreas da cultura livre». (30)
Convém, no entanto, sublinhar um notável sentido de prudência implícito nos
próprios Estatutos: preceituam que nenhum autor português ou estrangeiro
deverá ser adoptado “in perpetuum”, antes a título provisório, «até que surja
outro que se considere mais acomodado e melhor».
Apesar das naturais imperfeições, os Novos Estatutos foram acolhidos
na Europa com agrado geral, facto que o Marquês não se esqueceu de
participar ao Reitor, em carta de 7 de Novembro de 1772: «Os Estatutos da
nossa Universidade fazem um tão grande objecto na expectação das nações
estrangeiras, e hão-de fazer outro tão pungente estímulo da raiva jesuítica,
que, por um e outro princípio, os livreiros do Norte se hão-de dar todo o
movimento em os fazer traduzir para ganhar dinheiro; e os que eles apeiam
dos seus cavalos de batalha para ver se podem estropiar e difamar a mesma
legislação, introduzindo nela maliciosos erros e dissonantes imposturas. Por
Carlos Jaca
27
ambos os referidos motivos, se faz indispensável que a nossa tradução seja a
primeira que veja a luz do mundo. E para este fim não há meio próprio que não
seja o de se dividirem os Estatutos pelos diferentes tradutores que vão
indicados na distribuição que ajuntei a esta carta...» (31)
Os autores da “Gazeta Eclesiástica”, de França, bem como outros mais,
referem o elevado mérito dos Estatutos, louvando-os pela ordem do método e
solidez da doutrina. O Prof. Serra de Mirabeau considera tratar-se do mais
notável código de legislação que até então se conheceu em todas as nações
civilizadas; cem anos após a Reforma, Francisco de Castro Freire, um dos
mais eminentes professores de Coimbra, diria: «Estes Estatutos admiráveis,
que têm merecido a atenção e o respeito dos sábios das nações mais cultas,
colocaram a Universidade ao nível das melhores do seu tempo; e na sua
organização revelam a cada passo os seus ilustrados redactores não só uma
vasta e sólida instrução nas ciências cujo ensino regularam, mas, sobretudo,
um conhecimento profundo da natureza humana e dos métodos mais profícuos
para dirigir a mocidade nas árduas mas gloriosas sendas da sabedoria
humana». (32)
Durante o mês que permaneceu em Coimbra, ocupando-se amiudadas
vezes com o Reitor numa activa e eficiente implantação da Reforma e
promulgando as disposições indispensáveis à abertura das faculdades,
Pombal ia dando o melhor cumprimento às instruções estabelecidas por D.
José.
Antes de regressar a Lisboa, o mandatário real despediu-se de toda a
Universidade na sala nobre e, com o cerimonial costumado, pronunciou
algumas palavras de despedida. Estimulando a instituição académica a dar
continuidade com entusiasmo e dedicação aos trabalhos de que tinha lançado
as bases, acrescentou: «No meu particular tenho por certo que os sucessos
hão-de corresponder em tudo à expectação régia, e esta plausível certeza é a
que só me pode suavizar de algum modo o justo sentimento com que a
urgência das minhas obrigações na Corte faz indispensável que eu me
despeça desta preclara Academia, augurando-lhe felicidades iguais aos
consumados adiantamentos literários com que tenho previsto que há-de
ressuscitar em toda a sua anterior integridade o esplendor da Igreja Lusitana; a
Carlos Jaca
28
glória da Coroa de El-Rei Meu Senhor, e a fama dos mais assinalados varões,
que nas suas memórias honrarão os fastos portugueses. Com estes
faustíssimos fins deu o dito Senhor à Universidade o digno Prelado, que até ao
presente governo como Reitor com tão feliz sucesso, e que do dia da minha
partida em diante a há-de dirigir como Reformador; confiando justamente das
suas bem cultivadas Letras, e das suas exemplares virtudes, que não só
conservará com a sua perspicaz atenção a exacta observância dos Estatutos,
de cuja execução fica encarregado, mas também que ao mesmo tempo a há-
de iluminar com as suas direcções, e a há-de animar com as suas frutuosas
aplicações a tudo o que for do maior adiantamento, e da maior honra de todas
as Faculdades Académicas». (33)
A cerimónia finalizou com a intervenção do Reitor agradecendo ao
ministro a reestruturação universitária; dirigindo-se ao corpo académico inci-
tava-o na aplicação e cumprimento das suas obrigações, e que tivesse bem
presente o facto de trabalhar «á vista do mesmo herói, que o amor das letras e
da pátria trouxe a este lugar para vos honrar com a sua presença, para vos
instruir e guiar com a sua sabedoria, e para vos encher de favores e
benefícios». (34)
Ao regressar a Lisboa, em 24 de Outubro de 1772, o Marquês apenas
havia deixado em Coimbra os alicerces da nova Universidade, o que só por
isso não pode deixar de ser considerado relevante. Porém, como justamente
observa o Prof. Joaquim Ferreira Gomes, a abertura dos cursos na Faculdade
de Medicina e nas duas criadas de novo (Matemática e Filosofia Natural) terá
sido prematura.
De facto, constituindo o «espírito experimental» a tónica da Reforma
Pombalina, é óbvio que a engrenagem emperrasse por falta de organismos e
instituições anexas de apoio.
Pombal e o Reitor Francisco de Lemos
sabiam que era assim e, por conseguinte, as suas
atenções vão privilegiar a construção e
apetrechamento dos estabelecimentos científicos
previstos nos Estatutos destinados à estranha
novidade que os trabalhos práticos constituíam: Jardim Botânico, Museu de
Carlos Jaca
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História Natural, Gabinete de Física Experimental, Laboratório Químico,
Observatório Astronómico, Dispensário
Farmacêutico e, quanto ao Hospital, a
escolarização do existente, que ficou sob a
direcção universitária.
E para que nenhum instrumento de
cultura escasseasse, foi sugerida a criação
da Imprensa Universitária destinada a estimular e facilitar a produção científica,
bem como o intercâmbio com universidades estrangeiras.
Era, e por fim, mais uma realização que ficou a dever-se à notável
Reforma Pombalina, reforma esta que correspondeu verdadeiramente à
fundação de uma Nova Universidade, e que nos pôs em mais aberta e eficiente
comunicação espiritual com a Europa, constituindo um dos mais gloriosos
acontecimentos da história da pedagogia portuguesa.
Diário da visita do Marquês de Pombal a Coimbra.
«Do que se passou em a Cidade de Coimbra desde o dia 22 de
Setembro, em que o Ill.mo e Ex.mo Marquez de Pombal entrou, ate ao dia 24 de
Outubro, em que sahio da dita Cidade. (35)
Setembro, 22 (terça-feira). Após o
almoço partiu de Condeixa o Marquês de
Pombal acompanhado, além da sua
numerosa comitiva saída de Lisboa a 15 de
Setembro, do Reitor da Universidade, reitores
dos Colégios de S. Pedro, S. Paulo e
Militares, dos inquisidores Sebastião Pita de
Castro e António de Vasconcelos, do Deão,
mestre-escola, por parte do Cabido, do Juiz
de Fora, do vereador Xavier Zuzarte por parte
da Câmara, ministros e mais nobreza
presente na cidade e, ainda, um piquete de cavalaria de Almeida. A Sra.
Marquesa tinha vindo à frente em companhia de seu genro, o Conde de São
Payo.
Logo que o Marquês chegou a S.ta Clara a ordenança e um terço de
Carlos Jaca
30
auxiliares deram três descargas, repicando os sinos da cidade onde «entrou
pelas 5 horas da tarde, e fazendo o seu caminho pela calsada, (rua Ferreira
Borges) ruas das Fangas (rua Fernandes Tomás) e de S. Cristóvão, Largo da
Sé e Rua das Covas, as quaes estavão todas armadas e arcadas, se foi apear
no Paço do Bispo aonde no fundo das escadas o esperavão os Lentes e mais
Oppositores da Universidade, e o acompanharão athe à primeira Sála... e
defronte do Paço estava postado hum corpo de 250 soldados de Infantaria de
Almeida; e à noite haverão luminárias, o que se repetio nas duas noites se-
guintes».
23 (quarta-feira). Houve grande afluência ao Paço. Falou o Sr. Marquês aos
Lentes de Leis, Cânones e Teologia, à Inquisição, Cabido, reitores e colegiais
de S. Pedro, S. Paulo, Militares e outras pessoas. De tarde, ordenou que se
tomassem as Becas no dia seguinte.
24 (quinta-feira). Pela manhã tomaram as Becas os nomeados dos Colégios de
S. Pedro, S. Paulo e Militares os quais foram, de seguida, agradecer ao
Marquês o provimento. Pelas oito horas da noite chegou do Porto João
d'Almada e Mello e sua mulher, D. Ana de Lencastre, que visitaram o Marquês
e se foram depois hospedar na casa do Cónego
Fr. António José Roiz, secretário que foi de Francisco de Almada, em Roma.
25 (sexta-feira). De manhã falou o Marquês a várias pessoas e, de tarde, aos
Lentes de Medicina.
26 (sábado). Pelas duas horas da tarde tocou o sino grande da Universidade,
«ajuntou-se» o Corpo Académico e organizou-se um cortejo da maneira
seguinte:
À frente, os archeiros da Universidade com suas fardas e alabardas novas,
seguindo-se urna multidão de estudantes; «logo depois, tocando urna
excelente marcha 2 oboés, 2 trompas e I fagote; seguindo-se os contínuos e
alguns outros Officiais da Universidade e, junto a elles, as Faculdades: em 1º
lugar a de Filosofia, em 2º Medicina, depois a de Leis, Cânones e Theologia, e
os Doutores com as suas respectivas insígnias, em duas allas, nas suas res-
Carlos Jaca
31
pectivas antiguidades; fechava este lustroso acompanhamento o Reitor da
Universidade, precedido dos Bedéis, Secretário e Conservador. A Cavallaria
d'Almeyda estava postada no Largo da Universidade, e a Infantaria tinha feito
duas allas desde a escada da Salla athe à porta férrea. Por meio destas se
encaminhou o Préstito, passando pelas ruas Larga e de S. João que estavam
arcadas, cobertas de espadana e com as janellas armadas; no Largo de S.
João se afastarão os Estudantes para os lados e, por meio delles, continuarão
as Faculdades as suas marchas athe ao pé da escada do Paço; e voltando à
alIa direita pelo lado direito e a esquerda pelo esquerdo continuaram as suas
marchas, athe que chegou o Reitor à escada, o qual subindo acompanhado
dos Bedéis, Secretário e Conservador e de alguns Doutores Theologos
entrando na 1ª Salla, apareceu o Sr. Marquez vestido de Corte e descendo as
escadas com o Reitor á direita e Fr. Pedro Thomaz Sanches, Lente de Prima
jubilado, á esquerda, no fundo dellas se cobrio, o que também imediatamente
fizeram as Faculdades...
Depois da Infantaria seguia-se a Guarda do Sr. Marquez e nesta ordem se
encaminhou o Préstito á Universidade. Á porta se separaram os Estudantes
para os lados, de forma que na Salla somente entraram os Doutores e o Sr.
Marquez...»
A Sala dos Capelos estava magnificamente decorada, forrada de damasco
carmesim, com sanefas de veludo, tudo
guarnecido de galões e franjas de ouro.
Numa cadeira de braços, debaixo de um soberbo
docel de veludo, sentou-se o Marquês; o Reitor no
Doutoral, depois o Conde de São Payo e os
Doutores nos respectivos lugares e, por fim,
entraram os estudantes que tinham ficado fora da
Sala.
Após o Secretário ter lido a Carta Régia de 28 de
Agosto o Reitor recitou uma Oração, na qual, em
nome da Universidade, agradecia a sua Majestade os benefícios que «por mão
do Sr. Marquez» lhe havia concedido.
Concluída a Oração o cortejo dirigiu-se à Capela da Universidade, à porta da
qual o «Visitador» foi recebido «debaixo do Pallio», cantando-se em acção de
Carlos Jaca
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graças o «Laudate Dominum» e o «Te Deum».
A Marquesa assistiu da tribuna às cerimónias.
27 (domingo). Publicou-se o despacho nº 3, indo os despachados agradecer,
de imediato, os seus provimentos.
Visitou o Reitor da Universidade e foi a Sta Clara, à Quinta da Várzea e à Fonte
de Água das Mayas, após o que se recolheu ao Paço onde houve grande
afluência.
28 (segunda-feira). Publicou-se o decreto que jubilava todos os lentes de
Medicina, tendo o mesmo já acontecido com os de Teologia, Cânones e Leis.
De tarde, foi à Capela da Universidade assistir às vésperas de S. Miguel, onde
esteve presente toda a Universidade e nobreza. Acompanhado da Marquesa
foi ao Seminário, esteve no Convento de Celas e no de S. José dos Marianos.
29 (terça-feira). Pela manhã assistiu o Sr. Marquês à Festa de S Miguel, tendo
pregado D. António Callado, Lente de História Eclesiástica. De tarde, em
solene cortejo, foi à Sala dos Capelos onde, depois que o Marquês,
autoridades académicas e outras personalidades ocuparam os respectivos
lugares, o Secretário da Universidade abriu uma bolsa de veludo carmesim e
«della tirou o novo Estatuto escrito de letra de mão e encadernado em veludo,
com chapa de prata; Leo-se o Decreto que se acha inserto no princípio do 1º
tomo dos Estudos da Universidade; e acabado de ler disse ao Secretário que o
Sr. Marquez era servido, e mandava que o novo Estatuto estivesse patente na
Sala do Prelado e que no dia seguinte se recolhesse ao
Cartório, e que o Reitor da Universidade distribuiria os
exemplares impressos depois de serem por ele
asignados».
Em acção de graças assistiu, na Capela da
Universidade, ao «Te Deum Laudamus» e, depois,
recolheu-se em préstito ao Paço. À noite, o Reitor
distribuiu os exemplares do novo Estatuto por todos os
Lentes e colegiais dos 3 Colégios, e houve repiques e
luminárias.
Carlos Jaca
33
30 (quarta-feira). Os novos Lentes prestaram juramento no Paço em pre-
sença do Marquês e, já na Sala dos Capelos, tomaram posse das suas Ca-
deiras agradecendo «cada hum em breve período de Mercê, que S. Mag.e lhe
fazia, por mão do Sr. Marquez». Da tribuna, assistiram a Marquesa e o Reitor.
Outubro, 1 (quinta-feira). Após ter assistido à missa em honra do Espírito
Santo na Capela da Universidade, os novos Lentes prestaram na presença do
Marquês o costumado juramento.
2 (sexta-feira). Fez anos a Sra. Marquesa, havendo grande afluência ao Pa-
ço. De tarde, esteve presente à Oração recitada por Carlos Maria Matos, Lente
de Teologia, na abertura da sua Faculdade.
3 (sábado). Foi em carruagem à Universidade, visitando a Biblioteca e
«assistindo às medidas que os Engenheiros nessa tarde tomarão do Pateo».
4 (domingo). Acompanhado da Marquesa assistiu, em tribuna, à festa que
em acção de graças fizeram os brasileiros na Igreja de S. João, tendo pregado
D. Thomaz da Encarnação e Frei Alexandre de Souza, Promotor do Bispado.
Foi a S. Francisco da Ponte e a Sto António dos Olivais.
5 (segunda-feira). Foi à Sala dos Capelos onde Manuel José Alves, Lente de
Cânones, proferiu a Oração na abertura da Faculdade.
6 (terça-feira). Publicaram-se os despachos de Medicina e assistiu à Oração
pronunciada por Thomaz Pedro da Rocha, Lente da 1ª Cadeira de Leis, na
abertura da respectiva Faculdade.
7 (quarta-feira). Visitou o Colégio das Artes e o Castelo; foi à Cerca de Sta
Cruz «donde passou à Regaça em companhia do Dr. Vandelli, a ver que sitio
seja mais próprio para o Jardim Botânico».
8 (quinta-feira). Na Sé, foi recebido pelo Cabido debaixo do Pálio; depois de
Carlos Jaca
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ter feito oração visitou o Claustro, Casa do Cabido, Cartório e Sacristia.
9 (sexta-feira). Em cortejo, veio o Sr. Marquês à Universidade precedido dos
Lentes nomeados de Medicina, José Francisco Leal, Simão Good e António
José Pereira, com capelos amarelos; logo adiante, Miguel Franzini, Padre José
Monteiro da Rocha e Miguel António Ciera, Lentes de Matemática, com capelos
azuis forrados de branco e uma esfera no lado; depois, António Soares e
Domingos Vandelli, Lentes de Filosofia, com capelos azuis; as borlas levadas
«em 3 salvas, por 3 Estudantes com luvas».
Na Sala dos Capelos os três Lentes de Medicina ajoelharam-se e leram o
juramento. Então, foram doutorados pelo Marquês que lhes pôs as borlas na
cabeça; depois dos abraços da praxe foram sentar-se no Doutoral da
respectiva Faculdade. Os de Matemática tiveram o mesmo cerimonial sen-
tando-se abaixo dos Teólogos, e os Filósofos no Doutoral dos Mestres em
Artes. Após o juramento dos Lentes tomaram posse das Cadeiras, «a que se
seguirão os costumados acompanhamentos».
Nesta mesma manhã, avisara os reitores dos 3 Colégios para que elegessem
um Colegial que não fosse Lente, ou substituto, para Deputado da Mesa da
Fazenda da Universidade.
O reitor do Colégio de S. Pedro elegeu José Barroso Pereira, o de S. Paulo
Aragão Trigoso, e o dos Militares Ricardo Raimundo Nogueira. À tarde esteve
presente na abertura da Faculdade de Medicina, tendo proferido a Oração o
Lente António José Pereira.
10 (sábado). Foi o Marquês recebido pelo Reitor à porta da Capela da
Universidade, assistindo «debaixo do Docel às vésperas da Festa determinada
no Decreto nº 7».
11 (domingo). Na Capela da Universidade assistiu à missa cantada em que
pregou Frei Joaquim de Santa Ana, Lente substituído das 3 Cadeiras
Dogmáticas; no fim da missa cantou-se o «Te Deum», tendo a Sra. Marquesa
assistido no Coro. De tarde, foi à Quinta de S. Martinho.
12 (segunda-feira). Houve cerimónia idêntica à do dia 9.
Carlos Jaca
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Incorporaram-se na Faculdade de Leis o Doutor José Joaquim Vieira Go-
dinho, Lente de Direito Pátrio, e em Medicina os Doutores Vandelli e Miguel
Franzini; seguidamente, o Marquês doutorou em Medicina, Luís Chici. De
tarde, deslocou-se em sege à Universidade assistindo à Oração do Doutor
José Monteiro da Rocha, Lente de Matemática, na abertura da sua Faculdade.
13 (terça-feira). Assistiu à Oração proferida pelo Doutor António Soares,
Lente de Filosofia.
Recolhido ao Paço, prestaram juramento na sua presença os 3 deputados da
Mesa da Fazenda, o tesoureiro e o escrivão, ficando estes dois últimos com
direito a voto na referida Mesa, «para o que se lavraram nos Livros os termos
costumados».
14 (quarta-feira). Por ordem do Sr. Marquês foi o Secretário buscar os Esta-
tutos velhos da Universidade a todos os Conventos e Colégios da cidade,
tendo recolhido muitos exemplares.
Foi à Quinta de Vila Franca e, à noite, foi afixado o Edital nº 8.
15 (Quinta-feira). Na presença do Reitor tomaram as Becas os porcionistas
do Colégio de S. Paulo. – Edital nº 9. À tarde, acompanhado da Marquesa foi
ao Loreto.
16 (sexta-feira). Marquês e Marquesa foram a S. Jorge, indo depois à Várzea
visitar o Embaixador e a Sra. Embaixatriz.
17 (sábado). Reuniram-se os Doutores a cavalo com as suas insígnias e, no
Largo de S.ta Cruz, formou-se o cortejo do Doutoramento: Archeiros a pé,
músicos a cavalo, seguindo-se as Faculdades de Filosofia, Matemática, Medici-
na, Leis, Cânones e, por fim, Teologia; os Doutores em duas alas nas res-
pectivas antiguidades. O pajem, a cavalo, com a borla numa salva e, junto aos
bedéis, o Doutorando José Pereira Monteiro, em «hum cavalo ricamente
ajaezado»; ladeavam o Doutorando o Reitor e o Lente da 1ª Cadeira Analítica
de Cânones, sendo o acompanhamento finalizado pelo Conservador.
Chegados ao Largo da Universidade os Doutores e o Reitor foram buscar o
Carlos Jaca
36
Sr. Marquês que assistiu à missa na Capela. Finda a missa dirigiu-se,
precedido de luzido acompanhamento, para a Sala dos Capelos sentando-se
os Doutores nos respectivos lugares e o Conde de São Payo à direita do
Doutorando, por ser seu padrinho neste acto. Pronunciou o Doutorando uma
brevíssima Oração pedindo o grau. Discursaram em seu louvor os Doutores
canonistas Miguel Martins de Araújo e Miguel Pais de Aragão Trigoso, Colegial
de S. Paulo.
Terminado isto, subiu o Doutorando ao pé da cadeira do Marquês e leu o
juramento; depois, «chegou ao pé do Lente da 1ª Cadeira Analytica de
Cânones, o qual em huma Oração lhe deu o grau de Doutor, ornando-o com as
insígnias». Seguiram-se os abraços da praxe e «o novo Doutor foi neste dia
jantar ao Paço com o Sr. Marquês, por o haver convidado».
De tarde, foi o Marquês à Quinta da Geria e afixou-se o Edital nº 10.
18 (domingo). Tomou a Beca de Porcionista no Colégio de S. Pedro D.
Fernando de Portugal, filho do Marquês de Valença, a que assistiu o Reitor da
Universidade. De tarde, a Sr.ª Marquesa assistiu numa tribuna acompanhada
da Sr.a Embaixatriz e da mulher de João d'Almada, à última parte do Triduo que
os «filhos de Lx.» fizeram a N.a S.a da Esperança em acção de graças pela no-
va fundação da Universidade.
De manhã, houve Pontifical e pregou ao Evangelho o Doutor Frei Diogo Jardim,
monge de S. Jerónimo; de tarde veio o Bispo assistir ao Sermão que pregou o
Doutor Frei José Bernardo Pimentel, da Ordem de S. Domingos.
Seguiu-se urna procissão que veio «Igreja de S.ta Clara do Convento das
Religiosas de S. Franc.co trazendo o Bispo o Sacramento. O pálio foi levado
pelos Porcionistas e Colegiais lisboetas, recolhendo-se depois a procissão à
mesma Igreja onde o Sr. Marquês mandou pedir o Sermão do Evangelho, que
foi pregado por Frei Diogo Jardim.
19 (segunda-feira). Foi ao Colégio de S. Pedro visitar o seu filho que «se
achava molestado», indo depois a S. Paulo «dar os pêsames ao Porcionista
Luiz Gonçalves da Câmara, f.o do Almotacé Mor do Reyno, por lhe haver
falecido repentinam.te sua Mãe, a Sr.a D. Leonor Josefa d’Almeida».
Carlos Jaca
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20 (terça-feira). De tarde foi o Sr. Marquês a casa do Reitor, «de onde se
recolheu ao Paço».
21 (quarta-feira). Em solene procissão que incorporava as Irmandades do
Santíssimo, Clero, Comunidades, Câmara e todo o Cabido paramentado,
procedeu-se à transladação do Santíssimo Sacramento para a nova Sé. O
Reitor da Universidade levava o Santíssimo debaixo do Pálio, pegando nas
varas os Condes da Ponte e São Payo, João de Almada e seu filho, o Morgado
de Oliveira e o Porteiro-Mór. Acompanhava a procissão «toda a Nobreza,
misturada com o corpo da Universidade q. p.a isto tinha sido avizado pelo R.or»
e, ainda, parte da Infantaria.
22 (quinta-feira). O Sr. Marquês assistiu, em tribuna, à missa cantada e
celebrada pelo Reitor da Universidade (governador do Bispado), tendo pregado
Frei Joaquim de Santa Ana.
De tarde, na Sala dos Capelos «recitou a fala n.o 13», a que se seguiu a leitura
do Decreto n.o 14 feita pelo Secretário. Encerrou a cerimónia o Reitor que, em
eloquente Oração, «agradeceo em nome da Universidade os benefícios q. esta
delle tinha recebido e lhe protestou a justa saudade q. a todos causava a sua
auzencia».
23 (sexta-feira). Em presença do Marquês, prestou juramento, na Capela
particular do Paço, o «Reitor Reformador», de que foram testemunhas os
Condes da Ponte e São Payo.
24 (sábado). Manhã cedo, recebeu na sua sala a Inquisição, Cabido, Uni-
versidade, Câmara e toda a nobreza.
Cerca das nove horas iniciava a sua jornada acompanhado da Sra. Marquesa e
do corpo acima referido, sendo recebido à passagem pelo Largo de S.ta Clara
com uma salva de 3 descargas.
Pouco depois da Ermida da Esperança mandou agradecer «o obséquio q. lhe
fazião e q. se retirassem, o q. com effeito todos fizerão» exceptuando o Reitor
que foi até Condeixa.
Pelas onze horas partiu João d'Almada e a Sra. D. Ana Joaquina, sendo
Carlos Jaca
38
acompanhados «athe fora da Cid.e pela Nobreza q. aqui se achava».
Oposição à reestruturação universitária.
Cinco anos após a entrega e publicação dos Estatutos considerava-se já
enorme a diferença entre o tempo anterior à Reforma e aquele que lhe seguiu,
não hesitando o Reitor, D. Francisco de Lemos, o grande obreiro da mudança,
em afirmar, e com toda a justiça, ter sido uma alteração radical. Os próprios
centros culturais europeus assim o elogiaram e confirmaram
De facto, a reforma pombalina da Universidade é uma obra de grande
mérito na sua estruturação e os Estatutos que a enformam colocam Portugal
numa posição relevante na Europa do seu tempo.
O labor dos seus organizadores nada teve de fácil, porquanto, havia
necessidade de se afastarem dos esquemas programáticos e metodológicos
tradicionais, o que correspondia a um esforço intelectual que é justo enaltecer.
Acrescente-se que a reforma foi, desde início, elaborada sem bases anteriores,
pois nesta matéria ”não há coisa alguma” [no passado] “que se possa
aproveitar para objecto de reforma”, consoante se lê no documento já citado de
28 de Agosto de 1771.
Trata-se, inegavelmente, de um esforço levado a cabo a fim de
«transformar radicalmente as estruturas antiquadas, ineficazes, anacrónicas,
do nosso ensino universitário “totalmente incapaz de responderem às
solicitações de um época em que as técnicas começavam a intervir
deliberadamente no contexto social e a investigação científica a organizar-se
como tarefa indispensável». (36)
Porém, julgo não causar qualquer espécie de surpresa, pelo menos a
quem estiver por dentro do processo, o facto de logo que as circunstâncias
favoráveis o permitissem, a oposição obstacularizaria e impediria no que fosse
possível a implantação da reforma pombalina dos estudos. Assim foi, como era
de esperar.
O momento chave, e esperado, foi o falecimento de D. José em 24 de
Fevereiro de 1777 e a consequente morte política do ministro Carvalho e Melo.
No entanto, cerca de cinco anos antes, mas quando um novo espírito já se
instalara em Coimbra, colocando frente a frente duas mentalidades
antagónicas, Teófilo Braga informa-nos que «Quando o Marquês de Pombal
Carlos Jaca
39
reformou a Universidade de Coimbra em 1772, com a cooperação activa,
inflexível e inteligente do reitor Francisco de Lemos, levantou-se entretanto,
uma surda oposição entre sectários do escolasticismo medieval, que com todo
o zelo religioso se mostrava hostil às “doutrinas novas, peregrinas e perigosas”,
que se ensinavam na Universidade», criticando métodos pedagógicos,
compêndios adoptados, teses defendidas, etc.
Porém, foi de facto a morte de D. José que constituiu um rude golpe em
todo o processo da reforma, uma vez que com a queda do poderoso ministro
passou a faltar o apoio indispensável à reestruturação universitária, ao mesmo
tempo que surgia uma forte reacção contra a sua acção governativa,
denegrindo e tentando derrubar uma das mais brilhantes obras do estadista.
Efectivamente, a oposição erguia-se contra a reforma pombalina dos
estudos: ódios e invejas que estavam latentes vieram ao de cima: muitos
acusavam os estudantes dos novos estudos de pensarem livremente em
pontos de religião, contribuindo em larga medida «para espalhar este rumor
falso, as declamações vagas que têm feito nos púlpitos alguns pregadores
incautos e pouco advertidos».
Aqui, o Reitor D. Francisco de Lemos, saiu a “terreiro”, ironizando que,
remetidos a um silêncio calculado, não isento de alguma covardia, só agora
apareçam a «opor-se à torrente de todas as novidades que, segundo dizem, se
espalham e ensinam na Universidade», não deixando de atacar com
veemência os detractores da Reforma, os quais tinham por hereges todos
aqueles que tentaram renovar a face cultural do país e da Escola transformada.
D. Francisco de Lemos defendia a liberdade de docência contra o autoritarismo
de magistério, acrescentando não haver motivos para receios, uma vez que as
doutrinas não são “novas, peregrinas e perigosas”.
A “Relação Geral do Estado da Universidade”. D. Francisco de Lemos
justifica a necessidade e o espírito da Reforma.
Como tivessem aumentado e endurecido as críticas acerca da
renovação dos estudos, havendo muitos que ansiavam voltar ao passado,
considerando condenáveis as novas doutrinas que agora se ensinavam na
Universidade baseadas em obras adoptadas no estrangeiro da autoria de
mestres consagrados, D. Francisco de Lemos decidiu-se a escrever a “Relação
Carlos Jaca
40
Geral do Estado da Universidade”, com o objectivo de defender o plano
executado e em desenvolvimento.
A “Relação Geral”, que é uma apologia notável da renovação dos
estudos universitários, resumia a acção de D.
Francisco de Lemos durante os cinco anos do seu
primeiro mandato como Reitor (1772-1777), sendo
o seu texto «minucioso, cuidado nos pormenores
e, portanto, expressivo».
O manuscrito foi encontrado há pouco mais
de um século e publicado por Teófilo Braga em
1894, sendo por sua iniciativa o original oferecido
ao Arquivo da Universidade de Coimbra, onde se
encontra. Este historiador e literato do nosso
século XIX, mas que foi um percursor, caracteriza
do modo seguinte a obra de D. Francisco de
Lemos: «Na “Relação”, em uma prosa seca com subdivisões segundo o estilo
escolástico, com uma ênfase autoritária no género dos derramados períodos
das leis pombalinas, D. Francisco de Lemos mostra-se muito superior aos
autores do “Compêndio Histórico” ao caracterizar o estado decadente e os
vícios pedagógicos da Universidade; narra o que se fez, o que não se pode
fazer, e o que não surtiu efeito depois da reforma. Por vezes as suas críticas
negativistas encontram-se com os pontos de vista do bispo Cenáculo e do
afamado Doutor António Nunes Ribeiro Sanches, que cooperaram nas
reformas pedagógicas do grande ministro». (37)
D. Francisco de Lemos defende a todo o transe e utilizando toda a
argumentação possível a necessidade da reforma em curso, tanto mais que lá
por fora, já se tinham verificado importantes reformas universitárias de acordo
com o espírito da época, caracterizada por profundo empenhamento no
experimentalismo e na renovação das ciências humanas.
No juízo que faz acerca da Reforma da Universidade, e embora
reconhecendo os progressos conseguidos, não deixa de apontar críticas a
certos atrasos ainda existentes e de indicar as vias que ajudassem a
ultrapassar os obstáculos.
Em particular, o que mais o preocupava era o facto de a frequência dos
Carlos Jaca
41
alunos, nas diversas Faculdades, não tivesse correspondido às expectativas
dos responsáveis da Reforma, muito provavelmente devido às exigências
determinadas pelos Estatutos terem criado, como era de calcular, problemas e
dúvidas a muitos que estavam habituados a um ensino rotineiro e de pouca
exigência.
Obviamente, que o ilustre Reitor-Reformador não deixou de justificar o
que os Estatutos estipulavam e, ao mesmo tempo indicar os meios para
resolver a situação. Em sua opinião seria necessário criar uma nova
mentalidade em todo o país, que levasse as pessoas a compreender que sem
um ensino universitário modelar não se podiam modificar as estruturas da
Nação.
Assim, considera que «para exercer certos cargos e profissões se devia
exigir formação nesta ou naquela Faculdade consoante os casos» tendo como
objectivo dotar o país de pessoas bem instruídas e com sólidos conhecimentos
no ramo de saber respectivo. Por outro lado, criarem-se “partidos” e prémios
para os estudantes a fim de diminuir as suas dificuldades económica.
Sublinhe-se que na sua “Relação Geral”, D. Francisco de Lemos, ao
tratar de cada uma das Faculdades, põe sempre a descoberto os “vícios” de
que padecia o ensino, bem como as suas carências, indicando os meios para
os erradicar ou resolver, referindo-se, nomeadamente, aos anos dos cursos, às
cadeiras, professores e livros adoptados, ao aproveitamento dos alunos, às
dificuldades encontradas e aos caminhos a seguir para aumentar o número de
alunos e à forma como poderia rentabilizar o saber transmitido durante os anos
de frequência na Universidade. De facto, não deixam de ser minuciosas, e
oportunas as notas e comentários com que o grande pilar da Reforma tenta
esclarecer e convencer que a remodelação operada tinha sido a mais
adequada e conveniente.
Vejamos, agora, o que nos diz D. Francisco de Lemos, através da sua
“Relação Geral”, acerca dos costumes e doutrina dos estudantes. Diga-se,
desde já, que se trata de uma notável visão dos factos, trabalho da maior
importância, demonstrando que a Universidade muito beneficiou com a
Reforma de 1772.
Começa por dizer que as Universidades são Escolas não só de Letras
Carlos Jaca
42
mas também de Virtudes, «por isso não deve haver nelas menor cuidado em
ilustrar o espírito dos estudantes com a luz das ciências, do que em formar os
seus corações com a prática das Virtudes. Faltar a qualquer destes objectos
seria a ruína da educação nacional, a qual deve merecer a principal atenção e
vigilância dos reis, visto ser o princípio e origem da felicidade pública da
monarquia». (38)
De seguida, lamenta, com algum pesar, que o magistério da Virtude nem
sempre esteve presente nas Universidades, como era conveniente,
apresentando um quadro nada abonatório da história dos costumes dos
escolares: parcialidades, fracções, ódios, emulações, intrigas, querelas, feridas,
homicídios, adultérios, estupros e outros, «muitos vícios se cometiam e
contraíam no tempo dos Cursos Literários».
Este “statu quo”, segundo D. Francisco de Lemos, era a resultante da
Constituição das Universidades e dos próprios Mestres: era difícil manter a
disciplina em tão grande número de estudantes, divididos entre si pela
diversidade das nações, das línguas, das inclinações e dos costumes; também
os próprios Mestres estavam divididos entre si pela diversidade das suas
opiniões e pela oposição que faziam aqueles que tinham maior reputação e
mais ouvintes, sendo que estas mesmas divisões e emulações passavam aos
discípulos, e então eram causa de mil desordens; os mesmos Mestres não se
aplicavam senão em fazer lições e ditados, sem se preocupar em formar os
costumes da mocidade e em inspirar-lhe sentimentos de religião e probidade.
Tais hábitos constituíram um dos mais perniciosos efeitos do magistério
escolástico, isto é, não se preocupavam com os ensinamentos sólidos e úteis,
ficando-se em questões vãs e supérfluas que não serviam para formar o
espírito e o coração da mocidade, dando azo a que «a mesma mocidade longe
de aproveitar nas Universidades contraía vícios enormes e a faziam inútil para
os empregos e Ministérios públicos.
Entendendo ter dito o suficiente sobre o assunto, resumia as suas
considerações do seguinte modo: uma vez que o ensino público se tinha
reduzido a uma mera formalidade e que os estudantes não frequentavam as
aulas, nem a isso eram obrigados; dado que a vida académica se passava no
ócio e o Ministério da palavra estava em profundo silêncio e não havia
disciplina para inspirar e fortificar nos ânimos a probidade interna, atendendo a
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tudo isso, como se podia esperar que os estudantes saíssem da Universidade
cheios de sentimentos de Religião, de Justiça, de Ordem e de zelo pelo bem
público? E acrescenta: todos estes grandes defeitos foram reconhecidos e se
procuraram emendar na “Nova Reformação”.
A este propósito, e entre outras fontes que poderia citar, refere os
autores da “Gazeta Eclesiástica” de França que enaltecem o elevado mérito
dos Estatutos: «Vêem-se ao mesmo tempo nestes Estatutos homens cheios de
probidade, de Religião, e de Amor pelo Bem Público. Se eles trabalham a
formar sábios em todos os géneros, e a favorecer os progressos das Ciências
Divinas e Humanas, pelos meios os mais capazes, de conseguirem, tudo é
dirigido ao bem geral da Sociedade, e ao fim que se deve propor em todas as
Ciências, que é de conduzir os homens à virtude, a única e verdadeira
felicidade. Nenhuma coisa é mais própria do que estes Estatutos para
convencer a toda a pessoa racionável, que a Religião bem longe de ser inimiga
do que as Ciências têm de verdadeiro e de sólido, é só capaz de fazer
conhecer o preço delas, e de tirar delas vantagens…». (39)
D. Francisco de Lemos não deixa de insistir que a virtude está
solidamente ligada às ciências e, se estas florescem, em procura da verdade,
então, neste caso, também a virtude cresce e os costumes são outros,
sublinhando que os professores têm aqui um papel importante: enquanto os
escolásticos se envolviam em disputas e especulações, os de agora
preocupam-se com a verdade e o ensino da religião, da virtude e da probidade,
sendo o exemplo fundamental para que a mocidade se oriente pelo caminho da
virtude.
Assim, também, a antiga fórmula de juramento foi substituída por outra,
em que os estudantes, quando se matriculavam de novo, juravam observar os
Estatutos, obedecer aos seus superiores, ter reverência aos Mestres, tratarem-
se uns aos outros com toda a caridade e civilidade e viverem com bom
comportamento.
O certo é que na Universidade passou a haver mais aplicação, mais
tranquilidade e mais ordem, o que não será de todo estranho, uma vez que a
disciplina escolar e o respeito constituíam um objectivo importante nos
princípios do Reitor-Reformador.
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Em jeito de conclusão, pode dizer-se que a “Relação Geral do Estado da
Universidade” corresponde a uma tentativa notável de justificar as medidas
adoptadas pela Reforma de 1772. Contudo, não podia deixar de apresentar
algumas lacunas, dadas as circunstâncias em que tudo ocorreu,
nomeadamente o difícil período que a Universidade viveu a seguir à morte de
D. José e ao afastamento do Marquês, durante o qual surgiram fortes reacções
provenientes de vários quadrantes.
Porém, apesar de todas as dificuldades surgidas e dos enormes
obstáculos a superar, a Reforma prosseguiu o seu trajecto cujo êxito se deve
fundamentalmente ao Reitor. Efectivamente, a presença de D. Francisco de
Lemos à frente dos destinos da Universidade desde 1770 até 1821, apenas
com breves interrupções, apoiado por personalidades de grande envergadura,
como José Monteiro da Rocha e outros, foi, indiscutivelmente, o poderoso
suporte, o homem “providencial” na afirmação e triunfo da Reforma.
Nota final: As comemorações do 1º centenário da Reforma Pombalina, 1872,
demonstraram plenamente que os trabalhos iniciados um século antes
continuaram a merecer a aprovação do corpo universitário.
Entre a série de acontecimentos levados a cabo, saliente-se a
publicação de vária obras que fazem a história das Faculdades, com excepção
das Jurídicas.
Para além das comemorações do 2º centenário da Reforma, 1972, em
que foram editadas várias publicações, e levados a cabo outros eventos, deve
salientar-se, quando do 2º centenário da morte do Marquês de Pombal, 1982, a
promoção, a nível nacional, de iniciativas que decorreram entre Dezembro de
1981 e Dezembro de 1982. A Comissão Organizadora das Comemorações
tinha como principal objectivo, levar até aos mais vastos sectores da população
um conhecimento alargado da época pombalina e do seu significado na
História de Portugal.
As comemorações foram encerradas com o Colóquio Internacional, “Pombal
Revisitado”, realizado em 2 e 3 de Dezembro de 1982, onde participaram e
deram colaboração efectiva especialistas e estudiosos portugueses e
estrangeiros, espanhóis, franceses ,italianos, norte-americanos e brasileiros.
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Notas Bibliográficas
(1) Isabel Nobre Vargues – «A Ode a Filomeno e a Reforma da Universidade de 1772». Revista de História das
Ideias, Tomo II, 1982 – 1983, pág. 255.
(2) António Leite – «Pombal e o Ensino Secundário», in «Brotéria», Vol. 114, nº 5-6, Maio – Junho – 1982, pág.
590.
(3) Idem, pág. 599.
(4) António Alberto Banha de Andrade – «A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários» (1759 – 1771), 1º
vol., pág. 82. Coimbra, 1981.
(5) John Smith (secretário privado do marechal Saldanha) – «Memoirs of the Marquis of Pombal». Vol. I, págs.
308 – 309: «O novo método para as classes de Latim e Grego foi aqui aprovado; e o Presidente do Conselho
Palatino expressou o desejo que tinha de ver o mesmo método aplicado no Império». London, 1843.
(6) Carta Régia de 23 de Dezembro de 1770, que cria a Junta de Providencia Literária, cit. Por Mário Alberto
Nunes da Costa em “Documentos para a História da Universidade de Coimbra» (1750 – 1772), Vol II, págs. 236 –
237. Coimbra, 1961.
(7) Joaquim Veríssimo Serrão – «História de Portugal», Vol. VI, pág. 266.
(8) Mário Brandão e M. Lopes de Almeida – «A Universidade de Coimbra» – Esboço da sua história. Por ordem
da Universidade, 1937, Parte II. Pág. 72.
(9) Hernâni Cidade - «Lições de Cultura e Literatura Portuguesas», 2º vol., págs. 190 – 191. Coimbra, 1959.
(10) António Ferrão – «A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra», págs., 5 – 6. Imprensa da
Universidade. Coimbra, 1926.
(11) «Questiones Contemporaines», pág. 81, cit. Por Teófilo Braga in «História da Universidade de Coimbra»,
pág. 141.
(12) António Sérgio – Obras Completas, «Ensaios», Tomo II, págs. 29 – 30.
(13) Mário Alberto Nunes da Costa – «Documentos para a História da Universidade de Coimbra» (1750 – 1752).
Vol. II, pág. 255.
(14) Op. cit. em (7), pág. 194.
(15) Bernardino António Serra de Mirabeau – «Memória Histórica e Comemorativa da Faculdade de Medicina».
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872.
(16) Op. cit. em (9), pág. 194.
(17) Teófilo Braga – «D. Francisco de Lemos e a Reforma da Universidade de Coimbra», pág. VIII. Lisboa, 1894.
(18) – Luís de Albuquerque – «O Reino da Estupidez e a Reforma Pombalina». Textos Vértice, pág. 21. Atlântida,
Coimbra, 1975.
(19) Jorge Borges de Macedo «O Marquês de Pombal», pág. 29. Biblioteca Nacional – Série Pombalina. Lisboa,
1982.
(20) D. Francisco de Lemos – «Relação geral do Estado da Universidade» (1777), pág. 12. Coimbra, 1980
(21) Henrique Schaefer – «História de Portugal». Vol. V, pág. 193. Porto, 1899.
(22) Op. cit. em (9), pág. 203.
(23) Miller Guerra – «A Reforma Pombalina dos Estudos Médicos», in «Pombal Revisitado», Vol. I, pág. 191.
(24) «Ensaio Histórico sobre a Origem e Programa das Matemáticas em Portugal», pág. 67, cit. por Henrique
Schaefer in «História de Portugal», pág. 199.
(25) Joaquim Veríssimo Serrão – «O Marquês de Pombal, o Homem, o Diplomata e o Estadista», pág. 152.
Lisboa, 1982.
(26) «Pasta de Manuscritos nº 895 46
» –
Carta Régia dirigida ao Marquês de Pombal sobre os Estatutos da
Universidade de Coimbra, 28 de Agosto de 1772; 3 fls.. Arquivo Distrital de Braga.
(27) Idem.
(28) Idem.
(29) Teófilo Braga - «História da Universidade de Coimbra», Tomo II, pág.427. Lisboa, por ordem e na tipografia
da Academia Real das Ciências, 1898.
(30) Pedro Calmon – «A Reforma da Universidade e os Dois Brasileiros que a planejaram». «Revista de História
das Ideias», Vol. IV, Tomo II, págs. 95-96.
(31) Joaquim Ferreira Gomes – «Dez Estudos Pedagógicos», págs. 229-230. Coimbra, 1977.
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(32) Francisco de Castro Freire – «Memória Histórica da Faculdade de Matemática», pág. 17. Coimbra, 1872.
(33) José Silvestre Ribeiro – «História dos Estabelecimentos Científicos, Literários e Artísticos de Portugal nos
Sucessivos Reinados da Monarquia». Tomo I, pág.379.
Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências, 1872.
(34) Op cit. em (8), pág. 97.
(35) «Pasta de Manuscritos nº 895 42»
– Visita do Marquês de Pombal à cidade de Coimbra, e respectivo Diário
desde 22 de Setembro até 24 de Outubro, dia em que saiu da Cidade. Sé. XVIII, 14 fls. inumeradas. Arquivo
Distrital de Braga.
(36) Carvalho, Rómulo de – “História do Ensino em Portugal”, pág. 466. Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
(37) Rodrigues, Manuel Augusto – “ A Universidade de Coimbra”. Figuras e factos da sua história. Vol. I, pág. 553.
Campo das Letras, 2007.
(38) Op. cit. em (20), pág. 198.
(39) Idem, pág. 201-202.