A Que Ponto Chegamos de Vincent Villari

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Primeiro conto do livro A Que Ponto Chegamos de Vincent Villari

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chegamos

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Um gênio do qUal se desconfia

ler ao som de Esses moços (pobres moços), de Lupicínio Rodrigues

Patapinho Verve era um jovem e promissor escritor, de cujo talento ninguém duvidava, embora ninguém tives-se lido de fato algum texto seu. “Ainda não é o momento”,

costumava dizer, instigando com simpática malícia as expectativas alheias. Preparando-se para escrever a obra-prima do novo século, Patapinho sentia a criatividade guinchando em seus neurônios – criatividade que dizia manipular e depurar com o perfeccionismo de um psicopata.

– Quando escrever a primeira linha, sairá tudo num jorro só.Embora garantisse possuir uma capacidade inventiva bas-

tante ampla, era difícil para Patapinho planejar uma rotina de tra-balho, pois tinha de cuidar em tempo integral do pai, o doutor Patápio Verve, que, apesar de nunca ter sido doutor, e sim mo-torista do Instituto Médico Legal, costumava exigir no passado e suplicar no presente que o filho se referisse a ele apenas dessa forma. Tendo enlouquecido nos anos 80 por causa da vinheta da

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Sessão da Tarde, o doutor Patápio atravessou as duas últimas déca-das trancado em um quarto sem luz, tentando, com triste afinco, apagar de sua mente a música e as imagens da assustadora vinhe-ta. A mãe de Patapinho, uma mulher muito alta e de quem este se lembrava apenas do queixo, havia partido com o novo marido para uma cidade litorânea ao sul da Espanha, cuidando de enviar ao filho desde então uma mesadinha, com a qual ele mantivera a si e ao pai ao longo dos anos. Incapaz de precisar se a demência do pai havia se manifestado um mês antes ou um mês depois da partida da mãe, o fato é que Patapinho se viu totalmente desam-parado aos sete anos de idade, e seria previsível que ele se valesse a partir de então de suas tendências criativas, compensando a au-sência de afeto com a magia de suas histórias e a fidelidade de seus personagens. Mas os mecanismos de Patapinho não tinham, ao menos naquela época, a profundidade que se costuma esperar de alguém dotado de temperamento artístico, e ele revelou-se apenas uma criança rabugenta, seca e entediada com a própria carência. Passou os anos seguintes cuidando do pai, algumas vezes trocando sem querer o açúcar do mingau por sal, outras vezes fazendo-o de propósito. E foi somente aos vinte e dois anos, enquanto gotejava molho de alho no leite do pai, que Patapinho teve sua primeira grande ideia.

– Vou ser escritor. Um grande escritor.Patapinho não pôde distinguir com exatidão a nascente dessa

ideia, mas Jackleen, uma vendedora de leitinhos fermentados que cuidava de cães abandonados, de quem ele gostava de ficar perto, havia lhe dito certa vez que as grandes ideias nunca surgem da epi-derme da consciência; elas estalam como pratos no fundo de um ar-mário, e Patapinho ficou muito surpreso ao se perceber vivenciando um processo que parecia tão complexo e sofisticado. Pela primeira

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vez em sua vida, sentiu-se especial, e a bexiga murcha de sua autoes-tima subitamente intumesceu, causando-lhe um torpor de orgulho e leveza. Seus amigos, porém, ficaram um pouco perplexos com a descoberta daquela vocação. Afinal, Patapinho nunca havia lido um livro por iniciativa própria, nunca havia ido ao cinema ou ao teatro, nunca sequer havia acompanhado uma novela de televisão. Ora, um escritor que não se interessa por histórias alheias era algo, no míni-mo, inusitado. Mas Patapinho considerava sua identidade artística – ou a inexistência desta – bastante saudável.

– Alguns nascem para admirar a criação dos outros, outros nascem para criar. Não importam as histórias dos outros; importam as minhas. E, quanto menos eu souber do que já foi feito, menos vou me deixar influenciar.

A verdade é que tinha uma natureza ansiosa demais para pas-sar o tempo lendo ou assistindo a um filme ou a uma peça. Além disso, angustiava-o o fato de acompanhar uma história sobre a qual ele não tivesse nenhum tipo de controle. Faltavam-lhe não apenas o encantamento, mas também a paciência, a atenção e a passividade necessárias ao bom espectador. Para ele, isso era perder tempo, e perder tempo era algo a que não estava disposto.

– Amanhã começo a escrever minha primeira história.Diante da novidade, os amigos se entreolharam.– Você pode adiantar do que se trata?– Claro. Vocês vão adorar. É a história de uma mulher apaixo-

nada por um fisiculturista e por um poeta ao mesmo tempo. Então, para agradar seus dois amores, ela deixa um lado do corpo muscu-loso e bronzeado e o outro magro e pálido. Uma mulher musculosa só de um lado do corpo. Sensacional, hein? Aposto como nunca ninguém pensou uma coisa dessas.

Os amigos de Patapinho novamente se entreolharam.

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– Bom. Para falar a verdade. Eu vi isso em um filme. Não era uma mulher, era um homem. E era um personagem bem secundá-rio. Mas tinha essa coisa de malhar um só lado do corpo.

– Não é possível. Eu não acredito. Que filme é esse?– Não se preocupe. É um filme ruim, pouca gente viu.Patapinho voltou para casa com a sensibilidade estraçalhada

como um rato no estômago de um gato. Levou ao pai um copo de leite vencido, perguntou-lhe com palavras não muito afetuosas se ele tinha a intenção de continuar vivo por muito tempo, e bateu a porta do quarto com uma pancada que levou as imagens da traumatizante vinheta a piscar como néon no cérebro adoecido do pobre velho. Porém, apesar de todo o aborrecimento, Patapinho acordou no dia seguinte com a criatividade cintilando, ávida e buliçosa. Afinal, não era uma coincidência infeliz que o faria mudar de caminho. Ao re-encontrar os amigos, tratou de rir do último episódio.

– Foi tão engraçado o que aconteceu ontem que tive uma nova ideia. Vou fazer uma releitura dos contos de fada. Afinal, como disse alguém aí, nesse mundo, nada se cria, tudo se transforma. Então, vou contar a história da Branca de Neve pelo ponto de vista da madrasta. Não é genial?

– É, mas tem um musical que trata exatamente disso.– Hum. Sei. Bom. Então. Vou contar a história da Cinderela

pelo ponto de vista da madrasta. Da Cinderela, ninguém fez, não é?– Ah, tem um livrinho infantil que conta essa história.

Inclusive, dei de presente para minha sobrinha. Patapinho decidiu mudar de amigos. Aqueles não lhe esta-

vam fazendo bem. Por mais impermeável que fosse sua autoestima, o gás que a preenchia estava começando a comprimir. Decidiu dar a eles uma derradeira prova de confiança.

– Um homem que narra a própria história depois de falecer.

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– Patapinho. Qualquer um com segundo grau leu Brás Cubas.– Mas eu posso contar a história do meu jeito, não posso?– Para quê? Para ser comparado com Machado? Isso não é

nem um tiro no pé, é uma bala de canhão. Foi a gota final para o afastamento, que Patapinho julgou

bem-vinda, pois conseguiu enfim se isolar e escrever sua primeira história, longe de opiniões, advertências e todas essas interferên-cias tão desagradáveis. Às vezes, passava dias esquecido de alimen-tar o pai, levando-o a grunhir com estridência a música da vinheta fatal; então, suspendia por instantes o transe criativo inventado para si, jogava no quarto do pai um pacote de bolachas e um saco de leite, e retomava o suposto transe como se isso fosse algo que se retomasse voluntariamente. Ao final de um mês, concluiu o livro, e pensou em enviar o original a algumas editoras. Porém, como não conhecia ninguém no mercado e não suportava a ideia de ver sua obra nas mãos de analistas invejosos e mal-intencionados, decidiu pegar um atalho não muito abonador, mas que seu inegável talen-to permitia, e pediu dinheiro à mãe para bancar sua publicação. A mãe lhe enviou o capital solicitado sem nem sequer perguntar do que se tratava, o que Patapinho preferiu entender como uma pro-va de confiança em suas aptidões, e, quando voltou a procurar os amigos, já tinha em mãos o livro editado, que exibiu ribombando de altivez.

– Gostaram? Então comprem. Os amigos compraram e foram ver do que se tratava. Era a

história de um escritor que havia desistido de uma peça e recebia a visita dos personagens abandonados, sendo que estes exigiam a retomada da narrativa para voltarem a existir. Lidas as dez primeiras páginas, a vergonha sentida foi tamanha que ninguém teve coragem de continuar a ler.

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– O que poderíamos esperar? Que o Patapinho conhecesse Pirandello?

Decidiram silenciar e abandonar Patapinho à própria sorte. Já que este não os ouvia, talvez a desmoralização pública fosse a única lição possível. Porém, quando o livro chegou às mãos de um crítico literário em busca de jovens talentos, sua reação foi tão imediata quanto fulminante. Assim, no dia seguinte, foi publicada uma sur-preendente resenha.

“Patapinho Verve: guardem esse nome. O jovem autor é o responsável por um dos romances mais inquietantes dos úl-timos anos, Sete personagens orfãos (sic). Nele, o escritor reconta a história da famosa peça de Luigi Pirandello, Seis personagens à procura de um autor, trazendo-a para os dias atuais e locali-zando-a em uma cidade fictícia na Península Ibérica. Sem ten-tar modificar ou disfarçar o mote central da trama – afinal, sua intenção parece ser justamente provocar o leitor com as seme-lhanças –, Patapinho optou por uma narrativa a um só tempo li-near e truncada, utilizando como instrumento para a construção de sua obra um vocabulário extremamente reduzido e pleno de erros ortográficos e gramaticais, a começar pelo título. Porém, é por meio da ignorância e da falta de repertório do narrador, presentes inclusive nas simplificações das questões lançadas por Pirandello, que o autor critica a geração atual, tão pouco habi-lidosa no uso da linguagem escrita, tão pouco articulada na arte da comunicação e, mais do que isso, tão desinformada – e é aí que reside a mordacíssima ironia de Patapinho em apresentar como sua uma história escrita há mais de noventa anos. Fadado à polêmica e à incompreensão, Sete personagens orfãos não é uma leitura fácil nem agradável, mas é indispensável para quem busca compreender o tempo em que vivemos.”

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Foi então que, da noite para o dia, o sucesso não apenas bateu como arrebentou a porta de Patapinho. Todos queriam entrevistá--lo, saber suas opiniões sobre o uso da camisinha no Vaticano, a cri-se econômica mundial, o último videoclipe da Beyoncé, seguido de convites para palestras, inaugurações, bailes de debutantes, reality shows, e ainda propostas de diversas editoras para novas adaptações. Dom Quixote, Madame Bovary, A Metamorfose, Ulisses. E Patapinho, tímido e mal-humorado com aquela fama repentina, berrava de hu-milhação diante de tais propostas.

– Eu não sou um adaptador. Eu sou um autor. Autor de obras originais.

Mas todos imaginavam que esse texto fazia parte da persona do intrigante autor e clamavam com ainda mais vigor por novas adaptações. Atormentado, Patapinho isolou-se em casa por alguns dias. Foi quando notou que o pai não estava mais no quarto, e sim na sala, encolhido debaixo do sofá.

– Aquela música, na minha cabeça. Não sumiu, mas o volume abaixou.

Desolado, Patapinho desabafou com o pai.– Não queria ser admirado pelos motivos errados.E o doutor Patápio sentou sobre as mãos para estancar seu

tremor.– Algumas pessoas não têm nada que justifique o afeto das

outras. Então, quando acontece de elas serem queridas por aquilo que não são, é a maior sorte que podem ter na vida.

Patapinho abraçou o pai e preparou-lhe um carinhoso min-gau. No dia seguinte, anunciou aos amigos que não mais voltaria a escrever.

– Se o mundo não compreende minha obra, então não a merece.

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A grande mídia rapidamente o sepultou, restando a memó-ria de seu livro entre alguns intelectuais que permaneceriam mais algumas décadas discutindo sua relevância. Mas Patapinho não re-tornou à vida artística; com o dinheiro das vendas de seu único livro, fundou um abrigo para cães abandonados, deu um pingente em for-ma de coração para a vendedora de leitinho fermentado e comprou duas passagens, para ele e para o pai, rumo à Espanha.

– Vamos lá, pai. Hora de levantar a cabeça e falar umas verda-des para aquela vagabunda.

E as mãos do doutor Patápio pararam de tremer.– Vamos, filho. Vamos.

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