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A QUALIDADE SOCIAL NA EDUCAÇÃO PELA LENTE DOS GESTORES DA ESCOLA PÚBLICA Geisa do Socorro Cavalcanti Vaz Mendes - PUC-Campinas Margarida Montejano da Silva - Prefeitura Municipal de Campinas Mara Regina Lemes De Sordi - Unicamp Resumo As políticas educacionais de avaliação instituídas na realidade brasileira nas últimas décadas, efetivadas por meio dos exames em larga escala, têm revelado elementos inerentes a lógica empresarial ao se responsabilizar as escolas pelos resultados, tais como: performatividade, gerencialismo, entre outros. Isso se fortaleceu com o incremento do índice de desenvolvimento da educação básica, para medição do desempenho dos estudantes em duas áreas do conhecimento e no controle do fluxo escolar. Objetiva-se nessas políticas elevar os indicadores de rendimento dos estudantes, nos exames de larga escala nacional e internacional. Constata-se os limites do modelo avaliativo por se reduzir a medida dos resultados alcançados pelos estudantes em alguns componentes curriculares como sinônimo de qualidade social. Levando-se em conta que qualidade e avaliação é tema complexo e não pode se reduzir a indicadores quantitativos, propomo-nos, neste texto, trazer para reflexão um recorte de pesquisa, em andamento, realizada com a equipe gestora de oito escolas de uma rede municipal, paulista, a qual tem defendido processos de avaliação institucional participativa, como política pública. Os dados emergem de entrevistas semiestruturadas realizadas com dezesseis sujeitos, entre novembro/2013 à fevereiro/2014. Dados preliminares apontam que a qualidade se alcança por meio de uma formação ampliada dos estudantes, da participação dos estudantes nas decisões da escola, da inclusão social, do comprometimento com as aprendizagens, da organização coletiva do trabalho escolar, da integração da família na escola. Esses elementos, de acordo com as equipes gestora, são sinalizadores do que vem a ser qualidade para a escola pública, não mensurados nos exames externos. Palavras-chave: Avaliação em larga escala. Avaliação Participativa. Qualidade social. Introdução A preocupação com a elevação dos índices de desenvolvimento humano e em especial no que concerne aos níveis de escolaridade tem ocupado, nas últimas décadas, espaço considerável nas agendas políticas dos governantes e seguimentos não governamentais, ocasionando adoção de medidas gerencialistas em defesa da qualidade da escola pública. A tônica tem sido elevar a qualidade das redes de ensino e melhorar os indicadores de rendimento dos estudantes nos exames de larga escala nacional e internacional. Sob a égide neoliberal, tais medidas são acompanhadas, quase sempre de “boas intenções”, contudo, visam atender as lógicas regulatórias do mercado, uma vez que delimita o conceito de qualidade, realoca sentidos do econômico para o educacional e ressignifica valores, produzindo a competitividade e a exclusão. Como afirma Carbonell (2002) o neoliberalismo têm, enquanto projeto hegemônico, regulado toda a economia Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 00749

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A QUALIDADE SOCIAL NA EDUCAÇÃO PELA LENTE DOS GESTORES DA

ESCOLA PÚBLICA

Geisa do Socorro Cavalcanti Vaz Mendes - PUC-Campinas

Margarida Montejano da Silva - Prefeitura Municipal de Campinas

Mara Regina Lemes De Sordi - Unicamp

Resumo

As políticas educacionais de avaliação instituídas na realidade brasileira nas últimas

décadas, efetivadas por meio dos exames em larga escala, têm revelado elementos

inerentes a lógica empresarial ao se responsabilizar as escolas pelos resultados, tais como:

performatividade, gerencialismo, entre outros. Isso se fortaleceu com o incremento do

índice de desenvolvimento da educação básica, para medição do desempenho dos

estudantes em duas áreas do conhecimento e no controle do fluxo escolar. Objetiva-se

nessas políticas elevar os indicadores de rendimento dos estudantes, nos exames de larga

escala nacional e internacional. Constata-se os limites do modelo avaliativo por se reduzir

a medida dos resultados alcançados pelos estudantes em alguns componentes curriculares

como sinônimo de qualidade social. Levando-se em conta que qualidade e avaliação é

tema complexo e não pode se reduzir a indicadores quantitativos, propomo-nos, neste

texto, trazer para reflexão um recorte de pesquisa, em andamento, realizada com a equipe

gestora de oito escolas de uma rede municipal, paulista, a qual tem defendido processos

de avaliação institucional participativa, como política pública. Os dados emergem de

entrevistas semiestruturadas realizadas com dezesseis sujeitos, entre novembro/2013 à

fevereiro/2014. Dados preliminares apontam que a qualidade se alcança por meio de uma

formação ampliada dos estudantes, da participação dos estudantes nas decisões da escola,

da inclusão social, do comprometimento com as aprendizagens, da organização coletiva

do trabalho escolar, da integração da família na escola. Esses elementos, de acordo com

as equipes gestora, são sinalizadores do que vem a ser qualidade para a escola pública,

não mensurados nos exames externos.

Palavras-chave: Avaliação em larga escala. Avaliação Participativa. Qualidade social.

Introdução

A preocupação com a elevação dos índices de desenvolvimento humano e em

especial no que concerne aos níveis de escolaridade tem ocupado, nas últimas décadas,

espaço considerável nas agendas políticas dos governantes e seguimentos não

governamentais, ocasionando adoção de medidas gerencialistas em defesa da qualidade

da escola pública. A tônica tem sido elevar a qualidade das redes de ensino e melhorar os

indicadores de rendimento dos estudantes nos exames de larga escala nacional e

internacional. Sob a égide neoliberal, tais medidas são acompanhadas, quase sempre de

“boas intenções”, contudo, visam atender as lógicas regulatórias do mercado, uma vez

que delimita o conceito de qualidade, realoca sentidos – do econômico para o educacional

e ressignifica valores, produzindo a competitividade e a exclusão. Como afirma Carbonell

(2002) o neoliberalismo têm, enquanto projeto hegemônico, regulado toda a economia

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em escala global e esta, tem exercido domínio poder sobre a educação, em detrimento da

cultura e da política.

Levando em conta que qualidade é tema complexo e polissêmico,

propomo-nos, neste recorte da pesquisa, (Observatório da Educação - CAPES) realizada

em oito escolas municipais, em uma cidade do interior paulista, apresentar alguns

elementos para a reflexão sobre a educação na escola pública, a partir de indicadores

apontados pela equipe gestora como sendo de qualidade social, não mensurados nos

exames externos. Os dados emergem dos depoimentos dos sujeitos, em entrevistas

realizadas entre o período de novembro/2013 e fevereiro/2014. Entrevistou-se 16

gestores, sendo 06 diretores, 04 vice-diretores e 06 Orientadores Pedagógicos que

relatam como compreendem a qualidade social.

Para tratar do que os gestores anunciam como outros elementos que contribuem

para a qualidade da educação, os quais não são identificados nos exames, discorreremos

inicialmente sobre algumas significações ao termo qualidade e avaliação, implícitas às

políticas públicas; na sequência são apresentados as vozes dos gestores; e finalizamos

confirmando os limites do atual modelo de avaliação.

Qualidade e avaliação: considerações acerca de seus singnificados

Refletir sobre a qualidade da educação nos remete, inevitavelmente a verificar os

mecanismos utilizados pelas políticas públicas para a impressão da ideologia pretendida,

constando a lógica neotecnicista atribuída à avaliação. Nessa esteira, a relação avaliação

e qualidade se estreitam definindo rumos da educação.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, podemos dizer que se

inscreve no País uma “cultura da avaliação”, ancorada na medida, por meio de exames

em larga escala, que abarca todos os níveis de ensino. A criação do Sistema de Avaliação

da Educação Básica (SAEB) vem consolidar a avaliação externa na educação básica, com

o objetivo de construir dois tipos de medidas, a saber: da aprendizagem dos estudantes,

e dos fatores de contexto relacionados com o desempenho escolar. Pretende subsidiar a

formulação de políticas públicas, a partir do diagnóstico da eficiência dos sistemas no

processo de ensino-aprendizagem e a equidade da educação oferecida (BRASIL, 1994).

Observa-se ao longo dos anos mudanças nesses objetivos e nos desenhos avaliativos da

política de avaliação, abre-se espaços para a introdução de sistemas de responsabilização,

a partir de 2007, com a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica -

IDEB. Segundo Freitas (2013, p. 149), "neste novo estágio, modelos estatísticos são

usados para apoiar as concepções de educação baseadas em responsabilização".

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No IDEB há a combinação de dois indicadores para monitoramento do sistema de

ensino, a saber: a) indicadores de fluxo - taxa média de aprovação em determinada etapa

de ensino (promoção, repetencia e evasão) - obtidos no Censo Escolar; e b) pontuações

em exames padronizados (língua portuguesa e matemática) obtidas por estudantes ao final

do ensino fundamental (anos iniciais e finais) e ensino médio, a partir das médias de

desempenho nos exames do SAEB e da Prova Brasil (BRASIL, 2007). Constata-se um

reducionismo do conceito de qualidade educacional ao que é testado em duas disciplinas,

e a aprovação/reprovação, como referido acima, conduzindo ao estreitamento curricular,

reforçando fragmentação do currículo, bem como o abandono a perspectiva

interdisciplinar de formação (OLIVEIRA, 2013).

A divulgação e o uso dos resultados desse índice, como o indicador de qualidade

do ensino, trouxeram consigo implicações para as relações entre União e entes federados,

sobretudo, para as redes municipais, que estão na ponta de todo esse processo. Diversos

autores (FREITAS et al, 2009; FREITAS, 2012, 2013; SOUSA & ARCAS, 2010;

OLIVEIRA, 2013, e outros.) tem afirmado que, a partir dessa política, verifica-se a

introdução e aprimoramento de mecanismos de gestão educacional assentados no

monitoramento dos resultados educacionais para elevar os índices, que levam aos

seguintes efeitos: redefinição do currículo escolar; incorporação de premiação e punição

de escolas e seus agentes; ranqueamento das escolas, alunos, redes; responsabilização das

escolas, professores, alunos; preparação/treinamento dos alunos para fazer o teste ou o

estímulo a não fazê-lo àqueles que a priori terão notas menores; sistemas de terceirização

de serviços, de parcerias público-privado etc.

Pode-se inferir que essa situação apresenta ainda um dos limites, por exemplo do

IDEB, quando desconsidera as condições socioeconômicas em que ocorre o processo

educativo. Isso instiga os defensores da qualidade social a colocar no debate a influência

do nível sócio econômico (NSE), na constituição dos indicadores de desempenho. O NSE

dos estudantes e suas famílias marca indelevelmente os resultados que estes obtêm nos

exames nacionais ou internacionais que regem as políticas de regulação da qualidade

educacional. É possível afirmar que uma vez conhecido este indicador e disposto na forma

de tabela classificatória, haverá coincidência da distribuição dos estudantes ao se

comparar com as notas obtidas nos exames (FREITAS et al 2009).

Ressalta-se que não se trata de ser contrários às avaliações, tampouco ao

diagnóstico que elas oferecem, o que se põe em relevo é o uso que se tem feito delas e a

lógica que as percorre. O problema se instala quando as políticas educacionais, o sistema

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de ensino (federal, estadual, municipal) se vale dos dados para acirrar a competitividade

entre suas redes. Cria-se uma corrida desenfreada para ver quem chega nos primeiros

lugares do topo do ranking em função ora da recompensa via bonificação ora se livrar da

punição via execração pública, sem se questionar mais os balizamentos do diagnóstico

que acabam dando forma a concepções de qualidade desprovidas de pertinência social.

Demarca-se que não está em discussão a qualidade da educação oferecida na

escola. A qualidade é condição de existência desta escola e a aprendizagem significativa,

dela, é consequência. Partindo deste pressuposto as alterações pedagógicas coadunam-se

com o dever de se garantir o direito constitucional de educação a todos. O Estado, a escola

e a família se constituem em instituições responsáveis para a realização desse direito

inalienável às crianças e jovens.

Por fim, o significado de avaliação é bem mais amplo do que lhe é atribuído nessas

políticas, consiste em um processo que pode tomar a medida como uma de suas

dimensões, valendo-se dela para prover análises que deem sustentação a tomada de

decisão. É mister considerar que a qualidade educacional aqui defendida, é a “Qualidade

Negociada” fundamentada no conceito de Anna Bondioli (2004, apud FREITAS et al,

2009), por ser detentora de uma natureza: negociável, participativa, autorreflexiva,

contextual e formadora, a qual não se limite a indicadores que medem a proficiência em

componentes curriculares e a taxas de aprovação, mas que abarque uma formação ampla

em que seja contemplados todos os componentes curriculares, a construção de valores, as

regras de socialização, formação para cidadania, processos de gestão que viabilize a

participação democrática, condições de funcionamento das escolas em termos de

infraestrutura física, e de pessoal (quadro de professores completos, jornada de trabalho

etc.).

Indicadores de qualidade: olhando a escola pela ótica dos gestores

Indicadores são sinais que revelam aspectos de determinada realidade e que

podem qualificar algo e servem para medir situações diversas. A variação dos indicadores

nos possibilita constatar mudanças para uma condição de melhoria/satisfação ou, para

resultados abaixo do desejado, representando uma situação de piora. Quando se avalia a

escola, por exemplo, pode-se dizer que os indicadores apresentam a sua qualidade em

relação a importantes elementos de sua realidade, que abarcam várias dimensões.

O fato é que não basta “medir” a qualidade da escola, os dados de avaliação devem

produzir sentidos e estes se ampliam quando estão próximos dos atores da escola.

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Esquecidos nos relatórios, eles acabam inertes e desprezíveis, truncando-se as

possibilidades de transformação qualitativa da realidade das instituições escolares.

Com base nestas indagações e constatações, algumas questões nos provocam no

espaço da pesquisa, levando-nos a investigar: como a escola produz qualidade social?

Como os alunos se desenvolvem em seus espaços? Como se verificam as aprendizagens?

O que o aluno aprende quando não aprende? Como os gestores identificam ou elementos

reveladores de qualidade social que não são “medidos” pelos exames em larga escala?

Na tentativa de elucidar essas questões destacamos das falas dos gestores, aquelas

que revelavam noções de elementos que podem compor indicadores de qualidade social

da educação que a escola valoriza, não são considerados pela avaliação externa. Dentre

as ideias selecionamos aquelas que traduzem conceitos de qualidade, quais sejam:

formação ampliada; participação dos alunos; comprometimento com as aprendizagens;

inclusão social; organização coletiva do trabalho escolar; e integração da família na

escola.

Considerando que a escola é um espaço de relações e de finalidade clara e, os

sujeitos que a descrevem a vivenciam, tomamos emprestadas as palavras de Zabalza,

quando diz que a “qualidade, [...] não é tanto um repertório de traços que se possuem,

mas sim algo que vai sendo alcançado. A qualidade é algo dinâmico [...] algo que se

constrói dia a dia e de maneira permanente” (1998, p. 31- Grifos do autor).

Respeitando a sequência das informações coletadas sobre qualidade, a formação

ampliada, emerge como um dos seus elementos, representando todas as situações que,

segundo os gestores, envolvem as aprendizagens não captadas nas avaliações externas,

tais como: atividades curriculares diversificadas, formação além da dimensão cognitiva e

do conteúdo disciplinar, formação para a construção de valores (respeito, solidariedade),

formação para a cidadania (consciência cívica, participação, organização, compromisso

com o coletivo). Vejamos a voz dos gestores:

Conteúdos procedimentais, os atitudinais. A participação no Grêmio,

por exemplo, isso não é medido pelo IDEB.

A questão de que ele, o aluno, pode avaliar o ambiente em que ele

estuda e este tipo de percepção, de consciência política, de autonomia,

de pró-atividade mesmo, de fazer as coisas, de conversar, reclamar, ter

uma voz, saber que tem esta voz e que é escutado e pode ver resultado.

[...] O poder de ter essa criatividade, a iniciativa de pedir e depois

assim...de até detalhar o que eles querem. [...] Vai se fazer um sarau

de música, com apresentação de canto, de instrumentos, de danças,

festa com músicas pra dançar.

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A gente tem sempre um tema geral que pega algum assunto de valores,

valores humanos, então um ano a gente trabalho direitos humanos, no

outro a solidariedade, esse ano foi a responsabilidade.

Atenção, honestidade: valores que fazem toda diferença na escola, que

fazem muita diferença na sala de aula, no comportamento do aluno.

A formação ampliada a partir de olhares e perspectivas diferentes dos sujeitos

aproxima-se do campo dos valores, uma vez que extrapolam o conhecimento formal.

Apontam que, sem uma métrica razoável, os testes revelam a sua impotência na

identificação daquilo que tem significado e marca a vida dos alunos. Daquilo que pode,

de fato, produzir a superação das dificuldades de aprendizagem e das relações sociais

dentro da instituição. Freire (1996) nos ajuda a avançar para além do currículo formal

rumo à formação ampliada quando questiona:

Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva

associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em

que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior

com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma

“intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a

experiência social que eles têm com os indivíduos? (p. 30)

A participação dos alunos vem à tona como sendo outro elemento essencial para que

se alcance um patamar de qualidade. Ela se efetiva nos processos coletivos de

planejamento, de reflexão, de avaliação, conforme anunciam os gestores, os alunos estão

aprendendo a pautar:

Porque os alunos vêm com reivindicações, demandas… eles demandam

para a escola […].

Eles [alunos] têm uma coletividade maior, uma convivência maior e

uma consciência do que precisa ser feito.

Os alunos se propõem a fazer atividades, por exemplo, esse ano

começou o grêmio. [...] os pequenininhos tão pleiteando, assim,

pleiteando certas coisas, que eu estou achando legal.

Os gestores olham para a escola e concordam que o comprometimento com as

aprendizagens é fundamental para melhorar a qualidade e cabe, aos adultos responsáveis

pelas crianças, pais, educadores, funcionários, direcionar maior atenção às dificuldades e

à realidade dos alunos. O estabelecimento de práticas pedagógicas diferenciadas pode

fazer a diferença na construção do conhecimento e enfrentamento das dificuldades de

aprendizagem das crianças. Realçam também que a escola não pode se furtar a rever o

projeto pedagógico e de repensar outras atividades para promover as aprendizagens.

E a gente às vezes vê que o aluno está enfrentando um conflito que se

arrasta e não acaba; como ele vai ter cabeça pra produzir uma

redação, um teste de matemática. Eu vejo que têm alunos que não

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conseguem parar; é um turbilhão de ações; não conseguem se

organizar... Isso os testes não medem.

Nós temos que ter um olhar diferenciado pra cada um dos alunos;

porque a minha necessidade não é a mesma que a sua, a minha forma

de aprender não é a mesma que a sua. Então, a minha fala é o olhar

diferenciado.

Essas ideias, relacionadas às práticas pedagógicas voltadas ao atendimento

individual dos alunos são potentes, e podem resultar na melhoria das aprendizagens. A

boa qualidade do trabalho pedagógico é obrigação dos profissionais da educação e deve

ser assim exigido, uma vez que: “A prestação pública de contas daquilo que fazemos em

prol da aprendizagem das crianças é condição imperativa para o desenvolvimento de um

projeto educativo consistente e socialmente eficaz” (FREITAS et al., 2009, p. 38).

Silva (2009) nos lembra que a qualidade social da educação não se limita às

fórmulas matemáticas, tampouco a resultados estabelecidos a priori e a medidas lineares

descontextualizadas. Esta afirmação nos conduz à inclusão social como outro elemento

importante reconhecido pelos gestores para se entender e se perseguir a qualidade

educacional. Identifica-se em suas falas a preocupação com os alunos no que tange a

permanência dos mesmos na unidade educacional. Essa preocupação, além do

entendimento da garantia de acesso e permanência, apareceu relacionada à aprendizagem

de conteúdo formal, pois a infrequência compromete as aprendizagens e impede o aluno

de avançar na construção do conhecimento e seguir em frente, desmotivando-o.

[em relação à infrequência] A escola vai atrás. A escola comunica. A

escola manda até o funcionário nosso levar cartinha, quando a gente

não consegue, porque eles dão... às vezes, o telefone ou o endereço

errado.

Os esforços que você faz para recuperar um aluno evadido, a prova

não mede.

Leva-se em conta ainda a complexidade da escola, do entorno social, das

condições socioeconômicas e culturais das crianças, que muitas vezes se encontram em

situação de desvantagem ou, em situação de risco, as quais carecem de receber uma

educação diferenciada daquela que geralmente se oferece, quando se defende a

homogeneidade entre os sujeitos. Os gestores apresentam iniciativas tomadas pelas

escolas que consideram essas condições, que promovem o acolhimento e o diálogo com

eles e seus familiares, em especial aqueles em situações de envolvimento com drogas

lícitas e ilícitas, e em situação de vulnerabilidade social; vejamos,

Nosso grande desafio é a questão social... é a inclusão social e, às

vezes, isso extrapola até mesmo a questão da aprendizagem. [...] quem

vai socorrer esses alunos do 9º ano que estão saindo? A gente fez um

trabalho aqui, de resgate, com situações de família muito

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problemáticas, envolvidas com droga... com o trabalho de toda a

escola eles estão se formando.

Que ele [aluno] saiba que há uma outra possibilidade para ele e isso

nenhuma prova, nenhuma avaliação externa vai conseguir medir... E

não é uma coisa só minha... todo mundo que vem para cá sabe... você

se apaixona pelo desafio de encontrar essas crianças e que eles nos

contem que eles têm uma esperança. Nosso desafio maior é aliar as

duas coisas... esse trabalho conjunto de conversar, de autoestima, de

‘perder tempo’ com o aluno... não teria como ser de outra forma. Isso

nenhum indicador de avaliação externa vai medir.

Verifica-se, pelos depoimentos que a dinâmica do cotidiano escolar, na sua

complexidade, absorve o tempo e a atenção de gestores impedindo-os, muitas vezes de

auxiliar os alunos nas suas necessidades. Contudo, enfaticamente reforçam o que os

exames não medem: os esforços deles próprios na realização da gestão da educação; dos

professores que não desistem da escola pública e dos alunos que, apesar de tudo, traduzem

a esperança nas várias formas de participação.

Com isso e com base na essência da profissão, os gestores apontam a organização

coletiva do trabalho escolar como sendo fundamental para o enfrentamento dos

problemas de aprendizagens e, ao mesmo tempo, compreendem que, nos espaços

coletivos reside a possibilidade de melhorar a qualidade educacional, o que não é captado

nos exames. Sinalizam que, por meio da discussão coletiva dos problemas que afetam as

aprendizagens; da valorização dos espaços coletivos (Comissão Própria de Avalição,

Conselho de Escola e outros colegiados) será possível promover outra prática pedagógica.

Dizem os gestores que, a todo momento os problemas da escola chamam a atenção

dos professores e mesmo quando não estão reunidos nos espaços coletivos, estão a pensar

e a buscar alternativas para a a melhoria do ensino aprendizagem:

Usamos os espaços, TDC (Trabalho Docente Coletivo), CPA

Comissão Própria de Avaliação), RPAIS (Reunião Pedagógica de

Avaliação Institucional), Conselho... para desenvolver um trabalho

docente significativo. Quando a gente ressignifica aqui o resultado das

provas [SAEB], nós estamos valorizando aquilo que nós fizemos aqui,

nós estamos nos autoavaliando. Repensamos o que nós deixamos de

fazer e o que nós podemos fazer para avançar com relação aquele

dado.

Na autoavaliação dos alunos, aparece muita coisa em relação ao

trabalho dos professores. Eu acho que a autoavaliação é um

instrumento valiosíssimo, tanto que o aluno pode refletir sobre a

postura dele enquanto aluno e também revela muita coisa a respeito

das aulas, da qualidade do ensino.

Não obstante, os gestores assinalam que a escola não pode se responsabilizar

sozinha pela educação das crianças e adolescentes. Assim, apontam que a integração da

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família na escola é outro elemento potente na defesa da educação pública. Reconhecem

que a presença dos pais na escola fortalece o direito constitucional de acesso ao

conhecimento e permanência dos filhos na escola, bem como os envolvem nas questões

de disciplina e aprendizagem, num compromisso compartilhado. Eles afirmam:

A presença dos pais é muito importante e estamos sempre buscando

que tenha a participação deles na escola, que estejam presentes.

Rinaudi (1985 apud BONDIOLI, MANTOVANI, 1998) compreende a

participação da família como sendo uma parte imprescindível do projeto educacional.

Para a autora os três sujeitos da educação – a criança, os educadores, a família – são

considerados inseparáveis em sua integração: “o sistema de relação é de tal forma

integrado que o bem-estar ou desconforto de um dos três protagonistas não é somente

correlato, mas até interdependente do bem-estar ou desconforto dos dois outros

protagonistas” (p. 327).

Na percepção dos depoentes a escola é compromisso de todos e a qualidade das

ações educacionais está relacionada ao envolvimento de outros atores externos a ela,

como por exemplo o Conselho Tutelar, os postos de Saúde e demais Secretarias

Municipais, assim como associações de bairro, igrejas, vizinhos. Assim, a escola se

fortalece e os alunos serão os maiores beneficiados, por meio da relação escola e

comunidade externa traduzindo em outro elemento para se alcançar a qualidade.

Percebe-se, na fala dos sujeitos, um indicativo de que os exames também não

conseguem identificar as reais condições em que as escolas trabalham, a saber: existência

de uma equipe de profissionais para organização do trabalho pedagógico e da sua

efetivação, e de condições materiais e físicas que minimamente permitem o

desenvolvimento do ensino aprendizagem. Isso corrobora o que é defendido por Oliveira

(2013), quando defende que um indicador de qualidade social, para além de avaliar o

desempenho em todas as áreas do conhecimento, deveria avaliar o processo e os insumos

que lhe são necessários. Isto posto, entendemos que a forma como os gestores veem a

qualidade da escola em que atuam e como a organizam nos possibilita avançar rumos as

considerações a que este estudo leva.

Considerações finais ainda que provisórias

Vimos ao longo deste texto que as políticas educacionais, baseadas em índice de

medição da qualidade, promovem o ranqueamento e a responsabilização das escolas,

fazendo com que se cumpram os objetivos dos processos de reformas educacionais sob a

lógica do capital. Nas quais se defende um conceito hegemônico de qualidade baseado

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em um critério de eficiência, ancorada em princípios do campo econômico, transpondo-

se o conceito de qualidade própria dos negócios comerciais, para o campo dos direitos

sociais e, nestes, para a educação pública que remetem a utilidade, praticidade e

comparabilidade, por meio de padrões de medidas e níveis (SILVA, 2009).

Os gestores nos ajudam a compor o mosaico da qualidade perseguida, contudo e

não menos importante, trata-se de um ponto de vista ainda em movimento, uma vez que

a pesquisa está em processo. Para eles alguns elementos são indicativos de qualidade na

escola em que atuam e reforçam que os exames externos passam ao largo sem

possibilidades de percebê-los, quiçá, medi-los. Eles trazem a ideia de formação ampliada

como elemento de qualidade, nota-se que eles percebem o quanto as avaliações estão

distantes daquilo que entendem ser significativo às crianças e adolescentes da escola

pública. Fornecem elementos para que se pense sobre o reducionismo presente nas

avaliações e que a vida na escola extrapola a medição do desempenho em português e

matemática. Por mais que a escola se arvore em preparar os alunos para melhorar seu

IDEB, não pode desconsiderar que os alunos carecem de um currículo ampliado para a

sua formação. Quando enfatizam que a participação dos estudantes nas decisões da escola

faz diferença, os gestores reforçam o que a literatura já vem apontado há muito, ou seja,

a participação dos alunos é que dá sentido ao conhecimento produzido na escola,

conforme os autores já citados neste texto.

A inclusão social, apresentada como elemento de valor dentro dos muros da

escola, sinaliza que a ação de incluir vai além da ideia de inclusão do aluno com

deficiência, pois busca-se se recuperar o aluno ausente e ou considerado perdido pelo

caminho, assim como possibilitar a participação ativa dos mesmos nos espaços de decisão

da escola. Isso, como enfatizam: os testes não conseguem medir!

Os gestores, de modo recorrente, compreendem a organização coletiva do trabalho

escolar como a peça chave para o desenvolvimento da qualidade na escola, possibilitando-

nos inferir que, para eles, a melhoria da aprendizagem passa antes pela melhoria do

trabalho pedagógico e organização da escola. Assim como passa também pela

indispensável participação da família na vida escolar dos filhos. Esta forma de ver anuncia

que a qualidade que não é medida pelos testes, envolve os sujeitos da escola como um

todo.

Sobre esses e outros elementos pontuados pelos gestores cremos que, quando

outros sujeitos da pesquisa revelarem o que fazem para a construção de uma educação de

qualidade, novas indagações emergirão, possibilitando continuar o debate.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300758

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Conclui-se que, apesar da força indutora do mercado sobre as redes de ensino, a

qualidade da educação pública tem também constituído um desafio à aqueles que

compreendem a educação como prática social e ato político, suscitando indagações sobre

o sentido da qualidade que se tem e que se quer produzir na escola pública. Assim como

faz um convite à sociedade de um modo geral e aos educadores, especialmente, a não se

furtarem ao debate sobre a que qualidade as políticas públicas tem se curvado,

construindo reações que levem a outra lógica avaliativa, na qual haja a participação de

todos os atores.

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EdUECE - Livro 300759

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