A Reanálise Fonético-fonológica Na Gramaticalização de [Disk] - Casseb-Galvão

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A REANÁLISE FONÉTICO-FONOLÓGICA NA GRAMATICALIZAÇÃO DE [DISK i ] 1 VÂNIA CRISTINA CASSEB-GALVÃO* RESUMO Este texto enfoca a reanálise fonético-fonológica no processo de gramati- calização de [disk i ] no português brasileiro. Reestruturação de fronteiras, mudança no contorno entoacional e na realização segmental da forma fonte são alguns fenômenos verificados e que atestam o desenvolvimento de um predicado matriz de uma oração encaixada em um operador evidencial. A evidencialidade é o domínio das noções relativas à fonte do conhecimento enunciado na proposição. PALAVRAS-CHAVE: reanálise fonético-fonológica, gramaticalização, [disk i ], evi- dencialidade. INTRODUÇÃO Apresento considerações relativas à reanálise fonético-fonoló- gica, com consequências sintáticas e semânticas, observada no processo de gramaticalização da predicação matriz (ele) diz que em um operador evidencial [disk i ] no português contemporâneo do Brasil, conforme se observa em (1) e (2): (1) [...] o deputado federal José Santana de Vasconcelos (PFL) prega uma aliança em torno do governador. Ele diz que o bom relacionamento entre o PFL, o PSDB e o PTB mineiros deve ser estendido ao plano federal. (EM–LJ) (2) L1 [...] e assim:: morreu um colosso de gente aqui em SP nessa ocasião que foi... [...]. * Professora da Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] Recebido em 25 de setembro de 2010 Aceito em 18 de outubro de 2010 DOI 10.5216/sig.v22i2.13618

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Excelente estudo sobre uma questão corrente do português brasileiro contemporâneo

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  • A reAnlise fontico-fonolgicA nA grAmAticAlizAo de [diski]1

    VniA cristinA cAsseb-gAlVo*

    resumo

    Este texto enfoca a reanlise fontico-fonolgica no processo de gramati-calizao de [diski] no portugus brasileiro. Reestruturao de fronteiras, mudana no contorno entoacional e na realizao segmental da forma fonte so alguns fenmenos verificados e que atestam o desenvolvimento de um predicado matriz de uma orao encaixada em um operador evidencial. A evidencialidade o domnio das noes relativas fonte do conhecimento enunciado na proposio.

    PAlAVrAs-chAVe: reanlise fontico-fonolgica, gramaticalizao, [diski], evi-den cialidade.

    introduo

    Apresento consideraes relativas reanlise fontico-fonol-gica, com consequncias sintticas e semnticas, observada no processo de gramaticalizao da predicao matriz (ele) diz que em um operador evidencial [diski] no portugus contemporneo do Brasil, conforme se observa em (1) e (2):

    (1) [...] o deputado federal Jos Santana de Vasconcelos (PFL) prega uma aliana em torno do governador. Ele diz que o bom relacionamento entre o PFL, o PSDB e o PTB mineiros deve ser estendido ao plano federal. (EMLJ)

    (2) L1 [...] e assim:: morreu um colosso de gente aqui em SP nessa ocasio que foi... [...].

    * Professora da Universidade Federal de Gois, Goinia. Doutora em Lingustica e Lngua Portuguesa. Pesquisadora do CNPq.

    E-mail: [email protected]

    Recebido em 25 de setembro de 2010Aceito em 18 de outubro de 2010

    DOI 10.5216/sig.v22i2.13618

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    (3) L2 diz que em Jundia tambm enterravam... agora (d um) [...] em [...] Campinas foi menos. (NURC/SP)

    Esta investigao pretende trazer consideraes a respeito do rearranjo do sistema de sons da lngua no desenvolvimento de novas funes para formas preexistentes. A ateno a fenmenos como velocidade de fala e tessitura faz que este trabalho venha na contramo daqueles que veem as descries funcionalistas negligentes quanto anlise do valor dos sons nos sistemas lingusticos. Inicialmente, trago observaes sobre a reanlise em processos de gramaticalizao e apresento o corpus de anlise. Em seguida, descrevo um uso gramaticalizado de [diski], o operador evidencial indireto de boato, considerando-se o rearranjo fontico-fonolgico a que a forma fonte do processo foi submetida. A titulo de concluso, apresento consequncias fonolgicas, prosdicas e discursivo-pragmticas dessa reconfigurao sistmica.

    1 grAmAticAlizAo e reAnlise

    Para tratar da reanlise observada na descrio do paradigma gramatical constitudo pelos usos de [diski] operador evidencial, recorri aos trabalhos de Sweetser (1990), Heine, Claudi e Hnnemeyer (1991), Traugott e Knig (1991), Hopper e Traugott (1993), Thompson e Mulac (1991), Neves (1997), entre outros.

    Estudiosos explicam a gramaticalizao como uma extenso gradual de uso de uma entidade original em termos da correlao metfora/metonmia, conforme propem Heine, Claudi e Hnnemeyer (1991). Neves afirma que dois mecanismos esto a envolvidos: transferncia conceptual (que metafrica e se relaciona com diferentes domnios cognitivos) e reinterpretao induzida pelo contexto (que metonmica e resulta em conceitos interseccionados) (1997, p. 135).

    O reconhecimento da coatuao da metfora e da metonmia no processo de gramaticalizao no impede que se questione a preponderncia de um desses mecanismos nas mudanas em direo ao domnio evidencial. Traugott e Knig (1991, p. 213) atribuem responsabilidade maior metonmia. Sweetser (1990), ao contrrio,

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    reconhece a metfora como o principal mecanismo desencadeador das mudanas em direo aos significados que qualificam o grau de verdade do contedo proposicional, atuando como uma espcie de mapeamento reduzido de um significado bsico, ou como a extenso de um sentido modal superordenado.

    No caso em questo, prefiro no pensar em preponderncia, mas em pertinncia contextual, pragmtica e cognitiva: por analogia, a metfora aciona o processo polissmico inicial e causa alteraes no eixo paradigmtico; a partir disso, por reanlise, a metonmia provoca alteraes no eixo sintagmtico e faz gerar um novo significado gramatical do domnio evidencial.

    No [diski] de significao evidencial gramatical, h uma vinculao entre o predicado matriz e o complementizador. Esse fenmeno implica outros trs processos: a degenerao morfolgica da marca de pessoa, a cristalizao da forma fonte flexionada na terceira pessoa, singular, indicativo, presente, e a dependncia morfolgica entre a forma cristalizada e o complementizador: o que deixa de ser uma entidade autnoma.

    Os exemplos a seguir indiciam a reanlise (alterao de fronteiras no eixo sintagmtico) que levou a construo fonte a se constituir como unidade significativa. Textos de literatura romanesca, de autores diversos, trazem a expresso [diski] na funo operador evidencial de boato grafada como uma nica palavra, como em (3), ou, ainda, grafada com apstrofo, como em (4):

    (3) O turco s quando chegou perto do homem reparou na sua grandeza e se espantou:

    Homem, como o senhor grande! [...] Diz-que Deus fez eu no mesmo dia que fez o Brasil e nesse dia

    tinha levantado com mania de exagero, com o perdo da palavra. Tenho para mais de dezena de arrobas de peso e quase que braa e meia de comprimento. (IDLR)

    (4) O corpo de Inacinho ficou o tempo todo fechado no caixo, proibido de ningum ver ele, mode o estrago... Seu Xisto do Engenho? Veio sim, vieram de volta o povo todo; cada um de embornal mojado, mas tudo milho carunchado, sem serventia...

    Seu Tonho Incio parece que t com muita esperana mas um zunzum que chegou do Campanrio: dizque Seu Is de

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    Arimatia foi visto de noite, j descendo o Caramujo, por uns cujos que velavam a criana defunda numa casa de tbua...(CHLR)

    Mais que indcio de reanlise, da alterao de fronteiras inerente ao desenvolvimento da nova funo gramatical, a tentativa de reproduzir na modalidade escrita aspectos entoacionais, fontico-fonolgicos e morfossintticos, cuja verificao plena s possvel em situaes de interao na modalidade falada, demonstra que o usurio da lngua tem cognitivamente internalizado o princpio de que a lngua dotada de um dinamismo que a faz estar em constante transformao, e que permite o recrutamento de formas preexistentes no sistema lingustico para codificar novos significados.

    Hopper e Traugott (1993, p. 170) afirmam que a decategorizao leva reduo da finitude do verbo. Entre as consequncias da eliminao de fronteiras morfolgicas, est a perda das capacidades de restrio seletiva e de flexo, inerentes aos verbos plenos. O diz que recategorizado como um operador evidencial no seleciona mais um primeiro argumento e no mais aceita as flexes de tempo, modo e pessoa.

    Heine, Claudi e Hnnemeyer (1991, p. 212 ss.) apresentam a gramaticalizao como um ciclo noo que reflete bem o dinamismo lingustico, no qual a reanlise atua como um processo de reestruturao que leva reinterpretao das funes morfolgicas: um predicado matriz reanalisado como uma partcula evidencial, tornando-se membro da categoria gramatical dos operadores evidenciais.

    Thompson e Mulac (1991) observaram, no desenvolvimento de verbos de atitude proposicional em modalizadores epistmicos parentticos no ingls, um efeito da reanlise sobre todo o enunciado. De igual modo, observei esse mesmo efeito em relao ao enunciado qualificado pelo diz que: o que era predicado encaixado torna-se predicado matriz, e o que antes era um predicado matriz funciona como operador evidencial, ou seja, incide sobre toda a proposio encaixada.

    Tabor e Traugott (1998) atestam que as mudanas de elementos do mundo (referenciais) para elementos do discurso (no referencial) so naturalmente correlacionadas ao aumento de escopo gramatical porque significados mais abstratos referem-se a uma ampla variedade de circunstncias.

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    O princpio da especializao (hoPPer, 1991) dita que os elementos em processo de gramaticalizao tendem a ter sua frequncia de uso aumentada. Isso sugere uma ampliao da capacidade de escopo desses elementos, uma vez que o aumento do nmero de ocorrncias de um item pode ocasionar maior diversidade de contextos sintagmticos nos quais ele pode ser usado.

    A impossibilidade de material interveniente a diz e que que tem relao com fixidez de ordem e a sua capacidade de mobilidade na cadeia sintagmtica que tem relao com aumento de autonomia, de campo de incidncia (de escopo) so outros aspectos morfossintticos da gramaticalizao da construo matriz diz que em uma unidade funcional. o que se observa com base em (5).

    (5) Mas como que o padre explica essas coisas todas que a Luzia faz?

    Diz ele que h pessoas assim no mundo porque os demnios entram no corpo delas.

    Diz que nas Escrituras Sagradas h muitos casos como esses e que Jesus Cristo expulsou o demnio do corpo de muita gente.

    Winter cuspinhou os pedaos de folha de laranjeira que tinha na boca.

    No acredite, dona. No h tal coisa. (TSLR)

    Em um mesmo contexto comunicativo (5), ocorrem as for-mas fonte e alvo. No uso no gramaticalizado, com maior trao de concretude, h uma inverso na posio do pronome de terceira pessoa sem que haja qualquer modificao no estatuto sinttico e semntico do item. O uso sem o pronome ambguo, pode receber interpretao de um predicado matriz em que o primeiro argumento, sujeito (o padre), no expresso lexicalmente, ou pode ser interpretado como um operador evidencial de boato. Nesse caso, impossvel a intervenincia de qualquer material lingustico entre os elementos. Se inserirmos o pronome pessoal entre diz e que, a nica leitura aceita a de predicado matriz. Essa ambiguidade tambm ajuda a mostrar a gradualidade inerente gramaticalizao. Logo, essa vinculao faz do diz que evidencial uma unidade funcional e, como tal, a ordem dos seus componentes tende a ser fixa: invert-la significa alterar toda a constituio lingustica dessa expresso.

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    A fixidez na ordem decorre da justaposio (ou vinculao) uma das propriedades dos itens em gramaticalizao incipiente. medida que o processo avana, d-se a coalescncia, que envolve cliticizao e/ou afixao.

    Em todas as ocorrncias do uso mais gramatical do diz que encontradas no corpus, esse operador ocupa a posio inicial. Porm, em situao de fala do dia a dia, detectamos esse elemento em posio final, incidindo anaforicamente sobre a proposio. A inverso da posio do diz que evidencial em (5a) no altera a gramaticalidade e/ou o valor semntico do enunciado.

    (5a) Nas Escrituras Sagradas h muitos casos como esses em que Jesus Cristo expulsou o demnio do corpo de muita gente, diz que.

    Uma explicao simplificada para alguns desses processos anteriormente mencionados a seguinte:

    Ao gramaticalizar-se, um item lexical perde substncia semntica e fontica. Quando um item lexical migra para a gramtica, ele passa a comportar-se como um morfema livre (no caso dos auxiliares), ou como morfema preso (no caso dos afixos derivados de um morfema livre). (cAstilho, 1997, p. 29)

    Hopper e Traugott (1993, p. 201) dizem que verbos de atitude proposicional quando em funo parenttica modal ou seja, quando atuam como qualificadores de uma assero possuem menor altura tonal do que esses mesmos verbos quando principais.

    Essas observaes sobre o padro entoacional dos evidenciais e sobre a reanlise morfossinttica que gerou a constituio do diz que evidencial como uma unidade funcional direcionam para a investigao das provveis mudanas fontico-fonolgicas da forma fonte, as quais so relacionadas principalmente ao enfraquecimento voclico e consonantal, mudana na posio do acento, altura e posio do tom, ou seja, mudana na slaba ao qual o tom associado (hoPPer e trAugott, 1993, p. 145). Tudo isso traz como consequncia uma reorganizao dos segmentos fonolgicos, de modo que as fronteiras prosdicas so alteradas.

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    A investigao de alteraes fontico-fonolgicas exige certa especializao do analista, e essas alteraes, geralmente, deixam de ser analisadas em trabalhos de cunho descritivo. Porm, no se pode deixar de considerar que s evidncias semnticas e morfossintticas em favor da autonomia do diz que como operador evidencial, nas quais est implcita uma nova constituio dos segmentos fonolgicos, soma-se uma nova organizao prosdica dos segmentos da expresso. Mudanas na realizao segmental e no contorno entoacional so intuitivamente percebidas, mas o desejo de uma investigao mais completa me instigou a realizar a anlise prosdica com o objetivo de identificar evidncias fonolgicas a favor da hiptese de gramaticalizao de diz que e, consequentemente, da formao de um paradigma evidencial gramaticalizado no portugus do Brasil.

    2 A reAnlise no PlAno fontico-fonolgico: A grAmAticAlizAo de [diski]

    2.1 A eleio do corpus e do suporte terico-metodolgico

    A escolha dos dados e da metodologia foi uma questo bsica para a sistematizao da anlise no nvel fonolgico. Os dados deveriam permitir uma anlise entoacional, somente possvel em lngua falada, e o instrumental descritivo deveria estar em comunho com os postulados que tm sustentado a investigao a respeito da gramaticalizao do diz que e que teve como corpus ncleo aquele constitudo por dados do portugus escrito contemporneo do Brasil e sediado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara (cAsseb-gAlVo, 2001).

    Dik (1989) traz o esboo de um estudo das formas e funes dos contornos prosdicos das sentenas, considerando-os como a expresso de um grande nmero de propriedades de diferentes nveis da estrutura subjacente da clusula. Dik (1989) segue as orientaes da escola britnica, que tem Halliday (1970)2 como um marco para as propostas de anlise prosdica que consideram as funes pragmticas da linguagem.

    Por isso, quanto ao objeto de anlise, elegi como corpus auxiliar dados de lngua falada culta do projeto NURC/BR. A princpio, sele-

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    cionei um inqurito de cada tipo disponvel no corpus: D2 (dilogo entre dois informantes), DID (entrevista com documentador), e EF (elocuo formal), em amostras de fala das cinco capitais que integram o projeto principal. O diz que operador evidencial ocorreu apenas em dados de So Paulo (D2), Recife (D2 e DID) e Porto Alegre (D2 e DID), no ocorrendo em elocues formais.3

    Feita essa triagem, entendi que trabalhar apenas com os inquritos do tipo D2 permitiria alcanar falantes de um nmero maior de regies do pas e seria qualitativamente mais representativo do portugus brasileiro. Para uma investigao mais precisa, e evitando os riscos de variaes idioletais, identifiquei os contextos nos quais um mesmo falante fizesse uso das formas alvo e fonte, o que no ocorreu em dados de Porto Alegre. Ao final, foram submetidas anlise fonolgica ocorrncias cujos informantes integram a mesma faixa etria de 35 a 45 anos , sendo dois do sexo masculino (D2-62) e dois do sexo feminino (D2-279).

    As postulaes de Dik (1989) apontam para um instrumental descritivo que abarca as principais propriedades entoacionais da lngua. Esse instrumental dotado de uma notao pictrica de fcil escrita e leitura, e um recurso metodolgico sensvel s variaes decorrentes das presses do uso da lngua.

    Trata-se de um instrumental descritivo fonolgico que permite a identificao das propriedades essenciais para a descrio prosdica dos diferentes usos de uma mesma cadeia sonora, principalmente no que diz respeito ao tom, ao acento e entonao (ibid., p. 379).

    Outra vantagem do modelo favorecer uma interpretao de base auditiva que permite ao investigador verificar as diferenas prosdicas promovidas pela inteno comunicativa falante/ouvinte, diferenas essas nem sempre percebidas em uma anlise fontica de base exclusivamente instrumental. As hipteses que nortearam a anlise foram as seguintes:

    1 A reanlise semntica e morfossinttica envolvida no desen-volvimento das construes que passam a representar uma nica entidade significativa envolve a reestruturao das fronteiras fonolgicas, principalmente por meio de um processo de amalgamao fontica. (hoPPer e trAugott, 1993)

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    2 O diz que evidencial tem contorno entoacional e realizao segmental diferentes em relao ao diz que predicado matriz, lexical. Essas diferenas prosdicas podem ser interpretadas como evidncias do papel gramatical da funo evidencial.

    Dik (1989, p. 398-399) arrola os principais passos para se proceder estruturao da composicionalidade do contorno prosdico final de uma expresso lingustica com base na informao contida na estrutura subjacente da clusula: 1) determinar as posies caractersticas dos acentos; 2) determinar os efeitos dos acentos determinantes de funes pragmticas, mapeando-os na forma de movimentos ascendentes ou descendentes das posies acentuais; 3) determinar os movimentos que ocupam as fronteiras internas e externas das clusulas; 4) determinar e mapear os movimentos de altura (pitch range); 5) mapear a expresso quanto aos nveis entoacionais; e 6) inserir em linhas paralelas os movimentos acentuais e os movimentos de altura.

    A verificao de (1) e (2) segue esses passos e atenta para os elementos prosdicos explicitados abaixo:

    a) entoao: variaes meldicas da fala relacionadas s funes gramaticais;

    b) tessitura (T): variao na altura da melodia da fala, que percebida como alta (T+) ou baixa (T-) em relao tessitura-padro (T) normal de cada falante;

    c) velocidade da fala: relacionada dinmica da fala, implica a acelerao (V+) ou a desacelerao (V-) em relao ao padro de fala normal (V) de cada falante; a velocidade da fala, somada ao movimento de altura, delimita fronteiras prosdicas ();

    d) acento: durao da slaba nos enunciados. A localizao da slaba tnica saliente fundamental para a caracterizao de um grupo tonal e do tipo de informao gramatical associada ao enunciado que a slaba tnica pertence;

    e) segmentos: expresso da composio bsica dos segmentos fonticos.

    A unidade de entoao no portugus brasileiro o grupo tonal (GT), que tambm uma unidade [bsica] de ritmo,4 representado por duas barras inclinadas (//). Cada GT composto por um ou mais ps, a unidade rtmica compreendida entre duas barras inclinadas. Cada p

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    contm pelo menos uma slaba forte, representada por um ponto (.), e um nmero relativo de slabas no acentuadas (fracas). Os ps que iniciarem um grupo tonal sem ter uma slaba acentuada no incio tero uma slaba tnica silenciosa marcando o incio do p. A primeira slaba tnica acentuada de um p a slaba tnica saliente.

    Um GT representa uma unidade informacional da inteno comunicativa do falante, e o modo de distribuio de GTs, a tonalidade, exerce um papel de muita importncia na organizao discursiva. Eles podem ser do tipo simples ou composto, caso tenham, respectivamente, uma slaba saliente tnica ou duas, e, consequentemente, tenham uma ou duas mudanas notveis do contorno meldico. As variaes meldicas da fala podem ser simples, com um contorno descendente (D), ascendente (A) ou nivelado (N), ou complexas, com movimentos combinados entre esses trs tipos de contornos mencionados.

    H pelo menos cinco nveis na escala entoacional, que vai de um tom baixo a um tom alto, apresentando tons intermedirios. Os nveis de altura meldica dos contornos tonais so alto (a), meio-alto (ma), mdio (m), meio-baixo (mb) e baixo (b). Pictoricamente, os nveis tonais so marcados com barras verticais (||) e os contornos meldicos so representados entre barras paralelas, a chamada pauta entoacional. A caracterstica meldica do tom concentra-se na slaba tnica saliente, mas, como unidades entoacionais, os tons so os contornos meldicos dos GTs.

    Dik (1989, p. 396-397) relaciona a funcionalidade prosdica a operadores ilocucionrios, efeitos pragmticos e expresses de valor emocional, o que relevante para a distino funcional que se pretende mostrar mais adiante e para a articulao entre os vrios fenmenos prosdicos que pretendo estabelecer na anlise.

    Outro elemento prosdico relacionado variao de altura a tessitura. A tessitura um mecanismo de ao coesiva, usado para atribuir valores relativos a partes ou unidades de informao que desempenham uma funo sinttica semelhante das conjunes, isto , que estabelecem vnculos oracionais. Uma variao na tessitura somente ocorre no incio de um grupo tonal, ou seja, s h alterao da tessitura nas fronteiras da estrutura entoacional. Para Dik (1989, p. 395), isso significa dizer que o contorno prosdico sempre coincide com a clusula.

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    Em suma, quando se muda a entoao de um enunciado, muda-se seu valor funcional, podendo haver tambm mudana na tessitura. E, na aplicao desses postulados, espera-se que os usos do diz que com maior trao de concretude e mais abstratos possam ser diferenciados tambm por sua configurao entoacional.

    2.2 A anlise

    Nos enunciados a seguir, os grupos tonais em itlico exemplificam os contextos que servem de base para a anlise, dos quais tambm apresento as realizaes da tessitura e da velocidade de fala.

    (6) L2... // pelo que eu converso com a nossa colega T+V-________________T+V- // ela diz que melhor // d mais trabalho. ... (NURC/SP, D2-62, M)

    (7) T-V+_________T-V+ L2... // h // diz que agora //...esto partindo ... (NURC/SP, D2-62, M)

    (8) T-V+_____________T-V+ L2... // diz que o indivduo // ele::.. paga trinta anos (NURC/SP, D2-62,M)

    (9) T-V+_______________T-V+ L2 .. //ento// diz que o americano // no liga para isso (NURC/SP, D2-62, M)

    A transcrio segmental e a anlise entoacional dos GTs em itlico, objeto central desta anlise, resultam em:

    (6a)

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    (7a)

    (8a)

    (9a)

    Em (6a), tem-se a transcrio segmental e a representao pic-t rica entoacional de um enunciado com a forma fonte, o [d i s k i] predicado matriz. Os demais exemplos explicitam o [d i s k i] operador evidencial, mais abstrato. Pode-se observar que, no uso mais concreto, a slaba tnica saliente recai sobre o verbo e que, entre ele e o complementizador, h um movimento entoacional, indiciando uma fronteira significativa. Ou seja, h evidncias de que esses dois segmentos pertencem a dois grupos entoacionais diferentes. Quanto ao uso mais abstrato, em todas as ocorrncias analisadas, o movimento de altura recai sobre o contexto posterior ao operador, indiciando que [d i s k i] constitui um nico grupo tonal, formando um nico p, o que indica, portanto, que os seus constituintes segmentais integram uma mesma unidade significativa.

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    Outra diferena significativa entre os usos [+concreto] e [+abstrato] diz respeito variao e aos nveis de altura meldica dos tons. O contorno entoacional do uso [+concreto], relacionado s asseres realis, vai do nvel mdio (m) para o nvel meio-baixo (mb), numa variao descendente (D); no uso [+abstrato], relacionado s asseres irrealis, a escala a mesma (m>mb), mas a direo de variao ascendente.

    Essa diferena ratifica a generalizao de que parece ser vlido dizer que os contornos entoacionais descendentes significam algo certo e os contornos ascendentes, algo incerto (CAgliAri, 1980, p. 320-321).

    Quanto velocidade e tessitura da fala, observa-se que, em todo o enunciado em que o [d i s k i] aparece, no h nenhuma alterao no que se considera o padro normal; j na realizao do [d i s k i], ao contrrio, a velocidade rpida e a tessitura, baixa em relao realizao do restante do enunciado e ao padro normal do uso [+concreto].

    3 concluses

    A acelerao da velocidade e a baixa tessitura caracterizam o operador evidencial e tambm funcionam como recurso estratgico de descomprometimento do falante sobre o que assevera na proposio: acelerando o fluxo de sua fala, a ateno do ouvinte recai sobre o contedo asseverado e no sobre a indicao de fonte diversa expressa pelo operador.

    Efeitos fonolgicos da acelerao so a reduo da vogal [i] no final do segmento e a amalgamao dos morfemas integrantes da construo fonte. Tal enfraquecimento e tal vinculao, que contribuem para a constituio da nova estrutura segmental [d i s ki], so reconhecidos na literatura especializada como as primeiras e principais alteraes fontico-fonolgicas envolvidas nos processos de gramaticalizao. Gaeta (1998, p. 92) reconhece o enfraquecimento de vogais em slabas finais no acentuadas como um dos principais fatores fonolgicos que levam reanlise em processos de gramaticalizao.

    Alm disso, esses resultados corroboram as observaes de Hopper e Traugott (1993) de que as alteraes fontico-fonolgicas en vol vidas na gramaticalizao de qualificadores da proposio rela-

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    cionam-se ao enfraquecimento voclico e consonantal, e alterao na posio do acento, na altura e na posio do tom ou seja, relacionam-se mudana na slaba qual o tom associado.

    A explicitao dos processos envolvidos no desenvolvimento do diz que como operador evidencial atesta a fluidez de novos usos no sistema lingustico do portugus brasileiro e faz visvel o princpio da gramtica emergente para muitos uma abstrao terica , subjacente s capacidades e/ou habilidades cognitivamente organizadas dos usurios das lnguas.

    Uma evidncia disso o fato de os processos envolvidos nessa mudana especializada que a gramaticalizao atingirem todos os do-m nios constitutivos das expresses lingusticas.

    Phonetic-PhonologicAl reAnAlysis in the [diski] grAmmAticAlizAtion Process

    AbstrAct

    This paper focuses on the phonetic-phonological reanalysis of the [diski] grammaticalization process in the Brazilian-Portuguese language. Border restructuring as well as changes in the intonational contour and in the segmental realization of the source-form are some of the observed phenomena that suggest the development of a matrix predicate of an embedded clause in an evidential operator. Evidentiality refers to the notional domain related to the source of knowledge uttered in the proposition.

    Key words: phonetic-phonological reanalysis, grammaticalization, [diski], evidentiality.

    notAs

    1 O contedo deste texto foi apresentado em mesa-redonda, em evento em homenagem professora Maria Helena de Moura Neves, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, em agosto de 2008.

    2 Halliday (1970) referncia metodolgica para Cagliari (1980, 1981 e 1996) e Tenani (1996), descries que envolvem entonao e sintaxe no portugus brasileiro. A leitura especializada de Luciane Tenani (Unesp/So Jos do Rio Preto) foi fundamental para a anlise fonolgica e prosdica de que derivou este trabalho.

  • siGntiCa, Goinia, v. 22, n. 2, p. 479-494, jul./dez. 2010 493

    3 A no ocorrncia do diz que operador evidencial em textos de elocuo formal, tal como se deu em relao aos textos de literatura oratria, era de certo modo esperada. Textos com maior grau de formalidade exigem mais comprometimento do enunciador em relao ao contedo asseverado.

    4 A noo de ritmo baseia-se na repetio de determinados tipos de slaba. A marcao do ritmo fortemente vinculada acentuao.

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