A Questao Da Ocupação Dos Vazios Em Conjuntos Historicos
-
Upload
priscila-fonseca -
Category
Documents
-
view
32 -
download
3
description
Transcript of A Questao Da Ocupação Dos Vazios Em Conjuntos Historicos
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
1
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos: da reconstrução literal ao contraste radical
Nivaldo Vieira de Andrade Junior1
Do surgimento da teoria do restauro estilístico de Viollet-le-Duc, na segunda metade do século
XIX, até as primeiras décadas do século XX, o desaparecimento de todo e qualquer monumento
histórico era resolvido quase sempre com a sua reconstrução fidedigna e no mesmo local de
origem – uma reconstrução, como dizem os italianos, com’era e dov’era2.
Um exemplo bastante significativo desta postura é a reconstrução do Campanário de São Marcos,
na praça do mesmo nome, em Veneza. Após o desabamento em 1902 da torre original – uma
construção cujos trechos mais antigos remontavam ao início do século X –, a prefeitura de Veneza
se decidiu pela reconstrução de uma nova torre no mesmo lugar da original e que a repetisse em
cada um de seus detalhes. Esta reconstrução teve início em 1903, sendo finalmente concluída em
1912.
Embora a administração local veneziana jamais tenha cogitado qualquer solução distinta da
reconstrução da torre com’era e dov’era, algumas personalidades ligadas às vanguardas culturais
italiana e estrangeira se colocaram publicamente, desde o primeiro momento, contra a sua
reconstrução. O arquiteto austríaco Otto Wagner, por exemplo, em entrevista concedida a um
jornal dois dias após o desabamento, defendia não a reconstrução literal da torre desaparecida,
mas sim a construção de uma nova torre em “estilo moderno”:
Porque motivo não deveria ser representado na praça de Veneza também o estilo moderno,
uma vez que a desgraça aconteceu? [...] Seria querer falsificar a história da arquitetura se o
campanário fosse reconstruído no estilo antigo. [...] Parece-me que Veneza não tenha
sofrido graves danos pelo desabamento do seu campanário. Ela deveria recolher
amorosamente entre os escombros cada bloco, cada bronze, cada fragmento de ornamento
como lembrança histórica. Porém me agradaria vê-lo em outro ponto, porque ali onde
estava, estragava indubitavelmente a harmonia estética da praça. (Otto Wagner apud
ROMANELLI, 1985: 252)3
1 Laboratório de Requalificação Urbana do Pilar – Faculdade de Arquitetura / UFBA. e-mail: [email protected] 2 A expresssão italiana com’era e dov’era, traduzida literalmente por como era e onde estava, é utilizada para indicar as reconstruções de edifícios destruídos, realizadas no mesmo local e com as características originais. 3 Tradução do italiano realizada pelo autor.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
2
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
A posição de Wagner contra uma reconstrução fidedigna e anacrônica do Campanário de Veneza
ainda era, nos primeiros anos do século XX, uma voz discordante em um cenário no qual
predominavam as reconstruções com’era e dov’era – apesar de teóricos como Camillo Boito que,
desde a década de 1880, se colocavam contra as reconstruções e aquilo que passou a ser
chamado de falso histórico – construções contemporâneas que, contudo, não correspondem aos
padrões técnicos, estéticos e programáticos da arquitetura contemporânea, enganando o
observador.
O restauro filológico de Boito propunha uma mínima ação restauradora, prevalecendo sempre a
conservação, se colocando ao mesmo tempo contra a visão da unidade formal e estilística
propalada desde meados do século XIX por Viollet-le-Duc. A teoria boitiana começa a ser tornar
conhecida no cenário europeu apenas a partir de finais do século XIX e, principalmente, a partir da
sua sistematização – com algumas mutações – por Gustavo Giovannoni, nas primeiras décadas
do século XX.
Giovannoni será também o responsável pela difusão, a partir da década de 1910, da noção
atualmente corrente de que conjuntos urbanos históricos também podem ser considerados
patrimônio cultural e, portanto, dignos de serem preservados; Giovannoni foi o primeiro teórico do
restauro a reconhecer que não apenas os monumentos isolados devem ser objeto de ações
visando a sua preservação, como também alguns conjuntos urbanos – a chamada “arquitetura
menor”.
A inovação da sua contribuição consiste não somente na defesa da conservação de conjuntos
urbanos inteiros como também em reconhecer as relações históricas entre o monumento e o
contexto urbano em que este se insere – o seu entorno –, enunciando assim o conceito de
ambiente como definição urbana visual do monumento, na medida em que constitui sua própria
natureza imagética.
Entretanto, o problema dos centros urbanos levantado por Giovannoni se restringiu, inicialmente,
à questão da proteção e conservação das edificações existentes nestes conjuntos. As intensas
destruições provocadas nas cidades européias pelos bombardeios realizados durante a II Guerra
Mundial (1939-45) colocaram um novo problema: como reconstruir centros históricos e até mesmo
cidades inteiras destruídas pela guerra?
A partir desta pergunta, se estabelece um rico debate, que terá seus momentos mais polêmicos
na Itália. Em agosto de 1944, a destruição pelo exército alemão em retirada de quarteirões inteiros
na zona de Por Santa Maria, ao lado da Ponte Vecchio de Florença, foi o pretexto para que se
iniciasse um animado debate nas páginas da revista florentina Il Ponte, já nos primeiros meses de
1945.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
3
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
De um lado, o crítico de arte norte-americano Bernard Berenson defendia a reconstrução o mais
fiel possível dos edifícios destruídos, enquanto o italiano Ranuccio Bianchi Bandinelli denunciava
este posicionamento como “retórica do falso antigo” e, admitindo a possibilidade de intervenções
inovadoras, reivindicava o direito dos italianos de não serem simplesmente “guardiões de um
museu”, mas de habitar cidades vivas, fossem elas belas ou feias, desde que fossem “sinceras”.
Segundo Manfredo Tafuri,
na ansiosa tentativa de contrapor as qualidades da ‘civilização’ à ignomínia da barbárie, os
arquitetos toscanos [que desenvolveram o plano de reconstrução parcialmente executado]
se arriscam em projetos e polêmicas que se concluem com uma reconstrução do tecido
histórico pobre e comprometedor: [...] o acontecimento florentino desemboca também em
um fracasso, deixando, porém, emergir problemas sobre os quais parecerá correto dedicar-
se profundamente. (TAFURI, 2002: 11) 4
Apenas a partir do surgimento, na Itália dos anos 1950, das teorias do restauro crítico, o debate
penderá de forma mais clara para o lado daqueles que se posicionam contra a reconstrução
rigorosa das edificações destruídas.
Entretanto, mesmo entre os principais teóricos italianos do restauro dos anos 1950, não havia
consenso com relação à questão. Enquanto Cesare Brandi defende, em um artigo publicado em
1956 na revista L’Architettura Cronache e Storia, a proibição de qualquer edificação realizada com
arquitetura moderna nos centros antigos (BRANDI, 1956), Roberto Pane, em sua famosa
conferência Città Antiche Edilizia Nuova, contesta abertamente a suposta inconciliabilidade entre
arquitetura nova e antiga alegada por Brandi, ao mesmo tempo em que defende que se reconheça
a realidade das estratificações históricas existentes em todo e qualquer conjunto urbano que
configuram o seu ambiente – processo no qual, da mesma forma, a arquitetura contemporânea
poderia participar ativamente, reconfigurando-o:
A tese da inconciliabilidade entre a edificação nova e a antiga está baseada,
substancialmente, em uma fatalista aceitação do fato concluído, generalizando-o como um
dado inevitável e definitivo para as experiências que se deverão concluir amanhã. Desta
forma, as dimensões dos modernos edifícios e o uso do cimento e do ferro na atroz
banalidade das suas formas correntes seriam, e não poderiam deixar de ser, a imagem
mais afirmada da inconciliabilidade. O equívoco está em esquecer as numerosas
experiências positivas de aproximação do novo ao antigo [...] realizadas sem qualquer
renúncia à modernidade [...]. Aquilo que na tese da intransigência parece francamente
absurdo é querer ignorar a evidente realidade histórica da estratificação que se concluiu no
4 Tradução do original italiano realizada pelo autor.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
4
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
passado configurando, com os seus contrastes, o ambiente que desejamos salvar, e a
negação que a mesma situação possa e deva ocorrer também no presente. (PANE, 1959)5
A REINTERPRETAÇÃO DAS PREEXISTÊNCIAS AMBIENTAIS
Enquanto no âmbito da teoria do restauro Roberto Pane foi o inegável precursor na defesa da
construção de edifícios modernos em contextos históricos, no que diz respeito à atuação
profissional quem desempenhou um papel análogo no cenário italiano do segundo pós-guerra foi
Ernesto Nathan Rogers.
Através dos editoriais escritos para a revista Casabella Continuità entre as décadas de 1950 e
1960, Rogers foi o principal responsável pela consolidação e divulgação, no meio arquitetônico
italiano e internacional, de uma arquitetura moderna que busque reinterpretar criticamente as
preexistências ambientais.
No editorial de setembro de 1954 da revista Casabella, intitulado La responsabilità verso la
tradizione, Rogers apresentou pela primeira vez alguns exemplos de edifícios recentemente
realizados por arquitetos ligados ao Movimento Moderno nos quais era claramente perceptível a
preocupação em integrá-los ao contexto em que se inseriam sem, contudo, abdicarem de uma
linguagem arquitetônica moderna e da utilização de materiais e técnicas construtivas
contemporâneos:
Estas arquiteturas contemporâneas interpretam as preexistências ambientais criticamente;
mesmo quando reconhecem mais ou menos certos valores figurativos, jamais trazem a sua
linguagem específica, imitando-a. É o modo mais fecundo de continuar a tradição na
modernidade. (ROGERS, 1997: 274)6
Os edifícios citados por Rogers neste artigo estavam todos localizados na Itália, como a Bolsa de
Valores de Pistóia (Giovanni Michelucci, 1948-50) e o edifício de escritórios INA em Parma
(Franco Albini, 1950-54); ou nos países escandinavos, como o Edifício Rautatalo em Helsinque
(Alvar Aalto, 1951-54) e a menos recente Prefeitura de Goteburgo (Erik Gunnar Asplund, 1913-
37).
A partir de então, a busca pela realização de uma arquitetura que, em lugar de imitar as antigas
construções remanescentes dos terrenos vizinhos, optasse por reinterpretar, de maneira criativa e
moderna, os diversos aspectos formais das preexistências do entorno tem sido uma constante na
produção arquitetônica italiana e de outros países. Esta abordagem da questão dos vazios em
contextos históricos urbanos pode ser percebida não apenas em algumas obras dos arquitetos
5 Tradução do original italiano realizada pelo autor. 6 Tradução do original italiano realizada pelo autor.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
5
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
citados acima, como Aalto, Asplund, Albini7 e Michelucci, mas também na produção projetual de
nomes como os italianos Carlo Scarpa8, Vittorio Gregotti9, Roberto Gabetti e Aimaro d’Isola10 e
Cino Zucchi11.
A partir da década de 1960, um enfrentamento semelhante da questão da ocupação dos vazios
em conjuntos históricos pode ser encontrado em países como Portugal e Espanha, em algumas
obras dos arquitetos da Escola do Porto, como Fernando Távora12 e Álvaro Siza13, ou em projetos
de Rafael Moneo14, Juan Navarro-Baldeweg15 e Josep Llinàs16.
No Brasil, um exemplo bastante interessante desta postura é o Edifício Ipê, projetado em 1965 por
Paulo Ormindo de Azevedo, quando este trabalhava como colaborador do IPHAN17. Este edifício
de uso misto se insere harmoniosamente no tecido urbano do Centro Histórico de Salvador, em
um lote de esquina cercado por sobrados construídos entre os séculos XVII e XIX, e traz para o
Brasil o debate italiano a respeito das preexistências ambientais.
Ao repetir a cobertura em telhas cerâmicas, a altura e a volumetria dos sobrados vizinhos, o
edifício desenhado por Paulo Ormindo de Azevedo consegue estabelecer uma continuidade visual
com as antigas edificações que lhe são vizinhas. A afirmação da sua modernidade, por sua vez, é
obtida seja pela reinterpretação do ritmo das fachadas vizinhas, através da estrutura em concreto
aparente, seja pelos largos e salientes painéis horizontais de madeira treliçada que, à altura do
primeiro pavimento, substituem os balcões das edificações tradicionais da zona, seja ainda pelo
fechamento dos intercolúnios com painéis modulares de madeira e pelas janelas quadradas e
centralizadas dos dois pavimentos superiores.
Ao projetar este edifício, Paulo Ormindo pretendeu, na verdade, restaurar a ambiência daquele
trecho do Centro Histórico: defendendo uma reintegração paisagística, o arquiteto propõe uma
arquitetura moderna que se integre às preexistências ambientais, tal como defendia Rogers:
7 Além do edifício de escritórios INA de Parma, Albini realizou outros projetos de integração com as preexistências ambientais, como a Loja de Departamentos La Rinascente em Roma (1957-61) 8 O Banco Popular de Verona (1972-81), dentre outros projetos. 9 Em projetos como o Centro Cultural de Belém, em Lisboa (1988-93) e o Complexo Residencial em Cannaregio, em Veneza (1981-2002) 10 Em construções como o conjunto residencial localizado na via Sant’Agostino, em Turim (1980-84), mais do que no polêmico projeto da Bottega di Erasmo (1953-56), na mesma cidade. 11 Destacando-se o premiado projeto do complexo residencial construído na antiga área Junghans em Veneza (1996-2002). 12 A influência da arquitetura norte-italiana de Rogers et alli pode ser particularmente percebida no Edifício Municipal e Biblioteca de Aveiro (1963-70). 13 Dentre as obras de Siza realizadas em conjuntos históricos, destaca-se a delicadeza da inserção do Centro Galego de Arte Contemporânea (1988-93) no centro histórico de Santiago de Compostela, ao lado de um convento do século XVII. 14 Diversos exemplos podem ser encontrados na obra recente de Moneo, como o Museu de Arte Romana de Mérida (1980-85), a Casa de Cultura de Don Benício (1991-97) e, principalmente, a Prefeitura de Múrcia (1991-98). 15 Principalmente a Prefeitura de Vila-Seca (1995-98) e o Edifício Carme em Barcelona (1989-94). 16 Na obra de Navarro-Baldeweg, o melhor exemplo de integração crítica com o contexto preexistente está no Centro Cultural e Museu Hidráulico de Múrcia (1984-89). 17 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do Ministério da Cultura responsável pela identificação, documentação, preservação e divulgação do patrimônio cultural brasileiro. Criado em 1937 como SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), passou por diversas denominações até se transformar definitivamente em IPHAN, em 1994. Neste trabalho, utilizaremos preferencialmente a sigla IPHAN para nos referirmos ao órgão, independentemente do período abordado.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
6
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
A restauração não deve se limitar aos edifícios em separado. Deve recriar a atmosfera dos
espaços externos como ladeiras, vielas, largos e encostas, através da restauração das
relações de cores das calçadas e pisos, espécies vegetais, etc. A reintegração paisagística
do conjunto com a cidade que cresceu em torno deve ser estudada a partir dos locais
públicos de observação. [...] Especial atenção deve ser dada à abordagem do conjunto. A
seqüência de emoções que culminam com o encontro do conjunto constitui a iniciação do
observador à compreensão do monumento.
Nos casos de demolições anteriores ao tombamento ou de acidentes que provocaram a
ruína dos prédios ao ponto de impedirem a recuperação, a construção de edifícios com
feição antiga é condenável. Não só pela inautenticidade, como pela impossibilidade de
reproduzir com fidelidade, inclusive em sua rusticidade, edifícios do passado, quando já não
existe o artesanato construtivo que os produziu. [...] Nestas situações o que se deseja são
soluções válidas como expressão arquitetônica atual, embora orientadas na manutenção
das linhas gerais de composição da quadra e na inalterância das relações de volume,
textura e cor (AZEVEDO, 1965: 17).
A MANUTENÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DOS VAZIOS
Existem alguns casos, atualmente menos comuns, em que o problema do desaparecimento de
uma construção no interior de um conjunto histórico urbano é afrontado não através da
reconstrução do edifício desaparecido ou da realização de uma nova arquitetura, mas sim com a
consolidação do vazio. Esta abordagem encontra suas raízes mais remotas no conceito de
diradamento edilizio, estabelecido por Gustavo Giovannoni no início do século XX.
O diradamento – que poderia ser traduzido por desbastamento – corresponde originalmente à
retirada de acréscimos espúrios de edifícios históricos ou à demolição de edifícios de menor valor
dentro do tecido urbano consolidado, tendo como objetivos destacar visualmente os elementos e
monumentos arquitetônicos de maior valor, bem como reduzir o caos provocado pelo excessivo
adensamento dos centros históricos.
Atualmente, os casos em que o vazio decorrente do desaparecimento de construções em
conjuntos históricos tem sido consolidado correspondem quase sempre ou a um desejo deliberado
de perpetuar na memória coletiva o episódio que levou ao desaparecimento daquele edifício
(como um incêndio, terremoto, ou mesmo um ataque terrorista18) ou a uma forma de criar espaços
abertos de uso coletivo em conjuntos altamente densificados.
18 O debate que se seguiu ao desabamento das Torres Gêmeas do World Trade Center de Nova York, como conseqüência de um ataque terrorista realizado em 11 de setembro de 2001, levantou várias hipóteses a respeito do que fazer com o imenso clarão surgido
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
7
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
No primeiro caso, é representativa a polêmica suscitada após o imprevisto desabamento, em 17
de março de 1989, da Torre Cívica de Pavia, que resultou na morte de quatro pessoas e em mais
de trinta feridos. O desabamento provocou um intenso debate entre especialistas em restauro,
estudiosos da arquitetura e gestores urbanos, em que se defendiam posições tão distintas quanto
a reconstrução com’era e dov’era da torre, a execução de uma nova torre em linguagem atual e a
sua reconstituição através de feixes de raio laser; a decisão final, contudo, consistiu em
simplesmente remover os escombros da torre, preservando a sua base e as suas fundações, junto
às quais foi afixada uma placa em memória das vítimas fatais do episódio.
No que se refere à consolidação de vazios em conjuntos urbanos, em detrimento da sua
reocupação, visando criar espaços abertos de uso coletivo, é interessante analisar o caso do
terreno estreito e profundo localizado no Largo do Pelourinho, em Salvador, quase em frente à
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Neste terreno, resultante da destruição pelo fogo de três sobrados muitos anos antes, o arquiteto
Pasqualino Magnavita desenvolveu, entre 1992 e 1994, o projeto de um palco móvel, uma sala de
espetáculos que estaria dentro do terreno baldio, porém que poderia deslizar, como uma gaveta,
sobre o Largo do Pelourinho até quase tocar a Igreja do Rosário dos Pretos, se transformando em
um palco aberto, voltado para a parte mais alta do largo, onde a platéia poderia se posicionar:
uma edificação, cujo elemento dominante da composição é uma grande sala que, quando
necessário, desliza em balanço sobre o Largo do Pelourinho, transformando-se, quase num
toque de mágica, num palco para espetáculos. Tal movimento se constitui, no nosso
entender, em um espetáculo à parte. (MAGNAVITA, 1995: 124)
O projeto de Pasqualino Magnavita associava a recomposição volumétrica do conjunto urbano à
criação de um importante equipamento cultural, evitando a constante montagem e desmontagem
de palcos provisórios que, ainda hoje, representam um grande investimento de recursos
financeiros e a inserção de um desagradável elemento na paisagem.
Entretanto, apesar de contar com o apoio do órgão municipal de cultura, o projeto foi arquivado e,
em seu lugar, neste mesmo terreno, foi realizado pelo Governo do Estado da Bahia um pequeno
espaço aberto para realização de espetáculos, cercado de bares e lanchonetes, consolidando
assim, de uma vez por todas, o vazio urbano e a interrupção na contínua fachada do casario
voltado para o Largo do Pelourinho.
O CONTRASTE RADICAL dentro de Manhattan, dentre elas a manutenção do vazio como testemunho da brutalidade do atentado realizado por fundamentalistas muçulmanos. Esta proposta se tornou inviável devido às próprias dimensões do vazio resultante dos atentados, bem como do seu elevado valor de mercado.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
8
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
Apesar da defesa, por parte de alguns arquitetos e teóricos do restauro, de uma arquitetura
moderna e ambientada, particularmente em países como Itália, Espanha e Portugal, em outros
contextos têm prevalecido intervenções que buscam, de forma deliberada, contrastar o mais
radicalmente possível com os conjuntos históricos em que ocorrem.
Estas intervenções, quase sempre bastante polêmicas, têm como um dos seus marcos
referenciais a construção do Centro Georges Pompidou em Paris (1971-77), projeto de Renzo
Piano e Richard Rogers. O Centro Pompidou representou a primeira de uma série de intervenções
em contextos históricos na França com uma abordagem que priorizava a utilização de materiais
leves e contemporâneos, como o aço e o vidro, criando indiscutíveis contrastes com os contextos
em que ocorrem.
Localizado no bairro medieval do Marais e na imediata vizinhança de edifícios antigos como a
Igreja de Saint Eustache (séc. XVI), o Centro Pompidou se constitui em um elemento
absolutamente estranho na paisagem, seja pelas suas dimensões, que destoam do fragmentado
contexto urbano em que se situa, seja pela leveza da sua estrutura em aço e do fechamento em
vidro, em contraste com as sólidas construções do entorno, seja ainda pelas vibrantes cores
utilizadas para marcar as diversas instalações e equipamentos. Embora seja indiscutível a
importância do Centro Pompidou na requalificação desta zona central de Paris, até então bastante
degradada, bem como o seu papel simbólico ao criar um novo marco para a capital francesa, é
também inquestionável o contraste que este imenso equipamento urbano estabelece com o
fragmentado tecido urbano em que se situa.
Embora mais recentemente tenham predominado na França as intervenções que, se utilizando de
materiais leves como aço e vidro, buscam referências tipológicas e morfológicas no entorno,
continuam a ser realizadas intervenções significativas que contrastam de maneira radical com o
conjunto em que se inserem. Dominique Perrault, por exemplo, tem realizado projetos com estas
características e é um declarado defensor da violência e do radicalismo como qualidades da
arquitetura:
Acredito que a violência é uma qualidade da arquitetura; encontro nela um radicalismo vital,
a manifestação primeira e primordial dos elementos. Trata-se de uma violência paradoxal
que reivindica abertamente a complexidade e que, ao mesmo tempo, é uma reafirmação da
simplicidade [...].
Na medida em que assumimos que construir consiste em criar o proibido – uma vez que se
segrega um lugar do outro –, conseqüentemente trata-se de um gesto paradoxal, já que a
arquitetura que nos protege é também um instrumento de segregação. Eu quero levar em
consideração essa dimensão e assumi-la plenamente, fora de qualquer demagogia, como
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
9
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
um fator determinante do projeto. Tudo depende do que entendemos por ‘violência’: para
mim se trata de assumir um ato. [...] Se o tempo histórico – o contexto com seu valor
histórico – já não é para mim mais que um referencial relativo, o tempo real sobressai como
portador que uma riqueza absoluta. A noção de ‘contexto’ já não é determinante; o valor do
específico, o que realmente qualifica um projeto, é o contexto em um dado momento. Não
consigo segregar o contexto da noção de ‘tempo’; o contexto não tem mais que a dimensão
da imobilidade [...]. (Dominique Perrault apud EL CROQUIS, 2001: 9-10)19
A Grã-Bretanha é outro terreno fértil para esta abordagem nas últimas décadas. Embora a City
londrina20 não se constitua exatamente em um conjunto histórico homogêneo e totalmente
conservado, nela estão localizadas diversas construções e conjuntos de edifícios que são
protegidos por legislações específicas, e é nas suas ambiências – e muitas vezes em substituição
a edifícios tombados ou de grande valor arquitetônico – que alguns destes projetos vêm sendo
realizados. Enquanto o edifício-sede do Banco Lloyd’s (Richard Rogers, 1978-86) representou um
marco da realização da arquitetura high-tech em pleno centro de Londres, os projetos mais
recentes de Norman Foster, como a nova Prefeitura de Londres (1998-2002) e a Torre Swiss Re
(1997-2004), se configuram em elementos de grande contraste no ambiente urbano em que se
situam.
A Prefeitura de Londres fica nas proximidades de alguns dos mais importantes marcos urbanos de
Londres, como a Tower Bridge, e com 45 metros de altura e 45 metros de diâmetro, possui formas
curvas e materiais de revestimento que não estabelecem relações de continuidade visual com
quaisquer das construções do entorno. Da mesma forma, a Torre da Swiss Re se caracteriza
pelas formas curvas e pelo revestimento em vidro, criando uma situação de contraste radical com
o contexto urbano, que é agravada pelos seus 180 metros de altura. Neste caso específico, a
polêmica não se restringe à sua inusitada e fálica forma – que lhe rendeu o apelido de “pepino
erótico” –, mas se deve também ao fato de se localizar no eixo visual da Catedral de Saint Paul e
de ter representado a demolição das ruínas de um edifício tombado do início do século XX.
Outro exemplo de intervenção em conjunto histórico realizada recentemente na Grã-Bretanha e
que estabelece um contraste radical com o contexto é o edifício do Parlamento Escocês em
Edimburgo (1998-2004). Neste projeto, o contraste ocorre menos pelos materiais utilizados – já
que materiais tradicionais, como granito e madeira, são empregados junto ao aço e ao vidro – e
mais pela linguagem arquitetônica particular desenvolvida pelo arquiteto Enric Miralles,
caracterizada pela complexidade, pela tensão visual, pelas formas incomuns utilizadas e pela sua
escala monumental, decorrente do vasto programa e do seu significado simbólico, fazendo com
19 Tradução do espanhol realizada pelo autor. 20 A City de Londres é o seu centro financeiro e corresponde ao núcleo medieval da cidade.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
10
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
que os novos edifícios atuem de maneira contrastante com as demais construções do centro
histórico de Edimburgo.
Também na Áustria vêm sendo realizadas algumas intervenções em contextos históricos com
uma abordagem de contraste radical. Um dos exemplos recentes mais polêmicos de intervenções
de contraste radical em conjuntos históricos é certamente o Kunsthaus, a Galeria de Arte
Contemporânea de Graz (2000-03), realizado dentro do conjunto declarado como Patrimônio da
Humanidade pela Unesco em 1999.
A construção do Kunsthaus sem que fosse realizada uma consulta prévia à Unesco, somada à
realização de outras intervenções polêmicas, levou esta agência da ONU a cogitar a retirada do
título de Patrimônio da Humanidade anteriormente concedido a Graz (UNESCO, 2005). Esta
postura de confronto estabelecida entre o novo centro cultural e o centro desta cidade histórica
austríaca não é, contudo, de forma alguma encarada pelos autores do projeto, Peter Cook e Colin
Fournier, como algo negativo:
O melhor presente que uma cidade pode se dar é oferecer aos escritores, artistas, músicos,
designers e arquitetos a oportunidade de desafiar seu contexto histórico com alegre
irreverência e transgredir as regras estabelecidas. Graz sempre agiu bem neste sentido e
mantém uma animada vanguarda em várias frentes, daí o particular desafio que foi para
nós, enquanto forasteiros, participar do concurso internacional para o novo Kunsthaus e
implantar um novo animal no coração da cidade. [...] Ele é deliberadamente um alienígena,
que não se refere, nem na sua forma, nem nos seus materiais, ao vocabulário arquitetônico
do tecido urbano do entorno, com suas coberturas em telhas vermelhas. A nova construção
surge como algo de outro planeta e parece que a cidade está grata pela provocação.
Quanto tempo levará até que ela se torne familiar? Quem jogará a próxima carta e qual será
ela? Está na natureza da transgressão atrair mais transgressão e aí está a graça do jogo.
(FOURNIER, s/d)
Um dos exemplos mais conhecidos – e polêmicos – de intervenções de contraste radical é à Torre
John Hancock (1967-76) em Boston, Estados Unidos: um edifício de escritórios de 60 pavimentos,
localizado na Copley Square, em pleno centro de Boston e na vizinhança imediata de dois
importantes edifícios do século XIX – a Trinity Church (1872-77) e o neo-renascentista edifício da
Biblioteca Pública (1888-95).
Pelas suas gigantescas dimensões e pelos painéis de vidro que recobrem a totalidade das suas
fachadas, o edifício projetado por Ieoh Ming Pei e Henry Cobb se configura em um elemento
absolutamente exógeno ao contexto em que se insere:
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
11
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
A simetria quadrilateral da Copley Square de Boston, onde se encontram face a face a
Igreja da Trindade de H. H. Richardson e a biblioteca pública de McKim, Mead e White, foi
visualmente trespassada pela introdução de uma cunha em diagonal ali perto, o enorme
arranha-céus rombóide da Torre John Hancock. Em casos como este, a adição pode ser
simplesmente absorvida e subordinada pelo cenário existente – possibilidade improvável
neste caso, devido ao volume e à altura do intruso. Ou então, a nova estrutura e a antiga
podem reorganizar-se e constituir uma nova configuração coesa. Mas provavelmente, a
colisão de dois padrões incompatíveis terá como resultado a mútua rejeição – e desordem
significa destruição visual. (ARNHEIM, 1988: 20)
No Brasil, há diversos exemplos de intervenções de contraste radical realizadas a partir do
surgimento da arquitetura moderna no Brasil, como a Caixa d’Água de Olinda, construída entre
1934 e 1937 em pleno centro histórico e em frente à Igreja da Sé – um edifício que contrasta
radicalmente com o entorno em todos os seus aspectos, e cuja construção hoje certamente não
seria permitida.
A partir dos anos 1940 e 1950, com a consolidação da arquitetura moderna no Brasil, estas
intervenções se tornaram cada vez mais comuns. A construção de edifícios verticais sobre pilotis,
com fachadas em combogós ou brise-soleils, se torna uma constante mesmo no interior de
conjuntos históricos.
Em Salvador, podemos citar dois importantes edifícios do ponto de vista da afirmação da
arquitetura moderna da Bahia, porém realizados nos limites do Centro Histórico de Salvador e na
vizinhança imediata de monumentos tombados: o edifício Octacílio Gualberto (1952-53) e o
edifício Ranulfo de Oliveira (1945-60), erguidos em terrenos vizinhos na Rua José Gonçalves,
entre o viaduto da Sé e a praça do mesmo nome. Os edifícios foram construídos nos limites de um
conjunto de edificações seculares e ao lado de sobrados do período colonial, como o Mirante do
Saldanha, tombado pelo IPHAN desde 1941.
Os autores de ambos os projetos – Diógenes Rebouças e Hélio Duarte, respectivamente – eram
arquitetos ligados ao Movimento Moderno e, ao mesmo tempo, colaboradores do IPHAN. Parece-
nos claro que nestes projetos eles estivessem mais preocupados em realizar manifestos da nova
arquitetura do que em estabelecer uma continuidade visual com as preexistências do entorno.
Isto pode ser percebido tanto pelo emprego de boa parte do repertório da arquitetura moderna
brasileira – volume erguido sobre pilotis que deixam livre o pavimento térreo, cobertura em
terraço-jardim e quebra-sóis nas fachadas (este último apenas no caso do projeto de Diógenes) –
quanto pelos croquis do projeto definitivo do Edifício Ranulfo de Oliveira, publicados em 1948, em
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
12
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
que o mesmo aparece isolado, sem que as edificações históricas que rodeavam o terreno fossem
sequer representadas.
Embora hoje esse contraste com o contexto não seja mais percebido tão facilmente, uma vez que
diversos outros edifícios modernos foram construídos na mesma zona desde então, nos anos
1950 aqueles edifícios se constituíam em exceções em um contexto formado por construções
baixas, solidamente assentadas sobre o terreno, com coberturas em telhas cerâmicas e grandes
planos lisos de fachada permeados por pequenas aberturas verticais – características
absolutamente distintas daquelas propostas nas novas torres de escritórios.
Estas intervenções de contraste radical grassaram no Brasil – embora não chegassem a ser
hegemônicas – pelo menos até o final dos anos 1970. Uma das intervenções mais agressivas de
que se tem notícia, pela transformação radical que realiza na paisagem em que ocorre, é a
construção do edifício das Faculdades Cândido Mendes no Rio de Janeiro (Harry Cole, 1976-82).
Em diversos aspectos semelhante à Torre John Hancock de Boston, este edifício foi construído no
pátio do Convento do Carmo, um dos edifícios mais antigos do Rio de Janeiro e que remonta a
1619.
Além das interferências na leitura da imagem e da espacialidade interna do próprio Convento do
Carmo, este arranha-céu de 45 pavimentos, com fachadas totalmente revestidas em vidro escuro
espelhado, modifica totalmente a percepção da Praça XV de Novembro, um dos espaços mais
antigos e significativos do ponto de vista da história do Rio de Janeiro e onde se encontram
diversos monumentos arquitetônicos, como o Paço Imperial e o Arco do Teles.
A ARQUITETURA PÓS-MODERNA E A RECONSTRUÇÃO CRÍTICA
Apesar da busca de uma arquitetura que levasse em consideração as preexistências ambientais,
por parte de alguns arquitetos ligados ao movimento moderno, a partir dos anos 1950 a
arquitetura e o urbanismo modernos serão objeto de críticas cada vez mais intensas, culminando
com a publicação de textos, nas décadas seguintes, de textos como L’Architettura della Città
(1966), de Aldo Rossi21; Complexity and Contradiction in Architecture (1966) e Learning from Las
Vegas (1972), de Robert Venturi22; e Collage City (1978), de Colin Rowe e Fred Koetter23. Estes
textos serão utilizados pelos defensores de uma nova arquitetura, fortemente influenciada pela
cultura pop e de massas e que se apropria de elementos da arquitetura vernacular e dos estilos
21 ROSSI, 1995. 22 VENTURI, 1995; VENTURI et alli, 2003. No caso de Learning from Las Vegas, em co-autoria com Densie Scott-Brown e Steven Izenour. 23 ROWE & KOETTER, 1978.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
13
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
arquitetônicos do passado, em um “empório de estilos” complexo e fragmentado: a chamada
arquitetura pós-moderna.
A arquitetura pós-moderna se desenvolve simultaneamente nos Estados Unidos (através das
obras de Venturi, Robert Stern, Michael Graves e Charles Moore, dentre outros), no Japão (Arata
Isozaki e Takefumi Ainda) e na Europa (com o austríaco Hans Hollein, o francês Christian de
Portzamparc, o espanhol Ricardo Bofill, os italianos Aldo Rossi e Paolo Portoghesi, os alemães
O.M. Ungers e Josef Paul Kleihues e o inglês James Stirling), ainda que de formas bastante
distintas: o sério racionalismo de Aldo Rossi, embora resgate formas arquetípicas da arquitetura
das antigas cidades italianas, pouco tem em comum com a ironia pop que caracteriza a obra de
Robert Venturi, por exemplo.
Embora a consolidação da arquitetura pós-moderna enquanto movimento coletivo tenha ocorrida
apenas em 1980, com a realização da I Bienal de Arquitetura de Veneza24, a oportunidade para
que estes arquitetos realizassem intervenções concretas em larga escala ocorreu em Berlim
Ocidental, a partir do início de 1979, com a nomeação de Josef Paul Kleihues como coordenador
do setor Neubau (novas construções) da IBA (Internationale Bauaustellung Berlin – Exposição
Internacional de Construção de Berlim), uma exposição de arquitetura que pretendia comemorar o
750º aniversário da cidade, em 1987.
Desde o início da década de 1970, Kleihues desenvolvera, partindo da teoria urbanística de Aldo
Rossi e de estudos específicos da realidade de Berlim, uma nova teoria de desenho urbano,
denominada reconstrução crítica, segundo a qual o traçado e a morfologia históricos devem ser
resgatados em intervenções em vazios existentes nos conjuntos urbanos consolidados.
Diferentemente das diversas exposições de arquitetura realizadas na Alemanha desde a
Weissenhofsiedlung de Stuttgart (coordenada por Mies van der Rohe em 1927), em lugar de
construir edificações isoladas em uma área desocupada na periferia das grandes cidades, a IBA
iria buscar preencher os imensos vazios existentes no núcleo urbano de uma cidade destruída
pela guerra e fragmentada pela divisão da nação.
Centenas de arquitetos da Alemanha Ocidental e do mundo participaram da IBA e, ainda que
escritórios absolutamente desvinculados da arquitetura pós-moderna também estivessem
envolvidos25, a IBA demonstrou ser um terreno extremamente fértil para a aplicação do
historicismo pós-moderno no contexto de uma paisagem urbana preexistente – ainda que
fragmentada e com imensas e contínuas lacunas.
24 A exposição que obteve maior repercussão na I Bienal de Arquitetura de Veneza, dirigida por Paolo Portoghesi, foi a Via Novissima, na qual vinte dos principais nomes ligados à arquitetura pós-moderna foram convidados a realizar fachadas de uma fictícia rua urbana, no interior das Corderie onde se realiza a Bienal. 25 Como por exemplo o OMA (Office for Metropolitan Architecture, dirigido por Rem Koolhaas), e os escritórios de Peter Eisenman, Zaha Hadid, John Hejduk e Herman Hertzberger.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
14
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
Josef Paul Kleihues e sua teoria da reconstrução crítica continuam extremamente influentes no
processo de reconstrução de Berlim, acelerado a partir da reunificação, em 1990, e da
transferência da sede do governo nacional para lá, em 1999. Hans Stimmann, o Diretor-Chefe de
Arquitetura e Urbanismo da Prefeitura de Berlim – responsável pela reconstrução da capital em
seu período mais pujante –, adotou as idéias de Kleihues e as levou às últimas conseqüências.
Buscando resgatar a Berlim do seu período áureo – a capital do Império Alemão entre a unificação
(1870) e a ascensão nazista (c. 1933) –, Stimmann ignora as transformações sociais, políticas,
econômicas e culturais ocorridas nos últimos sessenta anos e propõe a reconstrução crítica – e
muitas vezes acrítica – de pedaços inteiros da cidade.
Daniel Libeskind, um arquiteto da vanguarda deconstrutivista que participou de alguns projetos
durante a reconstrução berlinense dos últimos anos26, afirmou que as posturas de Stimmann
“estão transformando a fascinante diversidade da cidade em uma uniformidade banal” e que “a
abordagem de Stimmann simplesmente apaga os últimos cinqüenta anos da história de Berlim”
(Daniel Libeskind apud REMPEL, 2000)27.
Uma das intervenções contra as quais Libeskind parece se colocar contra corresponde ao projeto
para um quarteirão em Schützenstrasse, em Berlim, realizado entre 1992-97. Em um quarteirão
anteriormente ocupado por palacetes ecléticos e quase totalmente destruído, Aldo Rossi projetou
um edifício estrutural e funcionalmente único, de gabarito e alinhamentos uniformes, que ocupa de
forma contínua toda a periferia do quarteirão, incorporando os poucos edifícios remanescentes.
Visando fragmentar este imenso bloco em termos visuais, Rossi tratou o quarteirão como um
conjunto de edifícios independentes, resgatando na aparência o parcelamento histórico da zona.
Desta forma, cada “unidade” recebe revestimentos e esquadrias de cores e características
diferentes e é tratada, em termos de volumetria e até mesmo de linguagem arquitetônica, de
maneiras distintas, dissociando estrutura e aparência, espaço e imagem. Embora a referência
predominante seja a arquitetura berlinense do final do século XIX, Rossi realizou até mesmo uma
réplica em argamassa pré-moldada do Palazzo Farnese de Roma (séc. XVI), em uma das
“unidades” que compõem o conjunto.
Embora a teoria da reconstrução crítica não tenha tido uma repercussão significativa no Brasil,
algumas edificações construídas em terrenos vazios de conjuntos históricos tombados têm se
identificado com esta abordagem, pelo respeito rigoroso a aspectos da preexistência como
volumetria, alinhamentos e gabarito, associados a uma recriação dos detalhes e elementos
arquitetônicos em materiais contemporânea.
26 Além de participar de diversos concursos de reconstrução urbana, Libeskind desenvolveu o projeto do Museu Judaico de Berlim, um edifício construído em anexo à barroca sede do Museu de Berlim entre 1989 e 2001. 27 Tradução do inglês realizada pelo autor.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
15
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
É o caso, por exemplo, da Residência do Arcebispo de Mariana, em Minas Gerais, projeto
desenvolvido e executado entre 1982 e 1997 pelos arquitetos Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Sylvio
de Podestà – não por acaso considerados os nomes mais importantes da arquitetura pós-
moderna brasileira.
Neste projeto, realizado em uma praça dentro do conjunto tombado desta cidade histórica mineira,
os arquitetos criam um edifício que repete a arquitetura tradicional no que se refere à volumetria,
aos alinhamentos e ao gabarito; além disso, se apropriam de alguns elementos e características
encontrados nas construções do entorno, como as telhas cerâmicas capa-canal que compõem a
cobertura em quatro águas, as janelas de dimensões e desenho semelhantes aos dos edifícios
vizinhos e o reboco branco que predomina nas paredes externas.
Os detalhes arquitetônicos, por sua vez, são reinterpretações da arquitetura tradicional mineira: as
aberturas são cavadas no volume, sem maiores rebuscamentos, porém com molduras bem
marcadas, enquanto no lugar das estruturas autônomas de madeira da arquitetura tradicional, são
realizados “cunhais” de aço. No interior, por sua vez, as referências à arquitetura colonial estão
nas colunas do pátio e na kitsch capela semi-enterrada, rica em cores e luzes, que pretende ser
uma releitura da cultura popular e do barroco mineiros:
O encontro do novo com o antigo é uma postura delicada e polêmica. Diversas posições,
análises e colocações estéticas, filosóficas e mesmo políticas, são contraditórias e
consonantes. É inevitável que este encontro aconteça em centros históricos, pela
necessidade de reconstrução e da própria revitalização do antigo. Todos os períodos
históricos são importantes com as suas construções. É pacífica a convivência dos mesmos
pois, se autênticos, são frutos da criação do espírito humano.
[...] O patrimônio ambiental urbano não se limita aos valores isolados das edificações que o
compõem. Na análise para o projeto verificamos, pelas alturas dos sobrados, suas
gradações cromáticas e pelo ritmo das aberturas, que o espaço em questão é contínuo sem
ser monótono. Nossa proposta foi manter a complementar a harmonia do espaço urbano.
O prédio apresenta características de um contraponto final. Sua leitura é atual, mas dentro
da harmonia do entorno. Possui aberturas planos aberturas. As aberturas são cavadas no
volume, despidas de qualquer rebuscamento. Marcos e quadros de aço são a
representação contemporânea das antigas estruturas autônomas de madeira. (MAIA &
VASCONCELLOS, 1995)
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
16
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
RECONSTRUÇÕES LITERAIS E ARQUITETURA DE PASTICHE
A teoria da reconstrução crítica de Kleihues tem levado, em alguns casos, a verdadeiras
reconstruções literais dos edifícios desaparecidos, em que se torna bastante difícil ao observador
diferenciar a arquitetura recém construída daquela que lhe serve de referência, configurando-se
muitas vezes em verdadeiros falsos históricos. Alguns dos exemplos mais claros desta
abordagem podem ser encontrados nas intervenções realizadas recentemente na Pariser Platz.
Historicamente um dos pontos mais significativos da imagem e da vida urbana de Berlim, é nesta
praça que está localizado o Portão de Brandemburgo (1791), um dos principais símbolos da
cidade. Com os bombardeios durante a II Guerra Mundial, todas as construções desta praça
foram reduzidas a ruínas, sendo em seguida demolidas devido ao fato da Pariser Platz ter se
transformado em uma zona limítrofe entre os dois setores em que Berlim se viu dividida28.
Em 1993, já após a unificação, o Senado alemão se decidiu pela recomposição da praça através
dos critérios da reconstrução crítica: as novas edificações deveriam resgatar a volumetria e os
antigos usos das construções anteriormente existentes, demolidas como conseqüência dos danos
provocados pelos bombardeios aliados durante a II Guerra Mundial. Segundo os parâmetros
estabelecidos pela Prefeitura entre 1993 e 1996, as novas edificações deveriam ainda ter suas
fachadas formadas por três níveis (embasamento, corpo e coroamento), deveriam ser revestidas
com pedra natural opaca e não poderiam apresentar um percentual de fenestrações superior a
49%.
Embora estes rigorosos parâmetros urbanísticos não tenham impedido totalmente a realização de
construções claramente contemporâneas, como nos prova o edifício do DG-Bank de Frank O.
Gehry (1995-2001) localizado na mesma praça, em alguns casos termina por favorecer o
surgimento de uma arquitetura anacrônica e passadista.
Por exemplo, os dois edifícios de uso cultural que ladeiam o Portão de Brandenburgo, a Haus
Liebermann e a Haus Sommer, projetados pelo próprio Josef Paul Kleihues entre 1996 e 1998,
são reconstruções quase fidedignas das construções neoclássicas anteriormente existentes no
local – dois palacetes residenciais construídos na década de 1840, dos quais as novas edificações
retomam não apenas a volumetria, o gabarito, os alinhamentos e o ritmo da fenestração, conforme
determina a legislação urbanística vigente, como também a linguagem arquitetônica e os materiais
28 A derrota alemã na II Guerra Mundial dividiu o país, assim como a antiga capital, em quatro setores a partir de 1945. Estes setores eram administrados por cada uma das quatro potências aliadas, vencedoras da guerra: União Soviética, Estados Unidos, França e Grã-Bretanha. Com o azedamento das relações entre a União Soviética e as demais nações aliadas, no que ficou conhecido como Guerra Fria, os setores francês, britânico e norte-americano foram agrupados, em maio de 1949, na República Federal da Alemanha (RFA), com capital em Bonn; e os respectivos setores de Berlim passaram a constituir Berlim Ocidental. Como retaliação, em outubro do mesmo ano os soviéticos instalaram a República Democrática da Alemanha (RDA), socialista, na zona oriental da antiga Alemanha, com capital em Berlim Oriental, o antigo setor soviético berlinense. A partir de agosto de 1961, as comunicações entre os setores ocidental e oriental da antiga capital alemã, que já eram precárias desde o início da Guerra Fria, foram praticamente exterminadas, com a construção de um imenso e vigiado muro que impedia qualquer tipo de contato entre os cidadãos dos dois setores.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
17
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
utilizados. Da mesma forma que o Hotel Adlon, reconstrução inaugurada em 1997 do homônimo
hotel erguido na Pariser Platz em 1907, correspondem a edificações anacrônicas, que apenas os
conhecedores das transformações urbanas daquele espaço são capazes de identificar como
construções realizadas recentemente.
É interessante notar que, apesar da linguagem historicista, os edifícios de Kleihues possuem um
pavimento a mais que aqueles anteriormente existentes, enquanto o novo Hotel Adlon, embora
repita os arcos no embasamento, o revestimento em pedra e a cobertura em cobre com lucarnas,
dentre outras características do antigo hotel, duplica a área da construção original, ocupando
também o terreno vizinho ao do hotel original.
Em resumo, correspondem a reconstruções quase fidedignas dos edifícios anteriormente
existentes naqueles locais que, aceitando modificações mais ou menos sutis no que se refere ao
gabarito e às dimensões originais, terminam por se afastar do conceito de reconstrução crítica
estabelecido pelo próprio Kleihues.
A ânsia reconstrutiva em Berlim não conhece limites, chegando a propor, nos últimos anos, a
reconstrução literal do Castelo Real dos Hohenzolern, edifício de feição barroca que remontava ao
século XV e que fora demolido em 1950 para dar lugar à imensa Marx-Engels-Platz, praça cívica
de Berlim Oriental destinada às marchas e desfiles oficias da antiga República Democrática da
Alemanha.
O projeto de reconstrução do Castelo, incluindo os suntuosos salões internos, encontra-se em
discussão na Alemanha e tem recebido o apoio de diversos políticos importantes, como o ex-
presidente Johannes Rau e o primeiro-ministro Gerhard Schröder, além de intelectuais, artistas e
arquitetos, como I.M. Pei e Philip Johnson.29
De uma maneira geral, no Brasil, a reconstrução dos edifícios desaparecidos em conjuntos
históricos – ou a sua realização de maneira esquemática, o que não chega a ser muito diferente –
representou, entre os anos 1940 e 1960, uma espécie de política oficial do IPHAN para
intervenções em sítios tombados.
Como nos informa Lia Motta, enquanto nos primeiros anos o IPHAN defendia a construção de
uma arquitetura que atendesse apenas em linhas gerais à estrutura urbana em que se inseria,
estas diretrizes foram se modificando a ponto de passarem a ser exigidos verdadeiros falsos
históricos, no que ficou conhecido como “estilo patrimônio” – uma arquitetura “falsa em relação ao
passado e ao presente, sem ter personalidade nem marca cultural” (MOTTA, 1987: 116)30:
29 O projeto de reconstrução do Castelo Real de Berlim e as declarações de apoio destas e de outras personalidades podem ser encontrados no site oficial do Förderverein Berliner Schloss e.V.: www.berliner-schloss.de. 30Embora o artigo em questão se refira ao caso específico de Ouro Preto, corresponde a um contexto que era, de certa forma, nacional.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
18
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
Afora a restrição a alguns poucos volumes e a decisão contrária ao afastamento frontal
sempre que era pedido, as normas anteriores empregadas pelo Patrimônio foram sendo
particularizadas para o aperfeiçoamento dos detalhes coloniais nas fachadas. Aquilo que na
primeira fase pretendia apenas conseguir a repetição de linhas tradicionais, passando
depois à definição de utilização de alguns elementos tradicionais anteriormente descritos,
nesta fase se consolidou em exigências específicas e rígidas para o detalhamento do
casario novo. E, desta maneira, os pareceres de aprovação dos projetos se repetiam
durante anos, como um carimbo ou cartilha, variando muito pouco. Eram exigidos telhados
em duas águas, com telha canal, galbo no contrafeito e beiral encachorrado, janelas em
guilhotina com caixilhos, medindo 1,00 x 1,50m, e cerdura [sic] de 0,10m ou 0,12m, pintura
em cor branca nas alvenarias e cor escura nas madeiras. Até mesmo na cor houve um
enrijecimento, pois na década de 40 ainda era permitida cor clara nas alvenarias, não
necessariamente o branco. Com o tempo foram sendo incorporados outros detalhes, como
por exemplo os basculantes dos banheiros, que na década de 70 passaram a ter material e
dimensão fixados, sendo em madeira e medindo 0,80 x 0,80m.
O Patrimônio fixou, desta forma, seu critério conservador estético-estilístico às fachadas,
por serem estas uma expressão passível de deformação e assimilação pelos ouro-pretanos
de hoje, mesmo porque não seria possível exigir a volta às relações sociais que outrora
determinaram o que havia de fundamental na expressão da cidade e das habitações
coloniais. Afinal não seria fácil no século XX viver em alcovas nem achar mocinhas
recatadas por trás das gelosias. (MOTTA, op .cit.: 114-115)
Esta arquitetura de pastiche31 pode ser claramente percebida em dois edifícios construídos por
volta dos anos 1950 no Centro Histórico de Salvador: o Edifício Derrick, localizado na Praça
Anchieta, nº 01/03, e o Edifício Bouzas, situado no Terreiro de Jesus, nº 1332.
Correspondem a duas edificações recentes, com estrutura independente em concreto,
“travestidas” de sobrados antigos que, ao observador menos atento, passam por construções
originais do conjunto, uma vez que os materiais de revestimento, a composição das fachadas
(relação entre janelas, portas e planos de fachada) e até mesmo detalhes arquitetônicos, como as
cornijas, coberturas e algumas esquadrias, repetem os elementos característicos do conjunto.
Somente um olhar mais cuidadoso perceberá que, seja pela escala, seja pela tipologia e por
31 Segundo o Dicionário Houaiss, pastiche é a “imitação servil de obra literária ou artística” (HOUAISS & VILLAR, 2001: 2146). Em arquitetura, ela possui o mesmo significado: corresponde àquelas intervenções nas quais o arquiteto, ao propor a reconstrução de uma edificação desaparecida, se limita a copiar a linguagem arquitetônica e os principais elementos e materiais dos edifícios vizinhos. 32 Embora não se possa afirmar com segurança, há indícios de que ambos correspondem a projetos desenvolvidos por um antigo arquiteto do SPHAN, Anísio Alves Luz, em substituição àqueles apresentados pelos proprietários dos imóveis e cujas execuções não haviam sido autorizadas pelo órgão devido à linguagem art-déco das fachadas, que destoaria do conjunto histórico.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
19
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
alguns materiais construtivos utilizados, como o concreto armado, correspondem a edifícios
modernos.
A arquitetura de pastiche no Brasil não se restringe, contudo, ao “estilo patrimônio” vigente em
meados do século XX, estando vinculada também, em alguns casos, aos arquitetos que
realizaram, particularmente entre o final dos anos 70 e os anos 1980, uma arquitetura pós-
moderna abrasileirada – como o já citado Éolo Maia na Residência Valter e Lenita, na Rua das
Flores em Ouro Preto (1979-85), construída em um terreno estreito e profundo, típico do tecido
urbano ouro-pretense.
Na fachada principal desta residência, Éolo Maia buscou com tal rigor estabelecer relações de
mimetismo com a arquitetura do entorno que o edifício era fotografado pelos turistas como se
fosse uma edificação histórica, levando o arquiteto a desenvolver posteriormente a treliça que foi
aplicada nas portas e janelas da fachada principal:
Externamente, a sua volumetria mantém a escala da Rua das Flores, com uma tipologia
semelhante às construções laterais, do conjunto barroco – conforme exigência do SPHAN.
Posteriormente, o arquiteto criou uma reinterpretação sutil de uma treliça histórica que foi
aplicada nas portas e janelas, cuja finalidade é a de registrar uma referência contemporânea
aos turistas leigos, que imaginavam estar em frente a imóvel histórico autêntico. (MAIA,
VASCONCELLOS & PODESTÀ, 1985: 58)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A defesa da reconstrução de edifícios desaparecidos, particularmente aqueles localizados em
conjuntos históricos, é mais um dos sintomas daquilo que o filósofo alemão Andreas Huyssen
identificou como a “cultura da memória” exacerbada que caracteriza os tempos atuais, onde a
possibilidade de resgate do passado parece frequentemente mais interessante que a construção
do novo (HUYSSEN, 2000: 10-15). Estes “resgates”, entretanto, se constituem quase sempre
naquilo que, desde a segunda metade do século XIX, com a contribuição de Camillo Boito à teoria
do restauro e a preferência pela consolidação e pela conservação do existente à sua
reconstrução, se convencionou denominar de falso histórico.
Ademais, considerando que construir de novo o anteriormente existente é sempre mais
econômico, simples e rápido do que a sua conservação e restauração, ao aceitar
indiscriminadamente toda e qualquer reconstrução, corre-se o risco de tornar moralmente
aceitável que as construções do passado – aquelas verdadeiramente importantes e dignas de
preservação pelo seu valor arquitetônico, histórico, urbanístico ou paisagístico, e que a muito
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
20
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
custo têm sido preservadas – sejam deixadas sob a livre ação do tempo, sem que haja qualquer
preocupação em conservá-las.
A preferência pela reconstrução da arquitetura do passado ou pela sua imitação é representativa
da incompreensão, hoje difundida entre grande parte dos profissionais atuantes nas áreas de
arquitetura, urbanismo e restauro, de que é possível realizar uma arquitetura moderna em
consonância com o contexto; uma arquitetura que, sem abdicar da sua contemporaneidade, não
entre em conflito com as preexistências do entorno e não se transforme em um elemento de
destaque em um conjunto urbano consolidado.
Por outro lado, a ocupação dos vazios urbanos com uma arquitetura absolutamente distinta
daquela que caracteriza o conjunto histórico em que se insere tende a modificar radicalmente a
paisagem urbana, se comportando não como mais um elemento do conjunto consolidado e sim
subvertendo a sua lógica gestáltica, passando o novo edifício a ser percebida como figura,
enquanto o contexto preexistente que deveria ser preservado passa a ser percebido como fundo.
Quanto à consolidação de vazios resultantes do desaparecimento imprevisto de construções
dentro destes conjuntos, se constitui quase sempre em um equivoco, uma vez que compromete a
leitura da morfologia urbana como um todo e dos edifícios vizinhos em particular, modificando a
escala de sua percepção e muitas vezes deixando expostas grandes empenas laterais que jamais
foram pensadas para serem vistas.
A aceitação destes vazios se justifica apenas em situações muito particulares como, por exemplo,
nos casos em que o desabamento imprevisto da edificação anteriormente existente tenha
provocado vítimas fatais. Nestes casos, a manutenção do vazio como testemunho do acidente
pode ser compreendida como uma homenagem póstuma àqueles que ali perderam a vida.
Por fim, a busca por uma arquitetura que, equilibradamente, associe às referências ao contexto
preexistente uma linguagem arquitetônica e materiais e técnicas construtivas atuais parece ser a
solução mais acertada e coerente tanto com a história da arquitetura quanto com as teorias de
restauro mais aceitas na atualidade.
No que se refere às intervenções a serem realizadas nestes vazios, a legislação urbanística deve,
portanto, buscar definir determinados parâmetros de intervenção que impeçam o surgimento de
construções que descaracterizem o conjunto sem, contudo, inviabilizar a realização de uma
arquitetura contemporânea, executada com as técnicas construtivas mais atuais e que atenda de
maneira plena às necessidades da sociedade contemporânea.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
21
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
BIBLIOGRAFIA
ARNHEIM, Rudolf. A Dinâmica da Forma Arquitetônica. Lisboa: Editorial Presença, 1988.
AZEVEDO, Paulo Ormindo de. Reintegração de conjuntos arquitetônicos tombados. Arquitetura –
Revista do Instituto de Arquitetos do Brasil, nº 36, jun. 1965, pp. 16-18.
BRANDI, Cesare. Processo all’architettura moderna. L’Architettura Cronache e Storia, n. 11,
1956, pp. 356-360.
EL CROQUIS. Dominique Perrault – 1990-2001. Madri: El Croquis Editorial, n. 104, 2001.
FOURNIER, Colin. Cultural Transgression. Disponível em: www.kunsthausgraz.at.
GIOVANNONI, Gustavo.Vecchie Città ed Edilizia Nuova. Milão: CittàStudiEdizioni, 1995.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória – arquitetura, monumentos, mídia. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2000.
MAGNAVITA, Pasqualino Romano. Quando a História Vira Espetáculo: Palco Móvel no Pelô. In:
GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras (org.). Pelo Pelô: História, Cultura e Cidade. Salvador:
EDUFBA/FAUFBA/MAU, 1995, pp. 121-131.
MAIA, Éolo; VASCONCELLOS, Jô. Éolo Maia & Jô Vasconcellos Arquitetos. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1995.
MAIA, Éolo; VASCONCELLOS, Maria Josefina de; PODESTÁ, Sylvio Emrich. 3 Arquitetos –
1980-1985. Belo Horizonte: AP Cultural, 1985.
PANE, Roberto. Città Antiche Edilizia Nuova. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1959.
REMPEL, Gerhard. Berlin 2000 Lectures. Springfield, Massachusetts: Western New England
College, 2000. Disponível em:
http://mars.vnet.wnec.edu/~grempel/courses/berlin/lectures/lectures.html.
ROGERS, Ernesto N.. La responsabilità verso la tradizione. In: _____. Esperienza
dell’Architettura. Milão: Skira, 1997, pp. 267-279.
ROMANELLI, Giandomenico. Il Campanile di San Marco. In: PUPPI, Lionello; ROMANELLI,
Giandomenico (org.). Le Venezie Possibili: Da Palladio a Le Corbusier. Milão: Electa, 1985, pp.
252-259.
ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos
��������
22
IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Collage City. Cambridge: MIT Press, 1978.
TAFURI, Manfredo. Storia dell’Architettura Italiana 1944-1985. Turim: Einaudi, 2002.
UNESCO. Report on the Mission to Graz. Paris: UNESCO, 2005. Disponível em:
whc.unesco.org/archive/2005/mis931-2005.pdf.
VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; SCOTT-BROWN, Denise. Aprendendo com Las Vegas.
São Paulo: Cosac & Naify, 2003.