A Realeza de Jave Um Exemplo de Dialogo Inter-religioso

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A realeza de Javé – um exemplo de diálogo inter-religioso Reflexões a partir do Salmo 97 Júlio Paulo Tavares Zabatiero Introdução O tema do diálogo inter-religioso 1 é de crucial relevância para o nosso tempo. O ambíguo processo de globalização do capitalismo e da cultura consumista ocidental, recolocou no plano da esfera pública e da atividade política a prática religiosa e suas ambigüidades. Em especial, o ressurgimento dos fundamentalismos, em suas formas mais virulentas, traz para o centro das discussões sobre a convivência internacional a questão religiosa. Após 11 de setembro e a resposta militar norte-americana, muçulmanos e cristãos, igualmente, devem dar conta da violência praticada por alguns de seus adeptos. Além do tema candente da paz mundial, também o não menos incendiário tema da natureza humana, colocado no cenário mundial pela pesquisa genética, demanda um olhar religioso inteligente. Em vários países a legislação sobre a pesquisa com células-tronco se debate com questões éticas e religiosas de fundo. No Brasil, que possui uma das legislações mais avançadas sobre o tema, a discussão sobre o início da vida propriamente humana do feto incide diretamente sobre a legislação e sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias – uma expressão do descontentamento de setores religiosos com a permissão para a pesquisa com células-tronco embrionárias “descartadas”. Em outras palavras, a questão religiosa na atualidade não se desvincula das questões éticas fundamentais que afetam a vida humana no planeta terra neste início do século XXI. De fato, a própria sobrevivência do planeta – e não só a da espécie humana – está em jogo em nossos dias. E não é possível que crentes e instituições religiosas, das mais variadas, não se pronunciem sobre o tema, nem deixem de agir em defesa da vida de todo o planeta. Dialogar com outras religiões, então, para as igrejas cristãs não é mais uma opção secundária, mas uma prioridade indiscutível em sua agenda missionária, se é que desejamos ser fiéis a Deus e sua vontade salvífica para o mundo por ele criado. Prioridade, em especial, para a agenda missionárias das denominações e movimentos evangélicos, que 1 Dentre a volumosa literatura teológica sobre o tema, pode-se consultar, por exemplo: DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões: do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2004; HICK, John. Teologia cristã e pluralismo religioso. São Paulo: Attar Editorial, 2005 ; PEDREIRA, Eduardo Rosa. Do confronto ao encontro. Uma análise do cristianismo em suas posições ante os desafios do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas,1999; SILVA, Dionísio O. da. O Comércio do Sagrado. Londrina: Descoberta, 2004. Júlio P. T. Zabatiero Semana de Estudos-FEPAR 2007 1

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Transcript of A Realeza de Jave Um Exemplo de Dialogo Inter-religioso

  • A realeza de Jav um exemplo de dilogo inter-religiosoReflexes a partir do Salmo 97

    Jlio Paulo Tavares Zabatiero

    Introduo

    O tema do dilogo inter-religioso1 de crucial relevncia para o nosso tempo. O

    ambguo processo de globalizao do capitalismo e da cultura consumista ocidental,

    recolocou no plano da esfera pblica e da atividade poltica a prtica religiosa e suas

    ambigidades. Em especial, o ressurgimento dos fundamentalismos, em suas formas mais

    virulentas, traz para o centro das discusses sobre a convivncia internacional a questo

    religiosa. Aps 11 de setembro e a resposta militar norte-americana, muulmanos e cristos,

    igualmente, devem dar conta da violncia praticada por alguns de seus adeptos.

    Alm do tema candente da paz mundial, tambm o no menos incendirio tema da

    natureza humana, colocado no cenrio mundial pela pesquisa gentica, demanda um olhar

    religioso inteligente. Em vrios pases a legislao sobre a pesquisa com clulas-tronco se

    debate com questes ticas e religiosas de fundo. No Brasil, que possui uma das

    legislaes mais avanadas sobre o tema, a discusso sobre o incio da vida propriamente

    humana do feto incide diretamente sobre a legislao e sobre a pesquisa com clulas-tronco

    embrionrias uma expresso do descontentamento de setores religiosos com a permisso

    para a pesquisa com clulas-tronco embrionrias descartadas.

    Em outras palavras, a questo religiosa na atualidade no se desvincula das

    questes ticas fundamentais que afetam a vida humana no planeta terra neste incio do

    sculo XXI. De fato, a prpria sobrevivncia do planeta e no s a da espcie humana

    est em jogo em nossos dias. E no possvel que crentes e instituies religiosas, das

    mais variadas, no se pronunciem sobre o tema, nem deixem de agir em defesa da vida de

    todo o planeta. Dialogar com outras religies, ento, para as igrejas crists no mais uma

    opo secundria, mas uma prioridade indiscutvel em sua agenda missionria, se que

    desejamos ser fiis a Deus e sua vontade salvfica para o mundo por ele criado. Prioridade,

    em especial, para a agenda missionrias das denominaes e movimentos evanglicos, que

    1 Dentre a volumosa literatura teolgica sobre o tema, pode-se consultar, por exemplo: DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religies: do desencontro ao encontro. So Paulo: Loyola, 2004; HICK, John. Teologia crist e pluralismo religioso. So Paulo: Attar Editorial, 2005 ; PEDREIRA, Eduardo Rosa. Do confronto ao encontro. Uma anlise do cristianismo em suas posies ante os desafios do dilogo inter-religioso. So Paulo: Paulinas,1999; SILVA, Dionsio O. da. O Comrcio do Sagrado. Londrina: Descoberta, 2004.

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  • normalmente privilegiaram a questo salvfica, ao invs da propriamente teolgica, nas

    discusses sobre dilogo inter-religioso.2

    Como tratar deste tema em uma abordagem bblica? Primeiramente, preciso

    reconhecer que a atual problemtica do dilogo inter-religioso no est presente nas

    Escrituras como um tema desenvolvido. No podemos, portanto, procurar textos bblicos

    que tematizem diretamente a questo, pois tais no existem. Nossa alternativa distinta.

    Precisamos, a partir da questo do dilogo inter-religioso, perguntar Escritura por

    respostas que incidam sobre os vrios ngulos da questo e nos forneam princpios

    conceituais e valorativos que nos ajudem a construir a nossa teologia do dilogo com outras

    religies.

    Como exemplo concreto desse questionamento ao texto bblico, trago nossa

    conversa dois temas que incidem diretamente sobre o nosso tema. O primeiro o tema da

    realeza de Jav e o segundo, o da reconciliao em Cristo. Nesta noite nos ocuparemos da

    realeza de Jav, a partir da leitura do salmo 97. Amanh, enfocaremos a reconciliao, a

    partir de Cl 1,18-20.

    Jav governa com justia Salmo 97

    1. A poca e a estrutura do Salmo 97

    No fcil datar vrios salmos do Antigo Testamento, especialmente aqueles que

    possuem um pequeno nmero de referentes histricos. Como a maioria dos textos poticos,

    so repletos de metforas e smbolos, que poderiam ser usados em diferentes pocas da

    histria do povo de Deus. necessrio, ento, atentar para a linguagem usada e buscar as

    suas relaes intertextuais e interdiscursivas para datarmos o texto. O Salmo 97 um

    desses salmos difceis de datar, pela ausncia de referentes histricos especficos. Todavia,

    ele utiliza temtica e vocabulrio que relembram textos bblicos do perodo exlico de Jud e

    textos da religio babilnica. Por isso, como hiptese de trabalho, situo o salmo por volta de

    550-500 a.C.

    uma poca terrvel para os judeus: Jerusalm e o Templo de Jav haviam sido

    destrudos. O rei, a sua corte e o sacerdcio de Jerusalm haviam sido deportados para a

    2 A discusso teolgica sobre religies no-crists foi sobrecarregada e ocupada com esta preocupao soteriolgica, infelizmente, por vrias dcadas. A preocupao soteriolgica muito importante, talvez a mais importante, mas certamente no a nica relevante. Devemos fazer muito mais do que perguntar quem e como ser salvo, devemos edificar um slido fundamento teolgico para uma verdadeira teologia pblica das religies, que nos d diretrizes prticas para interao,cooperao e dilogo com outras religies, nos mbitos local, nacional e internacional. HOSEK, Pavel. Towards a public theology of religious pluralism. In: European Journal of Theology. 14.1, 2005. http://www.sekty.cz/www/stranky/studie/16.pdf . Acesso em 2.04.2007.

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  • Babilnia, e quase metade da populao de Jud havia sido morta durante a invaso pelos

    babilnios. A populao camponesa, que restou da guerra, estava desorganizada, vivia em

    condies precrias, e sofria o pesado impacto das perdas financeiras, polticas, teolgicas

    e, especialmente, a perda de parentes e amigos.

    A f e a esperana do povo estavam abaladas diante de tamanha destruio, diante

    do fim da independncia de Jud e do governo da dinastia de Davi3. certo que vrios

    profetas haviam anunciado o juzo de Jav sobre o reino de Jud, mas mesmo assim no

    era fcil aceitar que essa terrvel situao era conseqncia da infidelidade a Jav,

    conseqncia da infidelidade do seu rei e do sacerdcio que deveriam servir a Jav e

    ensinar a sua verdade ao povo4. Uma outra resposta circulava entre os sobreviventes e os

    exilados de Jud: naquele tempo se acreditava que quando um pas conquistava outro, os

    seus deuses derrotavam os deuses do pas vencido. Marduque o principal deus do

    panteo babilnico - teria, ento, derrotado Jav e, assim como o Imprio babilnico

    subjugou Jud, Marduque teria subordinado Jav ao seu squito de deuses inferiores.

    Muitos judeus ficaram, por isso, em dvida quanto ao poder e a fora de Jav.

    Era necessrio, ento, reafirmar que Jav o deus dos deuses e o senhor dos

    senhores (Dt 10,17). Era necessrio, tambm, reacender a esperana na justia das aes

    de Jav, e reconhecer que os que seguem a Jav precisam ter uma vida fiel vontade de

    seu Deus, e que seu deus capaz de restaurar a liberdade do seu povo. O Salmo 97 um

    dos salmos que foram escritos para atender a esses propsitos: reafirmar a f em Jav e

    animar a esperana do resto do povo de Jud5. Ao declarar que Jav reina, o povo

    reconhece que a situao em que se encontra no fruto da derrota de Jav pelos deuses

    babilnios, mas conseqncia da sua prpria infidelidade ao Senhor de toda a terra. Em

    meio s incertezas do sofrimento, o Salmo 97 convida o pequeno povo de Deus a se

    alegrar, a louvar e a se regozijar diante de Jav, o rei de toda a terra.

    A estrutura do Salmo simples. No verso 1 temos o convite a todos os povos para se

    alegrarem diante do reinado de Jav; convite que retomado no v. 12 que se dirige aos

    3 Especialmente em Jerusalm, onde a corte e o sacerdcio desenvolveram uma teologia que afirmava a perenidade da dinastia davdica e do Templo. Para descries da teologia de Jerusalm, pode-se consultar, por exemplo: ALBERTZ, R. Historia de la religin de Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Vol. 1, Madrid: Trotta, 1999, cap. 3; e GUNNEWEG, A. Teologia Bblica do Antigo Testamento. So Paulo: Teolgica/Loyola, 2005, cap. 6.

    4 Nas ltimas dcadas da existncia do reino de Jud, especialmente Sofonias e Jeremias denunciaram os crimes e pecados da corte e sacerdcio, sendo que Jeremias em particular atacou fortemente a teologia sionita da inviolabilidade do Templo e da dinastia davdica.

    5 Ele faz parte de um pequeno conjunto de salmos que tm como tema principal o reinado de Jav: os salmos 47, 93, 96 a 99. Eles tm em comum a reafirmao da esperana e da f do povo de Deus no poder de Jav. Para uma introduo e comentrio aos salmos do reinado de Jav, ver, por exemplo: WEISER, Artur. Os Salmos. So Paulo: Paulus, 1994; ANDERSON, Ana F. (org.) Os Salmos do Rei: a f e a poltica. Petrpolis, Vozes, Estudos Bblicos n. 23, 1989 .

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  • justos, ao prprio povo de Jav, convidando-os para o louvor ao seu Deus. Os versos 1 e 12

    formam, assim, uma espcie de moldura para o grande quadro da teofania de Jav (v. 2-6) e

    seus efeitos sobre os inimigos de Deus (v. 7) e sobre o prprio povo de Deus (v. 8-11).

    Para ns, hoje, o Salmo 97 pode ser lido a partir da questo da relao entre

    diversas religies, enfocando o tema de como manter a f em Jav somente, no mbito do

    pluralismo religioso e da ameaa de destruio da vida no planeta.

    2. A mensagem do Salmo 97

    2.1. Jav reina!

    1a. Jav reina:1b. exulte a terra,1c. regozijem-se as muitas ilhas.

    O primeiro verso do Salmo um convite alegria universal, baseado na afirmao

    de que Jav reina. Esta uma afirmao de f e esperana, pois quem estava cantando

    este salmo no conseguia ver, na prtica, o poder soberano de Jav. Na prpria abertura do

    salmo, o exclusivismo da teologia antiga de Jerusalm negado. Jav no deus somente

    de Israel, mas de toda a terra. Tambm ns no vemos sinais marcantes da realeza de Jav

    em nossos dias. Como afirmar,ento, que nosso Deus reina? Somente pela f e pelo

    reconhecimento de que a situao em que vivemos fruto da prpria ao real de Jav. Por

    que Deus reina, nenhuma poca da histria humana pode ser lida como o fim da histria.

    Nenhuma situao histrica definitiva. sempre provisria, uma transio para um

    renovado tempo de justia e solidariedade mas um tempo a ser construdo pelos seres

    humanos em resposta realeza de Deus.

    Na primeira afirmao teolgica do salmo Jav reina , vemos um exemplo de

    reconhecimento de valores e conceitos de outras religies6. Israel foi um dos ltimos povos

    a se organizar no antigo Oriente Mdio, por isso, sua cultura e sua religio so tributrias de

    culturas e religies mais antigas. O tema da realeza de Jav um desses tributos. Em

    praticamente todas as religies do antigo Oriente se afirmava que um deus reina. Nas

    religies da terra palestinense, por exemplo, El e Baal eram cridos como deuses reis. El, o

    mais antigo, acabou sendo substitudo e incorporado por Baal e, mais tarde, os judeus o

    substituram pela f em Jav que destrona tanto El como Baal para os israelitas. Mesmo

    afirmando a exclusividade da relao de Israel com Jav, os israelitas antigos se

    6 Para descries desse reconhecimento, pode-se consultar, por exemplo: SCHMIDT, Werner. H. A f do Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal, 2004; SMITH, Mark S. The origins of biblical monotheism: Israel's polytheistic background and the Ugaritic texts. Oxford: Oxford, Oxford University Press, 2001; SMITH, Mark S. O memorial de Deus: Histria, memria e a experincia do divino no Antigo Israel. So Paulo: Paulus, 2006.

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  • apropriaram de crenas dos seus vizinhos7. A grande diferena, na apropriao da realeza

    divina por Israel, est na forma como Jav reina.

    Jav um deus que reina para libertar, no para conquistar, por isso merece ser

    adorado com alegria, pois Ele fonte de alegria e vida. A memria das origens humildes e

    subversivas do povo de Israel alimentou a sua f e forjou a sua teologia. Seguir a Jav no

    um trabalho estafante, ador-Lo festejar alegremente o seu reinado. A alegria e o

    regozijo so termos que ocorrem muitas vezes nos salmos, porque so as marcas do culto a

    Jav, o rei da vida. Diante dos agudos problemas de nosso tempo, somente a alegria no

    alienada da f em um Deus soberanamente amoroso e justo pode nos dar motivao para

    agir decididamente em cumprimento nossa vocao missionria.

    2.2. A majestade justa e gloriosa de Jav

    2a. Nuvens escuras esto ao seu redor8;2b. a justia e o direito so o fundamento do seu trono!3a. O fogo avana frente dele,3b. consumindo seus inimigos ao derredor.4c. Seus relmpagos iluminam o mundo;4d. a terra os v e treme.5e. As montanhas derretem-se como cerana presena de Jav, na presena do Senhor de toda a terra.6f. Os cus proclamam a sua justia6g. e todos os povos vem a sua glria.

    O trono uma figura para a realeza - reis sentam-se em tronos e os deuses tambm

    se assentavam em tronos. O trono de Jav est rodeado de nuvens escuras que o tornam

    invisvel. Sabe-se que ele est l, mas no se pode v-lo, uma tempestade impede a viso,

    o cu encoberto faz o dia parecer noite sem estrelas e sem luar. Ser invisvel uma

    caracterstica de Deus no Antigo Testamento. Deus to grandioso, to santo e majestoso

    que o ser humano no pode v-lo e permanecer vivo (x 33,18-23). Mesmo quando se

    manifesta e revela, Deus permanece oculto (Is 45,15). Para ver Deus preciso crer!

    O trono de Jav tem a justia e o direito como o seu fundamento9. Ou seja: Deus

    7 "Se reconhecermos o Esprito de Deus como a nica fonte da verdade, no lutaremos contra a verdade onde quer que ela aparea; caso contrrio, estaremos ofendendo o Esprito de Deus. Porque no se pode falar mal dos dons do Esprito sem lanar desprezo e oprbrio sobre ele." (CALVINO, Joo. As Institutas da Religio Crist: edio especial com notas para estudo e pesquisa. So Paulo: Cultura Crist, 2006, p. 105. III/37)

    8 Repare no arranjo desta parte do Salmo: o verso 2 uma espcie de introduo, fala de Deus assentado em seu trono. Os versos 3-6 formam uma unidade cujo tema o movimento de Deus (a teofania). Deus sai do seu trono escuro e invisvel e se manifesta visivelmente para toda a terra, com um poder irresistvel.

    9 Sobre justia e direito no Antigo Testamento, pode-se consultar, por exemplo: KNIERIM, Rolf. A interpretao do Antigo Testamento. So Bernardo do Campo: EDITEO, 1990; EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo Oriente Mdio e o povo da Bblia. So Paulo: Paulinas, 1990; SICRE, Jos L. A justia social nos profetas. So Paulo: Paulinas, 1990.

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  • reina com justia e direito. Este par de palavras muito usado em todo o Antigo Testamento.

    Descreve a obrigao de juzes, nos tribunais, que devem julgar honestamente, sem aceitar

    suborno, sem aceitar falsos testemunhos (x 22,6-9; Dt 16,18-20; Am 5,10-13.24). Descreve

    a obrigao dos reis: proteger o inocente, defender os pobres, libertar os oprimidos (Sl 72; Is

    11,1-5). Acima de tudo, porm, descreve a ao de Jav (veja, tambm, Sl 85,11-12; Is

    32,17-18). Esse tema no exclusivo de Israel assim como Israel se apropriou do tema da

    realeza, tambm se apropriou do tema da justia e do direito, presente nas teologias das

    cortes vtero-orientais. Tambm os reis de outros povos do Antigo Oriente e seus deuses

    eram descritos como agentes da justia e do direito. A adoo dos temas da justia e direito

    para qualificar a realeza de Jav, oferece mais um exemplo de dilogo inter-religioso ou

    em outras palavras, do reconhecimento da existncia de verdade em outras tradies

    religiosas, mesmo nas de inimigos de uma nao!10.

    Estes dois exemplos nos mostram que preciso juntar discernimento alegria.

    fcil adorar a Deus no culto, mas essa adorao precisa ser inteligente, do contrrio o

    dilogo se transforma em sincretismo, a apropriao discursiva se transforma em perda de

    identidade. Dentre os profetas do Antigo Testamento, encontramos no livro de Osias as

    mais fortes invectivas contra o culto sincrtico ao qual ele chamava de idolatria: adorar a

    Jav como se ele fosse Baal (especialmente o captulo 4). A ao soberana de Jav deve se

    tornar o critrio de julgamento das aes de seu povo, especialmente no campo da

    adorao e da tica. O que significava afirmar que Jav reina com justia e direito?

    Significava afirmar que Ele liberta os pobres e oprimidos que clamam sob o peso da injustia

    (x 3,6-10). Significava afirmar que Ele estabelece uma aliana com seu povo para lhe dar

    vida e vida digna e abundante (Dt 10,12ss). Significa que Jav defende as vtimas da

    injustia e cria uma ordem social e csmica justa, sem desigualdades, sem sofrimento para

    os inocentes (Is 65,15-25). Por isso se pode cantar alegremente que Jav reina: Ele, de fato

    e de verdade, faz o que os governantes humanos apenas podem prometer. Porque ele ouve

    o clamor de quem sofre, ele: exerce justia e direito, liberta o pobre, salva a pessoa aflita,

    inclui as pessoas excludas, cria uma sociedade justa e ntegra.

    Justia e glria de Jav so reveladas na sua teofania. A glria de Jav a libertao

    do pobre e o xodo do escravo (Is 40,3-5). A glria de Jav a salvao do pecador (Jo

    17,2-4). Todos os povos vero o brao poderoso de Jav libertando aqueles que clamam

    sob o jugo da injustia e manifestando, assim, o verdadeiro direito e a justia do reino eterno

    (cf. Is 52,10). Os judeus celebram a esperana de que seu deus no fora derrotado pelos 10 ... os germes de verdade e de bondade disseminados nas outras tradies religiosas podem ser a expresso

    do Esprito de Cristo, sempre operando na histria e no corao dos homens. (GEFFR, Claude. "Para uma nova teologia das religies". In: GIBELINI, Rosino (ed.) Perspectivas teolgicas para o sculo XXI. Aparecida: Editora Santurio, 2005, p. 332)

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  • deuses babilnios. Cantar a manifestao da glria de Jav lhes proporcionava fora para

    enfrentar a realidade cotidiana, com uma nova percepo de seu Deus. Passagens como

    as de Salmos e Isaas 40-55 tornam evidente que o termo glria no sempre usado no

    sentido externo, literalmente ou figurativamente fsico. Ele passou a ter um significado tico

    e isso porque, como a santidade com que o termo est associado em Isaas 6, est

    conectado com Jav que mais e mais exclusivamente visto como um ser tico11.

    No dilogo inter-religioso, premissa fundamental para os cristos ouvir o clamor

    das pessoas que gemem, buscando salvao e plenitude. Ouvir o clamor a atitude tica

    fundamental de Jav. No se pode dialogar a partir da premissa da superioridade religiosa,

    mas a partir da escuta atenta do clamor12. Podemos entender as religies, por mais

    estranhas que nos paream, como expresses do angustiado clamor humano por salvao.

    E, se assim as entendemos, podemos aprender com nosso Deus a ouvir o clamor e a agir

    com justia e direito, manifestando em nossa prtica a glria libertadora de nosso Senhor.

    2.3. A vergonha dos idlatras

    7a. Envergonham-se todos os adoradores de esttuas e os que se gloriam em dolos.7b. Diante de Jav se prostram todos os deuses!

    Como pensar em dilogo inter-religioso diante de uma afirmao aparentemente to

    oposta ao dilogo? O Salmo afirma que somente Jav deus (usando linguagem de Is

    43,8-13; 44,6-20), e que diante dele todos os deuses se prostram. Aqui tambm temos um

    exemplo da apropriao israelita de crenas de outras religies vtero-orientais: o deus

    supremo era servido subordinadamente pelos demais deuses e deusas, que diante dele se

    prostravam. O prprio da f israelita a afirmao anterior com exceo de Jav, todos os

    deuses so apenas dolos13. Essa linguagem parece to anti-dialogal para ns hoje!

    Entretanto, duas qualificaes precisam ser levadas em conta para entendermos bem esta

    afirmao polmica:

    (1) precisamos entender o salmo em seu contexto histrico: os judeus esto

    11 BETTERIDGE, Walter R. Glory. In: ORR, James (ed.) International Standard Bible Encyclopedia. Edio de 1915. http://www.bible-history.com/isbe/G/GLORY/. Acesso em 02.08.2007.

    12 Sobre o clamor na Bblia, ver, por exemplo: GERSTENBERGER, Erhard S. O clamor dos salmistas: Onde est Deus? Petrpolis: Vozes, Concilium n. 242, 1992, p. 16-29; SILVA, Valmor da. Clamor e escuta: o grito a Deus em situaes extremas. So Bernardo do Campo, Instituto Metodista de Ensino Superior, 1996 (tese doutoral).

    13 Sobre a idolatria na Bblia, ver, e.g.: KRAYBILL, Joo N. Culto e comrcio imperiais no Apocalipse de Joo. So Paulo: Paulinas, 2004; CARAVIAS, Jos L. O Deus da vida e os dolos da morte. So Paulo: Paulinas, 1992; SANTA ANA, Jlio de. Idolatria e sacrifcio. So Bernardo do Campo: UMESP, Estudos da Religio n. 9, 1994, p. 115-126; BRUEGGEMANN, Walther. Israel's praise: doxology against idolatry and ideology. Philadelphia: Fortress, 1989; e RICHARD, Pablo (org.) A luta dos deuses: os dolos da opresso e a busca do Deus libertador. So Paulo: Paulinas, 1982 .

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  • cantando a Jav sob o domnio do imprio babilnico, o qual afirmava que Jav havia sido

    derrotado pelos seus deuses. Diante disso, afirmar que s Jav deus era crucial para a f,

    pois equivale a dizer que somente o deus que age com justia e direito realmente Deus.

    Quem se apresenta como Deus mas no pratica a justia e o direito no passa de um dolo

    sem poder e sem vida. Em linguagem poltica, no passa de fraude ideolgica. (2) O

    reconhecimento da idolatria fundamental para que no entremos no dilogo inter-religioso

    de forma ingnua. A religio no , por si s, algo bom. Pessoas e instituies que fazem

    as religies, e a histria humana tem mostrado que muitas religies so praticadas de forma

    inadequada, promovendo injustia e violncia. Faz parte do dilogo inter-religioso a

    permanente auto-crtica das pessoas religiosas: nossa prtica da f d testemunho de Deus

    ou de dolos? Desta forma, afirmar que somente Jav Deus no idntico a afirmar que

    somente a religio crist verdadeira. afirmar que tambm a f crist pode transformar

    seu Deus em um dolo, ao no ser fiel ao modo de agir do seu criador e salvador!

    No islamismo, por exemplo, tambm se afirma que Al justo e misericordioso. Isto

    deveria servir como critrio para confrontar os fundamentalistas que pregam a violncia

    como forma de seguimento a Al. Todo seguidor de Al que pratica a violncia, que no age

    com justia e direito, faz de Al um mero dolo assim como qualquer cristo ou crist que

    deixa de praticar a vontade do pai de Jesus Cristo mancha o nome divino perante o mundo.

    O dilogo inter-religioso se torna impossvel, no porque as religies fazem afirmaes

    exaltadas sobre a singularidade de seu deus; mas porque no seguem fielmente as suas

    prprias crenas nessa singularidade que includente e no excludente.

    2.4. A esperana e o compromisso do povo fiel

    8a. Sio ouve e se regozija,8b. as filhas de Jud se regozijam,por causa de tuas justas sentenas, Jav.9c. Porque, tu, Jav, s o Altssimo sobre toda a terra,9d. elevado sobremaneira, acima de todos os deuses.10a. Jav ama os que odeiam o mal!10b. Protege a vida dos seus fiis10c. e os livra das mos dos que praticam a maldade.11d. A luz germina para o justo;11e. a alegria, para os retos de corao.12a. Regozijai-vos, justos, em Jav;12b. celebrai o seu santo nome.

    O hino leva, ento, seus celebrantes a desviarem o olhar dos outros povos e dos

    idlatras, e olharem para si mesmos. Sio, a montanha de Deus, o local do Templo em

    runas, ouve o cntico alegre e se regozija junto com a alegria do povo esperanoso. As

    filhas de Jud as cidades do interior tambm ouvem e se regozijam. O pas todo se

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  • alegra junto com o resto do povo. A f e a esperana tm uma face bem concreta: Jav ir

    restaurar a terra destruda, o pas derrotado. Jud nascer de novo. A alegria no

    desconsidera a histria. por causa de tuas justas sentenas, Jav que a nao e o

    povo se regozijam. Ao olhar para a destruio, o povo enxerga a sentena justa de Deus. O

    passado uma lio prtica sobre a justia e o direito de Jav. O passado prximo o da

    destruio, do juzo. O passado remoto o do xodo, da libertao e da posse da terra. As

    justas sentenas de Jav so diferentes em diferentes momentos histricos, mas sempre

    so justas, porque so expresso da fidelidade de Jav sua prpria palavra e ao.

    A alegria tambm tem outro motivo: a esperana14. Jav visto como o Altssimo,

    acima de todos os deuses, o mais forte, o mais sublime, o mais poderoso de todos os

    deuses. Isto esperana! A realidade parecia desmentir esta confisso esperanosa de f.

    Mas a esperana no se abate quando est colocada no deus verdadeiro e justo. Esperana

    que no iluso, mas certeza de que o Senhor fiel, e continuar a realizar a sua soberana

    vontade. O Altssimo o soberano invisvel que age na histria humana para libertar, para

    fazer vigorar a justia e o direito em todas as naes.

    Os versos 8-9 declaram a esperana alegre do povo de Jav. Os versos 10-12

    afirmam o seu compromisso solene. Quem segue a Jav protegido por Ele, abenoado

    por Ele, encontra nele a fonte de toda felicidade. Quem segue a Jav, porm, odeia o mal,

    fiel, justo e reto de corao. Odiar o mal a outra face do amar o bem. Esta dupla exortao

    faz parte das tradies da sabedoria e dos profetas de Jud (Am 5,14-15a; Is 5,20; Sl 34,15;

    Pv 3,7; Pv 11,19; Mq 6,8). Fazer o bem fazer a vontade de Jav, praticar justia,

    socorrer o necessitado, ser fiel nos relacionamentos, ser generoso, construir a paz, a

    harmonia e a justia social. Pessoas justas e de corao reto so, portanto, as pessoas que

    amam o bem e vivem em fidelidade a Jav e seu projeto de liberdade e justia para todos.

    A proteo e a bno de Deus no so presentes automticos para qualquer um

    que v ao templo em busca de prosperidade. So ddivas de Jav para quem caminha com

    Ele em bondade, fidelidade, retido e justia. No pode ser considerado culto legtimo15 a

    Deus aquele que apenas a busca egocntrica de bno e prosperidade. No pode ser

    considerado culto legtimo a Deus aquele que visa apenas a expanso da instituio

    religiosa. O culto verdadeiro a Jav comea na vida justa e se concretiza na ao

    14 Sobre a esperana no Antigo Testamento, veja, por exemplo: GOLDINGAY, John. Old Testament Theology. Israel's Gospel. Downers Grove: InterVarsity Press, 2003, caps. 10-11, p.696-858; PREUSS, Horst D. Old Testament Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1996, vol. II, p. 253-283; FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento. Santo Andr: Academia Crist, 2006, p. 422-440.

    15 Sobre a adorao e justia na Bblia, ver, por exemplo: KRAUS, Hans-Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca: Sgueme, 1985; AMORESE, Rubem M. Celebrao do Evangelho: compreendendo culto e liturgia. Viosa: Ultimato, 1997; ALLMEN, Jean-Jacques von. O culto cristo: teologia e prtica. So Paulo: ASTE, 2006; MARTIN, Ralph L. Adorao na Igreja Primitiva. So Paulo: Edies Vida Nova, 1982.

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  • missionria da comunidade que pratica a vontade justa de Jav16. O dilogo inter-religioso

    uma das expresses dessa justia, pois atravs dele buscamos a paz, a harmonia entre os

    povos, e a justia internacional. No se trata de buscar uma nica religio para toda a

    humanidade, mas, sim, de um projeto de vida comum a todos os seres humanos projeto

    que valorize a vida de todas as pessoas e de toda a criao.

    Concluso

    Somente a prtica do direito e da justia pela igreja que adora o Deus soberano,

    pode dar legitimidade sua participao nos debates pblicos e no dilogo inter-religioso.

    Os problemas de nosso tempo no podem ser resolvidos apenas com grupos, movimentos e

    instituies de conversa e de xtase religioso. Demandam grupos, movimentos e instituies

    religiosas que exemplifiquem em sua conduta cotidiana os valores que apresentam no

    debate pblico e no dilogo inter-religioso. Nas sociedades plurais e informatizadas de hoje

    em dia, a palavra no acompanhada de comportamento tico coerente tem pouco valor. Se

    queremos praticar o dilogo inter-religioso adequadamente, nossa primeira tarefa ser a de

    viver de modo digno da soberania de nosso Deus.

    Permitam-me concluir esta fala com uma citao, j nos encaminhando para o tema

    de amanh:

    Ao olhar da espera confusa de nossos contemporneos, importante explicitar melhor todas as harmonias da salvao crist, no somente como reconciliao com Deus, mas como cura do mal-estar da condio humana e como sabedoria de vida, isto , como reconciliao consigo mesmo e com toda a criao.17

    16 Uma outra forma de expressar esta tese : a vida tica , acima de tudo, uma vida de celebrao. GRENZ, Stanley. A busca da moral. Fundamentos da tica crist. So Paulo: Vida, 2006, p. 349.

    17 GEFFR, Claude. "Para uma nova teologia das religies". In: GIBELINI, Rosino (ed.) Perspectivas teolgicas para o sculo XXI. Aparecida: Editora Santurio, 2005, p. 336.

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